Post para uma amiga que não me entende

Oi, magrela.

No meio da campanha você leu este post e reclamou comigo que não ficava bem para o dotô redatô aqui escrever sobre putas quando tanta coisa estava em jogo. Aí esse conselho ficou passeando pelos becos da minha cabeça, até que agora consegui pensar numa resposta, que dou agora.

O post era inveja pura, não sei se você notou. Eu queria ser empresário do Paulinho, se ele aceitasse os conselhos que dei, porque fico maravilhado ao ver tanta gente ganhando dinheiro com música ruim. Sabe, tem umas coisas para as quais não tenho talento, mas tenho vocação; empresário de cantor brega era uma delas. Eu não sei cantar como o Paulinho, não sei compor nem fazer verso, toco uma guitarra ruim e um baixo pior ainda. Mas mesmo assim acho que ficaria bem no papel de empresário. E cantor brega sem isso, minha filha, está condenado ao oblívio. Ou, em palavras que seriam mais facilmente associadas a mim, está fodido.

Do jeito como eu vejo as coisas, o principal papel de empresário de cantor brega é arranjar umas putas bem voluptuosas, apetitosas, um monte de osas, com aqueles bundões enormes e cheios de celulite, para fazer no palco coreografia ruim de menina de 13 anos em festinha americana, e balançar a bunda para a platéia. Precisa de mais que isso, não. E tem que ser puta, mesmo. Moça séria que se respeita vai é terminar o segundo grau para ser comerciária. Moça direita não faz a platéia gritar em êxtase diante de uma rebolada mais bem dada ou uma baixaria mais bem feita.

E o único lugar que tenho para falar dessas minhas vocações desprovidas de talento é aqui neste bloguinho.

Me desculpe, mas sou sério o suficiente o tempo todo. Na verdade até que tenho feito um bom trabalho nesse troço de seriedade. Em nome dela, até escrevo direitinho quando a pressão é grande. Sabe, eu não tenho lá muitas ambições literárias. Eu gosto mesmo é de ver que o que escrevi funcionou e convenceu gente. É por isso que adoro os meus clichês: “Mas Fulano fez mais: construiu sei lá o quê, implantou aquilo e garantiu mais etcetera e tal.” Sabe Deus quantas vezes já escrevi isso na vida, e espero escrever muitas mais ainda. Porque se uma coisa é clichê é porque funciona, e o resto é bobagem.

Mas mesmo assim, mesmo ligando pouco para as musas feinhas, a cabeça da gente funciona de maneiras esquisitas, e de vez em quando sinto vontade de escrever umas coisas que não se encaixariam bem em uma locução em off. É por isso que tenho um blog, que se chama tão pura e simplesmente “Rafael Galvão”, e não “Rafael Galvão, Redator Publicitário À Disposição”: para escrever os merdas, bocetas e putaqueparius que eu quiser.

Não fosse por isso, por que caralhos eu manteria este blog depois de tantos anos? É difícil achar um tema sobre o qual eu não tenha escrito uma besteira qualquer. Acho que já escrevi mais sobre pinto pequeno que a Marta Suplicy — com uma leve diferença de enfoque, é claro. Não acho que tenha mais nada de relevante para dizer sobre qualquer coisa. E ainda que tivesse, foi escrevendo coisas relevantes que eu sempre ganhei a vida, ou achei que ganhava enquanto ela ria e se referia a mim à Providência como “aquele otário”. Eu já escrevo demais. Repetir tudo isso num blog deve ser um saco. Ter um blog, portanto, só serve se a gente puder falar as bobagens que quiser.

(A propósito, caralho é uma palavra que eu tento evitar, sempre. Acho que fica feio para mim, um rapaz de tão boa família, cuja ascendência mistura nobres franceses e escravos africanos, ser visto assim, cheio de caralhos na boca. Por isso que quando dou uma topada, ou esbarro nas coisas como vivo esbarrando, ou derrubo copos em mesa de bar, eu tento gritar: “Boceta!”. Sabe como é. Acho mais masculino.)

Por tudo isso é fundamental que aqui eu possa escrever puta, e esse é um direito do qual não posso abrir mão. Puta puta puta puta puta. Puta é um nome de que eu gosto, assim, de graça. Acho sonoro, rico, o U amacia a boca enquanto sai correndo mundo afora a 340 metros por segundo. É por isso que quando falo “puta que pariu” me demoro tanto no U: puuuuuuuta que pariu. Às vezes até dispenso o “que pariu”, e deixo que as pessoas presumam o que vem depois. O que importa é a puta, sempre.

