Indo para Pasárgada

A partir de hoje, este é um blog de oposição.

Durante todos esses últimos meses este blog apoiou o governo Lula, apesar de todas as denúncias, apesar de todos os indícios, apesar de todos os fatos, por ter uma compreensão própria e pouco ingênua de política e por acreditar que este tem, sim, sido um bom governo.

Mas agora vou deixar de achar que Lula será um bom presidente a partir de 2007 porque, se eu for da oposição, eu sei que vou ter sorte.

Vou casar porque sei que minha mulher vai ganhar vestidos. Dados assim, sem nenhuma intenção. Presentes graciosos de um estilista que dá tão pouco valor ao seu tempo e ao seu trabalho que, para ele, 40 vestidos e 400 são exatamente a mesma coisa. E se eu não souber me explicar direito, isso não vai significar muita coisa, porque afinal de contas sem sorte é o governo.

Se eu for para a oposição vou ter sorte como o Francenildo teve.

Porque é preciso ser uma pessoa que nasceu com a bunda virada para a lua para que um pai que nunca lhe viu, e nunca sequer lhe assumiu, lhe dê de mão beijada 25 mil reais, por sorte e coincidência na véspera de um depoimento importante. Mais ainda: com a sorte do Francenildo eu também vou arranjar um advogado metrossexual que vai tentar fazer o Estado me pagar dezenas de milhões de reais pelas pequenas e grandes sacanagens que me fez.

É por não ter essa sorte que só bendiz a oposição que aquele pessoal do governo se envolve em tantas confusões, que é acusado de crimes eleitorais e de esquemas de compra de votos. Ao longo deste último ano, pelo menos de uma coisa eu passei a ter certeza: se o pessoal do governo tivesse a sorte que a oposição tem, não teria que se envolver com os Marcos Valérios da vida. O governo precisa fazer caixa 2; a oposição simplesmente ganha as coisas porque, bem, tem sorte.

É isso. Vou para a oposição porque andar com gente sem sorte não traz coisa boa. Eu quero a sorte que nos faz ganhar coisas e que não nos obriga a compromissos com gente como Roberto Jefferson.

Cada vez mais admiro esta oposição com tanto trabalho nas costas, com a honestidade única e inquestionável que só aqueles com sorte podem ter, com as mãos limpas e ostentando uma probidade que muitos céticos, como eu fui um dia, julgavam impossível. Vou virar um oposicionista ferrenho porque lá nossas máculas são automaticamente limpas, e o passado não nos condena mais. A partir de hoje, este é um blog de oposição, e eu estou indo para Pasárgada.

E como Marco Antônio naquela peça inglesa, eu vou poder dizer de todos os políticos que vou defender: For he is an honourable man; so are they all; all honourable men.

Originalmente publicado em 2 de maio de 2005

A dançarina, o caseiro e o 18 brumário de Francenildo Pereira

E a dancinha da Angela Guadagnin foi parar na capa da Veja.

A Veja é a revista que publicou uma das matérias jornalísticas mais absurdas da história do jornalismo político do país, a dos “dólares de Cuba”. Uma matéria inteira sem nenhuma prova, mas principalmente sem sequer uma testemunha. Ninguém havia visto dólar nenhum. Mas isso não importava para a revista. Vale qualquer coisa quando se está em campanha.

Não que a dança da deputada seja elogiável. Mas o que eu vi, no fundo, foi uma senhora comemorando a absolvição de um amigo. É curioso que o Congresso tenha declarado um deputado inocente e pretenda levar alguém à Corregedoria da Câmara por ter comemorado justamente essa sentença. Mesmo isso até seria aceitável, se eles se mostrassem indignados assim cada vez que deputados se estapeassem no Congresso ou xingassem suas respectivas mães. Os critérios, no entanto, são diferentes. Talvez eles prefiram o Schadenfreude. Talvez apenas tenham aproveitado a chance de jogar mais lama no governo.

O problema é que se chegou a um ponto em que todos os que apóiam o governo são culpados, mesmo com prova em contrário.

