Nostalgia dos anos 80

Vendo um comentário antigo do Leonardo Bernardes aqui, fico surpreso ao ver que pareço não gostar do passado.

Porque sou a pessoa mais nostálgica que eu conheço. Eu gosto de lembrar de tempos idos e tenho boa memória para essas coisas. E a internet tornou tudo isso muito mais fácil. Antes dela, eu era a única pessoa que gostava de “Daniel Boone”, a única que lembrava de um seriado chamado “Joe, o Fugitivo”. A internet aproximou as memórias, universalizou lembranças individuais, tornou o passado um pouco mais próximo.

Aqui você encontra até a programação diária de TVs nos anos 70; fotos antigas da sua cidade cobrindo todo o século passado, tempos que você viu ou não; no YouTube, encontra registros em vídeo ou áudio de virtualmente tudo o que foi exibido ao longo da história da TV. Intervalo comercial do horário nobre da Globo no início dos anos 80? Está lá.

A internet corrigiu muitas de minhas memórias, e tornou outras mais específicas. Agora esse tipo de coisa chegou também à TV porque os canais precisam de programação, e é tão estranho, mas me peguei assistindo ao Globo de Ouro e ao Cassino do Chacrinha nesses dias.

São coisas de 25 anos atrás, um quarto de século. Em outros tempos essas coisas tão velhas seriam esquecidas, pelo bem da humanidade; mas a TV e a internet não permitem que velhos pecados sejam perdoados e não permitem que você enterre os malfeitos do passado.

No Globo de Ouro a gente vê Fábio Júnior e Fagner novinhos, Lulu Santos em sua melhor época, Elba Ramalho dançando fricote, José Augusto — alguém lembra de José Augusto? Os anos 80 foram dele —, Kátia voltando dos mortos que ela não viu, Rosana como uma deusa absoluta das rádios, e o rock brasileiro em seu melhor momento, garimpando um espacinho aqui, outro ali nas paradas de sucesso.

Vê também que rock era coisa de menino rico, então como agora. É engraçado ver o Humberto Gessinger, em plenos anos 80 em que a guitarra Giannini ainda era rainha (a menos, claro, que você não tivesse nenhum resquício de amor próprio e fosse o dono envergonhado de uma Tonante), com um baixo Rickenbacker 4003 — caríssimo até hoje. É olhar as caras de quem fazia rock, numa época em que ele tinha se transformado na música unificadora da juventude brasileira, e notar as fisionomias de meninos que nasceram em meio à fartura — tão diferentes dos dançarinos e backing vocals da Banda Reflexu’s e dos integrantes do Placa Luminosa, uma típica banda de baile.

É chance de rever também a moda, tadinha. Eu não gostava na época — aquelas calças folgadonas (o nome era bag?), apertadas na cintura e nos calcanhares; camisas de manga comprida abotoadas até o pescoço; as moças com saias balonê e penteados de poodle malcriado; ombreiras quase universais fazendo lembrar os zoot suits dos anos 40; eram tempos estranhos. A moda dos anos 80 era brega, era feia, era um atentado aos olhos e ao bom gosto; mas comparando com o que se vê nas ruas neste século, é fácil perceber que ao mesmo tempo foi o último momento em que tentou ser ousada, mesmo que isso não tenha dado certo.

Pior que o Globo de Ouro, no entanto, era o Cassino do Chacrinha.

Rever o Cassino do Chacrinha me faz ter a certeza de que eu estava certo e os críticos de comunicação que falam maravilhas de Abelardo Barbosa estavam errados: pelo menos nos anos 80, o Chacrinha era lixo comercial, sem nenhum aspecto redentor. Nenhum. Chacrinha era lixo, ponto, uma caricatura de algo que talvez um dia tenha sido engraçado ou criativo. E eu nem mesmo me refiro ao jabá óbvio, aos acordos escusos (placas fazendo propaganda de Sarney e do governo do Maranhão, por exemplo). Me refiro ao tipo de programa que ele fazia, medíocre, rasteiro, pobre. Talvez o Chacrinha tenha sido revolucionário no rádio, ou no início da TV; mas em seu final, aquele que acompanhei, ele era apenas ruim. Aquilo não era um bom programa. Não era sequer uma boa estética. Além disso, o Globo de Ouro parecia ser mais controlado no jabá do que o Chacrinha. Talvez seja uma questão de ovo ou galinha, mas as músicas que apareciam ali, com raríssimas exceções, eram realmente as que tocavam no rádio. As do Chacrinha eram as que iam tocar.

Eu não via nenhum desses programas naquela época. Normalmente estava na rua, militando no grêmio estudantil ou na União da Juventude Socialista ou correndo atrás de alguma moça dadivosa o bastante para acabar com o meu sofrimento, e que nunca encontrava. Mas se estava em casa, eu não ia ver aquilo. Tinha mais o que fazer. O Globo de Ouro era apenas um repositório de música ruim a que eu assistia raramente; o Chacrinha, nem isso. Hoje vejo essas coisas com um sorriso nos lábios; lembro delas, e uma sensação de nostalgia é inevitável. Mas não por elas: por mim.

As coisas, no entanto, não são tão simples. Por mais que me doa admitir o que vou dizer agora, por mais que eu diga isso com o coração confrangido, a impressão é de que a música popular brasileira — a verdadeiramente popular, não a música de elite que sempre existiu — daquela época era melhor que a de hoje. Era mais variada, ao menos, e bebia em mais fontes. Se hoje a música brasileira está cada vez mais uniformizada, se o que chamam de sertanejo é basicamente música pop cantada em falsete e é cada vez menos diferente do resto da programação, se a música baiana degringolou no lixo que se ouve em trios elétricos e em micaretas, na época existia variedade. Do rock ao forró, do brega ao infantil, do axé à música romântica. A riqueza que sempre se apregoou acerca da música brasileira estava lá. Não está mais.

Imagino como era tão melhor para os artistas aqueles tempos. Devia ser mais fácil ganhar dinheiro. Hoje, sem o Chacrinha para ditar a programação das rádios, a coisa é mais complicada.

Mas não é só para eles. É também para nós, os queridos ouvintes, os caros telespectadores. Hoje, assistindo ao Globo de Ouro, eu consigo lembrar de praticamente todas as músicas. Tenho dúvidas de que lembraria de algo semelhante — músicas de que não gostava e que não ouvia intencionalmente — daqui a outro quarto de século (ainda que estivesse vivo, claro). Porque mesmo que eu não assistisse àquelas desgraças, essas músicas estavam no ar, em todo lugar. Era um mundo mais simples e menos fragmentado. Não era melhor; mas às vezes até chega a parecer que era.

Misericórdia

Era uma senhora velha, daquele tipo de velha cuja idade é difícil de ser adivinhada pela configuração singular das marcas no rosto. Tanto podia ter 50 anos quanto 80. Ela tinha um cortiço na Misericórdia no comecinho dos anos 70. E tinha um pretinho que criava e no qual batia todo dia. Todo dia.

Ainda estavam longe os tempos da recuperação do Pelourinho. Aquilo tudo era feio, mas era de verdade: a Praça da Sé era fim de linha de ônibus, as lojas de discos, as livrarias e a Primavera ainda não tinham cedido lugar às armadilhas de turista atuais. Turistas, sim, mas muito menos que hoje; nas calçadas o que havia era a gente da Bahia indo e vindo do trabalho, vivendo os últimos dias de uma província malemolente, os dias antes de Aratu e de Camaçari que eu não vi — só entrevi de longe, olhando para o que tinha restado deles.

