A névoa cinza-azulada da vingança

Não entendo como há tanta gente que insiste em ser desagradável, gratuitamente.

Eu fumo. Fumo porque a fumaça é gasosa, porque se fosse líquida seria coca-cola e eu beberia. Fumo muito. Mas procuro respeitar os não fumantes. Isso quer dizer nunca fumar onde não é permitido e evitar fumar em lugares fechados. É a única forma de chegarmos a uma convivência sem muitos sobressaltos.

Ao mesmo tempo espero que respeitem os meus direitos, apesar da propaganda maciça que busca nos tornar cidadãos de segunda classe. Se fumar não é proibido — ainda — neste país, eu tenho o direito de fumar onde não é interditado. É simples assim, e é impressionante como os zelotes anti-tabagistas se dispõem alegremente a passar por cima de um conceito tão simples de liberdade em nome de sua própria paranóia.

Domingo, em Maceió. Eu tinha acabado de tomar o café da manhã numa pousadinha e estava lá fora com a Mônica, fumando. Aparentemente eu poderia fumar no hall, mas por que incomodar desnecessariamente os não fumantes? Lá fora era mais sensato e respeitoso.

Eu estava de costas para a entrada; foi a Mônica quem viu a velha primeiro. Ela chegou na porta, nos viu fumando e fez o gesto de quem abana o ar à sua frente, de quem afasta a fedentina dos seu nariz delicado — embora o rosto da velha não tivesse nada de delicado, apenas ventas largas e rugas crestadas de sol que devem ter vindo não da idade, mas do azedume do seu espírito. Ela ainda não tinha sentido o cheiro de fumaça; mas o seu espírito de porco, a sua chatice de velha ranheta precisava se manifestar. Ela viu alguém fumando e, com a certeza estúpida que a idade provecta dá a algumas criaturas, resolveu manifestar o seu desagrado — essas coisas que quem não está satisfeito com a vida que leva faz ao ver outras pessoas felizes.

Então ela passou por nós abanando o ar, carregando uma sacola para um táxi estacionado em frente. Voltou do táxi fazendo o mesmo gesto, a mesma cara de fedor, mas agora soprando o ar com força pelas narinas, mais ou menos como faz um cavalo cansado — e aquela égua devia mesmo estar cansada da vida ruim que deve levar.

A velha desgraçada queria se fazer notar, estava dando o recado que achava necessário. Eu não entendi recado nenhum, sou meio estúpido para essas coisas, mas fiquei pensando que ela tinha cara de peidona — parecia ser daquelas velhas que passam as tardes de domingo sentadas numa cadeira de balanço assistindo ao Sílvio Santos e soltando flatos em tons e sons diferentes até a hora de dormir, indiferente ao som e ao mau cheiro. Era essa velha que fazia questão de insultar dois fumantes pacatos que se tinham recolhido para poder fumar em paz seus cigarros.

“Mônica, me avise quando ela estiver voltando.”

Não demorou muito. Daí a pouco ela passou de novo, as duas mãos ocupadas com pacotes — talvez renda de bilros, talvez artesanato alagoano, talvez remédios para a sua artrite, quem sabe até receitas de algum charlatão para curar os seus maus bofes.

Enchi os pulmões com a maior quantidade de fumaça que pude armazenar.

Esperei os passos se aproximarem.

E então, com a sincronia perfeita que só se vê em boas equipes de nado sincronizado, soltei em sua direção a maior baforada que já dei em todas as minhas décadas como fumante. Densa, concentrada — o tipo que se pode soltar abrindo bem a glote. E a velha atravessou galhardamente a belíssima nuvem de fumaça cinza-azulada, sem poder dar tapas no ar porque suas mãos estavam ocupadas, e fez uma expressão de raiva e desespero, e começou a tossir, e eu a acompanhei com os olhos até o táxi, onde ela entrou ainda tossindo.

E nesse instante eu me senti bem e me senti em paz, e você precisava ter visto o meu sorriso, e se fosse noite eu teria dormido com a consciência de que a justiça tinha sido feita, teria dormido o sono das crianças tranqüilas.

Talvez a velha esteja tossindo ainda hoje, e esse pensamento, embora improvável, me faz sentir melhor.