(É diferente do porra, entende? No porra o que fica são os RR: “Porrrrrr (e então vem uma pausa imperceptível em que o R se revolve sobre si mesmo, e rasca a garganta como se estivesse se preparando para o apocalipse, mais ou menos como buquê de vinho na taça) — ra”. Mas deixe para lá, esquece isso. São as filigranas da boca suja, não é nada muito interessante.)

Obviamente, sei que talvez parecesse mais respeitável se eu escrevesse “prostituta”. Mas, com toda a sinceridade que posso encontrar neste pobre corpo combalido e preguiçoso, acho prostituta um nome horroroso, pernóstico se falado ou se escrito — a não ser quando alguém pronuncia “protistuta“, aí eu acho engraçado; fora isso prostituta é nome feio, uma combinação infeliz de sons. Fale alto agora, “prostituta”, e veja como soa feio. É antipático. E eu posso ser arrogante, metido e meio descompensado, mas antipático, nunca.

Mas puta, não. Puta é simples, leve, bonito. É também mais abrangente, porque prostituta é só aquela que dá por dinheiro, enquanto puta pode ser qualquer uma — “aquela puta”, por exemplo, pode muito bem ser a vagabunda que não deu para mim, ou a piranha que me deu um tranco no supermercado e não pediu desculpas. Puta, basicamente, é qualquer mulher de quem eu não goste. Devia estar no Houaiss: Puta (s.f): Qualquer mulher com cujos cornos Rafael não vá.” Puta é puro Bauhaus, é minimalista, e acima de tudo é um grande deus ex-machina — quando não resta mais nada a dizer, quando não há solução, é só soltar um “puta que pariu” incisivo que pelo menos uma parte da tensão se vai, você fica com a impressão de ter feito o que podia fazer.

É por isso que cortar a minha boca suja é uma injustiça comigo, porque é só aqui que eu deixo a coisa correr solta. Eu normalmente sou tão sério que não envergonho ninguém, só a mim mesmo, porque não falo o que penso e me conformo com um pensamento singelo: “Vou falar o que penso sobre isso no meu blog”, uma espécie de esprit d’escalier ainda mais vagabundo.

Então, se eu não posso escrever puta neste bloguinho de que eu gosto tanto e que minha mãe lê todo dia, o que vou fazer da vida? Me deixe cá com minhas putas e meus caralhos, é um precinho pequeno que minha credibilidade e respeitabilidade de homem sério têm que pagar para que eu possa dormir um pouquinho melhor à noite. A felicidade me custa tão pouco.

A insustentável agonia do viver

Era começo de setembro e eu tinha comprado uns livros na Amazon.

Normalmente compro mais de 10 livros por vez, para diluir um pouco o custo do frete e tornar o negócio um pouco mais vantajoso. Ia demorar mais de um mês para que os livros chegassem, um pouco menos que isso até chegar a fatura. É uma espera agradável, essa, que só quem gosta de livros como objetos pode entender.

E então estourou a crise americana e o dólar disparou, e teve início o meu padecer.

A cada variação para cima eu via o o fim dos tempos à minha frente, a cada variação para baixo sentia um alívio desconfiado e temeroso. Antevia um cenário apocalíptico em que eu acabaria pagando mais de 100 reais de diferença.

Não que 100 reais sejam quantia suficiente para fazer alguém entrar em desespero. Também não é pouco, ao contrário do que o rico leitor aí possa dizer com um eventual franzir de sobrancelhas e lábio torcido de tanto esnobismo. Com 100 reais eu poderia pegar ônibus para o trabalho durante quase dois meses, mais se tivesse vale-transporte; poderia comer algumas vezes no McDonald’s; poderia alugar uns vinte filmes; pagar pouco menos de um mês de TV, comprar mais uns dois ou três livros na Amazon. Mais que isso: investindo 100 reais, dizem os mesmos especialistas que levaram o sistema americano à bancarrota, eu poderia chegar a um milhão em sei lá quantos séculos.

