A verdade em tons de cinza

Nos últimos anos, ninguém reclamou das grandes operações da Polícia Federal, como a Sanguessuga, a Navalha e a Pasárgada. Não se falou da espetacularização de suas ações. Não se disse que as prisões eram midiáticas. Não se criticou a humilhação de homens poderosos ao saírem algemados — como o empresário João Alves Neto, filho do ex-governador de Sergipe João Alves Filho, preso na Operação Navalha. Ninguém, claro, além dos diretamente envolvidos.

Ninguém criticou porque essas operações mexiam com um setor bem definido do tecido social brasileiro. Ali estavam apenas políticos corruptos desviando dinheiro de ambulâncias, ou empresários que reinavam no submundo mas eram desconhecidos do grande público, como Zuleido Veras, da Gautama. Todos esses personagens de triste memória operavam sem necessidade do apoio de outras instituições brasileiras, como a imprensa. Só eles eram sujos, não precisavam sujar mais ninguém.

Com a Operação Satiagraha, isso mudou.

A diferença entre a Satiagraha e, por exemplo, a Sanguessuga é que aquela mexe com uma área cinza das relações institucionais brasileiras, que envolve muito dinheiro e muito poder. É uma área em que legalidade e ilegalidade, moralidade e imoralidade são separadas por linhas muito tênues. É uma área mais complexa em que uma peça não funciona sem outra, em que um Daniel Dantas precisa do apoio de jornalistas a seu soldo para influenciar a opinião pública e ter mais capital político para realizar seus negócios. Essa é a grande novidade trazida pela Satiagraha, e é isso que tem gerado as críticas que se vê na mídia nos últimos dias. São críticas tímidas porque estão lidando com uma das instituições mais respeitadas do país cumprindo o seu papel — uma instituição cuja reputação foi criada através de operações “espetaculares” como a Navalha e prisões “midiáticas” de figurões, amplamente repercutidas pela imprensa.

(É preciso lembrar também que essas operações só se tornam espalhafatosas a partir do momento em que a imprensa as cobre e divulga com estardalhaço. Ao reclamar do espetáculo, a imprensa está apenas se recusando a aceitar a responsabilidade pelas suas ações.)

Em relação às operações anteriores da Polícia Federal, a imprensa se sentiu numa posição confortável para elogiar porque em nenhum momento sua própria credibilidade esteve em jogo. Ela não intermediava negociatas. Não participava dos esquemas e dificilmente tinha sequer acesso a esse tipo de informação. Mas agora está diretamente envolvida e o relatório da Polícia Federal mostra os suspeitos utilizando termos que destroem qualquer tipo de respeitabilidade que um jornalista possa aspirar a ter: “matérias por encomenda”, “campanha de difamação”.

De acordo com a imagem rósea que a imprensa projeta de si mesma, esse tipo de coisa ficou para trás, junto aos cadáveres de Assis Chateaubriand e David Nasser. Qualquer pessoa mais próxima de algum nível de poder, no entanto, sabe que não é assim. Esses termos não apenas são utilizados com constância como são moeda corrente das relações de grandes empresas e do Estado com a imprensa.

Ao adentrar essa área cinza em que as coisas são mais complexas do que parecem, a Operação Satyagraha assusta a imprensa porque envolve questões como verdade e ética. Um jornalista não precisa mentir para ser anti-ético, publicando apenas um parte da verdade e influenciando a opinião pública a favor de quem lhe paga ou lhe oferece alguma vantagem. Se recebe algum dinheiro de um empresário bilionário, que mal há nisso, desde que ele não tenha mentido?

Em conversa com o jornalista Sérgio Matsuura, do site Comunique-se, o colunista Diogo Mainardi — o cão de guarda quase hidrófobo da Veja e, segundo o Luís Nassif, de Dantas também — menosprezou o seu envolvimento com o esquema denunciado e o próprio trabalho da Polícia Federal: “Uma investigação que não conhece o funcionamento do jornalismo, não pode saber como funciona uma rede de falcatrua internacional.”

Resta saber agora — e é esse o dever que a imprensa tem no momento — qual é realmente o “funcionamento do jornalismo” a que o Mainardi se refere. Qual o limite que jornalistas devem se impor em suas relações com suas fontes e, principalmente, com as estruturas de poder. A outra alternativa é assumirem-se como eventualmente são. (Por outro lado, vale a pena ler o texto do Sergio Leo sobre o envolvimento da repórter Andrea Michael no relatório.)