Pela Misericórdia e pelo Terreiro de Jesus se espalhavam cortiços que estavam ali havia décadas. E das janelas daquela casa de cômodos da Misericórdia, aquela que ficava bem em frente à Igreja, moças jovens viam com olhos deslumbrados os casamentos requintados na Igreja da Misericórdia. Ali casavam-se os ricos, a nobreza baiana de sotaque mole e arrastado. É uma coisa da Bahia, esses casamentos em igrejas antigas de bairros decrépitos, que realçam o contraste entre a riqueza e a miséria que em Salvador é mais forte que em outros lugares.

E as moças que das janelas olhavam os casamentos da filha do desembargador, da filha do empresário — ah, essas normalmente não tinham se casado, tinham se amigado com o rapaz de conversa macia e brilho nos olhos que lhes fez ferver as carnes; e dividiam o cortiço de quartos apertados, quartos separados por paredes que eram apenas pentimento, décadas e décadas de tinta barata rosa, azul, verde se sobrepondo umas às outras. Dividiam-no com as meninas de coquinhos infinitos na cabeça amarrados com cordão; com as lavadeiras que estendiam no telhado as roupas das freguesas; com as prostitutas que dormiam pela manhã e saiam à noite para trabalhar no Maciel logo ali perto; com os comerciários que chegavam arrastando os pés no meio da noite, espalhando o bafo de cachaça por todo o corredor que rangia à sua passagem.

Mas isso é o que elas veriam se olhassem para dentro, e por isso olhavam para fora, para as noivas radiantes e a gente chique embonecada, as câmeras fotográficas espoucando à sua passagem. Não interessa que para quase todas elas o futuro não fosse tão brilhante, e que os momentos felizes talvez fossem ainda mais efêmeros que o brilho dos flashes dos fotógrafos d’A Tarde. Acho que talvez soubessem, no fundo, que aquele destino não podia ser para elas. Mas também acho que tinham uma certeza: a de que o seu futuro, seguramente, não seria como o destino da velha dona do cortiço.

Era uma velha muito branca, de uma brancura difícil de achar na Bahia, pelo menos difícil de achar num cortiço na Misericórdia. Usava o cabelo também totalmente branco bem esticado em um coque no alto da cabeça. Morava ali mesmo, no seu cortiço, e era velha de maus bofes e alma ruim.

Não devem ter sido um ou dois os que tentaram adivinhar a sua história. Eu tentei também, mesmo muitas décadas depois. Talvez tenha sido a sua ruindade que a fez ir ficando para trás, ir perdendo as chances de ser feliz de verdade, e a ela só restasse o cortiço que herdou do pai enquanto seus irmãos, se irmãos ela teve, foram em busca de uma vida melhor. Talvez, como a Mulher de Roxo que já vagava um pouco mais abaixo, nas lojas da rua Chile, ela tivesse sofrido uma desilusão amorosa e o seu coração tivesse se encarquilhado em fel.

O que importa é que os anos 70 começavam e ela ainda estava ali. Mas não estava sozinha. Ela tinha o pretinho dela.

Era um rapaz franzino de uns 18 anos. Devia ter sido criado por ela desde a infância. Era tão comum, isso, e seria até muito mais tarde. Mas aquele caso era especial, porque não dá para deixar de pensar na ingenuidade de sua mãe, coitada, mulher tola que um dia achou que o seu filho teria uma vida melhor se fosse criado pela filha de sinhô.

O pretinho dormia no quarto com a velha, provavelmente no chão enquanto ela ocupava a cama. Quando me contaram essa história eu perguntei mas então a velha pegava o menino? E me disseram que não, que não era isso, ele era só o menino que ela criava, e por ser preto isso lhe dava o direito de bater nele, bater como se bate em jumento teimoso.

“Ah, Rafael, você não perguntaria isso se visse o olhar que ele dirigia a ela. Era um olho diferente, era ódio. Ódio e impotência.”

No final dos anos 60, em Salvador, a escravidão ainda não tinha acabado de todo. A velha ruim dona do cortiço na Misericórdia e tantas outras mulheres, bem ou mal intencionadas, criavam pretinhos como hoje criam poodles. Uns eram bem tratados e a esses era dada a sorte grande, a esses a vida abria mesmo a chance de uma vida melhor. Mas outros tinham o azar desse pretinho da Misericórdia.

Isso foi há mais de 40 anos. É tempo demais. A velha ruim já morreu, não pode estar viva. Sua casa de cômodos deve ter ficado para um sobrinho, um sobrinho-neto, e sobreviveu sobre as lojas do térreo — como a “5 Irmãos”, loja de tecidos que ainda estava lá no final dos anos 80. Mas então as coisas mudaram, e a nova Salvador para turistas saneou o lugar dos pobres que deveriam se conformar em morar para lá de Pernambués, para lá da Calçada. O cortiço hoje é um pequeno conjunto comercial. Ali fica a loja da Fundação Pierre Verger, por exemplo. A Misericórdia é hoje mais bonita do que talvez jamais tenha sido, e atrai vendedores ambulantes ansiosos por tirar algum dinheiro dos turistas que se amontoam por ali.

Se alguém se der ao trabalho de perguntar, o mais provável é que ninguém mais se lembre da velha senhoria do cortiço, velha ruim que tinha um pequeno escravo que a odiava no início dos anos 70. E deve ser difícil recuperar a história do velho cortiço, essas coisas a cidade esquece, engole como uma lembrança ruim que deve ser obliterada porque cidades são sempre tão maiores que suas pequenas histórias. Mas o menino que ela criava deve estar por aí, prestes a se aposentar, e só ele sabe as cicatrizes que sua alma carrega dos anos que passou no cortiço da Misericórdia.

Exercício de memória

Diante do meu cafofo surgiu um Karmann Ghia à venda. Azul, estacionado na frente do edifício. Pergunto ao porteiro de quem é aquele carro, é de um vizinho que recentemente escreveu um livro polêmico, e eu não conheço vizinho nenhum, mas agora gostaria de conhecer — e aí, vizinho, tem uma xícara de açúcar? –, porque acho o Karmann Ghia um carro belíssimo em seu tempo, bonito ainda hoje, e se tivesse dinheiro compraria o danado. Eu sou um saudosista e um nostálgico.

Ver o Karmann Ghia me lembrou que há mais de 30 anos, quando eu era criança, havia muito menos carros do que hoje.

Ainda peguei a Willys, que àquela altura já pertencia à Ford: vi na rua e andei em Gordinis, AeroWillys, em Rural e no Jeep, carros que já não eram fabricados. Havia também aqueles menos menos comuns, mas muitas vezes mais desejados, dos quais se viam um ou dois circulando por aí: Miúra, Puma, Lafer, Toyota Bandeirante. Havia também os Gurgel. Cheguei a dirigir um Gurgel Supermini. Foi o pior carro que já dirigi na vida.

A Chevrolet tinha a Veraneio, o Opala, o Chevette e a Caravan circulando nas ruas. A Fiat tinha apenas o 147, a não ser que se conte os Alfa Romeo que ainda circulavam por aí, e era montadora de péssima fama.

A Chrysler tinha o Dodge Dart e o Polara, pouquinhos, muito pouquinhos. Vi dia desses um Polara — olha, um Doginho!, como quem diz “olha, um iguanodonte!” — e eu nem sabia que esses carros com mais de 30 anos ainda circulavam.

A Ford tinha ainda o Galaxie, o Corcel I e II, o Jeep, a Belina e o Maverick. Que carro bonito era o Maverick. Minha última lembrança de um Maverick é a de estar pendurado no capô traseiro de um deles, o desgraçado do motorista a 100 por hora no caminho da praia, numa madrugada de carnaval de muito tempo atrás. Eu devia ter parado de beber então, mas não parei e olha só no que deu. E a F-10. Ou era C-10? Eu não lembro mais. E a Volkswagen, de longe a maior de todas, tinha o Fusca (ou simplesmente Volks), Kombi, Karmann-Ghia, o 1600, o TL, a Variant, o SP2, Brasília, e Passat. De todos esses carros, só a Kombi sobreviveu.