Mas não importa o valor de 100 reais. O caso é que compro livros na Amazon porque, afinal, eles oferecem melhor relação custo/benefício: hardcovers na língua original por um preço semelhante às brochuras traduzidas aqui, sem falar nos livros disponíveis apenas em inglês. Preço é fator determinante na Amazon, portanto, e porque o sistema americano pediu concordata eu teria que pagar mais que isso.

Justo eu, periférico do sistema, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes; justo eu, que passei toda a minha vida criticando exatamente aquele sistema que ora se esboroa em hipotecas. Nada poderia ser tão injusto, e era essa injustiça que me incomodava, que me fazia mais triste e mais angustiado: a perspectiva de pagar um ágio que acima de tudo me parecia indevido, uma ironia macabra semelhante ao atleta abstêmio que é atropelado por um caminhão de cerveja.

É nessas horas que podemos ver como funcionam os grotões da mente humana, e é um funcionamento estranho, esse. Porque algo inexplicável às vezes nos faz querer prolongar e intensificar uma agonia além do necessário, além mesmo do saudável; mente estúpida, essa, que parece achar que se eu me angustiar ainda mais o motivo da aflição vai passar mais rápido. Foi por isso, para acalentar esse pequeno purgatório, que instalei um gadget no sidebar do computador para acompanhar em tempo real a cotação do dólar.

E isso é tão estranho, porque me lembra que eu nunca quis ser operador da bolsa. Sempre olhei intrigado para aqueles moços alucinados se esgoelando e levantando as mãos em atitude súplice, coitados, e achava que havia meios mais dignos de ganhar a vida. É a fidalguia atávica dos Galvão, essa coisa de se achar cool demais para se prestar a cenas públicas de desespero e vexame, não importa o quanto isso renda, porque o recato e a compostura são mais importantes que dinheiro, é isso o que a gente leva desta vida, o dinheiro se bem utilizado ficou com aquelas moças ao longo dos anos.

Mas aquelas cotações mudando constantemente na minha frente me tornaram um operador silencioso e fracassado da bolsa — não, me tornaram algo muito pior que eles; porque enquanto eles ganham rios de dinheiro em troca de sua dignidade, eu estava descendo a esse ponto tão baixo por uns 100 reais, talvez um pouco menos, talvez um pouco mais, mas de qualquer forma insuficientes para me fazer abrir mão daquela dignidade que deveria ser o meu ideal de vida.

A cada subida ou descida do dólar eu fazia questão de anunciar em alto e bom som os novos resultados. O Paulinho e o Edson, na minha frente, riam do meu sofrimento com descaso superior, preocupando-se em escrever os textos da campanha, que a gente tinha um prefeito para eleger. Enquanto isso eu, eterno desocupado, ficava pensando no meu prejuízo. Não exatamente no prejuízo, para ser franco, que franqueza é o que me resta a esta altura: mas no ultraje que seria pagar 100 reais a mais por uns poucos livros vagabundos. Não era o dinheiro que importava, pelo menos não muito: eu tinha firmado um trato com a Providência, estabelecido as regras do jogo com suficiente antecedência; mas ela, de repente e sem aviso, descumpriu o acordo, tirou um ás roubado da manga, e impôs novas condições sem sequer me consultar. Isso não é coisa que se faça. Há que se ter um mínimo de retidão e de caráter nesse negócio de viver, e minha ruína foi achar que essa regra não se aplicava apenas a mim, mas também às Parcas, aquelas vadias.

A campanha acabou, eu fechei o meu computador e só fui abri-lo dia desses. Aquelas poucas centenas de dólares dos livros foram pagas, e até agora não fiz questão de saber de quanto foi o ágio que covardemente me obrigaram a pagar. Tem coisas na vida que é melhor deixar para lá. E pensando assim, talvez algum dia eu esqueça que fui humilhado e obrigado a pagar 100 reais, talvez mais, talvez menos, por causa de uns livrinhos.

Dois anos

Passei dois anos lendo quase nada, vendo quase nenhum filme, ouvindo quase nenhuma música, indo a quase nenhum lugar.

Dois anos em que meu motorista repetia que ia estudar para ficar muito rico, e então ia me contratar e foder comigo, porque já não agüentava mais almoçar às 4, 5 da tarde.

Foram dois anos em que cheguei a pifar uma ou duas vezes, por estafa. Dois anos em que desenvolvi ojeriza ao toque do celular, até que aprendi que não precisava atender todo mundo que queria vender, pedir ou cobrar alguma coisa, e podia simplesmente silenciar uma ligação sem ficar me culpando depois.