Por exemplo, qualquer pessoa que conheça um mínimo de política e de eleições sabe que é bem provável que alguns dos deputados acusados de envolvimento com o valerioduto sejam inocentes: gente que pressionava o partido para receber algum dinheiro para pagar suas dívidas e não estava necessariamente envolvida com o esquema. Aposto, por exemplo, que a Heloísa Helena não se perguntou, enquanto tentava se eleger senadora, de onde vinha o dinheiro que Delúbio lhe dava.

O Guto lembrou que se fosse uma deputada do PSDB a dançar, o PT estaria fazendo um terremoto. Provavelmente. Mas é também o caso de perguntar o que é que estão fazendo agora. Porque se isso não é um terremoto artificial, eu não sei mais o que é a escala Richter. Então o problema fica reduzido ao seguinte: o PT deve ser esculachado por ter feito seus terremotos, mas a oposição não pode ser, por fazê-los.

Principalmente nesses últimos meses, tem impressionado a total inversão de valores. Chegou-se a um ponto em que tudo o que se disser do governo é necessariamente verdade. Um ACM Neto pode ameaçar bater no presidente da República, indignado com os rumores de grampo, esquecendo que seu avô é o sujeito que grampeou a Bahia inteira por causa de sua amante. Agora toda a oposição é honesta, e todo o governo é ladrão.

Essa dubiedade é ainda mais interessante no caso da queda de Palocci, depois do que foi o cerco mais longo da história de todo o Ministério da Fazenda.

De todos os episódios da crise, nada pareceu tão canalha quanto o depoimento do caseiro Francenildo Pereira. Podia-se sentir que Roberto Jefferson falava a verdade, ou parte dela. Mas tudo no caso do caseiro tem cheiro de mentira e de armação. No entanto, ainda assim as pessoas parecem acreditar que o dinheiro que apareceu em sua conta é realmente de um pai que nunca o viu, nunca assumiu a paternidade mas, num arroubo de generosidade e instinto paterno, lhe deu um bom dinheiro às vésperas de um depoimento importante. Isso nunca é questionado, porque não interessa a ninguém.

(E é impressionante a incompetência do governo no gerenciamento dessa crise. Em vez de divulgar o extrato bancário do caseiro, era melhor simplesmente pedir a sua quebra de sigilo, mostrar que ele recebeu dinheiro e depois se perguntar o que ele andou fazendo no gabinete de Antero Paes de Barros. Partia para o contra-ataque de uma forma muito mais competente.)

Eu, pelo menos, gostaria de saber quem foi o sujeito que, provavelmente numa sala esfumaçada e diante de uma garrafa semi-vazia de Logan, teve um estalo e lembrou que foi alguém igualmente humilde — e parte-se do princípio esquisito de que pobre não mente –, o motorista Eriberto França, que ajudou a derrubar Collor. Porque esse sujeito merece algum respeito: pela lembrança, pela falta de escrúpulos e por ter sido um leitor aplicado do primeiro parágrafo de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, aquele em que, citando Hegel, Marx diz que os grandes eventos da história se repetem como farsa.

Esse, talvez, seja o papel da oposição.

Mas talvez fosse o caso de perguntar pelo destino desconhecido do “republicanismo” e da “oposição responsável” desse pessoal, tão alardeados quando não ainda tinham o que dizer do governo. A investida contra Palocci teve um objetivo único e claro: desestabilizar um governo que mesmo com toda a crise tinha conseguido crescer em aprovação pública porque, apesar das negativas da oposição, vem fazendo, sim, um governo administrativamente e socialmente competente. Não se trata aqui da culpa ou não do PT, até porque a essa altura isso são favas contadas, mas de algo que este blog diz há muito tempo: que a oposição do PSDB/PFL nunca teve nada de “republicana”, que tudo é jogo político, interesses em um jogo pouco liso de poder.

Originalmente publicado em 30 de março de 2006

Manifesto em Defesa das Baratas ou A Barata é Nossa Amiga

Todos os seres vivos são iguais perante o Criador. Todos temos o direito de viver, e isso inclui até astrólogos de Maria e pseudo-feministas de caixas de comentários.

É em estrita observância a esses direitos universais, e ao reconhecimento do estabelecimento de uma nova moral ecológica, que anunciamos aqui a fundação da ARPAB – Associação Rafaeliana de Proteção às Baratas.

