Bangue-bangue

Revi dia desses uma foto minha aos oito anos. Nela estou vestindo calça, kichute e camisa de manga comprida. Não era minha roupa habitual — eu normalmente vestia apenas um short qualquer (na época os shorts de nylon começavam a ser a grande moda) e descia para a rua, para brincar e acumular cicatrizes em virtualmente todo o corpo, além de algumas fraturas aqui e ali. No máximo usava uma sandália — nessa época, Katina Surf.

Mas aquela indumentária específica, naquele dia, era o que eu podia chegar de mais próximo à roupa de cowboy: na cintura havia um cinturão de plástico com dois coldres e dois revólveres prateados de espoleta.

Ver esses revólveres novamente é estranho. Lembro exatamente de quando os ganhei — uma manhã de sábado de 1979. Pela primeira vez eu tinha um coldre e uma cartucheira — embora não fossem de couro, fosse de plástico. Na caixa vinha também uma estrela prateada de xerife.

Revólveres de espoleta foram uma das constantes da minha infância, assim como os bonecos Falcon e os filmes da Sessão da Tarde. Com um revólver na mão tinha-se garantida uma tarde inteira de brincadeiras. Podia-se, com um pouco, quase nada de imaginação, imaginar que postes eram saguaros, que portões de garagens eram celeiros, e que tumbleweeds rolavam pelas ruas asfaltadas como em uma cidadezinha qualquer da fronteira, onde iríamos duelar até a morte.

Os revólveres eram sempre versões do Colt Peacemaker, e havia dois tipos de espoleta. Um em que ela vinha em pequenos rolos de papel, as espoletas Ringo, e outro em que elas eram acondicionadas em aros de plástico: eram as espoletas Far-West. Eu preferia, de longe, essas últimas. As espoletas de papel davam muitos problemas. Eram mais baratas, davam mais tiros sem precisar recarregar, mas enganchavam — e se elas enganchavam um dos comanches que eu perseguia poderia me matar.

Nessas horas, todo cuidado é pouco.

Eu tive alguns revólveres daquele modelo Far-West, da Estrela, além de alguns outros. Não sei exatamente quantos revólveres de espoleta tive, nem os seus modelos, embora saiba que a maior parte eram o Far-West ou variações. Mas lembro desse que estou usando na foto, provavelmente uma variação do modelo Laramie, com dois revólveres e cartucheiras, um modelo semelhante ao que está na foto ao lado, com a diferença de que não vinha com corda e provavelmente nem com lenço, mas em compensação vinha com uma estrela de xerife e com dois revólveres. Mas eu não gostava tanto deles, porque usavam espoletas Ringo.

Lembro também dos que eu não tive; o Álamo da foto ao lado foi meu objeto de desejo ainda em 1981. Não adiantou que eu atravessasse a rua constantemente para ir namorá-lo no Burako da Fechadura, uma pequena loja de presentes quase em frente ao edifício onde eu morava. Um dia venderam o último exemplar, e eu fiquei sem ele. E nunca mais tive um revólver de espoleta. Seu tempo tinha passado, para mim, e em breve passaria para toda a sociedade.

Mas não foram apenas revólveres. Ainda lembro do sábado em que fui com meu pai comprar uma espingarda de espoleta nas antigas Lojas Brasileiras da Avenida Sete. Era uma bem parecida, se não igual, com o modelo abaixo. Com ela pude brincar de Daniel Boone — que não usava revólveres, apenas uma espingarda de caça, o rifle de Kentucky. Aquela era a também a minha Winchester, e não era difícil imaginar carroções em círculo nos defendendo de um ataque de siouxies ou cheyennes — de apaches nunca, porque se lembro bem apaches costumavam ser bonzinhos, pelo menos na maior parte dos filmes — com um sofá e algumas poltronas.

Mas brincar de cowboy e de índio é uma brincadeira que não faz mais sentido hoje. Os referenciais das gerações que se seguiram à minha não estão mais em Monument Valley. Eu e tantos outros crescemos assistindo a faroestes na TV, durante as Sessões da Tarde, e ainda assistíamos a inúmeros seriados como Zorro (o Lone Ranger, aquele com Tonto). Não posso listar o número de bons filmes que assisti ali — Jerry Lewis, Danny Kaye, Burt Lancaster, John Wayne. E à noite, horário interditado para mim, ainda havia o “Bangue-Bangue à Italiana”. Mas hoje faroestes não fazem mais sentido. As Sessões da Tarde são ocupadas por filmes com chimpanzés motociclistas e bizarrices como Thunderpants.

Role playing game” também tem um sentido totalmente diferente, hoje. É a vitória dos meninos bem cuidados que ficavam em casa tomando nescau com um termômetro debaixo do braço; o futuro pertencia ao modelo que eles preparavam em seus pequenos ninhos, não ao meu, em que me estabocava no chão de vez em quando e dava e recebia socos, pontapés e ofensas fraternas de amigos que viravam inimigos e depois viravam amigos novamente. Não me cabe dizer se o que foi feito do mundo é melhor ou pior, até porque é um contrasenso dizer que uma brincadeira é melhor ou pior. Mas não é a minha maneira, nem a da minha geração.

Pelo menos sei que não estou sozinho na impressão de que os meus tempos eram mais interessantes: é o caso dos autores do Brinquedos Faroeste, de onde foram tiradas as fotos que ilustram este post.