Foram dois anos em que o meu hobby predileto, o meu blog, foi deixado meio de lado. Como a modéstia não me cai bem, gostaria de lembrar que aqui e ali alguns bons posts viam a luz do dia, porque afinal de contas eu escrevo direitinho — como já disse antes, escrever é uma das duas únicas coisas que sei fazer bem, e a única com a qual posso ganhar a vida, porque a outra é imoral; mas já não é o blog de uns anos atrás. Isso me deixa triste.

Dois anos em que simplesmente deixei de escrever sobre política, porque fazer é muito melhor que escrever, e sobre atualidades, porque eu sabia pouco do que se passava no mundo e não poderia entrar em polêmicas porque me faltaria tempo.

Dois anos em que eu quis começar a colocar no ar um site sobre os meus 100 melhores filmes mas não pude porque não tinha tempo ou paciência para rever aqueles filmes e pensar com mais cuidado sobre eles.

Foram dois anos em que a fila de livros comprados e não lidos foi se avolumando nas minhas estantes, me dando a quase certeza de que alguns deles não serão lidos jamais, porque serão atropelados que outros que virão.

Dois anos em que, pelas minhas contas, consumi 700 litros de café e 29 mil cigarros.

Dois anos longos, em que ainda arranjei tempo para largar aquela vida e casar, para escrever uma coisa aqui e outra ali, para passar uns fins de semana viajando para Salvador fazendo uma pequena consultoria, como se a semana já não me cansasse em excesso.

Mas quer saber de uma coisa? Esses dois anos valeram a pena. Foi para isso que ralamos tanto, que nos angustiamos, que nos irritamos e rimos um bocado.

Edvaldo ganhou a eleição. Primeiro turno. Nada mal para quem no começo do ano do ano passado era um virtual desconhecido e em janeiro tinha apenas 29% das intenções de voto.

Que se foda a modéstia, que eu nunca fui muito com a cara daquela vadia, mesmo. O fato, puro e simples, é que fizemos uma grande campanha. Mais uma. Déda prefeito, Déda governador, Edvaldo prefeito. E podem dar os parabéns, que a gente merece.

A minhoquinha do Galvão

O Carlos ficou magoado.

Veio parar num post em que coletei praticamente todas as ocorrências de pinto pequeno nas Alegrias do Google, e não deixou barato:

Ou, rafael galvão eu acho que vc tem também uma pequena minhoquinha, na foto aparece que vc é bem gordo ou seja uma jamanta que não da nem p/ver seu pinto. kkkkkk como tem coragem de expor ao ridiculo.

Ele ficou mesmo muito puto. E com razão. Deve ser muito chato, mesmo, procurar ajuda para algo que lhe incomoda muito e de repente se deparar com uma página onde alguém faz troça do seu problema. Pequeno, sim, mas ainda assim problema.

Eu posso ser cruel, Carlos, mas não sou injusto. Por isso pode fazer piada sobre pinto pequeno. Pode fazer piada com a minha minhoquinha. Fale o que quiser, que eu vou permitir. Talvez chore escondido, mas prometo agüentar estoicamente o seu deboche.

Mas piada de gordo, não. Aqui não pode.

Quem comeu o blog

A Raquel foi a única pessoa a responder certo a pergunta do post passado.

Não foi gato nenhum que comeu o blog, porque nenhum gato é valente o suficiente para enfrentar minha política em relação a felinos, naturalmente refratária a esse tipo de ousadia. (Sabe como você diferencia um gato de um tijolo? Jogue os dois na parede. O que miar é o gato. Chutar é melhor, mas aí você pode machucar o pé ao chutar o tijolo.)

Como acontece de vez em quando, cheguei ao momento em que o mundo perde um blogueiro medíocre e ganha um redator também medíocre. Desde já há algum tempo, meu tempo é dedicado a Edvaldo. (E que ninguém diga que eu não avisei que essa hora ia chegar.)

Normalmente nessas horas eu abandono o blog e republico os melhores posts antigos, ganhando tempo. Desta vez, não. Desde o início de 2007 eu venho escrevendo tão pouco por aqui que não faz sentido reprisar os posts do ano passado.

Por isso, pelos próximos dois meses este blog vai andar neste ritmo, se é que se chama a isso de andar. Aliás, por mais que dois meses, porque eu espero poder finalmente tirar férias quando ganharmos a eleição. Mereço isso há alguns anos, já.