As baratas estão neste planeta desde milhões de anos antes de nós. Estarão aqui depois que o último homem der seu último suspiro em meio a uma nuvem radioativa. Este é o seu mundo, um mundo em que somos apenas hóspedes temporários. Nós não temos o direito de usurpá-lo de suas donas legítimas.

Devemos, antes de qualquer coisa, reconhecer sua superioridade absoluta em relação a nós. Quantos milhões de baratas são mortas todos os dias? Matam-se mais baratas em um dia do que rinocerontes em toda a História. E no entanto elas sobrevivem graças à sua tenacidade, enquanto nós, seres conscientes, agora lutamos para preservar os rinocerontes.

Devemos declarar guerra às baratas porque elas trazem doenças? Hipocrisia desses humanos inconseqüentes. Acaso não trouxemos nós tantas doenças ao Novo Mundo, acaso não extinguimos populações inteiras de silvícolas bonitinhos, e tantas índias ecologicamente conscientes não deixaram de dar de mamar a cachorrinhos inocentes? E apesar disso não pensamos em nos suicidar coletivamente como lemingues para expiar um pecado que todos nós carregamos em nossas almas. Em verdade, em verdade a culpa é nossa, que em vez de nos adaptarmos à convivência pacífica nos dedicamos a combatê-las com ódio irracional.

Como podemos erguer nossas vozes que se pretendem civilizadas em defesa do tratamento ético dos animais, enquanto tratamos nossas irmãs blatáricas de maneira vil e covarde? Baratas têm sentimentos como as chinchilas, têm instintos como as focas, querem viver como a Susan Hayward. E no entanto as assassinamos aos milhões todos os dias, e não fosse a sua superioridade biológica acabaríamos responsáveis por um grande desastre ambiental, interrompendo a cadeia alimentar.

Mas desastre ambiental não é o ponto fundamental, aqui, porque esse é um conceito antropocêntrico e precisamos abdicar dessa arrogância deletéria, essa coisa de nos acharmos os reis da Criação e da cocada preta. O que realmente importa é o respeito à mãe Gaia, é a consciência telúrica de um equilíbrio cósmico. Há que se respeitar o direito das baratas à vida. É inconcebível que não sintamos a dor da pobre baratinha atingida à traição por um jato de Baygon; inadmissível que nosso coração não se confranja enquanto ela, como um monge tibetano em chamas, corre sem direção em agonia e dor inimagináveis, chamando pela mamãe barata antes de morrer com as perninhas tremelicantes para cima. Que monstro é capaz de cometer tamanha iniqüidade sem derramar uma lágrima furtiva pelo trágico destino de nossa irmã? Como esses assassinos conseguem dormir à noite com a mancha do genocídio em suas mãos?

Uma barata tem o mesmo direito à vida que um leão, que uma vaca, que o Afanásio Jazadji.

A ARPAB vai se dedicar a campanhas educativas pela tolerância entre homens e baratas; à defesa da ilegalidade de drogas pesadas como Detefon, SBP e Rodox; à censura e banimento de filmes depreciativos e preconceituosos como Men in Black. Vamos fazer o Viva Rio abraçar o rio Maracanã e os tantos terrenos baldios espalhados pela cidade.

A ARPAB se dedicará também a reformar o nosso vocabulário. Nossos antecessores, tão íntegros e inteligentes como nós, mostraram que isso é possível, e agora anão é verticalmente prejudicado e puta é trabalhadora do sexo; vamos estender agora tal maravilha ao mundo das baratas — e vamos além, porque se anões continuam pequenos e putas continuam batendo calçada apesar dos nomes que lhes damos, nunca mais se ouvirá a expressão “sangue de barata”. Pois como podem associar covardia às baratas, essas criaturas valorosas que todos os dias se arriscam em incursões à casa de seus inimigos, e desafiando a morte e o perigo comem de sua comida? Baratas são sinônimo de coragem, e nossa ação em defesa do politicamente correto restabelecerá a verdade universal.

Aplaudamos, portanto, a chegada da nova consciência da Era de Aquário. Reconheçamos, finalmente, que a partir do momento em que julgamos errado criar chinchilas por suas peles, também se torna errado matar uma pobre barata que tem filhos para criar e um importante papel a cumprir na natureza. Nós, humanos, não somos melhores ou superiores a qualquer animal. É fundamental deixarmos de lado a hipocrisia e a conveniência, e adotarmos uma postura moral digna e, principalmente, coerente.