Republicado em 05 de outubro de 2010

Um meme achado por aí

Vi o meme na Luma e resolvi me meter na conversa mesmo sem ser convidado:

1 – Por que você resolveu criar o blogue?

Eu queria um lugar onde pudesse escrever as bobagens que mandava para amigos por e-mail, e um lugar onde pudesse escrever de maneira diferente do que costumava escrever, com textos mais longos, sem muita regra. Exercício.

Mas acho que a pergunta que importa não é essa. Começar um blog é muito fácil. A pergunta que realmente importa é: por que você mantém um blog?

E eu não tenho uma resposta a essa pergunta. Talvez porque eu goste de escrever, talvez porque eu goste de dar opinião sem base sobre qualquer coisa, talvez porque eu goste de irritar as pessoas.

2 – O que te dá mais prazer em blogar?

Elogios. Eu sou viciado em elogios, é uma doença que me acompanha desde a mais tenra idade. Eu comia elogios no café da manhã. E quando ninguém me elogia, o que aliás é excessivamente comum, eu me auto-elogio. Por falar nisso, eu já disse hoje que sou quase lindo?

3. Indique um blogue bom e um que você não gosta e porque.

Não posso indicar um blog de que não gosto porque não leio blogs de que não gosto. Ler blogs de que não se gosta é uma ocupação masoquista para quem tem tempo livre à disposição, e eu não tenho.

De resto, a verdade é que não sou grande leitor de blogs, por falta de tempo. Não tenho internet em casa. Isso me tira a chance de descobrir coisa boa e me faz ficar cada vez mais defasado tecnologicamente; fico mais conservador e não acompanho essas novidades de Facebook, Second Life, etc.

No fim das contas, eu recomendo os blogs que estão aqui ao lado, no meu blogroll.

4. Qual o tipo de música e quais suas bandas favoritas?

Rock and roll, blues, jazz e soul. Beatles.

5. Qual o assunto que você gosta mais de postar?

Pergunta difícil e que também não sei responder. Qualquer coisa. O que vier à minha mente angelical.

Mas acho que gostaria de escrever textos mais longos, analíticos e seriamente embasados, aquelas coisas que dão respeito, sabe? Mas me falta tempo. Eu queria fazer um post sobre cotas, sobre as razões pelas quais mudei minha opinião nos últimos anos (uma pista está aqui e aqui), mas me falta tempo objetivo e subjetivo; escrever por escrever não vale a pena. E como se isso não bastasse, problema maior seria acompanhar a discussão subseqüente.

Aí eu escrevo qualquer besteira e torço para não ser muito esculhambado.

6. Seaquinevasseceusavaesqui?

Eu não falo russo, camarada. É a sua.

7. Você é casado, solteiro, separado, enrolado, desquitado, chutado, viúvo ou outros?

Vivo levando tanto pé na bunda, coitado de mim, que nem sei mais. Ninguém me ama. Ninguém me quer.

8. Por que você deu este nome ao seu blogue?

Porque nome bonito estava em falta. Um muambeiro ficou de me arranjar um melhor, mas a Receita pegou o idiota no Galeão.

9. Qual o último blogue que visitou?

Acho que o Liberal Libertário Libertino, procurando um post sobre o qual eu queria falar.

10. Por que resolveu participar deste meme?

Porque eu não tinha assunto para hoje.

Carta do Além

É isso, basta um sinal vermelho para que alguém lhe entregue um panfleto qualquer.

O panfleto era assinado por uma tal Sociedade Bíblica Ebenézer. Nome estranho, Ebenézer, parece personagem sovina de Dickens. Trazia umas silhuetas de saguaros ao entardecer — o que saguaros têm a ver com o tema eu não consigo perceber — e o texto que segue abaixo:

Carta do Além

Imagine se o diabo resolvesse escrever uma carta para alguém aqui da Terra.

Dessas pessoas folgadas, que não estão nem aí com Deus ou a igreja. Creio que ela seria mais ou menos assim:

“Caro amigo”:

Saudações infernais!

Estou tão ansioso por nosso encontro final que resolvi escrever-lhe afim (sic) de manifestar minha paixão por você. Você é tão perverso, orgulhoso, malvado e rancoroso!

A característica que mais admiro em você é esse seu desprezo por Deus. Noto que você transgride todos os mandamentos da Bíblia. Particularmente estou torcendo para que você adquira logo uma doença. Com sua vida promíscua, creio que isto não vai demorar.