Mesmo reconhecendo tudo isso, eu ainda sinto falta de revólveres de espoleta. Eles saíram de moda e foram banidos há mais de 20 anos. Ao que parece, isso se deve em parte ao fato de que bandidos passaram a usá-los em assaltos (e embora eu confesse que preferiria ser assaltado com um revólver de espoleta em vez de um de verdade, não vou discutir isso). Mas em parte, também, sua queda se deve também à histeria politicamente correta e eminentemente imbecil que acha esses brinquedos excessivamente violentos. Para essas pessoas, brincar com revólveres de brinquedo criava adultos violentos.

Essa justificativa deve ser válida, porque essas pessoas sempre sabem do que estão falando. Tantos anos depois, essa geração que hoje entra em sua terceira década de vida, como se pode ver, está menos violenta. Há menos homicídios. As cidades estão mais seguras. A violência urbana nunca foi tão baixa, e isso se deve única e exclusivamente ao fim dos revólveres de espoleta.

Oitenta anos de esquecimento

A data passou em branco, como sempre. No último sábado, um dos acontecimentos mais trágicos da história da América Latina completou 80 anos. Ninguém lembrou.

Depois da missa dominical do dia 6 de dezembro de 1928, os trabalhadores da United Fruit em Ciénaga, Colômbia, aglomeraram-se na praça principal da cidade, acompanhados de suas famílias — velhos, mulheres, crianças. Estavam em greve.

A United Fruit era uma das principais multinacionais americanas, e tinha construído seu império produzindo e exportando bananas a partir dos países da América Central. Nos 40 anos anteriores, ela já tinha transformado quase toda a região em um amontoado de repúblicas de bananas, todas sob o seu controle. O termo tinha sido criado no início do século por O. Henry no romance Cabbages and Kings, abertamente inspirado no modus operandi da United Fruit, e se referia a todos aqueles países em que a empresa tinha influência tão grande que definia seus governos em função de seus próprios interesses. Com a conivência do governo dos Estados Unidos, a United Fruit já tinha patrocinado vários golpes de Estado em países como a Nicarágua, tinha invadido Honduras, e quase conseguiu fazer com que Honduras e Guatemala entrassem em guerra por uma questão de terras em suas fronteiras — pertencentes à empresa, claro.

Todo esse poder era possível porque a United Fruit se apropriava de boa parte da economia dos países onde estava presente — sem contar, claro, um alto nível de corrupção e chantagem. Se aliava a ditaduras, controlava porções imensas de terras. Com o discurso do desenvolvimento nacional, construía ferrovias com dinheiro público mas sob sua propriedade, e controlava boa parte da infra-estrutura desses países desgraçados.

No dez anos anteriores, as greves dos empregados da United Fruit tinham mudado de caráter. Das reivindicações puramente salariais do início, tinham evoluído para abranger também propostas políticas, incluindo a nacionalização das suas ferrovias. Os americanos viam nisso uma grave influência bolchevique, porque apenas comunistas ferrenhos poderiam ser contra um modelo que só trazia benefícios para paisinhos como aqueles.

Entre os benefícios trazidos pela United Fruit estavam os empregos de milhares de trabalhadores centro-americanos. Recebendo salários de fome e vivendo em condições sub-humanas, os trabalhadores não recebiam seu pagamento em dinheiro: em vez disso, a empresa os pagava com vales, que só podiam ser trocados nas suas próprias lojas. Esse sistema, no Brasil, é conhecido por “barracão”; no resto do mundo é chamado simplesmente de semi-escravidão.

É fácil imaginar o discurso da elite colombiana naqueles bons tempos. Aquilo era desenvolvimento, era livre-iniciativa, a United Fruit trazia a modernidade. Mesmo em países fora da esfera de controle da United Fruit, como o Brasil — que nunca pôde ser considerado uma “república de bananas” –, esse era o discurso prevalente; em grande medida, é até hoje. Infelizmente ele não era compartilhado pelos empregados da United Fruit, que trabalhavam de sol a sol, com o perdão do trocadilho, a preço de banana. Nem seria compartilhado por quem via na ação nociva de multinacionais como a United Fruit a destruição institucional de países inteiros, seu empobrecimento, o fim de sua soberania e sua desmoralização mais que absoluta.

Naquela greve em Ciénaga as reivindicações dos trabalhadores deviam ser mesmo coisa de comunista: um dia de folga por semana, tratamento médico médico gratuito e, finalmente, banheiros de verdade, que só existiam nas casas dos supervisores — quase todos americanos. Queiram também jornadas um pouco menores de trabalho, absurdas oito horas. E queriam o supremo ultraje de receber seus salários em dinheiro de verdade.

O problema da United Fruit era, obviamente, também problema do governo colombiano. Bogotá enviou tropas para Ciénaga.

Naquela noite de 6 de dezembro, com os trabalhadores e suas famílias na praça principal de Ciénaga, os soldados se posicionaram nos telhados dos edifícios dos cantos da praça, com metralhadoras. Abriram fogo. A ordem expressa era de não economizar munição.

O primeiro relato sobre o número de vítimas dizia que cerca de 50 trabalhadores haviam sido assassinados. O segundo aumentava esse número para algo em torno de 600. O relatório enviado pela embaixada americana na Colômbia, em janeiro de 1929, estimava em mais de mil o número de mortos. A fonte desses dados era a própria United Fruit. É possível imaginar que o número de vítimas tenha sido muito maior.