É triste conseguir lembrar de tudo isso, e talvez mais triste fazer uma lista assim, uma lista sem sentido. Não pelos carros, porque eu não gosto de carros, não gosto sequer de dirigir. Mas por mim.

National Geographic Magazine

Diante de mim três edições da National Geographic Magazine — 1957, 1971 e 2008. (Só a mais recente é brasileira. As outras são americanas, compradas em sebos. A National Geographic só chegou ao Brasil há relativamente pouco tempo; antes o que existia era um genérico chamada “Revista Geográfica Universal”, cuja moldura de capa era vermelha em vez de amarela, mas que era basicamente a mesma revista, pelo menos na minha memória.)

Olhando para elas, o que sinto é uma pena grande por algo que parece não fazer mais sentido. Uma fascinação pessoal por revistas antigas, por anúncios dos anos 50 e 60 e pelas técnicas de impressão da época, com suas cores distorcidas — tudo parece ter sido impresso em três cores, apenas — acaba dando lugar a uma sensação triste: a de que eu olho para um fóssil vivo, cujos dias estão prestes a terminar.

Não importa muito o ano da National Geographic. Ela é sempre basicamente a mesma, não mudou muito nessas tantas décadas de vida; a principal mudança foi a adoção de fotos na capa, em 1959, progressivamente substituindo o índice de matérias. O conteúdo no entanto é basicamente o mesmo: reportagens sobre coisas importantes ou curiosas do mundo e muitas, muitas fotografias.

Uns tantos anos atrás, a leitura de uma National Geographic significava a descoberta de um mundo novo. Imagino que gerações inteiras ficaram sabendo de coisas do mundo que os rodeava através suas páginas — fiordes na Noruega, mergulhos em Bora-Bora, mulheres com roupas multicoloridas feitas com pelo de lhama na Bolívia, festivais de rena estranhos em algum lugar da Lapônia, esquimós são aqueles indiozinhos besuntados de gordura de baleia? A revista era uma janela importante para o mundo que hoje, mais de cem anos depois de sua primeira edição, vemos principalmente na TV, numa era de informação farta, até excessiva.

Por isso é triste olhar para uma National Geographic. Porque é triste ver algo perder sua função. Ela não faz mais sentido — por causa da TV e por causa da internet. Não tenho idéia de seus números de circulação. Não sei se aumentaram ou diminuíram nos últimos anos, mas se aumentaram são um caso raro entre revistas. Porque o que ela fazia agora é feito de maneira mais eficiente nos canais de TV, como Discovery e o próprio NatGeo, em alta definição e em câmera lenta. E quanto às fotos, elas abundam na internet.

Ou seja: uns 60 anos atrás o sujeito no interior de Minas via uma foto do mar, pela primeira vez — e aquilo já era mais do que 150 anos antes, quando nem isso ele tinha, tinha apenas as impressões eventuais de um viajante que lhe descrevia a imensidão da água, o ribombar das ondas, o sal em seus lábios. E mesmo aquela foto ainda era uma experiência incompleta, não era ainda o mar, era algo como a sombra platônica na parede da caverna. O cinema e o vídeo diminuíram ainda mais esse fosso, deixando menos espaço para a imaginação, para a criação de um mundo próprio, de um mar apenas seu. Isso não é algo necessariamente bom ou ruim; mas é mais um pedaço de um tempo que se vai, um modo de ver as coisas que o progresso tornou obsoleto.

É por isso que sei que a National Geographic Magazine vai acabar, mais cedo ou mais tarde. Com ela vai embora, ao menos em termos simbólicos, uma grande tradição do século XX, a da fotografia como principal janela visual para o mundo. E junto vai uma forma de descobrir esse mesmo mundo, sempre incompleta, sempre distorcida — mas paradoxalmente de alguma forma mais rica também. Porque todos esses canais que aos poucos sucedem a National Geographic podem transmitir as mesmas informações de maneira mais eficiente, sim; mas também são menos poéticos, deslumbram menos, porque não me permitem mais completar o vazio que as fotos permitiam e recriar o mundo de acordo com o que eu gostaria que fosse, ou com o que eu podia pensar.

PT saudações

Recebi um telegrama dia desses. Parece brincadeira, mas recebi.

Os telegramas estão bem diferentes dos de antigamente. Mais parecem aerogramas, aquelas cartas alaranjadas pré-fabricadas que os Correios vendiam — não sei se ainda vendem.

Eu já sabia o que o telegrama dizia, mas de alguma forma, ainda que incompleta, consegui relembrar um pouco da sensação qeu se tinha ao, de repente, receber um telegrama inesperado. Mais que isso, veio também a impressão de que esse, provavelmente, é o último que receberei na vida. É um telegrama temporão, porque eles não fazem mais sentido no mundo de hoje.

Há alguns anos, quando a Western Union avisou que estava cancelando sua unidade de telegramas nos Estados Unidos, foi colocada a lápide sobre uma instituição do século XX. No entanto essa agonia começou em silêncio, e ninguém parece ter notado. Telegramas já não faziam sentido há muito tempo. E o passar dos dias não melhora, em nada, a sua situação.

É difícil, para quem não recebeu alguns telegramas, entender exatamente o que significava a chegada de um deles. Um telegrama era um carimbo de urgência e de importância em um tempo que não era tão corrido, em que as pessoas ainda admitiam não encontrar outras no momento em que queriam; o telefone celular ainda não existia. Um telegrama era uma esfinge à espera de um Édipo. Podia significar algo que teria a faculdade fatal de mudar sua vida, de transformar radicalmente, e para sempre, o seu mundo. De certa forma, era imparcial como a mão divina, e igualmente inesperado: podia lhe avisar de maneira seca que alguém querido havia morrido, que alguém que mais tarde também seria querido tinha nascido, ou podia simplesmente mandar você passar em algum lugar para pagar uma dívida.

Telegramas tinham uma linguagem própria. CHEGO SEGUNDA TREM DAS ONZE PT, e a gente sabia o que o PT e VG significavam. E isso fazia com que fossem mais concisos que SMS ou Twitter, porque não era uma limitação tecnológica que lhe fazia ser sucinto, mas o preço de cada letra, ou palavra, não lembro bem.

Eu disse que eles podiam significar que algo bom havia acontecido com você,  mas não falei toda a verdade. Porque algo na natureza humana, talvez a sensação permanente de queda iminente, fazia com se soubesse instintivamente que um telegrama, quase por princípio, trazia notícia ruim. Boas notícias não vinham por telegrama com a mesma freqüência com que as más chegavam. Más notícias, não, essas sempre fporam rápidas; com o telegrama, elas passaram a voar na velocidade da luz. Por alguma razão esquisita, as pessoas parecem achar que boas notícias podem esperar. Já as más, por menos relevantes que sejam, por menos que você possa fazer em relação ao fato que elas contam, precisam ser ditas com urgência. E para isso inventaram o telegrama.

O mais próximo da sensação causada pela chegada de um deles, hoje, é a sensação de alerta que se tem ao ouvir os acordes da vinheta do plantão do Jornal Nacional. Vinheta que hoje, mesmo vulgarizada em toques de telefones celulares, causa o mesmo desconforto instintivo, a mesma sensação de urgência, de acontecimento importante. Mas há uma diferença, e é por isso que o telegrama não tem nada, hoje, que se possa comparar a ele: o telegrama era algo pessoal, urgente. Dizia respeito a você, diretamente. O plantão do Jornal Nacional diz apenas que uma pessoa que você não conhece se fodeu, ou uma catástrofe aconteceu — e aí muitas pessoas que você não conhece se foderam. É uma má notícia, também, mas menos má porque é impessoal, não lhe afeta diretamente.

