O cachorro do Vinícius

Lembro bem de todos os cachorros que não tive. Primeiro foi um collie, como quase todo mundo que viu “Lassie” uma vez na vida. Depois, graças a “Joe, o Fugitivo”, um pastor alemão que só faltaria falar. Um brevíssimo idílio com os são bernardos durou os poucos meses até ver dois afghan hounds que moravam na Princesa Isabel, e desde então eu nunca mais quis saber de qualquer outro cachorro.

Mas antes vi um são bernardo de perto.

Era 1980, final do primeiro semestre. Eu morava em Itapuã, a uns 500 metros da casa de Vinícius de Moraes, que hoje é um hotel. Ia caminhando em direção ao centro do bairro, por uma das ruas de dentro, com o meu tio, duas crianças que não tinham muito o que fazer naquele dia. E então ali estava ele na varanda gradeada de outra casa, um pouco distante: deitado, indolente, muito maior do que eu imaginava. Ele nos viu e se levantou latindo, babando quinze litros de uma baba densa.

Nunca tinha visto um antes. Conhecia o cachorro, claro, não apenas porque tinha um livro com as raças de cães que eu jamais compraria, o “Livro de Ouro dos Cães”, mas porque mais ou menos naquela época tinha assistido a um episódio de Disneylândia que contava a história de Barry, o mais famoso de todos os são bernardos.

É uma lembrança desimportante, que ficou apenas pela coincidência de ter visto o primeiro exemplar da raça pouco depois de ver um filme sobre um deles. Até que neste feriado, lendo a biografia de Vinícius de Moraes por José Castelo, cheia de defeitos mas suficiente, descobri que quando foi morar em Itapuã ele comprou um são bernardo.

Vinícius tem uma certa história com minha família. Passou muito perto de levar um soco de meu pai, uns dez anos antes.

É uma história curta, simples. 1969: recém-casados, meus pais, Vinícius e alguns amigos estão num bar de uma Itapuã ainda meio selvagem. O poeta ainda não tinha se mudado definitivamente para lá nem casado com a Gesse Gessy.

Simpático, exuberante, galanteador e bêbado, embora já um tanto decrépito e prestes a dar início a uma fase estranha em sua vida, Vinícius resolve cantar “Minha Namorada” para minha mãe e lhe passa um bilhete.

Diante do constrangimento de minha mãe, meu pai começa a rir. E, rindo, fala para o poeta:

“Pare com isso, Vinícius. Porque se você continuar eu vou ter que lhe dar um murro, e vai ficar feio pra mim bater num velho como você.”

Tem coisas que a gente fala rindo mas o olhar da gente não sorri junto. A serenata parou, os bilhetes também. A noite seguiu tranquila e alegre, como eram as noites em que, dizem, Vinícius estava à mesa.

Agora fico sabendo que pouco tempo depois Vinícius se mudou para a Bahia, casou com Gesse — e, de certa forma, com Toquinho —, construiu aquela casa em frente à qual eu passava todos os dias no caminho para a praia ou para a escola e arranjou o tal são bernardo. Deu-lhe o nome de Meu, como o papagaio de Ungaretti; mas num dia em que Ricardo Ramos foi lhe fazer uma visita rebatizou o pobre cão como Graciliano — porque, você sabe, era um são bernardo. Imundo, cheio de pulgas, o coitado passava seus dias na piscina, correndo do calor que faz na terra de Oxalá, até que Vinícius resolveu o problema instalando um condicionador de ar em sua casinhola.

Mas isso tinha sido uns 10 anos antes. Àquela altura ele sequer morava em Salvador. Agora tenho quase certeza de que aquele são bernardo que vi numa manhã em Itapuã, aquela visão rara, era o de Vinícius. Não era um cachorro comum em Salvador, e quais as chances de haver dois tão perto? Imaginei que quando se separou de Gesse ele deu o cão a algum amigo, talvez Calazans Neto, talvez Carlos Bastos, sei lá quem morava naquela casa.