Governo, imprensa e United Fruit puseram uma pedra nesse assunto, e ele raramente voltou à tona novamente. O povo colombiano especulava sobre o destino dos corpos. Uns diziam que a United Fruit os tinha enterrado em valas comuns na floresta; outros, que ela tinha colocado os cadáveres em navios da companhia e os jogado ao mar. Criou-se uma lenda em torno do assunto, ainda mais persistente quanto mais proibido era.

No ano seguinte, numa cidade vizinha, Aracataca, nasceria um homem que, mais tarde, contaria essa história em seu principal livro. Seu avô, parlamentar, tinha sido um dos poucos a denunciar os horrores de Ciénaga. O menino cresceu ouvindo histórias sobre o massacre. Mudaria o nome da cidade para Macondo, e seu livro se chamaria “Cem Anos de Solidão”.

Mas ninguém mais lembra disso. Não foram necessários cem anos; bastaram oitenta para o seu esquecimento.

Barroquinha

Uma barroca é uma “passagem funda entre penedos ou barrancos”. O nome que foi dado à Barroquinha, que desce da Praça Castro Alves em direção à Baixa dos Sapateiros, é a única lembrança de que houve um tempo em que ela estava além dos limites urbanos da cidade da Bahia; mas não demorou a ser ocupada, enquanto as classes mais altas se expandiam em direção ao sul, provavelmente atraídas pelo cheiro agradável da maresia da praia aos pés do Forte de Santa Maria e finalmente se fixando no alto das escarpas da Vila Velha, que depois se transformaria em Vitória.

Foi ali perto, no Largo da Barroquinha, onde na metade dos anos 70 vi pela última vez um tipo que desapareceu com o tempo: um sujeito que carregava umas maquininhas semelhantes a máquinas fotográficas, amarradas a um pau por pequenas correntes, contendo seqüências de slides a que se podia assistir, como em um binóculo, por 50 centavos de cruzeiro. Aquele trazia cenas de “Zorro” em um tom azulado — não o Lone Ranger, mas o de capa e espada, o do Sargento Garcia. A televisão e a sofisticação do mundo acabariam logo com esses pequenos mascates, talvez até mesmo nos grotões mais escondidos do interior. Mas em 1977, o que para mim era apenas uma experiência curiosa, para os meninos que moravam ou passavam entre a Baixa dos Sapateiros e a Avenida Sete ainda devia ser algo novo e fascinante, pelo menos a ponto de o mascate tentar ganhar seu pão ali.

Descendo a Ladeira da Barroquinha e dobrando à esquerda na primeira esquina, bem depois da igreja, chega-se à Visconde de Itaparica, uma rua estreita, antiga, de pedras gastas pelo tempo parecidas com as do Pelourinho a algumas centenas de metros dali. Mas ao contrário do Pelourinho a Barroquinha nunca pareceu bonita o suficiente aos olhos do Patrimônio Histórico. Foi abandonada pelos ricos ainda no século XIX, ocupada pelo povo baiano, negros livres e escravos, e abandonada está até hoje. Na esquina oposta havia uma padaria, que mais tarde daria lugar a uma das tantas lojas de roupas baratas que hoje fazem a vida do lugar.

Nos fios elétricos que se espalham dos postes da Visconde de Itaparica gerações de meninos jogaram barbantes amarrados em pedras, e aqueles barbantes ficavam meses, até anos enrolados ali, enegrecendo com o sol e a chuva, e criavam uma imagem típica e inesquecível — ao mesmo tempo repetida em várias outras partes da cidade e do mundo, em todos os lugares onde a escravidão deu lugar à miséria.

Noblesse obligesNa casa de número 24 um brasão antigo, quase soterrado por séculos de camadas de tinta, atesta que aquele foi um dia um edifício importante. Talvez um edifício público, historiadores devem confirmar essa hipótese com mais propriedade; mas prefiro a idéia de que aquela foi a residência de um nobre qualquer, um conde, visconde ou barão que trouxe sua fidalguia antiga e sólida de Portugal — ou de alguém que queria se dar ares de importância e arranjou para si um brasão bonito, para se legitimar diante de uma sociedade que se apoiava nas costas de milhares de escravos. Sua fidalguia não durou muito, no entanto, porque seus herdeiros foram obrigados a transformar a casa nobre que ostentava um brasão em um cortiço — uma casa de cômodos, como se diz em Salvador.

Eu lembro dessa casa. Era a típica casa colonial brasileira, mais comprida do que larga, com portas altas e janelas com sacadas elegantes de onde se podia olhar abaixo o populacho em sua faina diária, sacadas de onde moças recatadas namoravam, com olhares tímidos e sorrisos castos, pretendentes encasacados que escondiam sob a pudicícia provinciana as incontroláveis safadeza e descaramento baianos. Mas isso foi eras atrás, quando ainda se vendia aluá nas ruas de Salvador. Quando eu a conheci ela abrigava apenas miséria, só isso.

Decadência é issoNo lugar de latifundiários, garçons; em vez de donzelas à espera de um marido, lavadeiras; nenhuma delas lembrando que aquela casa foi moradia de fidalgos, ou pretensos fidalgos, que deixaram a casa se deteriorar àquele ponto apesar do brasão pretensioso em sua porta.