Também torço para que você se arrebente quando dirigir bêbado. Isto o traria logo para os meus braços, numa união eterna.

Outro dia, quando se livrou daquele chato que, com a Bíblia na mão, insistia que você mudasse de vida, nós fizemos a maior festa.

Para encerrar, espero que você permaneça firme. Fuja da igreja. Nunca ouça ou veja aqueles programas que falam do meu maior inimigo — Jesus.

Atenciosamente,
Satanás.

Esta carta é uma peça de ficção. Mas o seu conteúdo é verdadeiro. Se você não gostou do que nela está escrito, vai gostar menos ainda de ir para o inferno. Ainda dá tempo de se arrepender de seus pecados e se entregar a Jesus.

Agora olha a sacanagem, a sinuca de bico em que me meteram. De um lado Satanás (Sassá para os íntimos) declarando sua paixão por mim, sem que algum dia eu tivesse lhe dado um vislumbre sequer de ousadia para tanto. Do outro Cristo — para não deixá-Lo por baixo, vamos chamá-Lo de Jejê — querendo que eu me entregue a Ele; justo o bonzão do Jejê, o grande moralista, o sujeito que sempre disse que antes do casamento a gente não deve fazer essas coisas de safadeza.

Ou seja, é todo mundo querendo me foder, que eu sei bem aonde essas coisas de paixão e entrega acabam levando.

É de bom alvitre lembrar a esses dois malandros que sou moço de boa família e de bons princípios. Não vou me entregando assim a qualquer uma, quanto mais a um barbudinho com cara de trotskista e a um corno vermelho que nem aqueles itabaianenses que trabalham de sol a sol roubando cargas de caminhão.

Em não tendo escolha, a princípio eu tenderia para Sassá, porque Jejê tem barba enquanto Sassá tem um rabo enorme, e rabos me são agradáveis.

Mas confesso que a sua cartinha me deixou um pouco chateado. Não por querer que eu me arrebente dirigindindo bêbado, porque isso é coisa de mulher rejeitada e, além do mais, não gosto e dirijo muito pouco, muito menos bêbado. Tampouco por me chamar de perverso, essa é a menor das sacanagens. Não. Posso ser orgulhoso, confesso, mas perverso, não. Todas as maldades que faço têm motivo de força maior, uma provocação. São reações, apenas. Eu gosto mesmo é do pecado da preguiça. Me deixe quieto no meu canto e não faço maldade a ninguém, porque antes de ser orgulhoso eu sou baiano. E não fui eu quem se livrou daquele chato. Foi ele que não quis me pagar o dízimo e foi embora, irritado. É impressionante como esse pessoal manda sua fé e sua atividade missionária para os quintos quando você pede um dinheirinho a eles.

O verdadeiro problema na cartinha do Sassá foi dizer que levo uma vida promíscua. Por que o deboche, assim tão desnecessário? Ele sabe que isso era tudo o que eu queria: uma vida promíscua e estróina, cheia de mulheres daquelas que inspiram um samba de Lupicínio Rodrigues. Por uma vida promíscua eu iria dez vezes para o inferno, feliz da vida, encangado no pescoço de uma negona do Cabula, deixando para trás uma vida de bandalheira. Era assim que eu queria viver: na orgia, na esbórnia, rodeado de mulheres, muitas mulheres, as mais vagabundas e cachorras e depravadas e ninfomaníacas que possa haver neste mundo. Daquelas que botam as mãos nos quartos, quebram assim para a esquerda e perguntam “Você tá pensando que eu sou o quê, hein?”, para que você entenda que são justamente o que você está pensando e siga o ritual comme il faut. Sassá sabe que sou um homem de desejos tão simples, não quero muito da vida em meu ascetismo.

Mas essa vida maravilhosa está além da minha capacidade, e esse Satanás filho da mãe sabe disso. Aí vem esse coisa ruim tripudiar, me humilhar porque afinal estou tão aquém dos meus sonhos. É essa a enorme sacanagem sutil no título da carta do Sassá: leia-se “Carta do além da sua capacidade, Rafael seu otário”.