***

Ler a biografia de Vinícius, principalmente a parte que cobre seus últimos dez anos, me deixou pensativo.

Como quase todo mundo, sempre achei fraca sua última fase, marcada pela parceria com Toquinho. Na verdade o problema não era ele, porque ali estão algumas de suas melhores letras. Era Toquinho: a música inofensiva que ele fazia, leve, boba e derivada, apesar de extremamente melódica, parecia insuficiente, quase antitética, para o poeta que foi um dos vértices da bossa nova e fez os afro-sambas com Baden Powell — uma antítese ainda mais evidente em tempos de Tropicália. Seus amigos, por sua vez, olhavam com estranheza a escolha de vida que ele fez: a palavra decadência é usada não poucas vezes em sua biografia. De grande poeta e letrista, Vinícius virou um velho macumbeiro excessivamente hedonista que parecia se apegar à juventude do parceiro, e dos estudantes que iam aos seus shows em diretórios acadêmicos, como Dorian Gray se agarrava ao seu retrato.

Mas hoje, mais velho, mais cansado, olhando para trás cada vez mais amiúde, vejo as coisas de maneira um pouco diferente. E nessas horas tenho inveja de Vinícius. Porque entendi o que ele era então: um sujeito que simplesmente decidiu se abandonar à vida — nem que para isso tenha abandonado também uma mulher grávida, mas o que é um cafajeste a mais ou a menos no mundo? — como tão poucos de nós jamais tivemos coragem.

Há muito tempo acho que no fundo só não se pode morrer entre os 30 e os 50 anos; aí é como se algo então tenha dado profundamente errado, porque é quando as pessoas finalmente vivem uma plenitude que nunca mais recuperarão. Morrer na adolescência é uma tragédia mas as pessoas morrem assim mesmo, às vezes vítimas da temeridade própria dos que ainda se acham imortais; depois dos 50 estamos todos na mesma roleta, e se é triste, é pelo menos aceitável. A própria tristeza vai diminuindo com o passar dos anos, e aos 90 o que o defunto ouviria, se ouvidos ainda tivesse, não seriam as expressões de dor e a mulher histérica se jogando ao seu caixão: seria um “descansou, coitado” melancólico e conformado.

Vinícius morreu aos 66 anos, uns poucos dias depois de eu ver seu são bernardo. Tinha vivido mais que a maior parte das pessoas viveria em 150. Mais que isso, se deu o direito de viver como bem lhe aprazia, e o preço que pagou em seus últimos anos, doente, foi mais que uma pechincha; tanta gente paga o mesmo preço e recebe bem menos.

Eu e quase todo mundo olhamos para trás e, mesmo quando temos a sorte de nos orgulhar do que fizemos, também sentimos aquela ponta de tristeza diante da miragem de tudo o que não fizemos, por impotência ou covardia. Por isso, agora tenho a impressão de que Vinícius sentia um pouco menos de tristeza que o resto de nós.

O que dizem ser sua decadência hoje chamo de ápice. E se a poesia, essa que os bobos escrevem com P maiúsculo, perdeu alguma coisa, paciência. Vinícius entendeu: nenhum poema jamais valeria uma noite de uísque, música, amigos e mulheres.

Ladeira da Montanha

A demolição de antigos casarões na Ladeira da Montanha, em Salvador, abalados pelas chuvas fortes que caíram recentemente, gerou revolta em muita gente. Aqui e ali pulularam — pululam ainda — protestos revoltados com o fato de o IPHAN ter autorizado, com rapidez que julgaram suspeita, a demolição dos prédios.