Na soleira da porta havia um batente alto, proteção contra uma rua que alagava facilmente e que não tinha esgoto. Na entrada, um sapateiro consertava sapatos em uma banquinha, igual a milhares de outros espalhados por toda Salvador, mas principalmente no centro antigo. Salvador tinha muitos sapateiros. Herança das ruas de pé de moleque e dos tempos da escravidão, semelhante ao canto dos encanadores no Relógio de São Pedro: até os anos 1980 quem passava por ali podia encontrar vários encanadores com suas caixas de ferramentas e seus maçaricos, esperando que alguém precisasse dos seus serviços. Mas o tempo passou; primeiro sumiram os maçaricos junto com as tubulações de ferro, e depois foi a vez dos próprios encanadores.

Da porta do edifício da rua Visconde de Itaparica um grande corredor com chão de cimento queimado seguia até uma escada antiga, com corrimãos de boa madeira escura. Os degraus de madeira gasta rangiam a cada passo. Por ela se subia até o primeiro andar, outro grande corredor com vários quartos de cerca de 8 ou 12 metros quadrados onde, às vezes, viviam famílias inteiras. A escada fazia uma volta e continuava até o segundo andar.

Nem mesmo o céu continua azulNos quartos, inúmeras mãos de tinta ruim se acumularam por décadas nas paredes, formando uma espécie de pentimento desarmonioso. Janelas sem vidraças traziam grades de ferro bem trabalhadas, atestados de que houve um tempo em que as coisas eram feitas para durar uma eternidade e que eram orgulho dos artesãos mulatos que as fundiam.

Em cada quarto o mínimo necessário para se viver: cama, fogão, mesa e armário para guardar as poucas coisas, umas panelas baratas e uns copos se arranjavam onde desse, às vezes um móvel que fazia as vezes de aparador. E por todos os quartos varais, sempre muitos varais, onde era estendida a roupa lavada.

Isso era bonito 200 anos atrásApenas um banheiro, grande, servia todo o andar. Em vez de chuveiro uma bica, que caía forte sobre o piso cimentado. E aquele banheiro tinha um cheiro estranho, único: mofo, água e sabonete e perfumes baratos. Não era cheiro de sujeira, mas tampouco podia ser cheiro de limpeza: era um cheiro único, cheiro de miséria e de luta pela sobrevivência.

A casa da rua Visconde de Itaparica está fechada há alguns anos e suas portas e janelas foram lacradas com tijolos. A casa do lado já desabou há muito tempo; não deve demorar muito até que o número 24 desabe também. E talvez aí esteja a maior ironia, porque seguindo a rua, em direção à Ruy Barbosa, está o IPHAN, que assiste quietinho e bonitinho à decadência literal de uma das áreas mais bonitas da cidade da Bahia.

Hulk, quase 30 anos atrás

1979, Barra, Salvador, Bahia.

Nós — e por “nós” eu lembro de mim, de Jailton, filho de Joel, o alfaiate que ainda hoje dá expediente no edifício Monterey e é um dos meus mais antigos amigos, e de Pedrinho; mas talvez houvesse mais gente, talvez Marquinhos Moreno, que deixei com um olho roxo por semanas depois que ignorou meus avisos para me deixar em paz, talvez Marquinhos Louro, menino sempre tranqüilo — nós o chamávamos de Hulk.

Era um menino magrinho. Aparentava ter, como nós, 8, 9 anos, mas talvez tivesse mais, talvez fosse pequeno para a idade.

Eu não sei como começou. Mas acontecia assim: nos fins de tarde ele ia comprar pão na padaria que ficava na rua Presidente Kennedy, pouco depois da mercearia San Remo, de um italiano cujo neto mais tarde estudaria comigo, e do Chico Bar — o mesmo Chico Bar que até hoje tem o mesmo cheiro inconfundível e agradável, trinta anos depois.

Assim que a gente o via se aproximar, nós o cercávamos. E então começava a sua transformação. Ele repetia todo o gestual do Lou Ferrigno no seriado “Hulk”: grunhia, fazia poses de halterofilista, e então eu tentava prendê-lo com os braços. Não era briga, porque não se davam socos ou pontapés, e nem havia raiva. Para nós, pelo menos, era apenas uma brincadeira.

Gosto de pensar que ele realmente acreditava que se transformava no Hulk, pelo menos uma transformação interior, invisível a quem não tinha a sua imaginação. Talvez a repetição do mise en scène lhe despertasse uma força insuspeita. O Hulk tinha uma idade em que algumas coisas são permitidas.

Eu era bastante forte, mas ele sempre conseguia se soltar. E ia para a padaria vitorioso, provavelmente já tendo voltado a ser apenas David Banner. O Hulk sempre nos humilhava, principalmente a mim.

Mas um dia as coisas mudaram. Nós o vimos quando ele já voltava da padaria, carregando um saco de pão e um de leite. Nós o cercamos, como sempre. E nesse dia, não sei por quê, ele entrou em pânico. Nós não íamos bater nele; e ele devia saber disso, porque tudo aquilo já tinha acontecido tantas vezes antes. Mas ele ficou com medo, e correu.

Ele não percebia que isso é algo que não se faz diante de uma pequena matilha de crianças, porque quando sentem o cheiro do sangue elas se tornam piores do que o que são, e o espírito leve da brincadeira dá lugar a uma ferocidade divertida e mal-disfarçada. E nós corremos atrás dele, o cercamos como lobos cercam um alce doente. Desesperado, o Hulk tropeçou, se esborrachou no chão, o saco de leite rolou mas não estourou.