Fiquei tão chateado com o deboche de Sassá que a despeito do seu rabo enorme talvez me entregue mesmo a Jejê, com um suspiro resignado. Sei a desgraça que me espera ali. Só peço que seja gentil. Eu não gosto dessas coisas, muito menos da posição a que Ele quer me submeter, estamos invertendo as coisas aqui. O caminho dos céus não vale tudo isso. A perdição antes da salvação, é assim que eu gostaria de viver se pudesse, mas o deboche do Sassá mostra que devo perder minhas esperanças, e sem esperanças uma eternidade de sofrimento é tudo o que me resta.

Da incompreensão e da injustiça humanas

Olha o que é a vida.

Você passa uma existência inteira tendo que lidar com uma falsa imagem de cafajeste e machista. Sua namorada, a mulher da sua vida, diz que você é cafajeste. A sua mãe, a outra mulher da sua vida, diz que você é cafajeste. Suas amigas dizem que você é cafajeste. A sua filha graças a Deus ainda não sabe o que é isso, e se depender da escopeta encostada atrás da porta não vai descobrir nunca, mas nem mesmo ela acredita nas histórias que você conta.

Ter fama de cafajeste é ruim e prejudicial, porque a moda é ser sensível, este é um século inapropriado para pobres paraíbas pouco sofisticados. Ter fama de cafajeste não vale a pena, isso é certo. Porque toda e qualquer mulher que você conheça tem uma amiga que diz “olha, ele é um cafajeste, vá com calma”, e por causa disso você acaba tendo que se esforçar mais, por causa de uma sociedade incompreensiva você acaba acuado, e para sobreviver se vê obrigado a utilizar, sim, de expedientes que talvez, com muita má vontade, pudessem ser considerados cafajestes, e faz sua aquela canção da Lílian: “Eu sou rebelde porque o mundo quis assim”. É ruim porque você não esquece de ter passado anos na universidade atrás de uma bunda — e ah, que bunda — que dizia que não daria para você porque você era safado, mentira vil e soez, mas ela dizia isso com convicção e certeza infundadas, e sabe você o mal que essas calúnias faziam à sua reputação na universidade, que já não era das melhores.

Tudo isso acontece enquanto você sabe que tem uma alma sensível e doce, que o gosto atávico por putaria e safadeza não faz de você menos humano e sensível, muito menos cafajeste. Você sabe como é bom ver o pôr do sol atrás das montanhas e o nascer do sol na praia, se enternece ao ver a lua emergindo amarela do mar, Iemanjá se desnudando diante de seus filhos. É essa discrepância entre o que percebem em você e o que você sente que entristece a sua alma.

E então você se aquieta, encontra uma mulher que ama e deixa de se preocupar com a imagem que o mundo faz de você, porque agora não passa os dias e as noites atento a oportunidades escondidas por um sutiã malcriado ou um jeans apertado, e se não pode deixar de olhar para peitos e bundas na rua não é como se olhasse para alvos em potencial, mas sim porque anos e anos de prática lhe deram uma capacidade formidável de avaliação e compreensão, além de uma acurada compreensão estética, visual e tátil, habilidade que não pode ser desperdiçada e que para seu orgulho deveria ser passada de geração a geração.

É justamente aí, quando você parecia ter superado todas essas injustiças, quando você finalmente tinha se erguido acima das gentes, que vem o desgraçado do Sergio Leo e esculhamba você.

E então você fica numa dúvida atroz que lhe consome os dias e atormenta as noites, porque não sabe se agradece ao sujeito por perceber que afinal de contas você tem uma alma feminina e sensível, como sempre tentou mostrar sem sucesso às pessoas, ou se manda o filho da puta tomar no olho do cu.

Republicado em 29 de setembro de 2010

O compromisso do poeta

Fim de tarde, comecinho de noite, a entrevista acabou e todo mundo foi embora, ficamos apenas o dono da casa, o poeta que tem uma pinimba com os ingleses e eu, diante de uma garrafa de uísque que não bebo. Fala o poeta, desdenhando um comentário sobre as crônicas que nos manda por e-mail; talvez por ser poeta ele possa se dar ao luxo de fazer pouco delas:

“Sabe qual é o meu compromisso, Rafael? É com a poesia, essa peste.”

Eu abro um sorriso porque agora ele entra numa seara que não é a minha, e nessas horas sorrir é tudo o que você pode fazer.

“Essa danada tem um chicote que me açoita.”