Não que isso signifique algo hoje. Tudo isso pertence a uma era atrás. O telegrama foi destruído pelo telefone e pela internet. Em um mundo em que quase todos têm celular, ficou mais fácil comunicar-se com a urgência que o telegrama implicava, e muito mais. E se o telefone não tinha a capacidade de dar um caráter definitivo às coisas, faltando a ele a solidez e inevitabilidade da palavra impressa, o e-mail representou o golpe de misericórdia.

Não foi um processo linear ou imediato, mas foi constante. Há uns 30 anos, se alguém — mesmo no Brasil, que já tinha um dos sistemas de telefonia mais avançados e abrangentes do mundo — queria falar com uma pessoa de alguma cidadezinha no interior da maioria dos Estados, ligava para o posto de serviços da companhia telefônica na cidade ou povoado. De lá mandavam alguém chamar o cidadão em questão: “Zinho, vai ali chamar Neco de Cotinha que tem uma moça de João Pessoa querendo falar com ele.”

Se o telefone celular conseguiu acabar com isso, destruir o telegrama foi, então, como tirar doce da boca de criança. Ele se tornou redundante. É por isso que vou guardar esse que acabei de receber. Daqui a alguns anos quero mostrar a minha filha o que era esse negócio já esquecido, da mesma forma como ainda guardo um aerograma como os que mandava para minha avó. Eles ainda têm a mesma cor, laranja, e com a sua praticidade já prenunciavam a decadência da carta pessoal escrita à mão. Talvez, com um telegrama, eu consiga explicar o que ele significava, e dar a ela uma noção específica de tempo e espaço que a ubiqüidade da informação suplantou para sempre. Mas duvido que ela se importe com isso. O telegrama acabou, não vai fazer falta, e PT saudações para ele.

De novo D. João

E D. João VI voltou à minha cabeça essa semana. Ainda aquela questão sobre a genialidade estratégica dele, que tanta gente parece ter como certa.

O que define um estrategista genial é a capacidade de ver o que ninguém vê e definir as táticas necessárias para concretizar essa estratégia. Ele está à frente dos outros. Estrategista genial era Lênin, por exemplo, que no comecinho do século passado percebeu que havia uma brecha na teoria marxista e que uma revolução socialista poderia ser feita em um cu de mundo como a Rússia, queimando a etapa do desenvolvimento capitalista, e se mandou para a Estação Finlândia.

Por outro lado, em nenhum momento D. João compreendeu que, diante do estado de Portugal e das possibilidades do Brasil, a correlação de forças que caracteriza as relações entre uma metrópole e sua colônia poderia ser invertida.

Estrategista genial D. João seria se, confrontado pelas Cortes Portuguesas, se revelasse um monarca magnânimo e concedesse graciosamente a independência a Portugal. Ele poderia até anistiar a terrinha da indenização que o Brasil, tendo sido outro o desenrolar da história, teve que pagar à metrópole.

D. João não podia fazer isso porque era e se sentia português, e era incapaz de ver além disso. Em nenhum momento a sua lealdade, o seu compromisso e a sua identidade estiveram fora de Portugal. Talvez não fosse isso o que a maior parte dos portugueses deixados na mão de Junot pensava, mas para D. João essa era uma das verdades absolutas da vida: ele era português, e Portugal era o centro do seu mundo. Essa visão arraigada, claro, não lhe impediu de ver o óbvio: sua escolha pela Inglaterra em detrimento de Napoleão foi feita em função do fato simples de que Portugal dependia em praticamente tudo do Brasil. O futuro, do ponto de vista da importância econômica entre os dois países, estava aqui. Portugal, àquela altura, jamais poderia ser maior do que era. O Brasil, por sua vez, sozinho poderia ir além dos mais alucinados sonhos de Camões. No entanto, nem essa percepção lhe fez tomar a decisão que seria mais acertada

(Antes que alguém cite inadvertidamente a Revolução Americana como exemplo comparativo de qualquer coisa, é bom lembrar que essa estratégia não daria certo para a Inglaterra. Embora a velha Albion tenha lutado ferozmente para manter seus domínios americanos, naquele momento avançava com rapidez na invenção da revolução industrial. Ao bom rei Jorge, caso forçado a escolha semelhante, valeria mais a pena manter a Inglaterra que um amontoado de 13 colônias que, afinal, basicamente produziam tabaco. Além disso, os Estados Unidos são uma invenção americana: aquelas 13 colônias expandiram seu território e criaram a maior potência do século XX comprando e roubando terras de espanhóis, franceses, mexicanos, russos e, principalmente, índios. O Brasil é uma decididamente uma invenção portuguesa.)

O problema em todos os revisionistas que tentam resgatar a imagem de D. João VI é que exageram na dose e caem no erro oposto. Certo, El Rey não era de todo desprovido de talento; o problema está na confusão acerca de sua natureza. Se D. João tinha talentos, não estavam na capacidade estratégica: estavam na política.

Nisso, todos os relatos concordam: D. João sabia lidar adequadamente com as circunstâncias — o que certamente fez no Brasil, negociando com inteligência as relações entre a elite brasileira e a nobreza portuguesa, ainda que de sua forma hesitante e reativa. Esse deve ser um traço estilístico dos Bragança: é algo que D. Pedro II, outro estadista luso-brasileiro injustamente admirado, também fez sistematicamente ao longo de seu reinado, trocando gabinetes regularmente para manter o equilíbrio de forças e uma estabilidade que lhe beneficiava. O que D. João sabia era interpretar as correlações de força ao seu redor — ou seja, era um bom tático. É isso que faz um bom político. Algo diferente do que faz um bom estrategista, que é simplesmente ver mais longe o que poucos veem.

Em sua história de fuga e rendição, o lance realmente genial de D. João se daria em 1821 quando, ao ver que a elite brasileira estava querendo fazer a independência, aconselhou seu filho a tomar a frente de um movimento pelo qual a família real não era minimamente responsável. Esse senso de oportunidade, se olhado com isenção, é digno de admiração.

Mas isso é política. É a capacidade de se posicionar diante de uma situação apresentada e tentar tirar o melhor dela. D. João era um bom político, de uma estirpe e um estilo que definiu a cultura política brasileira. Só que isso não faz dele um grande estrategista.

***

Essa postura diante de D. João me parece se dever a um certo “modo carioca” de olhar o Brasil, derivado da permanência da cidade como capital econômica, cultural e política ao longo de quase dois séculos. Porque a vinda da família real foi tão importante para o Rio, deveria ter sido na mesma medida para o país inteiro, também.

Por causa dessa presunção se chega a conclusões absurdas. Começam confundindo a renovação de costumes trazida pela chegada dos Bragança com renovação social, o que não é necessariamente a mesma coisa. Além disso, tem gente que credita à vinda da família real a continuidade da unidade territorial brasileira. No post anterior sobre o assunto, o Hermenauta de saudosa memória lembrou que deveríamos considerar a hipótese de a América portuguesa ter se dividido, como aconteceu com a espanhola.

O André Kenji lembrou que há diferenças significativas que levaram à fragmentação do império espanhol e do sonho bolivariano. Que os espanhóis mantinham colônias autônomas, e enfrentavam grandes obstáculos geográficos, como os Andes, algo diferente da situação brasileira.

Mas tem mais. Muita gente olha para a Confederação do Equador e diz que se não fosse a presença da família real no Brasil, a pressão pela independência e as muitas diferenças regionais fatalmente fariam com que a colônia se subdividisse em uma série de republicazinhas bolivarianas. Bobagem.