Um viva às baratas que merecem o nosso amor.

Originalmente publicado em 16 de fevereiro de 2006

Ecologia e hipocrisia

Dia desses, assistindo a um programa sobre criação comercial de chinchilas na TV Senai, apareceu uma senhora de uma dessas ONGs dizendo que suas objeções à atividade, cujo fim é a produção de peles, eram morais. Acrescentou que era diferente da criação de gado, à qual implicitamente aferia um nihil obstat.

E aí eu me confundi. Venho tentando desde então, mas ainda não consegui ver a diferença moral entre matar uma vaca ou matar uma chinchila. Ambos são seres vivos e nenhum deles gostaria de morrer.

É compreensível e louvável que protestem contra o assassinato de filhotes de foca ou baleias. É perfeitamente justificável a consciência da necessidade de respeito ao equilíbrio ecológico e à vida selvagem; nem tanto pelos animais ou plantas, mas pela sobrevivência humana. Mas quando se trata de criação comercial, uma atividade iniciada e controlada pelo homem, há mesmo alguma diferença entre vacas, chinchilas e jacarés? Eu não consigo ver nenhuma, além do fato de que chinchilas são bichinhos fofinhos e vacas têm olhares bovinos e babam — o que, numa interpretação freudiana bem liberal, fornece a justificativa para a condescendência desses ecologistas: elas lhes lembram suas imagens no espelho e portanto é OK matar as pobrezinhas. Uma espécie de masoquismo projetado.

Se criamos animais para o matadouro, que diferença faz se vamos aproveitar sua carne ou sua pele? Garanto que para o bicho diante do cutelo não faz nenhuma diferença. Parece sensato afirmar que esses limites morais são justificados pela necessidade humana. Mas ninguém, por exemplo, precisa comer carne. Ela fornece proteína? Soja também. Entupa-se de soja, portanto. Carne de soja. Leite de soja. Queijo de soja. Os Rolling Stones bebem leite de soja, por que não os mortais comuns? De fato, as pessoas podem passar suas vidas inteiras comendo apenas soja. Não há necessidade objetiva de carne, assim como não há de casacos de pele.

Mas coerência não é atributo desses ecologistas radicais, baseados em distorções pseudo-humanistas que acabam adquirindo os contornos de uma religião neo-pagã e materialista.

Para eles é eticamente aceitável matar uma vaca, mas não uma chinchila. Esse pessoal, com sua moral fácil e hipócrita de classe média urbana, não percebe sequer que o manejo de uma vaca é muito mais cruel e desumano que o de uma chinchila.

Imaginai-vos, dileta leitora, tendo vossas mamas apertadas duas vezes por dia. E não vos alegrai pensando que é o toque macio ou a mordida apaixonada do vosso amante: são as mãos ásperas e rudes de um vaqueiro desempenhando sem delicadeza uma tarefa automática. Isso, claro, se tiverdes a sorte de ser escolhida para a produção de leite tipo C; porque se quiserem tirar leite A de vossos úberes, ah, minha nega, então enfiarão vossas tetas em uns aspiradores implacáveis sem nenhum sentimento. E, por favor, não deixeis que eu vos fale de inseminação artificial. É pior, mil vezes pior que a posição humilhante que assumis diante de vosso ginecologista. Voltai ao carinho de vosso amante, e hoje à noite, aninhada em seus braços, não deixeis que um calafrio percorra vosso corpo ao lembrar-vos do pobre canal vaginal da vaca diante do aplicador comprido com o sêmem do touro; nem do reto, mais pobre ainda, diante do muito longo braço do tratador, que guiará o aplicador até o útero da vaca e, caso necessário, desobstruirá seus intestinos. Esquecei tudo isso e tomai um leitinho.

É graças a uma desconfiança inevitável em relação a esse relativismo moral que só confio em ecologistas vegetarianos. Por enquanto. Porque quando descobrirem que o príncipe Charles tem razão e as plantas têm sentimentos, eu só vou confiar em ecologistas mortos de fome.