A Operação Satyagraha é uma iniciativa corajosa e benéfica. Faz parte de um processo de evolução constante da Polícia Federal e historicamente já representa um grande avanço para o país. Durante anos, reclamou-se que só pobre ia preso. Isso está mudando, como mudaram outras coisas no Brasil. E por si só, isso já é uma grande coisa. Ao criticar aspectos secundários da operação, a imprensa faz um desserviço para o país. Faz isso para se proteger. E ao fazer isso, não cumpre o seu papel.

As vozes da taba

No caderno Eu&Fim de Semana do Valor de sexta-feira passada, Wanderley Guilherme dos Santos escreveu tudo o que eu queria dizer sobre eleições americanas mas não tinha tido saco.

Num artigo intitulado “Nem Obama nem Hillary. Não sou americano”, Wanderley resume bem a situação. Faz notar o seu espanto diante da extensão do envolvimento do que chama a intelectualidade nacional com a campanha eleitoral americana. E nota um equívoco primário na expectativa de que “a vitória de um ou de outra trará modificações de espetaculares conseqüências para o resto do mundo e, portanto, para o Brasil”. Wanderley aponta para o que chama de sunken costs para lembrar que as mudanças, se vierem, serão gradativas, não importa quem ganhe. Porque os Estados Unidos são muito maiores que seus presidentes.

O artigo de Wanderley me lembrou que essa situação é a exatamente a mesma na blogosfera. A discussão das eleições americanas é talvez o principal tema nos blogs brasileiros atualmente. E nisso o equívoco é ainda maior. Porque enquanto Hillary e Obama jogam seu xadrez político, no Brasil começam a se definir os cenários das eleições em milhares de municípios.

Goste-se ou não, reclame-se ou não da falta de glamour nas eleições em João Pessoa ou Chapecó — nem de longe comparáveis à briga pela eleição do grande imperador ociental –, elas são de importância fundamental para o país. Em outubro se definirá uma parte significativa da configuração política nacional para os próximos anos. Muitos dos candidatos a prefeito ou vereador serão candidatos à Câmara ou ao Senado Federal em 2010. É essa configuração que definirá a correlação de forças naquelas eleições, é ela que vai influir pesadamente na política de alianças de todos os partidos nos próximos dois anos; e se não fosse por isso, é daí que vão sair os pedidos de verbas, quando menos. Eleições municipais são o varejo da política, digamos assim; mas o mundo não vive de atacadistas.

Do ponto de vista interno, essas eleições municipais são muito mais importantes do que a eleição de Clinton ou Obama, até mesmo que a eleição de McCain. É essa política de varejo que cria a política nacional. É ali, nos municípios, que em última análise se definem os avanços e os retrocessos deste país.

À grande mídia nacional, claro, isso importa pouco. Centra-se fogo nas eleições das duas maiores cidades do país, às vezes incluindo Salvador e Belo Horizonte, e sem contar Brasília. E só. Enquanto isso, dezenas de outras capitais, e milhares de pequenas cidades e redutos eleitorais de políticos nacionalmente importantes, simplesmente não existem.

É esse vácuo que a blogoseira poderia aproveitar. Ao se debruçar sobre o seu universo local poderia fazer diferença, oferecendo ao mundo uma perspectiva que, normalmente, apenas jornais locais oferecem. Mas esses jornais locais têm limites de circulação, coisa que um blog não tem. A partir de pequenos pedaços, a blogoseira poderia enriquecer o debate nacional e a cultura política do país.

No entanto, de modo geral parece perder tempo se limitando a reproduzir ou, no máximo, interpretar o que a mídia — e por mídia entenda-se também os grandes blogs — diz. Desempenha apenas o seu papel de caixa de ressonância. Um papel legítimo, nada desprezível — mas muito inferior ao que poderia exercer.

Talvez isso reflita uma certa alienação da tal “intelectualidade” tupi, que se contenta em refletir o mesmo comportamento antigo, e que diante de um meio novo e cheio de possibilidades, o utiliza apenas para repetir as mesmas coisas. Os índios da taba continuam repetindo o que ouvem o branco falar.

A semântica do nazismo

Perdi o bonde e não me meti na discussão entre o Idelber e o Pedro Dória sobre a Palestina. No entanto os dois se retiraram prematura e graciosamente da discussão — o que é ruim, porque no final das contas ela seria extremamente útil para o resto de nós. São dois sujeitos que entendem do assunto, extremamente capazes e de cuja discussão se poderia tirar boas lições, dos dois lados. Fica a expectativa pelos resultados da discussão sobre o livro The Ethnic Cleansing of Palestine.