Essa atitude centralizadora diante de movimentos separatistas já era parte da administração brasileira antes da vinda da família real — e os pedaços de Tiradentes espalhados entre o Rio de Janeiro e Ouro Preto confirmam isso. Se a Inconfidência Mineira não precisou da presença de D. João tomando banhos no Caju para ser esmagada exemplarmente, tampouco precisaram os tantos outros movimentos que se deram depois.

Foi a formação de uma certa elite administrativa brasileira que garantiu a unidade territorial do Brasil. É engraçado que as pessoas deixem de lado o fato de que essa unidade foi seriamente ameaçada e mantida a ferro e fogo em um período posterior da história nacional: a Regência. Foram aqueles quase 10 anos que definiram de uma vez o que seria o país, quando movimentos importantes como a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada, mesmo a Revolução Farroupilha foram combatidos e vencidos. Meio século depois, a lembrança dessa época certamente foi fundamental para que o país cometesse o crime genocida de Canudos.

Se a alguém se deve o tamanho do país, seria antes ao Padre Feijó que a D. João VI.

28 anos depois

Até ontem, fazia quase quatro anos que eu não via um jogo da seleção brasileira de futebol. O último tinha sido Brasil e França durante a Copa de 2006. Não senti falta.

Mas ontem a ESPN exibiu o jogo Brasil x Itália, de 5 de julho de 1982, no estádio Sarriá, em Barcelona.

Fazia 28 anos que eu não assistia àquele jogo.

E de repente me vi gritando como se o jogo fosse o de uma final atual de Copa do Mundo.

Me vi xingando Serginho cada vez que ele pegava na bola e fazia alguma besteira.

Me indignei de novo ao ver a camisa rasgada de Zico no pênalti que o juiz israelense não deu.

Me irritei com Cerezzo nas duas bobagens que ele fez e que acabaram resultando em gols.

Tive a mesma sensação de desagravo que tive há 28 anos, ao ver Zico caminhando com a bola em direção a Gentile, mostrando quem afinal tinha o respeito da bola.

E me emocionei novamente ao ver as veias saltadas de Falcão na comemoração do segundo gol do Brasil. Aquela foi uma das belas imagens da copa, a mais bela para mim, e a Placar da semana seguinte estampou essa foto.

É preciso um certo grau de loucura para fazer isso, torcer novamente por um jogo tão antigo e do qual você sabe o resultado. A loucura é ainda maior porque eu sequer tenho esse amor todo ao futebol, posso passar anos sem ver um jogo, isso não me faz falta, não mais. Além disso, são 28 anos, tempo suficiente para fazer com que tudo isso tivesse se tornado uma lembrança amorfa e insípida.

Mas aquele maldito Brasil x Itália de 5 de julho de 1982 não é apenas um jogo de futebol, nunca será. E agora, depois de perceber como fui capaz de fazer papel de idiota, eu tenho a certeza de que jamais vou conseguir ver aquele jogo como veria novamente qualquer outro. Ainda fico angustiado por não entender como o Brasil continuou deixando Paolo Rossi livre, em vez de fazer com ele o que Gentile tinha feito com Zico — sem bater tanto, claro. O ódio ao camisa 20 da Itália continua; tambem a Serginho que perdia gols feitos; a Cerezzo que apesar de craque errou feio como Clodoaldo em 70, mas que não conseguiu se recuperar e ainda errou mais uma vez; ao juiz filho da puta que não deu um pênalti óbvio demais. E a cada bola chutada para o gol me peguei torcendo para que ela entrasse, que talvez ainda houvesse uma chance de mudar a história, que aquilo estava acontecendo novamnete naquele momento e tínhamos finalmente a nossa chance de redenção.

Mas a bola nunca entrou, e o Brasil perdeu de novo para a Itália por 3 a 2, três gols de Paolo Rossi

Aquela é a seleção dos meus sonhos, a melhor seleção cujos jogos eu vi. Não vi os de 1958 nem de 1962, não posso falar deles. Mas vi todos os jogos do Brasil na Copa de 1970, e apesar de reconhecer o talento absurdo daquele time — um time com Pelé, Tostão, Gerson, Rivelino e Jairzinho? Pelo amor de Deus –, eu não vejo no seu futebol tanta beleza de conjunto, tanta perfeição quanto pude ver na seleção de 1982. Aquele time tinha o mesmo carinho pela bola que a gente vê na Copa de 1970, mas era ainda melhor porque o futebol tinha evoluído, tinha ficado mais rápido, e porque o time inteiro jogava com uma harmonia que eu nunca mais veria. Diziam e dizem que aquele time jogava por música, e é verdade. Que time lindo Telê montou; e quem não viu aquela seleção jogar não sabe o que é futebol, e nunca saberá, não importa quantos campeonatos brasileiros, italianos ou espanhóis assista.

Tem gente que diz que se o Brasil tivesse ganhado aquele jogo a história do futebol seria diferente, o jogo não teria ficado tão feio. Eu tenho minhas dúvidas: a evolução do futebol independe de qual seleção ganhou tal Copa. O futebol seria o que é hoje independente de uma vitória brasileira. O Brasil ganhou em 1958, 1962 e 1970 e nem por isso o futebol europeu mundial virou uma beleza de se ver.

Mas a minha história seria diferente se o Brasil tivesse vencido aquele jogo e aquela copa. E eu certamente não ficaria, em 2010, gritando feito um idiota diante de um jogo que aconteceu há 28 anos.

A ilha do tesouro

Um comentário de um sujeito que se diz chamar Zé a este post me deixou com uma pulga atrás da orelha. O comentário:

A primeira tv na minha casa chegou em 1974. Eu não tinha muito acesso a séries de TV, por então lia. Li de tudo: Júlio Verne, Mark Twain, Joseph Conrad, Robert Louis Stevenson, Alexandre Dumas, etc… O que vocês falam quanto a reação dos filhos em relação aos seriados e filmes, eu enfrento com os meus em relação aos livros. Há algum tempo encontrei a Ilha do Tesouro e entreguei para que eles lessem, lembrando de como devorei o livro. Nem ligaram. Se não tem super-poderes, magia ou algum outro “efeito especial”, a gurizada nem toma conhecimento

Tendo a concordar com o Zé. Quando era criança, li boa parte daqueles livros para crianças que se tornaram clássicos: Stevenson, Verne, Dumas, Salgari. Mas eu fui criança nos anos 70, quando a TV, em Salvador com seus dois canais apenas, ainda não era tão onipresente quanto agora. Por causa dos livros e por causa da TV, meus referenciais estavam no oeste americano, na África ou no Mar das Caraíbas, mesmo na Europa medieval. Eu e a minha geração crescemos em um momento curioso, em que o século XIX e XVIII ainda eram extremamente presentes no imaginário das pessoas mas já se esgotavam como referenciais para os que viram depois. A produção cinematográfica que chegava à TV tinha 20, 40 anos de idade; a II Guerra Mundial ainda era tema importante no cinema e na teledramaturgia. Cresci vendo seriados como Zorro, lendo livros de piratas ou assistindo a Tarzan. Provavelmente, a minha foi a última geração que não se incomodava quando um filme era em preto e branco.

Essa análise saudosista, no entanto, não é totalmente correta. Porque nos anos 70 havia também uma infinidade de seriados, filmes, revistas que dialogavam com o futuro em vez do passado: Space Ghost, “Os Invasores”, “Perdidos no Espaço”, “Terra de Gigantes” — a lista é grande demais para continuar. A conquista do espaço era algo recente para nós. Ainda estávamos em plena Guerra Fria e o espaço era um dos elementos da propaganda americana, a única a que tínhamos acesso em um país sob ditadura. Esses elementos que agora parecem onipresentes já estavam lá (e gente como o ex-blogueiro Hermenauta certamente era mais afetada por eles do que eu, por exemplo).