Basta uma olhada rápida para as casas demolidas para entender que não havia outra solução. Na foto ao lado é possível ver exatamente o que se perdeu: meras fachadas degradadas ao ponto da impossibilidade de recuperação, mantidas em pé apenas pela mão benevolente do Senhor do Bonfim. Mais grave, entretanto, é que não parecia haver nada ali que caracterizasse algum conjunto arquitetônico importante e necessário, nem que justificasse a repentina indignação de uma sociedade que evitava passar por aquela rua, principalmente à noite. Durante décadas, os prédios da Ladeira da Montanha cumpriram apenas o papel de oferecer sexo a preços módicos para trabalhadores de baixa renda; há anos, nem isso. O IPHAN agiu corretamente.

Digo isso com certa dor no coração. Muitos anos atrás, quando eu chegava a Salvador pela rodoviária, podia pegar dois ônibus para a casa de minha avó, em Nazaré. O R1 e o R2 faziam essencialmente o mesmo trajeto, mas em sentidos diferentes. O R1 era o mais rápido; mas eu preferia o R2, que primeiro passava pelo Comércio e pela Ladeira da Montanha. O caminho era mais longo, mas era mais bonito: eu, como qualquer baiano, sou cioso da parte que me cabe na herança cultural dos lupanares da cidade. Era melhor se fosse no cair da tarde: o pôr do sol visto da Ladeira da Montanha, entre as torres da Conceição da Praia, é um dos mais belos em uma cidade que os tem em demasia.

Em vez de carpir o enterro tardio dos cadáveres putrefatos de antigos bregas abandonados há eras, deveriam estar discutindo o destino que se vai dar àquela área. A Prefeitura ainda não se pronunciou sobre o futuro da Ladeira da Montanha, provavelmente porque foi pega de surpresa pela urgência de tomar uma atitude evitada por muitos anos. Acho que o lugar poderia se transformar num bom espaço de convivência, com apelo turístico e cultural. Daria um dos mais belos mirantes de Salvador, sem nenhuma dúvida. É um lugar adequado para uma grande praça com equipamentos de lazer, restaurantes e armadilhas para turistas. Podiam até fazer uns bares para que, com o passar do tempo, a Ladeira da Montanha voltasse a cumprir o papel social que cumpriu durante décadas: garantir um espaço razoavelmente seguro para o exercício da boa e mais antiga profissão do mundo. Turistas pagam em dólar.

Infelizmente o histórico da Prefeitura não é dos melhores e afeta as expectativas que possamos ter. Embora tenha realizado uma das mais importantes intervenções urbanas em Salvador dos últimos tempos, a transformação do trecho da avenida Sete de Setembro entre o Porto e o Farol da Barra em um grande calçadão de uso misto, o prefeito ACM Neto tem uma concepção de cidade ultrapassada e nociva: ele fala sem ruborizar em demolir casarões irrecuperáveis no Centro Histórico para transformá-los em estacionamentos, enquanto o mundo civilizado trabalha para banir automóveis dos centros das cidades. Não será ACM Neto o prefeito a transformar Salvador em uma cidade moderna, que tente harmonizar seu passado e seu futuro.

Isso é ainda mais triste porque Salvador tem uma cota alta demais de Alaricos urbanos. Mario Kertész, por exemplo, construiu no Paço Municipal aquela aberração estética que responde pelo nome de Palácio Tomé de Souza, ironicamente no local onde existiram a antiga Biblioteca e a Imprensa Oficial, demolidos por ACM (avô do atual prefeito) nos anos 70; os Magalhães gostam de derrubar coisas. Em defesa de Kertész apenas o fato de que aquele monstrengo deveria ser temporário; no entanto, aquela desgraça está lá há quase 30 anos.

Mas Salvador é uma cidade que pelas dimensões e variedade do seu patrimônio histórico ainda pode ter esperanças. E talvez a Paris do século XIX possa servir de exemplo para o que fazer.