No entanto, do ponto de vista da argumentação, o Idelber estava com a razão. Ele tocou no cerne da questão quando lembrou que hoje a Palestina luta por apenas 22% do seu território original. O Idelber também viu o que chamou de brincadeirinha semântica, e esse foi o ponto que me chamou a atenção. É algo que costuma acontecer sempre que se fala em Israel: termina-se na discussão sobre o nazismo e sua aplicação ou não à situação atual.

Essencialmente os defensores de Israel não admitem que se faça comparações com o nazismo. É aparentemente uma posição facilmente defensável, porque apesar das chacinas, da política que forçosamente adquire a cada dia feições racistas, Israel não construiu ainda um sistema de extermínio como os campos de concentração alemães no leste europeu durante a II Guerra Mundial. Independente da visão que se tenha sobre as ações israelenses, ninguém pode afirmar que existe uma Treblinka ou Auschwitz em Israel. Logo, Israel não pode ser comparado ao III Reich. A argumentação faz sentido. Mas não passa de um desvio da questão central.

O problema é que o Holocausto não define o nazismo.

O Holocausto foi apenas — se é que se pode usar a palavra “apenas” ao falar de uma aberração desse porte — o ponto final em uma política sistemática de perseguição aos judeus. É por isso que, do ponto de vista de definição do nazismo, as Leis de Nuremberg são mais significativas do que Auschwitz. Não foi com os campos de concentração que Hitler completou o trabalho iniciado por Bismarck e unificou de vez a Alemanha. Foi propondo um Estado forte e centralizador, encerrando a bagunça da república de Weimar, e fomentando e capitalizando o anti-semitismo enraizado no povo alemão. É esse anti-semitismo como política de Estado que pode definir o nazismo e diferenciá-lo de outros tipos de fascismo. O Holocausto foi apenas uma conseqüência dele, ao mesmo tempo lógica e circunstancial, acelerada ou mesmo definida pela logística de uma guerra que perdiam.

Esse é um tema mais complexo que poderia parecer à primeira vista. Implica, por exemplo, imputar a responsabilidade pelo nazismo não apenas ao Partido Nazista, mas à maioria do povo alemão. Por isso é mais fácil reduzir a discussão sobre sua natureza ao Holocausto, adotando uma explicação simplista, politicamente carregada e infelizmente obscurantista. Deixa-se de lado um aspecto interessante: de certa forma, os campos de extermínio representavam apenas uma solução burocrática e pragmática, o que uma filósofa chata chamou de “banalização do mal”. É provavelmente o aspecto mais aterrador do nazismo; mas não é o que o define.

Há alguns anos, um historiador chamado Bryan Mark Rigg publicou um livro chamado “Os Soldados Judeus de Hitler”, em que contava a história dos mischlinge — como os nazistas chamavam os filhos de judeus com alemães, “mestiços”, “meio-sangues” — que lutaram na Wermacht como estratégia de sobrevivência. Rigg apontava as complexidades que circundavam as relações sociais e étnicas na Alemanha nazista. É um livro fácil de ler, interessante e curioso. No entanto, foi recebido com má vontade pela maior parte da comunidade de historiadores do Holocausto. As perguntas que se faziam: “Quem quereria saber sobre 100 mil mischlinge que lutaram no exército de Hitler?” e “Isso não é novidade e é totalmente irrelevante para o julgamento do Holocausto e do Terceiro Reich”.

É assustador que historiadores julguem um fato histórico nada desprezível — 100 mil pessoas com algum nível de identificação com a cultura judaica integrando um exército engajado no extermínio do seu povo — como irrelevante. Ou que achem que isso não leva alguma luz para a compreensão do processo social do anti-semitismo na Alemanha. É estranho, mas compreensível, e os motivos vão além da razão histórica. E é basicamente o mesmo raciocínio que leva à escolha do Holocausto como padrão do nazismo. O Holocausto foi tão obviamente monstruoso — e, em suas características próprias, irrepetível — que é fácil utilizá-lo como padrão e como justificativa, porque é algo contra o qual não há argumento racional possível. Dessa forma, Israel pode cometer as atrocidades que quiser, porque a não ser que retome a fabricação do Zyklon-B e construa crematórios, mecanizando e sistematizando a chacina de um povo, jamais poderá ser comparados aos nazistas.