O verdadeiro problema no argumento do Zé e de todos nós que o repetimos é que ele esquece um fator básico: o de que os tempos mudam.

Não é difícil imaginar uma criança londrina dos anos 1910 lendo uma história de Kipling e imaginando tudo aquilo como algo inatingível, matéria pura de sonho — em St. Albans devia ser difícil encontrar um Shere Khan, certamente. O mais próximo disso deviam ser os circos que eventualmente passavam por ali. É por isso que “A Ilha do Tesouro”, com seus piratas, com seus papagaios tarameleando “peças de oito!”, era algo tão distante de uma criança no século XIX quanto Júpiter de uma criança do século XXI.

Essencialmente, o que atraía crianças no livro de Stevenson era o mesmo que as atrai hoje em, digamos, Harry Potter ou em Watchmen: o novo, o distante, o diferente, o improvável. As crianças não mudaram nessas poucas décadas — para falar a verdade a humanidade não mudou em dois mil anos; o que mudou foi o universo de informações a que elas estão expostas.

O século XX encolheu o mundo de uma maneira que não teve precedentes e que provavelmente nunca mais será repetida novamente — e muita gente afirma que estamos vivendo agora o momento final de um processo de convergência global que teve início há uns dois mil anos. No final do século XIX Edgar Rice Burroughs podia contar uma fábula meio kiplingiana sobre um menino criado por macacos, e isso era novo, diferente. Era algo totalmente estranho ao ambiente em que seus leitores viviam — boa parte dos quais jamais viu um gorila em toda a sua vida. Eles podiam imaginar uma África misteriosa repleta de aventuras, um lugar onírico com perigos e prazeres inimagináveis e obviamente sem mosquitos; hoje, o mais provável é que ao pensar nela imaginem um lugar onde genocídios acontecem a três por quatro, e de onde, de vez em quando, sai um vírus mortal.

Mas para crianças e adolescentes, a essência das coisas não mudou. Os arquétipos são os mesmos: ideais de heroísmo e coragem, de romance e amizade em ambientes inalcançáveis para o comum dos mortais. A diferença é que esses ideais hoje são realizados em outros cenários, utilizando outras ferramentas. É um processo acelerado, e talvez definido, pelo fato de que o cinema e seu derivado, a TV, se transformaram no principal meio de criação de dramaturgia. Mais que isso, conseguem transformar em imagens cada vez mais verossímeis aquilo que conseguíamos apenas imaginar, e geralmente de forma imperfeita. Depois de um século em que parece que não restaram muitos desafios para vencer, nos quais ser o primeiro é cada vez mais difícil, a realidade parece ter menos apelo. Até porque a imaginação pode parecer ser mais real do que a realidade, e o cinema e o CGI são um indício disso. Se antigamente podíamos assistir a um filme de Tarzan e não ligar para as imperfeições técnicas ou para as incongruências geográficas — Em “Tarzan e a Fonte Mágica”, por exemplo, Chita bebe água de uma fonte da juventude e de chimpanzé se torna um macaquinho sul-americano, com rabo e tudo —, a exposição constante a 100 anos de produção audiovisual nos tornou mais exigentes do ponto de vista formal.

Ao longo do século passado o cinema explorou ao máximo a herança dos milhares de anos anteriores. Não é à toa que existe um filme impagável chamado “Robin Hood e os Piratas”, em que se misturam duas tradições veneráveis, mas historicamente incompatíveis, desses tempos idos. Um século de excesso de exposição à informação fez a sua parte no esgotamento desse manancial de possibilidades dramáticas.

A África Negra e os Mares do Sul se tornaram acessíveis através do cinema; mesmo quando recriados em estúdio — e eu recomendaria a qualquer um assistir aos filmes de Tarzan com Johnny Weissmüller e Lex Barker — eram algo totalmente diferente do que se tinha à sua volta. E embora qualquer psicanalista possa adiantar que uma coisa é a expectativa que você tem diante de uma nova experiência e outra, totalmente diferente, é a realidade dessa experiência, para as pessoas boquiabertas num cinema isso importa pouco ou nada. Por isso, por essa banalização de experiências não vividas, a maior parte das pessoas hoje não vêm nenhum apelo em contos que há 100 anos faziam a imaginação de crianças e adolescentes. Ficamos mais exigentes, não nos contentamos mais com o chitão de temas seculares. Nossa imaginação precisa de mais para ser estimulada; precisa cada vez mais da pirotecnia que apenas o CGI pode oferecer, precisa do impossível.

Ou melhor: o que era impossível antigamente deixou de parecer impossível. O mais engraçado em tudo isso é que embora esses referenciais tenham se esgotado no imaginário das pessoas, isso não quer dizer que ficaram mais acessíveis. As pessoas continuam distantes dos Mares do Sul de Stevenson, e a jângal kiplingiana é tão inacessível para um garoto de Cabrobó — e para praticamente todo mundo — como um planeta em Andrômeda. O que mudou foi o espaço que eles ocupam nas mentes das pessoas. É como se passássemos direto da quinta para a sétima série, sem ter aprendido o que precisávamos da sexta. Ou seja: eu posso não ter vivido uma aventura com Balu e Baguera, mas sinto que tudo isso me é familiar, até comum. Resta o que agora parece verdadeiramente impossível: a magia, as viagens no tempo, a troca de dimensões, as explosões monumentais e a destruição cotidiana do mundo.

Mas que isso não pareça uma apologia desses tempos modernos. Porque não é. Eu consigo pensar em um roteiro de filme melhor, por exemplo, que “Piratas do Caribe”.

Início do século XVIII. O filme teria como personagem Anne Cormac, irlandesa que emigra para a Carolina do Sul. Conhece um pirata americano, James Bonny, e foge com ele. Bonny vira dedo-duro de piratas para o governador de Nassau, e uma Anne desiludida passa seus dias bebendo e se divertindo nas tavernas com outros piratas. Conhece outro pirata, John Rackham, e então temos nossas cenas ardentes de amor. O marido, revoltado com os chifres, denuncia-os e o governador os prende. Anne Bonny e John Rackham fogem, roubam uma corveta, juntam uma tripulação e se lançam ao maravilhoso mundo do saque e da pilhagem. Em pouco tempo Rackham e Anne Bonny se tornam conhecidos no mundo inteiro como piratas perigosos.

Enquanto isso, outra personagem é introduzida, a principal: Mary Read. Em alguns minutos ficamos sabendo que ela é uma inglesa criada como menino pela mãe. No momento em que ela nos é apresentada mudou o nome para Mark Read, e está lutando ao lado dos ingleses na guerra contra a França. Se apaixona por um soldado e se torna Mary novamente. Ele morre pouco depois e ela volta a ser Mark. A caminho do Caribe, seu barco é atacado pelos piratas liderados por John Rackham e Anne Bonny. Mas Read se empolga e se torna pirata também. Anne Bonny se apaixona por Mark Read, sem saber que ele é ela. Dentro de um triângulo indesejável, ela acaba tendo que revelar seu segredo aos dois piratas. Para complicar as coisas e adicionar mais tempero ao nosso filme, ela se apaixona por outro marujo. Esse marujo, ainda jovem, é desafiado a um duelo por outro pirata depois de uma briga. Sabendo que o marujo vai para a morte certa, Mary Read desafia o pirata para outro duelo antes. Na hora fatídica, Mary mostra os peitos para o pirata, que se assusta e vacila: acaba morto — e o outro marujo não precisa mais duelar com ele. Com o segredo revelado diante de todos, Mary Read e Anne Bonny se tornam as mulheres mais famosas da história da pirataria.