E o meu sorriso bovino continua, porque eu não conheço essa vadia, com chicote ou sem chicote. Ela não liga para mim, nunca ligou, e quando me viu disse que não estava interessada e passou por mim de queixo levantado e arzinho insolente de vós quem sois. Para gente assim a minha vontade é esticar o pé para que ela se estabaque no chão numa queda, daquelas quedas que tiram para sempre a empáfia que possamos ter — você sabe, aquelas quedas de pernas abertas para o ar, que deixam o mundo ver suas vergonhas e lhe dão calafrios toda vez que voltam à sua lembrança, mesmo muitos anos depois. É nesses termos que eu e essa rapariga chamada poesia estamos, sempre estivemos.

Então me perdoe, poeta, porque é a inveja que me faz falar assim, inveja e despeito de quem pode assumir esses compromissos e estar à altura deles; eu normalmente não estou à altura sequer dos compromissos de que desdenho. Mas se um dia essa senhora que se finge doce, apenas finge, chegar perto de mim depois de tantos anos me esnobando e destratando, eu não me responsabilizo pelo que farei com o chicote dela.

Rafael Galvão, o visionário da paixão

Há alguns anos, criei uma empresa virtual chamada GhostLovers, Inc.

Sua missão empresarial era possibilitar àqueles que a Providência não dotou de boa capacidade de expressão encontrar a sua cara-metade na internet; poderíamos também desempenhar a nefanda função de encerrar, em seu lugar, um namoro — ou relacionamento, como dizem esses modernos.

Seríamos algo como Cyranos de Bergerac cibernéticos, à disposição, caros Christians, para a conquista de vossas Roxanes ou, simplesmente, para um bom pé na bunda, com ou sem estilo, maldade ou piedade.

Cheguei a oferecer uma amostra grátis dos nossos serviços, mostrando o que fazer quando a ninfeta com quem você está saindo resolve lhe abandonar.

Era uma empresa promissora, mas sou forçado a admitir que virtual demais. Nunca foi a lugar nenhum. Talvez porque eu seja um sujeito de idéias modestas, não de grandes empreendimentos; talvez porque se a idéia de ajudar pessoas com problemas com o vernáculo me parecia muito boa, por outro lado a perspectiva de encarar uma mulher aos prantos feria um restinho de princípios éticos que ainda tenho. A GhostLovers, Inc ficou por aí, uma idéia esquecida em algum lugar.

Mas uma boa idéia não fica no limbo por muito tempo. Um chinês chamado Che acreditou numa premissa semelhante. E montou uma agência de término de namoros.

Ao Che, os meus votos de boa sorte. Sem despeito, sem inveja, sem tristeza. Porque não posso evitar notar que a sua empresa destina-se apenas a matar o amor, não a criá-lo ou fazê-lo crescer, ninando-o com juízo. Lá no fundo deste velho coração, fica a impressão de que falta algo na empresa do Che. Ele diz que pode “passar as informações de forma clara”, quando não era isso de que a GhostLover’s tratava; para nós, o que valia era o jogo jogado com a cabeça fria, com a certeza de que estaríamos aproximando duas pessoas que talvez viessem a se amar para sempre.

No fim das contas, o Che só destrói, não constrói. E este velho blogueiro ainda acredita no amor.

Que o Che fique rico destruindo os sonhos de alguém.

Rafael, underground

Dia desses a Lucia Malla disse que eu sou underground. Achei engraçado.

Até onde eu sabia, estou classificado entre as pessoas bem adequadas ao sistema. Governista, chapa branca, defensor intransigente dos governos municipal, estadual e federal, preguiçoso. Meu referencial cinematográfico é a Hollywood de tempos idos, minha literatura preferida é a francesa, a música de gosto é a negra americana, e gosto de louras, morenas, ruivas, negras, índias, japonesas, gigantes e anãs, desde que tenham bunda grande e peitos bonitos. Prefiro o Batman a Robert Crumb. Minha namorada diz que o sujeito de Californication é igual a mim, mas ela só diz isso na TPM.

Não há absolutamente nada de underground em mim. Até meus pés estão acima do solo.

Underground, para mim, é adolescente com piercing na sobrancelha escrevendo um fanzine xerocado falando da última banda punk de Lancashire e saindo por aí com universitárias feias cuspindo um monte de teorias do cinema e elogiando o último filme iraniano ou afegão que ainda não viram e bebendo vinho barato ou rum com coca-cola.