E terão razão. Não dá para comparar o que Israel vem perpetrando na Palestina ao Holocausto. Mas dá para comparar à Kristallnacht, às Leis de Nuremberg, à perseguição, humilhação e execução de milhares de pessoas. As ações de Israel hoje são muito semelhantes — na verdade, pode-se até alegar que ainda mais atrozes — ao processo de limpeza étnica que culminou nos guetos e nos campos de concentração, e é por isso que se pode, sim, comparar o Estado de Israel à Alemanha nazista.

Há alguns anos, o Pedro Dória comentou o caso de Wissam Tayem, um violinista palestino vítima de constrangimentos semelhantes aos dos judeus na Alemanha nazista. Mais ou menos na mesma época o então ministro da Justiça de Israel, Yosef Lapid, que viveu no gueto de Budapeste durante a II Guerra, via o sofrimento das mulheres na Faixa de Gaza como igual ao de sua avó naquele gueto. A essência do anti-semitismo nazista não estava nos campos de concentração. Estava nos guetos, na vida miserável que judeus eram forçados a levar, na negação de sua cidadania e, por fim, de sua humanidade. O Holocausto não surgiu do nada; foi preparado por dezenas, talvez centenas de leis excludentes e por atos grandes ou pequenos de perseguição social e étnica aos judeus. O muro que Israel construiu na Faixa de Gaza não leva a resultados muito diferentes do Gueto de Varsóvia.

Esse ponto leva a outro, mais complexo. O que se tenta mostrar como uma política de governo em relação à Palestina é na verdade uma política nacional, com um forte apoio de parte da população israelense. A perseguição aos palestinos não é mais obra do Likud ou dos trabalhistas: é obra de todo o povo de Israel. Como o nazismo foi obra e responsabilidade de todo o povo alemão.

Republicado em 25 de setembro de 2010

As delícias do home schooling

Infelizmente, o Hermenauta já falou sobre o assunto antes de mim.

Mas isso aqui é só para lembrar: a defesa do home schooling — o direito de qualquer cidadão a educar seus filhos em casa — no Brasil, como é permitido nos Estados Unidos, é um crime contra o país.

O diálogo a seguir poderia acontecer no interior de Alagoas, mas poderia também acontecer em qualquer grotão de São Paulo:

— Por que o senhor tirou seu filho da escola?

— Ah, dotô, agora ele tá fazendo romiscúli comigo. Eu tô ensinando ele.

— Mas por que ele está ali, cortando cana?

— Ele tá tendo aula prática de… De… De pranta.

— Certo. Então assine aqui, por favor.

— Onde é que eu boto um X?

Troque “cortando cana” para “vendendo bala no sinal”, e o diálogo seria possível em absolutamente todo o país.

Sobre a Veja e o Nassif

Os comentários no post sobre o Luís Nassif e a Veja são interessantes. Ainda mais porque os defensores da Veja partiram para o contra-ataque com uma raiva insuspeita.

Parecem esquecer que o post não é uma defesa do Luís Nassif. Ele provavelmente tem seus motivos para bater de frente com a Veja, assim como os fornecedores de dossiês da Veja têm os seus para bater no governo. O que importa, aqui, é a veracidade dos fatos e das conexões expostas por Nassif. Se a Veja publica um dossiê verdadeiro, com fatos checados, ela está fazendo jornalismo. Se o Nassif revelou fatos reais sobre a revista, ele também fez bom jornalismo. É o que importa. Se ele bate na mãe é problema dele.

Mas em nenhum momento — repito: nenhum — o Kbção, o Malavolta, a Livia Pulido, o Adriano ou quem quer que seja se debruçam sobre o que é realmente importante: os fatos. De maneira extremamente pobre, limitam-se a falar gracinhas, a desqualificar o Nassif e a jogar fumaça, tirando o foco do ponto central da discussão: as prática da Veja.

O Kbção, especificamente, se esmera em desviar do ponto central levantado pelo Nassif e partir para o aspecto político, enquanto as reportagens do Nassif lembram é que a Veja trata mesmo é de dinheiro. Por exemplo, fala que a cruzada anti-Veja começou quando Lula chegou ao poder. É mentira. A revista sempre teve uma orientação política clara, que se poderia identificar com o PSDB paulista, e eventualmente fazia bons acordos comerciais travestidos de jornalismo, como uma matéria enorme e famosa sobre alimentos geneticamente modificados, sem nenhuma fonte mas praticamente gritando “Monsanto!”. Mas com a saída do PSDB do poder começou um processo de radicalização que ultrapassou os limites da opinião política para descer à mentira e à chantagem. A lista de matérias feitas apenas para atacar o governo, ainda que sem provas ou testemunhas, cresce a cada dia. A Veja não pára.