Quando der tempo eu venho aqui escrever alguma bobagem. Se bem que bobagem é o que mais tem neste blog. Não vai fazer falta.

Grandeza e decadência de um forrozeiro

O Forró Caju é hoje um dos maiores festejos juninos do país, se já não for o maior. São 16 noites com público médio de 100 mil pessoas. Só hoje, véspera de São João, a lista de atrações inclui Dominguinhos, Alceu Valença, Zé Ramalho e Calcinha Preta, com shows completos. Espera-se um pico de bem mais de 150 mil pessoas na praça, nesta madrugada.

Hoje também o Forró Caju vai me lembrar mais uma vez, com a falta de piedade dos velhos deuses pagãos que inspiraram o São João, que houve um tempo em que eu era um grande dançarino de forró, e que hoje sou apenas uma ruína decadente, sombra pálida do homem que fui.

Não é que “eu me virasse” dançando forró. Não é que eu “quebrasse o galho”. Eu era bom. Excessivamente bom. Não apenas a ponto de poder ser esnobe, mas bom a ponto de transcender até o esnobismo, e diante de um elogio já ouvido tantas vezes dar um sorriso de canto de boca e balançar a cabeça condescendentemente, sem precisar falar nada por redundante que seria.

Eu era bom porque precisava. Adolescente, sem dinheiro e sem carro, não me restavam muitas alternativas. Entre ficar trancado em casa vendo mulheres pela televisão e ir atrás delas na rua — nem que isso significasse quilômetros a pé ou de ônibus, com o dinheiro contado para uma coca-cola e para a volta, nem que isso significasse quase uma hora esperando o corujão de madrugada –, eu ficava com a segunda opção. Se ia para a rua, tinha que saber alguma coisa, porque eu sempre fui pragmático, nunca me acostumei a viagens perdidas. E então dançar bem, saber levar uma dama ao longo de uma música e outra e mais outra era fundamental.

Forró era chamar a moça na chincha e deixá-la com o corpo bem colado ao seu. Era encaixar a sua coxa entre as coxas dela, e com um pouco de prática já se podia adivinhar ali a sua consistência e sua rijeza, e com os seios apertados contra o seu peito se podia também sentir o seu real volume e firmeza, porque não há sutiã com bojo, armação ou enchimento que consiga cumprir a sua função de logro enquanto se dança forró.

Era dançando que se descobria tantas coisas de importância fundamental. Era no requebrar e no menear de seus quadris que você sabia o que poderia esperar da moça à sua frente. E então, se ela valesse a pena, você tirava a mão esquerda que guia a dança e colocava em sua cintura, e a apertava um pouco mais, e se ela recostasse a cabeça em seu peito você saberia que ela poderia muito bem estar dizendo em silêncio, como a boa Karolina com K, “é hoje!”, e hoje seria.

Era por saber que era bom que eu me horrorizava quando via cearenses dançando forró. Porque eles dançavam de maneira tão diferente. Afastados, fazendo figuras como um baile qualquer do século XIX, voltas e reviravoltas como se estivessem se apresentando para uma platéia. Aquilo não era dançar forró. Aquilo era teatro, diria Luiz Gonzaga. Exibicionismo bobo, mais adequado a uma gafieira do que a uma sala de reboco sob a luz de um candeeiro.

Forró era outra coisa, era coisa para se dançar a dois, só dois, esquecendo que pudesse existir outra coisa no mundo. Forró era ciência, arte e negociação, um jogo a ser jogado com um sorriso, suor e a determinação firme de fazer daquilo o prólogo de algo melhor. Aquele forró que os cearenses dançavam podia muito bem ser dançado com sua irmã, e ainda não inventaram nada mais sem graça do que dançar com irmã. Eles dançam para os outros; nós, forrozeiros da velha guarda, dançávamos para que a mulher apertada ali continuasse em seus braços depois que o sanfoneiro calasse o seu acordeon.

Aqui, percebo hoje com a sabedoria presenteada a mim pela velhice, está a semente de minha ruína. Para muita gente, dançar é algo que se basta em si mesmo. Pessoas gostam de dançar, como gostam de comer. E eu nunca gostei. A dança não existia por si só, mas apenas como um meio de chegar a algum lugar. Para mim, dançar forró não era “a frustração vertical de um desejo horizontal”, como diz uma boa frase. Era um instrumento, uma ferramenta como um garfo ou uma passagem de avião. Por isso nunca dancei sozinho.