Eu nunca fui punk, nunca fiz fanzine, nunca gostei de mulher feia, detesto xerox, gosto é de bourbon e tenho sérias dúvidas de que fui adolescente algum dia. Ou se deixei de ser.

Carta a uma jovem senhora

Fraulein,

Recebi o seu presente. Veio rápido, pelo Sedex.

Não sei se você sabe, mas sou do tipo de pessoa que quando ganha livros de presente olha desconfiado e espera uma pequena e inevitável decepção. É tão fácil dar livros ruins de presente, e assim é a maioria dos que ganho de amigos. Então eles ficam na estante, lado a lado com livros de que gosto, talvez se sentindo iguais a algo maior que eles; impossíveis de se jogar fora por causa da dedicatória, impossíveis de serem lidos por causa do seu mau conteúdo. É tão triste ir a um sebo — eu gosto de sebos, como você sabe — e achar livros que foram dados de presente a alguém com dedicatórias carinhosas. Amores antigos e amizades passadas, são essas as histórias que essas dedicatórias contam; e eu me sinto um intruso quando vejo essas pequenas histórias tristes, como se estivesse olhando pelo buraco da fechadura para algo tão íntimo e agora tão melancólico.

Em um Natal, muito tempo atrás, ganhei de uma namorada um romance de John Updike, e eu não gosto de Updike, mas dei o meu melhor sorriso e agradeci, e sabia que não ia jamais poder passar o livro adiante. O livro está lá até hoje, na estante, e dentro dele a dedicatória apaixonada me lembra que houve um tempo em que uma mulher quase esquecida me amava e achava que aquilo era o que de maior poderia haver. Não era e disso ela sabe agora. Há outros livros, outros amigos, outras mulheres. Ficaram os livros, bonitos na estante porque suas lombadas não adquirem aquelas marcas de uso; é um triste destino o dos livros, o de só serem bonitos e perfeitos se não são usados.

Mas o livro que você mandou sequer tem dedicatória, e eu poderia mandar para o sebo, se quisesse; mas não quero e não vou, porque “Memórias de Minhas Putas Tristes” é um livro tão bom. Eu ainda não havia lido. Sabia que ia comprar, mais cedo ou mais tarde, mas sempre tem algo que passa em sua frente, outro livro, um filme, uma viagem, uma garrafa de chianti para se tomar deitado no tapete, uma noite agradável ao som de Billie Holiday.

Agora, depois de ter lido e relido o livro, eu me pergunto: por que esse presente, assim, do nada, sem um motivo especial ou sem uma data comemorativa. Não é meu aniversário, não fiz nada bom e não fiz nada ruim, nem saí desta salinha onde agora escrevo esta carta. Nos falamos tão raramente hoje em dia. O livro foi uma surpresa, e eu não agradeci por ela.

Me pergunto essas coisas porque é de minha natureza perguntar por quê, provavelmente porque não cresci o bastante para achar que tenho respostas demais; prefiro achar que alguém lembrou de mim e desejou me dar um presente de que sabia que eu ia gostar. Eu não ligo para quem não gosta de mim, mas gosto de saber que algumas pessoas gostam.

Há outra pergunta, ainda mais importante. Quando pediu meu novo endereço, você disse que ia me mandar o “Memórias de Minhas Putas Tristes” porque o Sábio Triste lhe lembrava a mim.

E é isso que não entendo, e o que me faz escrever essa carta. Porque olhando para o Sábio Triste, para a descrição amarga e um pouco cruel que faz de si mesmo, eu não me reconheço nele. Eu não sou magro, não tenho perfil eqüino, ainda não fiz 90 anos e nunca vou fazer. Em suas lembranças ele vê apenas mulheres com quem pagou para estar; e me dá um certo alívio olhar para trás e ver que sim, há tantas mulheres de que posso me lembrar com carinho, com aquela calma da velhice, “com aquela paz com a qual um eunuco de meia-idade poderia rememorar o tempo morto que precedera sua alteração, nas formas apagadas e (por fim) que ora viviam apenas na memória e não na carne”, como disse um escritor americano bem melhor que aquele Hemingway de que você tanto gosta e do qual eu fazia troça todo o tempo.