Por exemplo, o Kbção fala que o Dirceu era “fanzoca da revista”. Ele com certeza é mais inteligente que isso. Deve saber que essas são relações que fazem parte do jogo político, e nada é de graça. E porque se os termos desse jogo não são elogiosos para o Dirceu, são ainda piores para a Veja.

Em vez de atacar o Nassif ou falar dos “petistas” que perseguem uma revista tão boa e respoeitável, gente como o Kbção e o Malavolta deveria tentar responder algumas perguntas simples:

  • Os fatos narrados pelo Nassif são verdadeiros?
  • Se não são, quais as evidências de sua falsidade?
  • Se são verdadeiros, isso é bom jornalismo?
  • Uma revista que faz esse tipo de coisa é uma boa revista?

Não respondem, não podem responder. Então partem para o contra-ataque, ignorando a mensagem e desqualificando o mensageiro.

Com isso tentam relevar o fato de que o que a Veja faz hoje é o mesmo que qualquer pasquim de interior faz. A diferença está na “catiguria”, para citar uma conhecida colega dos jornalistas da Veja: em vez de chantagear por anunciozinhos de 10, 20 mil reais, seu jogo está na casa dos milhões. São apenas escroques de alto coturno.

Essa é a revista que se apressam em defender.

A Alessandra definiu bem o papel da imprensa. Sua função não é pegar nos calcanhares de ninguém, como a Veja não pegou nos calcanhares do governo FHC. É informar, analisar e explicar. Pegar nos calcanhares é função da oposição, qualquer oposição; é uma função política. O Kbção, o Malavolta, o Cláudio gostam da Veja por isso, porque ela é um panfleto que se sujeita a ser ferramenta de luta política; por essa razão vale a pena ignorar o fato de ela também ser um instrumento de chantagem e de negócios escusos. E se se ignora isso, pode-se esquecer também que ela faz parte do jogo político e perdeu o direito de se auto-intular praticante de bom jornalismo.

Luís Nassif e a Veja

Via o sempre atento Idelber, a série de artigos escritos pelo Luís Nassif sobre os intestinos apodrecidos da Veja pode vir a ser um dos maiores favores que se fez à imprensa nacional, e desde já são seguramente alguns dos posts mais importantes da blogoseira pátria.

Os artigos são uma dissecação do modus operandi da Veja. De repente, temos acesso a informações e análises que, se entre jornalistas são fatos velhos, óbvios e conhecidos, não costumam chegar ao grande público, graças em grande parte ao sistema de interesses de todo o mercado e em pequena parte a um certo esprit de corps de jornalistas.

A análise feita pelo Nassif dos fatores conjunturais que levaram à derrocada da Veja, pelo que se vê do que foi publicado até agora, é em alguns aspectos superficial. Desconsidera como causas alguns fatores externos importantes, econômicos e principalmente políticos. Além disso, a ênfase em duas pessoas específicas — Eurípides Alcântara e Mario Sabino, os atuais condottieri da revista –, em alguns momentos deixa a impressão de que essa reportagem é uma espécie de vendetta pessoal.

Falta também, até agora, ressaltar detalhes importantes, como o fato de que Alcãntara e Sabino não são os donos da Veja, nem fazem o que querem porque têm poder total. Nenhum jornalista publica o que o dono do veículo não quer. O que, sendo as denúncias de Nassif verdadeiras, faz deles jornalistas inferiores é o fato de se sujeitarem aos interesses empresariais dessa forma, o fato de utilizarem uma revista que já foi a mais importante do país e hoje não passa de um panfleto canalha e mentiroso.

Mas as motivações do Nassif não importam. A reportagem é brilhante do ponto de vista da informação e da análise sobre a maneira como a Veja opera. É um documento que precisa ser lido por qualquer pessoa que queira entender como funciona a relação complexa entre a mídia e o poder.