Ao voltar do exílio em 1848, Napoleão III já trazia debaixo do braço o mapa dos futuros bulevares de Paris. Sua ideia era renovar completamente a cidade, construindo grandes avenidas que rasgassem a cidade de cima a baixo, recriando a estrutura urbana e adequando a capital aos novos tempos e tecnologias, eintegrando-a e expurgando os tantos e tantos cortiços que se espalhavam por uma cidade que tinha crescido assustadora e desordenadamente. Para isso ele nomeou o barão Haussmann chefe do departamento do Sena, uma espécie de super-prefeito de Paris.

A renovação de Paris no Segundo Império jamais seria igualada. A área da cidade subiu de 3500 para 8 mil hectares; mas acima de tudo, Haussmann transformou Paris numa cidade moderna, mais limpa, capaz de absorver o crescimento constante das décadas que se seguiriam.

É impossível saber o que se perdeu. Lugares históricos, lieus de mémoire, as provas materiais da Revolução de 1848; quase dois mil anos de camadas e camadas de evolução de uma cidade. A Paris que emergiu do Haussmanismo continha ainda muitos elementos da cidade antiga, mas era uma cidade diferente. É essa a Paris que conhecemos. Não parece ter se saído mal.

(A nota irônica em tudo isso é que os objetivos de Napoleão III não eram apenas modernizadores e sanitizadores. Com a nova ordenação urbana de Paris ele pretendia também facilitar a repressão às explosões sociais que aconteciam a três por quatro na cidade. Parisienses sempre tiveram uma queda por barricadas e paralelepípedos. Mas foram esses novos bulevares que cerca de 70 anos depois viram os panzers alemães deslizarem suavemente em sua tomada de Paris.)

Um dos problemas que o mimimi daqueles que protestam cegamente contra a demolição das ruínas da Ladeira Montanha acaba mostrando é que eles parecem não entender que a cidade é um organismo vivo, que precisa evoluir. Não deve fazer isso às custas cegas do seu passado e da sua história, e uma solução radical como a de Haussman não seria aplicável hoje. Mas não deve sobrevalorizar o que é só velho, e por isso um pouco desse espírito deveria ser levado em conta. A cidade às vezes tem que fazer escolhas. O grande problema é que simplesmente não é preciso fazer uma escolha difícil neste caso da Ladeira da Montanha.

Baianos têm orgulho do seu elevador Lacerda (enquanto, logo ali ao lado, deixam o belo Elevador do Taboão agonizar; só vão lembrar dele, pelo visto, quando finalmente desmoronar). Um anúncio antológico da Bahiatursa o descreve como parte da alma da cidade: “Cidade Baixa, Cidade Alta e um elevador no meio. Só podia ser coisa de baiano.” Vendo essa falsa polêmica sobre o “casario da Ladeira da Montanha”, fico pensando que, se esse pessoal que hoje se esvai em chororô ignorante e ludita estivesse vivo em 1930, Salvador não teria o elevador que conhecemos hoje; em vez disso teríamos o antigo, como projetado por Antonio de Lacerda no início dos anos 1870, porque a cidade não tem o direito de se erguer de suas próprias cinzas.

Lágrimas na chuva

Eu vi o CEP passar de 5 para 8 números.

Vi os telefones passarem de 7 para 8 números.

Vi câmeras de 35mm substituídas pelas digitais e estas começarem a desaparecer.

Vi os cinemas de rua desaparecendo um a um.

Vi o videocassete nascer para ser morto pelo DVD, e este pela internet.

Eu vi os orelhões de ficha darem lugar aos de cartão, e estou vendo estes morrendo.

Vi os cursos de datilografia florescerem, mas agora eles não existem mais.

Vi os jornais ganharem cor, e agora eles encaram seu fim.

Vi o vinil desaparecer ante o CD, e este superado pelo mp3.

Vi surgir o PC, para dar lugar ao notebook e então ao smartphone.

Eu vi as lâmpadas incandescentes substituídas pelas fluorescentes e estou vendo-as dar lugar às de LED.

Vi o celular surgir e passar de 7 para 8 números, e estou vendo passar para 9.