Então ele correu para a rua Oliveira Salazar, uma pequena rua ligando a João Pondé à Oito de Dezembro onde eu já tinha deixado um bom nacos de carne em uma queda memorável durante uma corrida de bicicleta — mas Bal tinha se dado pior, ele estava na minha frente e caiu primeiro, e se eu fiquei com o ombro em carne viva ele teve que tomar quatro pontos no queixo.

Eu não podia deixar passar a chance de saborear a vingança por tantas pequenas humilhações — como era que aquele magrelo raquítico se soltava tão facilmente de mim? — e corri atrás dele, nem um pouco disposto a soltar uma presa que sempre nos escapava. Ele entrou em um prédio, sempre comigo atrás dele, e fiquei sabendo onde ele morava. Subiu as escadas.

E então, no meio do caminho, ele de repente se desesperou completamente. Encostado à parede, ele chorava apavorado. Pedia que, por favor, eu não contasse à sua madrinha que ele estava brigando na rua, porque ela iria bater nele. A brincadeira já tinha ido longe demais.

O Hulk se tornou meu amigo até muito tempo depois, mesmo anos depois de eu me mudar. Da última vez que o vi, em 1983, ele ainda morava lá. Tinha crescido, já não era o mulatinho magrelo de alguns anos antes. Foi ele quem me reconheceu. Eu espero que ele tenha se dado bem na vida, porque era um bom menino. Muitas vezes, depois daquilo, me peguei pensando em como eram as relações dele com a madrinha, qual o seu papel naquela casa. E sempre lembro dele quando vejo alguém falar em escravidão e em sua herança, e lembro como eram complexas as relações de classe e cor na Salvador dos anos 70, e que aqueles americanos não entendem nada do que se passa abaixo do Trópico de Câncer.

Disneylândia

Já devo ter dito algumas vezes por aqui que me sinto um afortunado por ter podido assistir à televisão nos anos 70.

Não é nostalgia boba de um sujeito mais velho do que parece. É que a programação da TV aberta naqueles tempos era realmente melhor. Talvez por não ser obrigada a nivelar excessivamente por baixo sua programação, já que não tinha a concorrência das TVs a cabo e da internet, a TV aberta conseguia equilibrar razoavelmente apelo popular e qualidade estética: foi nessa época que se firmou o tal padrão Globo de qualidade.

Além disso, a maior parte dos filmes que exibia eram antigos; o que quer dizer que em vez de assistir a espetáculos escatologicamente dementes como Thunderpants, podíamos assistir a “O Gavião e a Flecha”, com Burt Lancaster, bons faroestes com John Wayne e filmes de Jerry Lewis e Charles Chaplin. Assisti a The African Queen pela primeira vez na Sessão da Tarde; duvido que isso seja possível hoje em dia.

E mesmo com tantas opções, Disneylândia era um dos meus programas favoritos. Todos os sábados à tarde, “o mundo maravilhoso de Disney” exibia um filme, às vezes em duas partes. Eram obras dirigidas ao público infantil, e alguns deles, a exemplo de “O Tesouro de Matecumbe”, eram quadrinizados depois e apareciam em revistas como o Almanaque Disney.

(O mais engraçado é que um dos meus sonhos na época era poder ver os desenhos animados de que a Disneylândia exibia trechos [e também o Clube do Mickey, nos fins de tarde da TV Tupi] — ou seja, aquela quantidade enorme de curta-metragens que a Disney tinha produzido ao longo de mais de meio século. Eu já tinha visto alguns no cinema — antes do videocassete a Disney reprisava seus filmes periodicamente —, como “Cinderela”, “A Bela Adormecida” e Mickey and Seal, e alguns na TV, como Pluto’s Blue Note e Bongo, e achava que eram melhores que os filmes a que assistia. No início dos anos 80 meu sonho foi realizado. A Disneylândia deixou de exibir os filmes e se concentrou nos desenhos. Foi a pior coisa que podiam ter feito. Depois de algumas semanas, tudo aquilo se tornou extremamente chato, ao contrário dos filmes exibidos anteriormente. Moral: a gente deve ter cuidado com o que deseja.)

Durante muitos, muitos anos procurei saber mais sobre os poucos filmes de que me lembrava. Uma esperança apareceu com o IMDb, mas ele nunca conseguiu me dar a resposta — até que a anta aqui finalmente fizesse a pergunta certa.

É uma boa sensação reencontrar alguns filmes cujas lembranças lhe acompanharam pela maior parte de sua vida.

Child of Glass, de 1978, é um deles. Conta a história de um menino que se muda para uma plantation colonial no sul dos EUA e tem que encontrar uma boneca para que o fantasma de uma menina possa descansar em paz. Ele encontra a boneca em um vão dentro de um poço. Assisti a esse filme no ano seguinte ao de sua produção, mas não era comum exibirem filmes tão novos. Vi o segundo episódio de A Country Coyote Goes to Hollywood, por exemplo, no dia 30 de março de 1979. Estava sozinho em casa porque todos tinham saído — mas nada me faria deixar de ver a conclusão da história de um coiote perdido nas colinas de Hollywood, filmada em 1965.

Foi com Barry of the Great St. Bernard (1977), no início do inverno baiano de 1980, que conheci a história dos São Bernardos que salvavam vidas nas montanhas da Suíça. Lembro da imagem final, com a estátua que ergueram em homenagem ao cão Barry — só não sei por que a Linha Maginot me vem à memória sempre que lembro dessa imagem. Assisti a esse filme um pouco depois de Fire on Kelly Mountain, de 1973, em que pela primeira vez na minha vida vi um daqueles labirintos para hamsters. Por alguma razão, sempre achei que o ator principal desse filme era Kurt Russell. O IMDb me informou que era Larry Wilcox, que depois faria o John Baker de CHiPs.