Daria um bom filme? Provavelmente. O mais interessante é que tudo isso é verdade. Rackham, Bonny e Read são piratas famosos — não tanto quanto Henry Morgan ou Barba Negra, ou ainda o Duguay-Trouin que invadiu o Rio de Janeiro, mas ainda assim famosos. Era dessa realidade que a dramaturgia infanto-juvenil bebia — uma realidade muitas vezes mais rica que a ficção. E a riqueza de histórias que se encontram nesses livros ultrapassados — eu posso citar alguns que tiraram elementos dessa história, como “Capitão Tormenta” e “Os Três Mosqueteiros” — ainda não conseguiu ser superada pelos novos queridinhos da criançada.

Se bem que no fundo isso seja apenas uma confissão de velhice. E ninguém precisa disso, porque já estamos velhos o bastante, e o tempo passou e, o que é pior, a gente viu.

<a href=”http://ohermenauta.wordpress.com/” title=”Ele se foi, tadinho…” target=”_blank”>Hermenauta</a>

D. João VI e a desinvenção do Brasil

O menino cabeçudo está quietinho no banco da praça em frente à sua casa, roendo uma asa de galinha enquanto balança as perninhas cheias de feridas. De repente o valentão da rua se aproxima e tenta tomar as suas asinhas. O menino corre e se abriga dentro da casa da mãe. Da janela, seguro, fica dando língua para o valentão.

Se esse menino se chamasse D. João VI, o Alex Castro diria que ao correr para casa ele foi um estrategista brilhante.

Em defesa do Alex pode-se dizer que essa é uma imagem um pouco menos injusta que a demolição sistemática empreendida por alguns historiadores e que, mais recentemente, filmes como “Carlota Joaquina” solidificaram. A imagem de D. João como um verdadeiro líder não é uma idéia tão deletéria quanto a do bufão cheio de cracas na perna se empanturrando de asas de galinha, certamente. Mas também não é verdadeira.

D. João VI não era um líder, nunca foi. Se não era o incompetente absoluto pintado pelas caricaturas, era relutante, conservador e covarde. Parte até razoável da elite intelectual e política de Portugal advogava a transferência do centro do império para o Brasil, reconhecido desde havia muito como o sustentáculo de Portugal em praticamente todos os sentidos, mas D. João não era muito simpático à idéia. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, por exemplo, enchia o saco de D. João com a defesa dessa transferência desde pelo menos 1791.

O que o Alex chama de estratégia brilhante e ousada foi, na verdade, o último recurso de um governante fraco e indeciso, metido involuntariamente em uma sinuca de bico. De um lado a França no seu quintal, já pulando a cerca; do outro a Inglaterra, com a mais poderosa Marinha de sua época incomodamente localizada entre ele e seu cofre, que costumamos chamar de Brasil. Seu cálculo foi simples e lógico: entre perder Portugal para os franceses e perder o Brasil para os ingleses, Portugal que se danasse. O Brasil sem Portugal poderia ser alguma coisa; Portugal sem o Brasil estaria condenado a ser um refém pobre de Napoleão, um peão útil apenas no seu jogo geopolítico de dominação continental. Portugal era o Piauí da Europa, pouco mais que um entreposto comercial, um atravessador dos produtos gerados no que tinha restado do seu império.

Vir para o Brasil, algo que teria sido uma estratégia brilhante e revolucionária até uns poucos anos antes se parte de um projeto maior e consequente, a mais perfeita subversão da ordem política mundial, naquela hora era apenas desespero, a última alternativa factível para uma dinastia esgotada e desmoralizada; e é bom lembrar que D. João demorou em excesso até escolher entre duas soluções que lhe eram apresentadas. O amor devotado ao Brasil é uma construção histórica posterior: seu cálculo era político, não emocional. A única coisa emocional aí deve ter sido a reação do povo português, que acordou num dia frio de novembro e viu que na calada da noite seu rei tinha catado a prataria de Queluz, embarcado seus amigos ricos e deixado o povaréu nas mãos de Junot.

Mas o maior exagero do Alex sobre esse momento histórico, na verdade, está num post anterior sobre o ano de 1815 como a “criação do Brasil”. Ali o Alex chega a dizer que, depois da instalação da família real, o Brasil provavelmente tinha mais regalias que Portugal — mas esquece de lembrar das remessas de ouro e açúcar, etc., e que fora a presença da família real na Quinta da Boa Vista o Brasil se mantinha como colônia, no esquema descentralizado construído meio século antes pelo Marquês de Pombal.

Apesar do que o Alex sugere, o alçamento do Brasil à condição de “par de Portugal” em 1815 não é propriamente a sua invenção; não passa de mais uma iniciativa de manutenção do status quo da colônia. O que ele chama de “construção de uma nação moderna” é na verdade a realização do projeto de manutenção de uma estrutura antiga e ultrapassada. Portugal não poderia transformar o Brasil em um país moderno — em um momento em que os Estados Unidos, por exemplo, já realizavam uma das mais fantásticas experiências de governo na história — porque ele mesmo era um exemplo de atraso e incompetência. 300 anos depois de protagonizar uma das maiores aventuras da humanidade, a exploração atlântica, Portugal era pouco mais que um país arcaico e decadente. A vinda de D. João reforçou essas características portuguesas no Brasil. Um trechinho de “História do Brasil com Empreendedores”, de Jorge Caldeira:

Na virada do século XIX, a economia brasileira era, possivelmente, a maior das Américas — de qualquer forma, de tamanho comparável àquela dos Estados Unidos. Na virada do século XX, tratava-se de uma economia 15 vezes menor que do país do norte.

O mito da importância do Reino Unido deveria cair quando lembramos que o tal Algarve não é mais que o sul do Portugal continental. O que D. João estava fazendo ali era angariar para si capital político diante da ascensão — tardia, por sinal — da burguesia portuguesa. Estava fazendo como o dono de uma holding em dificuldades que divide suas empresas em unidades autônomas para ter mais controle e flexibilidade diante dos cobradores. Em outras palavras, tentava garantir diante das Cortes um certo grau de liberdade e mobilidade, mais um elemento no jogo de poder que a família real portuguesa, uma das mais singulares da Europa em seu tempo, estava perdendo em ritmo avançado.

No fim das contas, a invenção do Brasil, se é que se pode utilizar um termo desse tipo para definir um processo histórico, foi sendo feita aos poucos e aos trancos, em movimentos como a Guerra dos Mascates, a Revolta dos Alfaiates ou a Inconfidência Mineira. Evaldo Cabral de Mello, por exemplo, sugere como marco fundamental da nação brasileira a Batalha dos Guararapes, quase 200 anos antes, e ele não deixa de ter um ponto interessante aí — o negro Henrique Dias, o índio Felipe Camarão e o branco Vidal de Negreiros juntos combatendo, em nome de uma mesma identidade e já uma noção de pátria, o invasor holandês. O mesmo Evaldo Cabral discordaria completamente quando visse o Alex falar do “crescimento exponencial do Brasil” durante o período 1808-1821, e lembraria que esse crescimento se deu apenas no Rio de Janeiro; ele apontaria que faltava a D. João um projeto nacional.

Claro que, com boa vontade, pode-se até forçar a barra e dizer que D. João inventou mesmo um Brasil — mas ainda assim seria um Brasil muito pior do que as aspirações do povo que àquela altura se considerava, definitivamente, brasileiro. D. João apenas atropelou um longo processo de formação nacional. Mais que isso, condenou o país ao atraso: D. Pedro I representava o conservadorismo diante das cortes portuguesas.

Foi esse modelo que a vinda de D. João, se não implantou, consolidou no Brasil. A chegada da família real tem consequências nefastas e extremamente duradouras, e não é à toa que o Rio de Janeiro é, até hoje, uma cidade extremamente corrupta, em que as idéias do jeitinho, da proximidade do poder subvertem e minam como em talvez nenhuma outra cidade brasileira as noções de democracia e de republicanismo. E isso não é modernidade.