O que o Nassif denuncia na Veja é comum em virtualmente todos os jornais e revistas espalhados pelo país. Apenas quem não conhece uma redação de jornal acha que é diferente. Do jornalzinho de interior à maior rede de TV do país, achaques, pressões, implicâncias são moeda comum — e efetivas. Interesses pessoais e comerciais são travestidos de interesse público. O resto é conversa aprendida já nos bancos da faculdade. O jornalzinho do interior faz algumas matérias batendo no prefeito para ganhar anúncios e calar a boca; e só como exemplo, há alguns anos a Globo se sentiu ameaçada por uma incursão da Legião da Boa Vontade, aquela do Paiva Netto, no mercado educacional; o resultado foi uma série de matérias denunciando irregularidades da entidade.

Sobra também para o mercado publicitário. Quando há quase três anos estourou o escândalo do mensalão, o mercado publicitário correu para desqualificar Marcos Valério. Segundo eles, Valério seria “lobista”, e não “publicitário”. Mas o fato é que publicidade e lobby sempre foram praticamente indissociáveis, apesar do discurso de fachada. Agora quem entra na roda é Eduardo Fischer, um dos melhores publicitários do país, responsável por campanhas brilhantes com a da Calvin Klein de 1983 e a “número 1” da Brahma, mas que teria feito o tipo de lobby mais rasteiro junto ao banqueiro André Esteves (no que, da maneira como Nassif coloca as coisas, mais parece um daqueles esquemas de proteção de mafiosos), envolvendo a coluna Radar, da Veja. Fischer também não é publicitário? Se não é, quem é?

A reportagem de Nassif é um obituário adequado à Veja. É importante pelas respostas que dá e pelas perguntas que suscita. E deve ser lido por todos.

Post redundante sobre a decadência da Veja

Falar mal da Veja está se tornando mais redundante do que comentar a decadência e a chatice de Jô Soares. Mas não cansa.

A edição desta semana traz chamada de capa para uma entrevista com Rosane Collor, que se ergueu da tumba do olvido. A entrevista passa a impressão um tanto forte demais de não ser mais que uma tentativa de tirar algum dinheiro do ex-marido — ex-mulheres de políticos com trajetórias duvidosas sabem que têm em sua memória um bom capital de giro. Nada novo nisso; incompreensível é a razão por que a maior revista nacional em circulação se rebaixou a esse ponto, já que se o presidente do impeachment não é notícia há muito tempo, menos ainda sua ex-mulher, de triste memória em sua passagem pela LBA. A entrevista sequer diz algo novo, com exceção da confirmação das sessões de macumba a que o presidente ia. A revista, esquecendo o que ela mesma noticiava há 16 anos, até aceita sem perguntas a versão de Rosane sobre seu suposto caso extra-conjugal.

A entrevista de Rosane Collor é apenas um sintoma da decadência da revista. Mas não é o mais importante. O buraco é bem mais embaixo.

Em 100 anos de regime republicano, as Forças Armadas foram os fiadores da elite brasileira. Graças a essa simbiose, a estabilidade institucional brasileira foi inviabilizada por uma longa seqüência de golpes e contra-golpes, respostas a ameaças externas a essa elite, como a Intentona Comunista, ou internas, como as lutas de setores diferentes.

Com a Nova República isso mudou. Desgastados pelos 20 anos de ditadura militar, os militares foram postos em escanteio pela primeira vez na história — e até com certo exagero, mas isso é assunto para outro post. A elite brasileira, então, ficou sem os seus cães de guarda.

Sobrou a ela a mídia. Última trincheira legítima em um regime democrático — e última trincheira possível quando não se está no poder –, durante o final da década de 80 e boa parte da de 90 ela foi ocupada de maneira quase equilibrada, embora já combativa. A conjuntura permitia: era época de hegemonia clara do pensamento liberal, o que permitia ainda um certo nível de elegância.

Mas os tempos continuaram a mudar. Por mais que essa mídia tente negar, houve uma mudança importante de modelo administrativo nos últimos anos, a partir do início do governo Lula. E por mais que a Neo-UDN queira a paternidade da bonança que o Brasil vem atravessando, e se recuse a admitir que a mudança de enfoque — da estabilidade a qualquer custo para a ênfase na distribuição de renda, ainda que eventualmente tímida; e da quase exclusividade das obras de interesse imediato da tal elite para programas estruturantes como o ProUni e o Luz Para Todos (eleitoralmente tão importante para a reeleição de Lula quanto o Bolsa Família, embora o PSDB tente evitar a armadilha que seria discutir isso) — está fazendo diferença na vida de milhões de brasileiros, o fato é que aquela elite representada pela Veja perdeu poder e espaço; e isso dói, principalmente no bolso.