E por tudo isso um dos meus sonhos é comprar um casaco de peles, mesmo achando-os terrivelmente cafonas, apenas para desfilar diante desses ativistas que ficam jogando tinta nos outros. Estaria, claro, devidamente acompanhado de uns quatro guarda-costas de excelente porte e péssima índole, apenas para vê-los dando um cacete nos idiotas quando emporcalhassem meu casaco. Se esse tipo de ativismo é a nova religião, está mais do que na hora de lhes dar um mártir.

Originalmente publicado em 15 de fevereiro de 2006

O papa de Hitler

Um artigo curioso na Primeira Leitura de dezembro: Hugo Estenssoro faz uma resenha de The Mith of Hitler’s Pope, do rabino David G. Dalin. O livro procura derrubar a idéia de que o papa Pio XII fez vista grossa à perseguição dos judeus pelos nazistas.

Não li o livro, o que faz deste post apenas um comentário sobre a resenha e sobre os aspectos ressaltados nela.

O problema de Dalin, como apresentado, parece ser a fraqueza de grande parte da argumentação. Dalin torce ao máximo interpretações, inclusive retirando-as de seu contexto histórico, para recriar a imagem que teve o papa até 1963: a de um líder que, embora pudesse ter feito mais, ao menos fez sua parte. E isso é uma inverdade.

A resenha afirma que Dalin “consegue também fundamentar suas afirmações com erudição e elegância. Assinala, por exemplo, que Hitler dificilmente teria desenvolvido planos de seqüestrar o papa se ele fosse seu aliado”. Não consigo ver a elegância em simplesmente dar uma opinião na base do “se”, mas essa afirmação equivale a dizer que Hitler dificilmente teria invadido a União Soviética se Stalin fosse seu aliado. No entanto, foi exatamente isso o que aconteceu. Dalin parece subestimar o que há de temporário em política para justificar os atos do papa, e parece não entender que alianças são quase sempre efêmeras — ainda mais em tempo de guerra. Hitler, mesmo tendo entre seus defeitos uma ignorância crassa e um profundo eurocentrismo — uma das razões para perder a guerra –, sabia disso.

“A decisão de acolher uns 3 mil judeus em Castelgandolfo, durante a ocupação alemã de 1943, foi simplesmente um ato de coragem”, como afirma o livro? Talvez. Mas essa coragem talvez empalideça quando imaginamos as manchetes do dia seguinte, em caso contrário: “Vaticano se recusa a acolher uns 3 mil refugiados judeus”. O custo moral, mas principalmente político, para o Vaticano seria muito maior, e Pio XII sabia disso. Não se está dizendo aqui que o asilo dado tenha sido resultado de covardia; apenas relativizando a “coragem” que julgam ver ali.

É preciso lembrar que, além de líder espiritual, o papa era o chefe de um Estado soberano. E dentro dessas condições parece humilhante comparar 3 mil judeus salvos principalmente por falta de opção aos 1200 que Oskar Schindler, trabalhando dentro do sistema e sem metade das garantias de que o papa dispunha. Se os 3 mil refugiados representam um ato de coragem para um homem com o poder papal, os judeus de Schindler representam um ato divino.

“O fato de Pio 12 não ter excomungado Adolf Hitler ou os carrascos dos judeus (…) é uma questão bem mais complexa, embora a secular história da Igreja demonstre que os resultados são quase sempre contraproducentes”. Provavelmente o imperador alemão Henrique IV, humilhado e ajoelhado na neve de Canossa, aonde tinha ido suplicar ao papa Gregório VII a suspensão sua excomunhão, pensava nesses aspectos curiosos das coisas de Deus. Certo, é preciso admitir que no século XX excomunhões significam pouco ou nada. Mas há uma diferença entre “contraproducente” e “ineficaz”.

Dalin tem razão ao afirmar que “não há razões concretas para pensar, como fica claro com o material exposto no livro, que um enfrentamento aberto com o Terceiro Reich teria melhorado ou aumentado a capacidade do Vaticano para contrariar, evitar ou atenuar a barbárie nazista”. Assim como São Paulo não tinha nenhuma razão para acreditar que ser apedrejado em Listra ou açoitado em Filipos faria alguma coisa pelo crescimento do cristianismo. Se se posicionar abertamente contra o nazismo, e reconhecer o crime contra a humanidade na perseguição aos judeus, poderia ou não ter surtido algum efeito, é algo que pode ser deixado à imaginação de cada um. O certo é que o silêncio de Pio XII não fez absolutamente nada contra essa estado de coisas.