Procurar por esse filmes no IMDb me lembrou de pelo menos mais um que vi, mas do qual não guardava nenhuma grande recordação: Charlie, the Lonesome Cougar, de 1967. Isso me lembra que Walt Disney, com todas as críticas que se faz aos seus métodos, fez mais pelo ambientalismo que dezenas de ONGs juntas. Em tempos de Our Common Future, foi graças a filmes como esses e a True-Life Adventure Series (além, claro, de programas como “Mundo Animal” e “Mundo Selvagem”) que a geração que cresceu nos anos 70 passou a ter maior consciência ambiental. Só alguns irrecuperáveis, como eu, continuavam preferindo a idéia de safáris em que caçariam animais selvagens como leões e elefantes, apenas pelo prazer de se provarem capazes de matar animais maiores e mais fortes que eles.

O que fica de tudo isso é o fato de que esses filmes cumpriam uma dupla missão de maneira ímpar: entretinham e educavam ao mesmo tempo. Por causa deles, toda a minha geração estava próxima da história e cultura americanas. Por um lado isso era bom, porque informação nunca é demais; por outro, graças à televisão nos tornamos cada vez mais distantes das tradições brasileiras. De certa forma, perdemos o contato com elementos importantes de nossa cultura como lendas como o saci-pererê e brincadeiras como pião e bolas de gude. A vida é assim mesmo.

Infelizmente não consegui achar um filme específico, exibido no final do primeiro semestre de 1980. Ele contava a história de um menino rico, mimado e preconceituoso que naufragava numa ilha deserta acompanhado apenas por um velho negro. Se não me engano, o menino ficava temporariamente cego no naufrágio. O filme contava como ele virava uma pessoa melhor ao conviver com o velho. No final aparecia um daqueles furacões caribenhos e o velho se amarrava a uma árvore, com o menino entre eles. Protegendo o garoto assim, o velho morria, e nos dias seguintes finalmente chegava o resgate, claro. O filme era basicamente uma variação mais óbvia e boba sobre o bom “Capitão Coragem”, com Spencer Tracy. Nunca consegui encontrar nada sobre esse filme, e ele não consta na relação do IMDb, o que me leva a desconfiar que não o vi em Disneylândia e que não era uma produção Disney, embora tivesse todas as características.

Tudo isso é coisa de cerca de 30 anos atrás. É mais de um quarto de século. As coisas mudaram muito desde então, nem sempre para melhor. Na época Salvador tinha apenas dois canais de televisão, a TV Aratu que retransmitia a Rede Globo e a TV Itapoan, afiliada à Tupi. Hoje há centenas à disposição, mas não me parece que a TV tenha importância tão grande na formação cultural de alguém — até porque Pucca não tem condições de formar nada.

O mais interessante é que se Disneylândia acabou, hoje temos um canal inteiro com a programação da Disney. Mas o Disney Channel não se compara à Disneylândia. Se concentram em exibir produções recentes, provavelmente mais comerciais, como High School Musical e seriados irritantes como Hannah Montana. Isso, claro, faz parte dos novos tempos, e reclamar do novo é que mostra nostalgia boba. Mas acho que não faria mal algum se reservassem um espaçozinho nas madrugadas para exibir esse acervo absurdamente bom que a Disney tem.

UPDATE: Child of Glass está disponível no YouTube.

Há quase 30 anos

Tá Com Medo Tabaréu
Super Bacana

Tá com medo, tabaréu
É de linha de carretel
Tá com medo, tabaréu
É de linha de carretel

Você encosta, ela estica
Tira a mão da minha pipa
Que eu quero soltar,
Chega pra lá, assim não dá
Minha pipa é voadora
Minha pipa tá no ar

Ah, ah, ah, minha pipa tá no ar
Ah, ah, ah, minha pipa tá no ar

Tem rabo grande e linha grossa
Com meu cerol não há quem possa,
Não encosta, não encosta
Com meu cerol não há quem possa

Tá com medo, tabaréu
É de linha de carretel
Tá com medo, tabaréu
É de linha de carretel.

A triste sina do cabra Manoel Duda, que em 1833 tentou estuprar a mulher do Xico Bento

PROVÍNCIA DE SERGIPE

O adjunto de promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant’Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava de em uma moita de mato, sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova.

CONSIDERO:

QUE o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ela e fazer chumbregâncias, coisas que só ao marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana;

QUE o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quiz também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas;

QUE Manoel Duda é um sujeito perigoso e que não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.

CONDENO:

O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa.

Nomeio carrasco o carcereiro.

Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos.

Manoel Fernandes dos Santos
Juiz de Direito da Villa de Porto da Folha, Sergipe, 15 de Outubro de 1833.

Uma velha caixa de correio

A gente se acostuma a tudo, às coisas boas e às coisas ruins — verdade que mais facilmente às boas; mas se acostuma também às coisas ruins, e convive e sobrevive a elas, porque no fundo todos nós somos isso: sobreviventes.

De vez em quando preciso lembrar que vivo em uma era de maravilhas, que essas coisas boas e ruins a que já me acostumei não me acompanharam sempre, que já vivi sem elas e não senti falta, nenhuma necessidade premente. Mas também preciso lembrar de quando em vez que a cada nova maravilha corresponde uma transformação, e algo se vai para nunca mais voltar.