Uma pequena diferença entre Londres e Paris

Em Londres, praticamente todas as livrarias têm uma seção de história militar, têm até mesmo um número incomum de livrarias especializadas no assunto. Nelas a II Guerra Mundial ocupa lugar de destaque. A Inglaterra tem alguns dos maiores historiadores das grandes guerras do século XX, como Martin Gilbert — sem falar em Churchill, o sujeito que pelo menos no front ocidental definiu o que foi a II Guerra.

Uma parte importante dessa fixação vem, claro, da longa história de um império em que o sol nunca se punha, como eles gostavam de dizer. Os domínios ingleses abrangiam os cinco continentes, e eles podem se orgulhar até mesmo de terem sido pioneiros na exploração da Antártida e do Ártico. Além disso, durante séculos tiveram a mais importante marinha do mundo. É fascinante a história de como começaram como piratas e acabaram usurpando de Portugal, da Espanha e dos Países Baixos o posto de donos do mundo.

Em Paris essas seções não são tão facilmente encontradas nas livrarias. Em vez disso, pode-se passar o olho no passatempo preferido dos franceses, livros de filosofia em capas sóbrias e espartanas (estética aliás importada por Portugal), muitas vezes disfarçando um conteúdo medíocre e redundante, como é a maior parte da tal filosofia contemporânea. Ninguém pode acusar os franceses de desprezo à história — na Passage des Panoramas no Boulevard Montmartre, por exemplo, pode-se encontrar facilmente à venda moedas antigas que datam dos tempos do Império Romano, e alguns dos maiores especialistas em história européia, como Georges Duby e Paul Veyne, vêm de lá —, mas é como se eles achassem que não têm exatamente muitos motivos para celebrar aquela guerra. O que, num país de gente orgulhosa de sua história como os franceses, merece uma explicação.

Acho que ela pode ser encontrada nas ruas de Paris. Em boa parte delas encontram-se placas indicando que ali tombou um combatente da liberdade — em esquinas, pontes, marquises, sempre se pode achar um lembrete de que naquele local, durante a II Guerra, nazistas e colaboracionistas mataram um membro da Resistência Francesa. Muitas vezes a vítima sequer tem um nome, não passa de uma lembrança, quase um diz-que-diz. Mas a sua memória tem que ser lembrada, heróis anônimos também criam uma lenda, e por isso a Resistência Francesa alcançou, no imaginário mundial, uma importância muito maior do que a que realmente teve.

Por mais que tentem assumir um certo flair de vitoriosos de uma guerra perdida — como fez Clemenceau em 1918, por exemplo —, a França perdeu a II Guerra Mundial, e perdeu de maneira humilhante. Se com excesso de boa vontade a I Guerra pode ser vista como uma vitória, porque bem ou mal a França esteve do lado dos vencedores, se comportou com a bravura necessária e ainda levou seu quinhão do butim, a Alsácia-Lorena, a II foi a guerra em que se recusou a lutar, em que se rendeu quase instantaneamente e aceitou a ocupação e a palhaçada que foi o governo do Marechal Pétain em Vichy. Nessa guerra, o único ato francês realmente louvável foi declarar Paris cidade aberta e evitar a sua destruição.

Uns anos atrás, uma moça francesa veio a este blog defender seu país. Como poderia uma França despreparada, em crise desde a queda da III República, ousar enfrentar a Alemanha?, ela perguntou. A moça não sabia a diferença entre coragem e covardia, e certamente olhava para o exemplo da Polônia — que mesmo sabendo que não tinha a mínima chance lutou até onde pôde contra a invasão alemã, e ninguém poderá jamais desprezar a imagem da cavalaria polonesa investindo contra os Panzers alemães, quixotesca e bela — com desprezo pela sua burrice: como pôde um paisinho daquele resistir a uma potência como a Alemanha nazista?

O curioso é que Inglaterra tampouco poderia se orgulhar de ter vencido a guerra, objetivamente. É provável que o maior erro de Hitler tenha sido não tentar invadir a Grã Bretanha quando teve chance, preferindo invadir a União Soviética e entrando de cabeça no erro estratégico que é lutar uma guerra em dois fronts. Em 1941, a Inglaterra já estava de joelhos diante da máquina de guerra nazista. Não fosse o erro de Hitler, além do apoio posterior de Stálin e Roosevelt , o Reino Unido teria caído.

Mas a história da resistência inglesa à Alemanha é memorável. Londres e cidades portuárias como Liverpool sofreram bombardeios só superados pela destruição causada pela vingança — não há outra palavra que possa definir o bombardeio de Dresden, por exemplo — aliada na Alemanha. Ainda hoje se descobrem bombas que não explodiram. Se não podem dizer que ganharam a guerra por seus próprios méritos, como podem os soviéticos, os ingleses podem se orgulhar da sua postura e do seu orgulho. Durante a Blitz, resistiram com uma dignidade que ainda hoje impressiona, mesmo quando amontoados em estações de metrô ou em abrigos anti-aéreos. Filmes como o autobiográfico “Esperança e Glória”, de John Boorman, e livros como o recente Keepin’ Mum, de Brian Thompson, contam o que foi viver em um país sob ataques constantes.

Os franceses não passaram por essa experiência. Daí a insistência em glorificar a Resistência e os maquis que morreram combatendo Hitler. São o último fiapo de dignidade naquela guerra a que a França pode se agarrar, e por isso espalham placas por toda a cidade como uma tentativa de lembrar a todos que afinal a II Guerra Mundial não foi, para a França, apenas vergonha e humilhação. A Resistência Francesa, ainda que pouco eficiente, foi uma mostra do que gente com coragem pode fazer para defender seus ideais: são a diferença entre o espírito de Napoleão e a tibieza de Pétain. Acima de tudo, são uma lembrança mais digna do que o que se seguiu depois da libertação.

A postura francesa no pós-guerra é uma das coisas mais impressionantes daquela época. Se o país não foi bravo o bastante para resistir à Alemanha, coragem não lhe faltou para perseguir as mulheres que “colaboraram” com a Alemanha — ou seja, que tentaram sobreviver dormindo com o inimigo, como mais tarde milhares de alemãs ganhariam o chucrute de cada dia de pracinhas americanos. Deve ser algo na psique francesa: os alemães podiam estuprar o país, mas não podiam seduzir suas mulheres.

Um cronista mau-humorado poderia dizer que os franceses não foram homens o suficiente para enfrentar os alemães, mas o foram para raspar cabeças de mulheres cujo crime de guerra foi tentar sobreviver da única maneira que lhes era possível. Obviamente as coisas não são assim tão simples, e é razoavelmente fácil entender a revolta francesa contra colaboracionistas. Um observador mais imparcial poderia inclusive dizer que não há, necessariamente, uma relação entre os dois fatos, embora isso fosse um tanto difícil de provar.

Independente disso, o que se viu nos momentos que se seguiram à libertação francesa foi, no fundo, o extravasamento da frustração que todo francês deve ter sentido ao ver a Wermacht marchar na Champs Elysées, mas feito da maneira mais fácil. Talvez seja compreensível; mas é difícil perdoar sua indignidade. Porque é impossível olhar para as imagens de mulheres humilhadas das maneiras mais cruéis, uma humilhação completa a partir de sua nudez e da sua “emasculação” simbólica ao lhes cortarem os cabelos, e imaginar que, assim como a mancha causada pelo nazismo jamais será realmente apagada da história alemã, será difícil esquecer a vaga sensação de que a única hora em que os franceses pegaram em armas de maneira realmente efetiva na II Guerra Mundial foi para raspar as cabeças de suas mulheres.