Eu vi surgir a TV em cores, e a TV por assinatura, e o YouTube e o Netflix destruindo-as aos poucos.

V i o fax nascer e morrer.

Vi as rádios FM surgirem, e vi a Noruega anunciar a sua morte.

Vi o bip dar lugar ao pager, e este dar lugar ao WhatsApp.

Eu vi coisas em que você não acreditaria. E todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.

Roy Batty, você não sabe de nada, inocente.

Alsace-Lorraine

É uma de minhas imagens mentais favoritas, e torço para que tenha sido verdadeira: sempre imaginei Hitler subindo a Champs-Élysées com olhar impassível mas o coração acelerado, desdenhando das expressões de choro e medo dos franceses que o viam desfilar. Eu o imagino descendo do carro no fim do bulevar, atravessando a Étoile pela rua, por cima, mãos para trás como sempre andava, e parando diante dessa placa. Primeiro olhou em volta e viu os nomes dos soldados, imaginando se no meio daqueles tantos sobrenomes alemães não havia o antepassado de algum conhecido seu, de um marechal talvez. Pensou em como tinha sido fácil chegar ali e como nada mais poderia impedir a realização plena do seu destino. Deu mais uma olhada em direção à Concorde e se permitiu um sorriso discreto; seu coração se encheu de alegria e gratidão, e então olhou para essa placa por longos segundos, e murmurou baixinho, tão baixinho que Albert Speer não pôde ouvir: “Vielen Dank, Französisch.”

 

Nomes

Nadia Lippi, Carlos Zara, Ney Sant’Anna, Laerte Morrone, Claudio Corrêa e Castro, Gilberto Martinho, Yara Côrtes, Paulo Figueiredo, Armando Bogus, Sura Berditchevsky, Lady Francisco, Zilka Salaberry, Jacira Sampaio, Julio César, Rosana Garcia, Nestor de Montemar, Rosita Thomaz Lopes, Denise Dumont, Roberto Faissal, Chica Xavier, Maria Claudia, Claudio Marzo, Eloiza Mafalda, Neuza Amaral, Lucia Alves, Silvia Salgado, Rosamaria Murtinho, Felipe Carone, Renata Fronzi, Reinaldo Gonzaga, Cleyde Blota, Myrian Pires, Miriam Persia, Solange Theodoro, Suzana Faini, Monah Delacy, Angelina Muniz, Paulo Guarnieri, Heraldo Galvão, Nivea Maria, Thais de Andrade, João Paulo Adour, Sonia Regina, Ruth de Souza, Mario Cardoso, Lauro Corona, Norma Blum, Glauce Graieb, Oswaldo Loureiro, Isis Koschdoski, Élida L’Astorina, Heloísa Millet, Fabio Massimo, Celia Biar, Castro Gonzaga, Milton Moraes, Suely Franco, Adriano Reys, Roberto Pirilo, Priscila Camargo, Djenane Machado, Marcelo Picchi, Arthur Costa Filho, Elza Gomes, Henriqueta Brieba, Roberto Bonfim, Fátima Freire, Ana Ariel, Mauricio do Valle, Eduardo Tornaghi, Karin Rodrigues, José Augusto Branco, Luiz Armando Queiroz, Eva Todor, Maria Fernanda, Beatriz Segall, Dionísio Azevedo, Carlos Kroeber, Ivan Candido, Dina Sfat, Lidia Brondi, Jonas Mello, Joana Fonn, Perry Salles, Lucia Alves, Átila Iório, Tereza Raquel, Fernando Torres, Claudio Cavalcanti, Alcione Mazzeo, Sueli Franco, Tereza Sodré, Lucélia Santos, Reginaldo Faria, Mauro Mendonça, Angela Leal, José Lewgoy, Tonia Carrero, Raul Cortez, Carlos Eduardo Dolabella, Tamara Taxman.

Contradições

Lembrança 1 de adolescência: a música de Summmer of ’42 indicando o início do Supercine nos sábados dos anos 80.