Dentro desse contexto a Veja não tem alternativa que não arregaçar as mangas. Partir para a briga, assumir sua posição e defender o seu lado. Da posição arrogantemente olímpica que ocupou nos seus primeiros 20 anos, ela se viu obrigada a descer para a lama do combate político, do tipo mais rasteiro. Nada que seja estranho ao jornalismo, mas que era convenientemente disfarçada pela tranquilidade da sua posição. Hoje a Veja, como outros meios de comunicação, é obrigada a desempenhar dentro de suas condições o papel que antigamente era exercido pelos tanques e pelas estrelas dos generais. Em vez de fuzis, reacionários obscurantistas e hidrofóbicos como Reinaldo Azevedo; no lugar de Urutus, matérias porcas como aquela sobre Che Guevara assinada por Diogo Schelp e ridicularizada por um jornalista da New Yorker. Ou o achincalhe e calúnia puros, como a infame matéria, em 2005, sobre os dólares de Cuba para o PT: apenas difamação, sem nenhuma fonte, sem sequer uma testemunha.

Isso se refletiu, por exemplo, na mudança mais perceptível de orientação editorial, a proliferação de colunas assinadas. De uma revista em que praticamente ninguém assinava matérias, ela passou a ser um repositório de opiniões — a grande maioria impressionantemente ruim, o que caracteriza, antes de mais nada, a necessidade de assumir um lado e intervir no debate político. (Na edição desta semana salva-se o bom artigo do Gustavo Ioschpe.)

Na Veja de 1979 seria impensável uma coluna como a do Diogo Mainardi, histérica e de baixo nível (esta semana ele faz muxoxo e apela para o “mas – eu – tenho – mais – leitores – que – você” porque um jornalista disse que o acha um merda, opinião compartilhada por mais gente). Dos tempos em que reinava absoluta como a grande revista semanal brasileira, hoje ela se depara com um mercado que apenas encolhe em tempos de internet e com concorrência à sua altura, como a Época lembrada pelo Pedro Dória.

De revista razoavelmente respeitada, a Veja se transformou em um panfleto. Pior, em um panfleto ruim — a edição desta semana não tem praticamente nada que preste, mesmo o que passa ao largo da política. Talvez seja isso o que acontece com revistas importantes quando perdem a própria dignidade.

E assim se passaram dois meses

Só uma pergunta, depois eu ter passado tanto tempo fora.

Neste, neste e neste posts, um monte de gente veio bater no governo por ele ter sido “o responsável pelo acidente da TAM”.

Todo mundo já sabendo de antemão o resultado do laudo. Todo mundo com aquela convicção canônica de que a crise no setor aéreo era o responsável direto pelo acidente da TAM. Todo mundo aproveitando a indignação nacional para dar a sua porradinha no governo Lula.

Agora, tantas e tantas informações depois, não aparece nem um pedidozinho de desculpas? Nem mesmo um “talvez nós não estivéssemos certos”?

Anti-semitismos

Senhor Rafael Galvão.
O senhor desconhece inteiramente a história do povo judaico e ousa ofender-lhe, com que direito o faz? Exijo que respeite a dor, o sofrimento deste povo que foi e continua sendo perseguido por pessoas como o senhor que tece comentários inverídicos, com que intenção? Quem é o senhor para falar do povo judaico, com que conhecimento de causa, não sabe nada. Que prove o que menciona em suas palavras maldosas para com o povo judaico!
Carlos Olguin Naschpitz

Eu não sei exatamente o que o sujeito, em seu comentário a este post, quer que eu prove. Se ele está falando das leis israelenses a que me referi, referências a elas podem ser encontradas nos jornais de agosto de 2003 — e não custa procurar em sites israelenses. Se se refere ao que chamo de crimes de Israel, os mesmos jornais trazem notícias sobre isso quase toda semana — mas Naschpitz pode achar que todos eles fazem parte de uma grande conspiração anti-sionista. Descontando-se a indignação tão dolorida de Naschpitz — com direito a ponto de exclamação no final —, seu comentário é vazio, choroso, sem substância.