Talvez tenha sido isso, esse desprezo pela dança como um valor intrínseco, como bastante em si própria, que causou minha decadência e minha desgraça. O talento desperdiçado é devida e inexoravelmente castigado pelas Parcas, disso eu sempre soube. E neste Forró Caju vi que não sabia mais dançar como antigamente.

A dor nas coxas sedentárias que, por tantos quilos a mais, já não agüentam muitas músicas seguidas é o de menos, porque isso se resolve em uns poucos dias de volta à prática. Tampouco é problema o fôlego mais curto pelos dois maços diários, isso também é mazela a se resolver em poucos dias. O que dói é a hesitação ante o início, é a falta de certeza e de confiança em levar a moça à sua frente para onde você quiser levá-la.

Não serve de consolo saber que mesmo velho e alquebrado, mesmo desgraçado pelas Musas eu ainda sou um bom dançarino de bolero, porque bolero é diferente, não permite aquele bater de coxas e apertos na cintura, mal permite a mistura de suores. É triste saber que desonrei a herança da família, do meu avô melhor dançarino de tango do Rio de Janeiro, de mim mesmo consciente da felicidade que dava a uma mulher numa pista de dança. É triste saber que se está velho, velho e decadente.

***

A doida estava na praça, ontem, dançando sozinha. Tinha tirado as sandálias e colocado o guarda-chuva do lado, e esquecida de tudo rodopiava contente.

Quer dizer, diziam que ela era doida. Eu não sei. O que eu via era uma mulher feliz e abandonada ao prazer de dançar, despreocupada do que os outros poderiam pensar. Alguém que gostava de dançar por dançar. Disseram que anteontem ela também estava lá, dançando sozinha, fazendo suas piruetas. Mas anteontem não choveu, e todo mundo pode dançar quando chove; ontem, debaixo do temporal, só ela estava ali, dançando sozinha sem precisar do seu guarda-chuvas.

Hoje, tendo que relembrar o passado em busca de momentos de uma glória esvanecida, posso compreender melhor a doida que se entregava à chuva apenas pelo prazer de dançar.

A Mônica apontou a moça e fez o desafio: “Cem reais para você dançar com aquela doida ali embaixo”. A Mônica, mesmo depois de quase um ano, não me conhece. Não sabe que poderia ter me oferecido muito menos, não sabe que só o desafio talvez fosse motivo suficiente para eu me abalar lá embaixo e dançar com a mulher que ela chamava de doida. A Mônica descobriu apenas agora que sou barato, sempre fui barato, e por cem reais eu dançaria até com o diabo, e esqueceria a minha decadência e a minha tristeza.

Lá fui eu. Enfrentei a chuva também, não me importei em me molhar como a moça que dançava. E assim dançamos, ela e eu, ela feliz por estar dançando com alguém, eu feliz por estar ganhando cem reais.

A Mônica fez questão de pedir para  o Sílvio Rocha tirar fotos. Não sei exatamente quais os seus motivos, prefiro não perguntar. Porque independente do que será feito delas, essas fotos servem como um troféu, uma mostra de que no dia 22 de junho um homem que não sabia mais dançar desceu e novamente fez uma mulher feliz, ainda que de maneira insípida, lembrança distante de outros tempos em que, entre as coxas delas, estaria venturosa a sua.

Eu não sou mais um grande dançarino de forró como fui um dia, e esse destino é triste para mim. Mas talvez por um gesto de piedade temporária das Musas, o forró ainda pode me render cem reais, e isso faz de mim um homem um pouco menos triste na véspera de São João.

Minutos de sabedoria

Don’t let anybody kid you. It’s all personal, every bit of business. Every piece of shit every man has to eat every day of his life is personal. They call it business. OK. But it’s personal as hell. You know where I learned that from? The Don. My old man. The Godfather. If a bolt of lightning hit a friend of his the old man would take it personal. He took my going into the Marines personal. That’s what makes him great. The Great Don. He takes everything personal. Like God. He knows every feather that falls from the tail of a sparrow or however the hell it goes. Right? And you know something? Accidents don’t happen to people who take accidents as a personal insult.

Michael Corleone

É verdade que há palavras e imagens em excesso aqui para que se possa chamar isso de alta literatura. E daí?