Lembrança 2 de adolescência: farras e putarias e corridas e farras e conversas e putarias e o corujão e será que vamos fazer a revolução este ano e o China e farras e vamos fundar um grêmio no Santos Dumont e putarias nos sábados dos anos 80.

Alguém está lembrando errado.

No tempo das diligências

Hoje estou cansado e vou passar a noite em casa. Vou aproveitar para beber uma garrafa de vinho, ler pelo menos uma das revistinhas antigas da Disney que baixei ultimamente e assistir a algum filme. “Sartoris” fica para depois.

Queria mesmo era ver um western. Nos últimos dias meu interesse pelo gênero se reacendeu, apesar de tragédias recentes como The Lone Ranger. Sempre foi um dos meus gêneros favoritos, como já disse algumas vezes neste blog, mas depois que finalmente assisti a Heaven’s Gate, o filme de Michael Cimino que destruiu a United Artists e que é o maior caso de filme-malfeito-que-poderia-ser-grande da história, a vontade de ver faroestes ainda desconhecidos parece ter recrudescido. Também a de rever alguns grandes filmes, e talvez hoje reveja “Consciências Mortas”.

O western sempre fez parte da minha vida. Era um gênero tão comum na TV dos anos 70, comecinho dos 80. Acho que já tinha sido mais; anos antes havia um número aparentemente infinito de seriados de bangue-bangue exibidos toda semana, quase todo dia. Mas já não peguei “Bat Masterson”, “O Homem de Virgínia” ou “Chaparral”, não que eu lembre. De qualquer forma, o western ainda era parte importante do imaginário das crianças, e brincávamos de mocinho e bandido e eu tive sucessões de revólveres de espoleta — que aparentemente fizeram de mim um serial killer com 357 mortes nas costas. Pensando bem, talvez reveja “Da Terra Nascem os Homens”, um filme gigantesco de William Wyler que poderia estar sem problemas em qualquer lista de dez melhores westerns da história.

Se havia menos seriados sendo exibidos, para garantir sua programação a TV aproveitava o acervo de mais de meio século de cinema falado. Isso significava que se apoiava, principalmente, na produção americana dos anos 50 — talvez a última grande década do cinema hollywoodiano, e certamente a última grande década do studio system. E boa parte da produção dos anos 50 era, oras, composta de westerns. Acho que podia ver novamente “Um Certo Capitão Lockhart”, porque cowboy mais típico que James Stewart, para mim, só John Wayne.

Se a Sessão da Tarde hoje é motivo de deboche, naqueles dias exibia bons filmes com regularidade. Filmes em preto e branco ainda eram comuns, nem todo mundo tinha TV em cores (trívia: as TVs em preto e branco só deixaram de ser fabricadas em 1997), e a média da grade de programação era muito superior ao que se tem hoje. Por exemplo, vi “Uma Aventura na África” na Sessão da Tarde, além de tudo o que Chaplin fez de importante. Logicamente, nessa época era virtualmente impossível evitar a exposição aos bangue-bangues. A maior parte das pessoas não ligava para eles, claro, e estava mais preocupada com dramas contemporâneos; outras, que sempre gostaram de cavalos e de estourar coisas, se apaixonavam. Ainda hoje, a ideia do cowboy errante com um rifle em sua sela, um cobertor na garupa do cavalo e um cantil ao lado dos alforjes é uma das principais imagens da aventura para mim. Mesmo assim talvez veja “Josey Wales — O Fora da Lei”, um pouco diferente desse arquétipo, mas um filme brilhante, talvez o mais subestimado de Clint Eastwood, e dialoga maravilhosamente com o seu tempo.

O fato é que rever westerns me faz voltar a um blog que, nos últimos meses, se tornou uma verdadeira referência para mim: o Westerncinemania.