Eu preciso lembrar que nasci e vivi em uma era sem celular, sem internet, sem computador, um mundo em que havia apenas dois canais de televisão, TV Aratu/Globo e TV Itapoã/Tupi, e a maior parte dos programas de TV era ainda produzida em preto e branco, principalmente os telejornais locais, e que alguns programas eram orgulhosamente transmitidos “via satélite pela Embratel”; preciso até lembrar que a Embratel era estatal, então.

E mesmo o meu mundo já era diferente daquele de 200, 300 anos atrás, quando ainda girava mais devagar, muito mais. Era um mundo que não mudava para as pessoas. Certo, havia uma guerra aqui, outra ali, mas as coisas não mudavam, e o mundo que o rodeava quando nasceu continuava o mesmo quando finalmente fechava os olhos para sempre. Já era um mundo em transformação rápida, mas ainda parecia que então tudo tinha um caráter mais permanente, ou pelo menos estável.

De qualquer forma o problema não é esse. É perceber que a cada nova maravilha que aparece e se imiscui em nossas vidas, outra desaparece.

Nasci em um tempo em que ainda se escreviam cartas. Os mais velhos que eu podem dizer que mesmo então já não era como antes, quando o telefone não existia ou, se existia, era caro demais e inacessível para a maioria, mas eu sei — e as memórias deles não vão diminuir as minhas — que as pessoas ainda escreviam cartas. Escreviam para contar as novidades, para declarar amor, para romper amizades. E ao escrever elas fixavam para sempre a sua história, sua existência deixava de ser efêmera e transitória para existir de verdade; passava a ser mais que uma memória nos corações e mentes dos outros e então se materializava.

Uma carta era mais pessoal que um livro, porque ali estava sua letra, única, individual, algo que não poderiam refazer ao interpretar o que estava escrito. Algo que sequer tinha interferência de outra pessoa, como tem por exemplo um filme ou uma fotografia. Porque ali não está só você, está você e o olhar de outra pessoa. Colocar sua letra no papel quase significava tornar-se imortal como as pedras de Stonehenge.

Em 1983, voltando da escola, achei na rua um pacote de cartas datadas de 1946. Um homem e uma mulher se correspondiam porque tinham um assunto em comum, espiritismo e a organização do movimento espírita, embora ali estivessem apenas algumas das cartas dele. As cartas eram escritas em bela caligrafia — outro item que vai desaparecendo à medida que vamos nos tornando mais rápidos nos teclados de computador — por uma caneta tinteiro que deixava a letra mais elegante, sutil, engrossando seu traço nos lugares adequados e dando uma personalidade que esferográfica alguma jamais vai conseguir dar.

Não eram cartas de amantes, mas de colegas, talvez amigos. O que os unia não era uma afinidade pessoal, e sim o mesmo objetivo de vida. Tinham o tom respeitoso do seu tempo, quando beijar a mão de uma senhora não era ainda sinal de afetação, quando uma grande honra que você poderia prestar a um amigo era pedir que ele dançasse com a sua mulher, e ele saberia se comportar à altura de tão grande distinção.

O e-mail, as mensagens instantâneas e o celular acabaram de vez com cartas pessoais como essas. E caixas de correio como a da foto vão se extinguindo, porque cartas agora apenas de propaganda ou de cobrança, e essas são colocadas às toneladas diretamente nas agências de correio, impessoais como os traços de uma Garamond ou Helvética na tela do computador. Por isso tirei essa foto, porque um dia quero me lembrar delas e dos tantos aerogramas que mandei para minha avó e que ela guardou até o fim de sua vida, e que agora voltaram a mim. Quero poder explicar à minha filha o mundo que conheci, contar como mandávamos cartas para as pessoas que amávamos, e poder mostrar exatamente como elas eram; talvez até mostrar a esquina em que uma delas ficava, e explicar a longa trajetória por que um sentimento passava até poder ser decodificado a quilômetros dali.

Dez anos atrás, um anúncio para Shreve, Crump & Low dizia que “Daqui a cem anos, ninguém vai encontrar seu e-mail carinhosamente envolto em fita e escondido debaixo da cama”. O anúncio tem razão, e foi isso que nós perdemos junto com as caixas de correio.

Republicado em 07 de outubro de 2010

Daniel Boone

Durante uns 15 anos, ou mais, não ouvi ninguém falar daquele que tinha sido o meu seriado preferido na infância. Foi preciso que as pessoas começassem a fazer homepages compartilhando com o mundo seus gostos pessoais para que eu, finalmente, soubesse que não estava sozinho no universo. E por isso um dos posts que recebem comentários constantes ao longo dos anos, neste blog, é um sobre o seriado Daniel Boone.

“Daniel Boone” é uma paixão antiga. Foi o seriado de que mais gostei na infância. Eu queria ter um chapéu de guaxinim — melhor dizendo, de raccoon — e ser um pioneiro americano em eterno conflito com os índios. Em 1979 eu voltava da escola correndo para assistir ao seriado, que àquela época era exibido pela TV Aratu aí pelo meio-dia, meio-dia e meia.

Eu só não sabia que, para tantas outras crianças, “Daniel Boone” tinha sido tão importante. E há uma sensação de pertinência quando vejo comentários que, assim como eu, reconhecem em um seriado sobre um personagem histórico (e controverso) americano uma parte significativa de sua vida.