(Naschpitz não está sozinho. No comentário anterior, Marília Julião Mendonça dá carteirada de “professora universitária de história” para dizer que não existem as tais leis israelenses a que me referi. Eu não queria ser seu aluno, porque ela é ignorante e não lê jornais. Também diz que um casamento entre judeu e alemão rebaixava o alemão de categoria em vez de proteger o judeu da barbárie hitlerista, o que mostra que ela tampouco sabe alguma coisa sobre a Alemanha nazista. Finalmente, tenta justificar quaisquer atitudes israelenses recorrendo ao cativeiro egípcio dos tempos de Moisés, e então vem uma vontade grande de dar um tapinha na sua cabeça, enfiar um pirulito em sua boca e mandá-la brincar na gangorra, tomando cuidado para não sujar o vestido.)

O comentário do Naschpitz apenas reforça a idéia por trás do post: a de que a acusação de anti-semitismo é sempre uma pecha quase sempre irresistivelmente fácil de jogar sobre quem não concorda incondicionalmente com uma imagem fácil e tendenciosa da problemática israelense-palestina.

O mais interessante — e aqui se sai um pouco do tema do post original — é que não existe apenas “um” anti-semitismo. Posso contar pelo menos dois. Um deles, o ocidental, tem raízes em uma necessidade teológica do cristianismo. Se o judaísmo se negou a ver em Cristo o seu Messias, como havia sido profetizado, então ele precisava estar completamente errado para que a alegação de divindade de Jesus, no cristianismo primitivo, se legitimasse. Jesus tinha que ser Deus, e convenhamos que é preciso ser muito malvado para matar o Dito (Nietzsche tentou e acabou discutindo filosofia com os cavalos de Weimar). O cristianismo forçou uma identificação dos judeus com o Mal para garantir sua sobrevivência, e esse parricídio teológico é a origem de dois mil anos de perseguições e preconceito. Foi esse tipo de anti-semitismo que desembocou no Holocausto nazista e que se mostra latente ainda hoje. É talvez o tipo mais pernicioso, e certamente o que deu resultados mais tenebrosos.

Mas há outro tipo de anti-semitismo, com origens diferentes e muito mais complexas. O anti-semitismo que se fortalece no Oriente Médio, ao contrário do ocidental, tem bases bastante sólidas em uma longa história de guerras e agressões mútuas. E hoje é um processo que se desenrola tendo como elemento central um país que, sob a justificativa de seu povo ter sofrido o pão que o diabo amassou no Holocausto e ter sido atacado por vários países muçulmanos após sua fundação, oprime a Palestina de uma forma que, em muitos momentos, lembra a Alemanha nazista dos anos 30.

São situações diferentes, e que não estão necessariamente ligadas. No entanto, de acordo com raciocínios como o de Naschpitz, é tudo a mesma coisa: trata-se um mundo inteiro odiando os judeus a partir do momento em que levanta algum senão. Por sorte, esse não é o raciocínio — ou falta de — da maior parte dos judeus do mundo.

Por mais que os judeus tenham sofrido, por mais que tenham sido perseguidos, nada justifica a afirmação de Golda Meir: “Depois do que fizeram conosco, podemos tudo”. Não, não podem. Quem podia tudo eram os nazistas, e não se pode esquecer isso. Além disso, não se pode esquecer que há um momento-chave na geopolítica daquela região, a Guerra do Líbano: a partir dali, Israel passou a ser um país agressor. Isso faz toda a diferença.

É um equívoco muito grave esse tipo de esforço de santificação judaica, como se fosse um povo moralmente acima de todos os outros. Primeiro porque não encontra bases na história — o Naschpitz deveria se informar sobre a participação importantíssima de judeus e cristãos-novos no tráfico negreiro para o Brasil, por exemplo, e depois discutir o que parece ser seu conceito de “ética por direito divino”. Há bons e maus judeus como há bons e maus cristãos, muçulmanos e macumbeiros, e ao longo da história a perseguição execrável ao judaísmo não impediu o progresso material de muitos indivíduos, mesmo quando de maneira eticamente discutível. As relações dos “Estados” medievais europeus com a elite judaica que lhe emprestava dinheiro, por exemplo, são fascinantes pelos conflitos e concessões de ambas as partes. Além disso, Naschpitz poderia tentar descobrir o que eram os comboeiros nas Minas Gerais do século XVII, por exemplo.

Mas o pior aspecto em tudo isso é o incentivo a uma idéia de diferença irreconciliável entre “raças” que, em momentos históricos específicos, pode gerar resultados inversos e resultar, se não no Holocausto, na repetição das condições objetivas que o geraram. E é isso que esse pessoal, cegos guiados apenas pela promessa de Deus a Moisés, não consegue enxergar.

Originalmente publicado em 20 de junho de 2006