É esse o defeito principal nessa abordagem do papel da Igreja Católica em relação a essa crise. Ela borra a linha que separa heróis de covardes — ou, se essa palavra parece muito forte, de “prudentes”. Pode-se aceitar do alemão comum o silêncio, até mesmo a colaboração. Mas tal atitude é inaceitável no líder espiritual de milhões de almas. É a coragem que, por exemplo, os primeiros cristãos tinham de sobra, ainda que em meio a uma névoa de fanatismo. A coragem que milhares de cristãos alemãos tiveram ao esconder judeus em suas casas. A mesma coragem que faltou a Pio XII.

Originalmente publicado em 12 de janeiro de 2006

Para aquelas que chamei de pseudo-feministas

Eu gostaria de pedir desculpas a todas as feministas pelas agressões e barbaridades que andei dizendo ultimamente neste blog.

Eu me desculpo, em parte, lembrando que minha implicância não é contra as feministas, de modo geral. Não contra aquelas que lidam com problemas reais, como discriminação no trabalho ou violência contra a mulher — questões sérias de verdade e que, ao contrário das levantadas pela maior parte daquelas com que eu brigava, são problemas sociais que precisam de uma abordagem dura por parte do Estado e da sociedade. Minha implicância se dirigia basicamente àquelas que eu julgava histéricas, que vêem misoginia em tudo, que adotam aquela militância radical e boba e que fazem uma profissão de fé a partir da vitimização feminina.

Continuo discordando delas. Mas ando correndo de briga, como vivo dizendo neste blog. E acho que está na hora de fazer as pazes.

Por isso estou oferecendo a todas as mulheres que chamei de pseudo-feministas, mesmo achando que o seu discurso é equivocado, um pequeno vídeo que demonstra de maneira bastante didática essas questões, e que me fez pensar bastante no assunto.

O download pode ser feito aqui.

Amigos, agora?

originalmente publicado em 5 de setembro de 2005

Ainda o acidente da TAM

Nos comentários ao post anterior, em geral as críticas mais pesadas ao governo evitam citar fatos, com exceção do Júnior que coloca palavras nas bocas dos outros comentaristas para refutá-las. Ficam na generalização, na indignação fácil, na conexão forçada entre uma crise pela qual o governo é, sim, responsável e um acidente que poderia ter acontecido em qualquer aeroporto do mundo.

Faz-se isso porque é fácil. Há uma crise grave, que se prolongou por inépcia do governo. Qualquer crítica à postura do governo é bem recebida porque há uma predisposição a culpar o governo por qualquer coisa, e uma imprensa que trabalha essa predisposição diuturnamente.

Mas um mínimo de honestidade é necessário. Que se critique o governo por aquilo em que ele realmente tem responsabilidade, como faz o Sergio Leo, embora eu discorde em aprte da lógica final. Ou que, no que diz respeito especificamente ao acidente, se critique a postura de Lula nos momentos que se seguiram. O presidente cometeu um erro grave ao não ir imediatamente para Congonhas, como fez o Serra. O mais engraçado é que a sua reação — a de convocar uma reunião para discutir o assunto — é em princípio mais útil do que ir ao local do acidente, porque ali não havia nada a fazer além de dar a impressão de solidariedade. Qualquer um sabe disso; mas sabe também do “Princípio de Pompéia”: à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta.

Pode-se também criticar a atitude do Marco Aurélio Garcia e do Bruno Gaspar. (O MarcosVP chega a falar em “equívoco moral” e cobra respeito à família dos mortos, e termina o post dizendo: “E ACM finalmente morreu. Menos um pulha nesse mundo.” O MarcosVP expressa no post suas certezas ideológicas e seu prazer em ver a morte de alguém. Mas abriu uma brecha para que a família do finado e alguns milhares de baianos que idolatravam o defunto possam dizer dele a mesma coisa: “A frase é um equívoco moral”.)