Mas há uma coisa que me incomoda, e não é o saudosismo generalizado nem aquela crença de que na minha época as coisas eram melhores, porque nem sempre eram. É a idéia de que “Daniel Boone” deveria ser reprisado.

Porque eu estou convencido de que reprisar “Daniel Boone” seria um fracasso fenomenal. Os tempos são outros. E o passado, para a tristeza da humanidade, não volta.

Assistir a um seriado antigo, daqueles que lhe empolgaram na infância, é sempre arriscado. Não se trata apenas do risco de ver que aquilo que você achava o máximo não era tão bom assim. É perceber que não é mais possível estabelecer aquela simbiose emocional com o filme. Não se pode voltar para casa, dizia Tom Wolfe, e há poucas sensações tão decepcionantes quanto rever algo ou alguém que foi muito querido, de que você sempre lembra, mas que hoje não lhe diz mais nada.

Bons seriados dos anos 60 e 70 caem nesse limbo. “Viagem ao Fundo do Mar”, por exemplo: parecia ser muito naquela época, mas envelheceu mal, e se revela pouco mais que propaganda tardia da guerra fria. “Túnel do Tempo”, fantástico naqueles tempos, pode se mostrar um seriado fraco, insuficiente, sem os elementos dramáticos necessários para contrabalançar os absurdos históricos (embora este não seja o meu caso).

Há também os que caem no ridículo. “Besouro Verde”, cujo único mérito é o de ter revelado Bruce Lee para o mundo, é quase demente: um super-herói que anda por aí com motorista. Outros, no entanto, crescem. Kojak, Baretta, Columbo eram bons seriados naqueles tempos e continuam sendo agora, mas principalmente por causa da linguagem utilizada. “Terra de Gigantes”, por sua vez, é um caso único. Eu não gostava quando era criança; hoje me empolgo com o tratamento dado à câmera e às vezes até com a temática.

“Daniel Boone”, infelizmente, não está em nenhum desses casos.

Eu fui criado assistindo a faroestes na Sessão da Tarde e a seriados como “Zorro” — Lone Ranger no original. A geração anterior à minha assistia a Bonanza, “O Homem de Virgínia”, Bat Masterson. Fomos todos criados perto da noção de transposição da mitologia medieval européia para o oeste dos Estados Unidos, com o pistoleiro solitário fazendo as vezes do cavaleiro errante. Minha geração ainda brincou com revólveres de espoleta. Porque víamos na TV o cinema dos anos 40 e 50, nós ainda estávamos próximos do século XIX. Isso já acabou, acabou nos anos 80, quando passamos a ver na TV os nossos próprios tempos.

Para mim, índio vai ser sempre bandido. Mexicano também, com os bigodões como agravante. O faroeste é uma invenção WASP e é assim que deve ser. A única modificação admissível a esse modelo é o western spaghetti — mas ali se perverte tudo, não apenas se inverte a ordem de mocinhos e bandidos. Não é a bobajada politicamente correta de, mais que corrigir a história, inverter tudo e colocar índios no lugar de colonos e negros no lugar de brancos, como em um filme idiota com Sidney Poitier chamado Caçada Brutal. Nada é tão falso, talvez tão falso como aqueles filmes americanos passados no Brasil em que todos falamos espanhol. A graça do western está na manutenção de estereótipos que necessariamente fazem parte da mitologia que os americanos criaram para si.

Mas a conquista do oeste americano não faz mais parte do imaginário popular. É história apenas, tão antiga quanto a queima de bruxas em Salem ou a Noite de São Bartolomeu. “Daniel Boone” faz parte dessa história, que não tem mais apelo em época de Lost. E por isso não deveria ser reprisado, porque um seriado tão bom não merece ser sujeito à humilhação pública.

***

No Natal de 2006 ganhei o primeiro volume da reedição em DVD do seriado. São 15 episódios da segunda temporada (a primeira em cores), em quatro DVDs lançados pela Focus.

Do ponto de vista crítico, essa edição é um fracasso e um desrespeito. A Focus editou a temporada de maneira porca, sem respeitar a cronologia (provavelmente porque isso a forçaria a começar com uma primeira temporada em preto e branco). Mais grave ainda, lançou apenas o áudio dublado em português. Cometeu até o pecadilho de transformar os créditos de encerramento em uma seqüência de slides, provavelmente para economizar espaço em disco e poder incluir trailers de outros lançamentos seus. A edição feita pela Focus chega a ser vergonhosa.

Mas do ponto de vista de um saudosista, isso não importa. Porque era assim que a Globo exibia o seriado, completamente fora de ordem e com a dublagem em português. Por exemplo, originalmente a família Boone consistia em Daniel, Rebecca, Jemima e Israel. Mais tarde Jemima desapareceria do seriado sem dar aviso. Mas eu, depois de anos acostumado a ver apenas Israel como filho de Boone, me vi diante de uma filha mais velha, que apareceu sem explicação.

Mais importante ainda, o seriado traz a dublagem original, e isso é fundamental para a recriação da experiência de infância. “A Fox Filmes do Brasil apresenta…” é uma daquelas frases cuja entonação é inesquecível. Rever “Daniel Boone” sem a dublagem original seria uma experiência incompleta.

(Talvez a Focus use esse argumento de fã para se justificar. Mas não pretendo comprar os volumes seguintes, porque um volume basta para satisfazer essa nostalgia. Se eu quisesse rever todos os episódios de Daniel, preferia comprar a versão americana, à venda na Amazon.)