Também gosto de pensar que as mulheres que não têm uma raiva calma de mim por algo que eu tenha feito ou deixado de fazer também se lembram de mim com carinho; não que eu me importe muito com o passado e você sabe disso, mas de vez em quando me vem uma certa consciência da mortalidade e imagino que, já que não vou saber se sou lembrado bem ou mal, que seja bem, porque mal isso não faz e aquela vaidade boba de que eu não conseguiria nem quero me livrar seria finalmente atendida.

Eu não sou como o Sábio Triste; não sou triste, por sorte, mas tampouco sou sábio — e a fileira de bobagens em que recorro na vida, bobagens das quais não me corrijo porque lá no fundo é mais fácil me arrepender do que tentar melhorar, é a melhor prova disso. Se eu fosse sábio minha vida seria diferente; talvez não melhor, mas diferente. No fundo não faço muita questão de sabedoria, porque os momentos em que não fui insensato foram também chatos ou pelo menos comuns; e a expressão “Sábio Triste” me incomoda, porque como uma criança para quem tudo pode se resumir a um sim ou a um não, se sabedoria traz tristeza eu não quero ser sábio.

Também não posso ser o Sábio Triste e você a Delgadina porque não sou tão velho nem você era tão nova; e semanas não são anos; e não parece que eu, sempre tão relapso e distraído e preocupado com tantas coisas, fosse capaz de tamanha paciência e cuidado para montar um pequeno santuário de alcova enquanto espera, e espera, e espera. É engraçado: eu sei esperar, mas não sei esperar muito. E essa incapacidade não me incomoda.

Acima de tudo, fico feliz por não precisar chegar aos 90 anos — idade a que sei que não vou chegar pelos tantos abusos a que submeto meu corpo, pelas tantas noites perdidas, pelos tantos cigarros fumados, pelos tantos uísques bebidos, abusos sem os quais eu não saberia viver — para descobrir o que é amar alguém. Pelo meu passado, mas principalmente pelo meu presente, eu fico realmente feliz, e é daí que a vem a minha calma e a minha tranqüilidade.

O fato é que, por tudo isso e talvez por outras coisas que não fui capaz de falar, em nenhum momento eu gostaria de ser o Sábio Triste, não me vejo nele daqui a mais de cinqüenta anos, não me vejo nele agora. E isso, repito, me deixa feliz.

Lembrei agora que quando contei de minha namorada você disse que não deveria ser assim, que eu deveria ficar velho chorando teu nome, e eu ri. Porque sei, e acho que você sabe também, que a vida não é assim (ou que pelo menos eu não sou assim, ou não era assim). Sim, eu também gostaria de saber que sou inesquecível para todas as mulheres que passaram pela minha vida. Com aquele egoísmo de que não conseguimos escapar, gostaria de saber que elas, todas elas, lembram de detalhes que esqueci há muito tempo, eu que delas no mais das vezes não lembro sequer seus nomes completos, e confundo uma com outra, e esqueço de tantas. Gostaria de saber que elas lembram de mim com saudade e ficam ao lado do telefone esperando a ligação que eu nunca faço, dias e dias e dias intermináveis.

Novamente tenho que lembrar que a vida não é assim, e sei que as pessoas me esqueceram como eu esqueci delas. Eu fico feliz se pelo menos lembram o meu nome e conseguem associá-lo ao meu rosto. Agora esqueça tudo o que falei ali em cima, essas coisas em que você provavelmente não acreditou porque como tanta gente me acha um cínico, um cafajeste e um insensível, e lhe direi algo que lhe parecerá mais plausível, embora seja somente tão verdadeiro quanto o que eu disse antes: ser esquecido não me deixa triste. Na verdade me deixa aliviado, porque a minha cruz já é muito pesada para que eu tenha que carregar a cruz de mais alguém.

Talvez por isso eu tenha ficado tão feliz quando soube que você ia viajar e começar uma nova vida. Talvez eu tenha isso de um velho, essa mania de olhar para o lado e ficar contente quando as pessoas de quem gosto encontram o seu caminho. Acho que você vai ser muito feliz lá no seu novo país; e embora tenha certeza de que nunca mais verei você, e isso doa lá no fundo, tenho certeza de que você será muito mais feliz do que a Delgadina. E isso me faz feliz, também.

Republicado em 23 de setembro de 2010