Obviamente, é mais fácil reclamar de integrantes de um governo que, no meio de uma crise que não sabe administrar, fica aliviado por ser eximido de uma responsabilidade que não é sua. Bem mais fácil, por exemplo, do que reclamar daqueles que, desde o início, utilizaram o episódio para enfraquecer o governo através de um grande sofisma. Claro que os assessores fizeram uma grande imbecilidade: em tempos de sítio, podiam ter fechado a cortina. Agora, dizer que aquilo é um chute no povo é se fazer de ingênuo e fingir que não existe uma luta política. As coisas não são tão simples. No momento em que se soube do acidente, já se começou a dizer que, fosse de quem fosse a culpa, ela seria do governo. É só ver o Reinaldo Azevedo, que fez dez posts descendo a lenha no governo para só então lembrar de prestar suas condolências às vítimas. Ninguém está descansando.

O nome disso é política. Não é jogo de inocentes e ninguém espera que seja. O que os assessores comemoraram, ali, foi um lance nesse jogo: o de que, caso aquela informação fosse confirmada, seria mais difícil imputar ao governo a responsabilidade direta pelo acidente. Por isso é canalhice esperar que a imprensa bata no governo e lhe impeça ao menos o direito de ficar feliz porque uma jogada não vai dar certo Quando o MarcosVP reprova o gesto do Marco Aurélio alega uma tal de “liturgia do cargo” (só um parêntesis: o assessor não ganha para representar o povo deste país. Quem representa o povo são os deputados estaduais e federais. O assessor é pago para servir ao povo através de seus representantes). Bobagem. Era um momento privado. Daqui a pouco o Marco Aurélio vai ser proibido de ir ao banheiro do Planalto porque, “na liturgia do cargo”, um assessor do presidente não pode se arriscar a esquecer de trancar a porta e ser pego por uma câmera da Globo com as calças arriadas lendo o Correio Braziliense.

Outra parte dos comentários traz de volta o fantasma de FHC. Diz que se fosse com FH a “PTzada” estaria fazendo uma festa. Quem diz isso tem memória curta e pouco conhecimento, porque isso já aconteceu em Congonhas. Naquela época não se falou na responsabilidade direta do governo, embora já se criticasse o simples fato de Congonhas estar onde está. A mesma crítica ainda cabe ao governo.

Mas, no fim das contas, colocar na crise aérea a culpa por um acidente trágico continua sendo um grande sofisma. Sobrecarga, tráfego — tudo isso só valeria se o avião estivesse em um momento em que esses elementos (que existem e que são, sim, responsabilidade do governo) influenciassem diretamente no acidente. O governo tem toda a responsabilidade pela crise. Mas não tem responsabilidade específica pelo acidente com a TAM.

***

O GPC fez uma pergunta ingênua: “o que quer dizer exactamente isto: ‘todo mundo que vai a São Paulo faz pressão para pousar em Congonhas’? Quem? Como?” Ele não parece ter ido para São Paulo alguma vez na vida e tido a chance de escolher entre Cumbica e Congonhas. Não deve fazer idéia da distância do aeroporto de Guarulhos; acha que todos os governos, presente e passados — e aqui não se está desculpando o governo Lula pelo seu quinhão –, sobrecarregaram Congonhas pelo simples fato de gostarem do nome, ou de serem afeitos ao singelo esporte da roleta russa. Mas provavelmente sabe o que é lei de mercado, e como é natural que as empresas aéreas, sabendo da demanda, façam pressão para levar a maioria dos vôos a um lugar que, na minha opinião, só deveria receber a ponte aérea.

Mas o GPC fez um comentário não tão ingênuo assim: “A censura ou filtragem dos comentários a posteriori é obviamente imprescindível, mas a pré-aprovação não. Soa a censura, a uma rigidez desnecessária, a uma nefasta tendência fascistóide.”

E aqui eu vou mais uma vez repetir o que já disse tantas vezes: me enche o saco quem cobra democracia na casa dos outros. O blog é meu, os critérios são meus. Isto aqui não é repartiçào pública nem puteiro de interior. Eu decido o que é publicado automaticamente, o que é moderado e o que vai para o lixo, assim como decido quem entra ou não na minha casa. Não ofereço justificativas além da minha livre, soberana e caprichosa vontade e de uma certa crença na propriedade privada. E eu adoro ser chamado de fascistóide.

O bêbado e o piloto

O Hermenauta escreveu um bom post sobre o acidente com o avião da TAM, a alegria do Marco Aurélio Garcia e do Bruno Gaspar com o noticiário do Jornal Nacional e a responsabilidade da Infraero.

