Nos últimos anos, ninguém reclamou das grandes operações da Polícia Federal, como a Sanguessuga, a Navalha e a Pasárgada. Não se falou da espetacularização de suas ações. Não se disse que as prisões eram midiáticas. Não se criticou a humilhação de homens poderosos ao saírem algemados — como o empresário João Alves Neto, filho do ex-governador de Sergipe João Alves Filho, preso na Operação Navalha. Ninguém, claro, além dos diretamente envolvidos.
Ninguém criticou porque essas operações mexiam com um setor bem definido do tecido social brasileiro. Ali estavam apenas políticos corruptos desviando dinheiro de ambulâncias, ou empresários que reinavam no submundo mas eram desconhecidos do grande público, como Zuleido Veras, da Gautama. Todos esses personagens de triste memória operavam sem necessidade do apoio de outras instituições brasileiras, como a imprensa. Só eles eram sujos, não precisavam sujar mais ninguém.
Com a Operação Satiagraha, isso mudou.
A diferença entre a Satiagraha e, por exemplo, a Sanguessuga é que aquela mexe com uma área cinza das relações institucionais brasileiras, que envolve muito dinheiro e muito poder. É uma área em que legalidade e ilegalidade, moralidade e imoralidade são separadas por linhas muito tênues. É uma área mais complexa em que uma peça não funciona sem outra, em que um Daniel Dantas precisa do apoio de jornalistas a seu soldo para influenciar a opinião pública e ter mais capital político para realizar seus negócios. Essa é a grande novidade trazida pela Satiagraha, e é isso que tem gerado as críticas que se vê na mídia nos últimos dias. São críticas tímidas porque estão lidando com uma das instituições mais respeitadas do país cumprindo o seu papel — uma instituição cuja reputação foi criada através de operações “espetaculares” como a Navalha e prisões “midiáticas” de figurões, amplamente repercutidas pela imprensa.
(É preciso lembrar também que essas operações só se tornam espalhafatosas a partir do momento em que a imprensa as cobre e divulga com estardalhaço. Ao reclamar do espetáculo, a imprensa está apenas se recusando a aceitar a responsabilidade pelas suas ações.)
Em relação às operações anteriores da Polícia Federal, a imprensa se sentiu numa posição confortável para elogiar porque em nenhum momento sua própria credibilidade esteve em jogo. Ela não intermediava negociatas. Não participava dos esquemas e dificilmente tinha sequer acesso a esse tipo de informação. Mas agora está diretamente envolvida e o relatório da Polícia Federal mostra os suspeitos utilizando termos que destroem qualquer tipo de respeitabilidade que um jornalista possa aspirar a ter: “matérias por encomenda”, “campanha de difamação”.
De acordo com a imagem rósea que a imprensa projeta de si mesma, esse tipo de coisa ficou para trás, junto aos cadáveres de Assis Chateaubriand e David Nasser. Qualquer pessoa mais próxima de algum nível de poder, no entanto, sabe que não é assim. Esses termos não apenas são utilizados com constância como são moeda corrente das relações de grandes empresas e do Estado com a imprensa.
Ao adentrar essa área cinza em que as coisas são mais complexas do que parecem, a Operação Satyagraha assusta a imprensa porque envolve questões como verdade e ética. Um jornalista não precisa mentir para ser anti-ético, publicando apenas um parte da verdade e influenciando a opinião pública a favor de quem lhe paga ou lhe oferece alguma vantagem. Se recebe algum dinheiro de um empresário bilionário, que mal há nisso, desde que ele não tenha mentido?
Em conversa com o jornalista Sérgio Matsuura, do site Comunique-se, o colunista Diogo Mainardi — o cão de guarda quase hidrófobo da Veja e, segundo o Luís Nassif, de Dantas também — menosprezou o seu envolvimento com o esquema denunciado e o próprio trabalho da Polícia Federal: “Uma investigação que não conhece o funcionamento do jornalismo, não pode saber como funciona uma rede de falcatrua internacional.”
Resta saber agora — e é esse o dever que a imprensa tem no momento — qual é realmente o “funcionamento do jornalismo” a que o Mainardi se refere. Qual o limite que jornalistas devem se impor em suas relações com suas fontes e, principalmente, com as estruturas de poder. A outra alternativa é assumirem-se como eventualmente são. (Por outro lado, vale a pena ler o texto do Sergio Leo sobre o envolvimento da repórter Andrea Michael no relatório.)
A Operação Satyagraha é uma iniciativa corajosa e benéfica. Faz parte de um processo de evolução constante da Polícia Federal e historicamente já representa um grande avanço para o país. Durante anos, reclamou-se que só pobre ia preso. Isso está mudando, como mudaram outras coisas no Brasil. E por si só, isso já é uma grande coisa. Ao criticar aspectos secundários da operação, a imprensa faz um desserviço para o país. Faz isso para se proteger. E ao fazer isso, não cumpre o seu papel.