Tem gente que decora a Bíblia. Eu decoro “O Poderoso Chefão”.

A névoa cinza-azulada da vingança

Não entendo como há tanta gente que insiste em ser desagradável, gratuitamente.

Eu fumo. Fumo porque a fumaça é gasosa, porque se fosse líquida seria coca-cola e eu beberia. Fumo muito. Mas procuro respeitar os não fumantes. Isso quer dizer nunca fumar onde não é permitido e evitar fumar em lugares fechados. É a única forma de chegarmos a uma convivência sem muitos sobressaltos.

Ao mesmo tempo espero que respeitem os meus direitos, apesar da propaganda maciça que busca nos tornar cidadãos de segunda classe. Se fumar não é proibido — ainda — neste país, eu tenho o direito de fumar onde não é interditado. É simples assim, e é impressionante como os zelotes anti-tabagistas se dispõem alegremente a passar por cima de um conceito tão simples de liberdade em nome de sua própria paranóia.

Domingo, em Maceió. Eu tinha acabado de tomar o café da manhã numa pousadinha e estava lá fora com a Mônica, fumando. Aparentemente eu poderia fumar no hall, mas por que incomodar desnecessariamente os não fumantes? Lá fora era mais sensato e respeitoso.

Eu estava de costas para a entrada; foi a Mônica quem viu a velha primeiro. Ela chegou na porta, nos viu fumando e fez o gesto de quem abana o ar à sua frente, de quem afasta a fedentina dos seu nariz delicado — embora o rosto da velha não tivesse nada de delicado, apenas ventas largas e rugas crestadas de sol que devem ter vindo não da idade, mas do azedume do seu espírito. Ela ainda não tinha sentido o cheiro de fumaça; mas o seu espírito de porco, a sua chatice de velha ranheta precisava se manifestar. Ela viu alguém fumando e, com a certeza estúpida que a idade provecta dá a algumas criaturas, resolveu manifestar o seu desagrado — essas coisas que quem não está satisfeito com a vida que leva faz ao ver outras pessoas felizes.

Então ela passou por nós abanando o ar, carregando uma sacola para um táxi estacionado em frente. Voltou do táxi fazendo o mesmo gesto, a mesma cara de fedor, mas agora soprando o ar com força pelas narinas, mais ou menos como faz um cavalo cansado — e aquela égua devia mesmo estar cansada da vida ruim que deve levar.

A velha desgraçada queria se fazer notar, estava dando o recado que achava necessário. Eu não entendi recado nenhum, sou meio estúpido para essas coisas, mas fiquei pensando que ela tinha cara de peidona — parecia ser daquelas velhas que passam as tardes de domingo sentadas numa cadeira de balanço assistindo ao Sílvio Santos e soltando flatos em tons e sons diferentes até a hora de dormir, indiferente ao som e ao mau cheiro. Era essa velha que fazia questão de insultar dois fumantes pacatos que se tinham recolhido para poder fumar em paz seus cigarros.

“Mônica, me avise quando ela estiver voltando.”

Não demorou muito. Daí a pouco ela passou de novo, as duas mãos ocupadas com pacotes — talvez renda de bilros, talvez artesanato alagoano, talvez remédios para a sua artrite, quem sabe até receitas de algum charlatão para curar os seus maus bofes.

Enchi os pulmões com a maior quantidade de fumaça que pude armazenar.

Esperei os passos se aproximarem.

E então, com a sincronia perfeita que só se vê em boas equipes de nado sincronizado, soltei em sua direção a maior baforada que já dei em todas as minhas décadas como fumante. Densa, concentrada — o tipo que se pode soltar abrindo bem a glote. E a velha atravessou galhardamente a belíssima nuvem de fumaça cinza-azulada, sem poder dar tapas no ar porque suas mãos estavam ocupadas, e fez uma expressão de raiva e desespero, e começou a tossir, e eu a acompanhei com os olhos até o táxi, onde ela entrou ainda tossindo.

E nesse instante eu me senti bem e me senti em paz, e você precisava ter visto o meu sorriso, e se fosse noite eu teria dormido com a consciência de que a justiça tinha sido feita, teria dormido o sono das crianças tranqüilas.

Talvez a velha esteja tossindo ainda hoje, e esse pensamento, embora improvável, me faz sentir melhor.

Republicado em 05 de outubro de 2010