Bom artigo, mas talvez equivocado. Há alguns pontos que se pode discutir.

O primeiro é a exploração óbvia da alegria dos assessores da presidência pelo telejornal. Que me desculpem aqueles que se indignaram com as imagens, mas aquela é a coisa mais natural do mundo. Ninguém em sã consciência gostaria de receber a responsabilidade por algo que até agora parece ter sido um erro ou problema individual. O acidente é, além de uma tragédia, um fato político grave, e para os assessores a notícia foi, sim, um alívio. Trata-se da culpa pela morte de mais de 180 pessoas. Além disso, os dois homens estão no meio de uma pseudo-crise causada, principalmente, pelo clima de exploração política que o acidente recebeu. Como se pode ver em qualquer lugar — inclusive neste blog mais dado a superficialidades –, há uma utilização intencional do acidente que excede o limite do bom senso.

A base dessa pseudo-crise é uma confusão proposital entre o acidente e a responsabilidade da Infraero. É mais ou menos como alguém culpar buracos nas estradas porque um bêbado resolveu dar marcha-à-ré no meio da pista e matou dez pessoas. Um problema não anula o outro; a estrada não deixa de ter buracos e ser insegura por causa do ato do bêbado. Mas responsabilizá-la pelo comportamento do bebum é um equívoco.

É mais do que óbvio que Congonhas é um poço de problemas estruturais. Pode-se dizer que é erro do governo ceder a uma pressão generalizada da sociedade — todo mundo que vai a São Paulo se esforça para pousar em Congonhas em vez de Cumbica, para economizar tempo e dinheiro de táxi; ou, pelo menos, fazia — e certamente é um erro ter deixado que se fizesse de um aeroporto antigo, em área urbana, o mais movimentado do país. Além disso, é inegável a incapacidade do ministro Waldir Pires, um dos políticos mais dignos e íntegros da história deste país, para o gerenciamento de crises.

Mas também é cada vez mais claro que não há nenhuma relação entre este acidente específico com o avião da TAM e a política aeroportuária do governo. Primeiro tentaram culpar a pista e a falta de ranhuras; agora as acusações vão para um terreno mais difuso, o de uma responsabilidade vaga, em que as conexões necessárias para que se crie uma argumentação só podem ser feitas com muito esforço e má vontade.

O problema é que, para que a Infraero tivesse realmente responsabilidade, seria necessário que o acidente estivesse relacionado com algum aspecto do aeroporto. E não parece que este seja o caso. Reversor desligado, eventual erro do piloto, nada disso tem a ver com Congonhas, e muito menos com a Infraero. E por uma coisa não ter a ver com a outra, o uso desse acidente, da maneira como está acontecendo, tem a ver com rapinagem e oportunismo político.

Governistas e acidentes

O Lucas fez um comentário ao último post que eu não entendi:

Rafael, governismo tem limite. É cedo pra culpar a TAM, principalmente com o atual quadro de “relaxa e goza” áereo.

Eu não entendi o que de governista tem o post abaixo, mas tudo bem. Aliás, o post não falava, em absoluto, de política. Na verdade, sequer do acidente em si. E se o comentário era a respeito do meu comentário, então, Lucas, você não entendeu a piada.

De qualquer forma, acho também que anti-governismo tem limite.

Antes de mais nada, e antes que as informações reais sejam divulgadas, vai aqui o meu pitaco sobre as razões do acidente com o avião da TAM: imperícia do piloto e, secundariamente, uma pista inadequada.

Ou seja: o piloto errou de maneira primária os procedimentos de aterrissagem e a pista, sem grooving ou seja lá o que for, não ajudou muito. Resta saber se a pista poderia ajudar.

isso é só palpite. Ontem mesmo, vendo a primeira animação reconstruindo o acidente, isso já parecia óbvio.

Isso não quer dizer que o o setor aéreo não passe por uma crise, que o que estão fazendo com Congonhas não seja um crime, ou que o ministro Waldir Pires não venha dando um show de falta de pulso e de liderança. Não é o caso de desculpar a Infraero ou a ANAC pelo que quer que seja. Mas imputar ao governo ou a quem quer que seja erros individuais é incorrer no erro contrário.