O Westerncinemania, se não o melhor, é um dos melhores espaços na web brasileira sobre westerns. Levado adiante pelo Darci Fonseca, é um grande repositório de informação sobre westerns, conhecidos ou não. O conhecimento do Darci sobre westerns é enciclopédico; e o blog parece ter formado uma comunidade de apreciadores e fanáticos que discutem o gênero com propriedade e conhecimento impressionantes. É um dos poucos lugares onde vi, por exemplo, a apreciação equilibrada de um filme superestimado como Johnny Guitar. Seu penúltimo post, sobre o belíssimo “O Preço de um Homem”, é um bom exemplo do que o blog tem a oferecer. “O Preço de Um Homem” tem um Robert Ryan brilhante no papel de vilão. Pode ser esse.

Como eu disse, uma garrafa de vinho e um western. A noite está ganha.

***

Devo fazer parte da última geração que cresceu assistindo a filmes de faroeste. Esse pessoal mais novo deve ter visto alguns, fãs de cinema veem uns clássicos aqui e ali, John Ford e Howard Hawks; mas seu interesse é o cinema, não é o Velho Oeste. A minha geração, não: ela tinha na fronteira um referencial não apenas estético, mas ético também. Víamos faroestes o tempo todo, na Sessão da Tarde, no Bangue Bangue à Italiana, Sessão Western. Bons e ruins, claro; mas eram tantos filmes exibidos que, mesmo com o bocado de fitas ruins que faziam a base da programação, provavelmente vi a maior parte dos grandes clássicos do western ali, na TV.

É fascinante a maneira como os americanos, através do cinema e do faroeste, criaram para si mesmos um mito fundador que os países europeus só conseguiram depois de muitos séculos de história. O pistoleiro se tornou o cavaleiro andante; a prostituta, a donzela em perigo; o vaqueiro, o fiel vassalo. Deturpando e mitificando sua própria história, apagando seus crimes e embelezando suas pequenas tragédias, os Estados Unidos criaram um corpo de memórias em umas poucas décadas que lhes deu dignidade, respeitabilidade e um profundo senso de identidade.

A história americana é a história da busca do oeste, desde quando esse oeste era o Kentucky. Mas foi ao roubar ao México uma faixa de terra considerável — Arizona, Novo México, Califórnia — que os Estados Unidos se tornaram o que são hoje. Aquela foi a primeira guerra imperialista americana, uma guerra sem nenhuma justificativa ética ou moral além da cobiça e da necessidade de expansão territorial. Vergonhosa até mesmo para os americanos — nomes como Abraham Lincoln, então deputado em início de carreira, e Horace Greeley se pronunciaram contra ela —, a guerra tornou o “destino manifesto” uma realidade e transformou os EUA numa potência territorial.

E foi ali que se desenrolaram as últimas guerras contra os índios. O cinema se encarregou de mitificar e colocar para sempre na história tribos das Grandes Planícies como Apaches, Sioux, Cheyennes, Comanches, em menor medida os Navajos. Foram essas tribos que barraram a expansão espanhola na América no Norte, que atrapalharam durante décadas a expansão americana, e sua importância jamais poderia ser subestimada. Mas apesar da mitificação hollywoodiana, a grande guerra americana contra os índios se deu no leste. Chocktaw, Shawnee, Creek, Cherokee, Seminole, Chickasaw — tribos menos conhecidas mas vilipendiadas de uma maneira que, exemplificada na Grande Trilha de Lágrimas, deveria envergonhar cada americano, como o tratamento dado aos nossos guaranis caiovás deveria envergonhar os brasileiros.

No meu caso, o amor aos westerns acabou degringolando em uma curiosidade estranha sobre o processo histórico de conquista. Ainda são, para mim, os melhores capítulos da história americana (além de Jamestown com seus casos de canibalismo com a fleuma inglesa e, um pouco menos mas mais importante, Plymouth). Minha antipatia ao que representa a América não se estende à história de sua fundação, mesmo os tantos momentos vergonhosos como o Tratado de Guadalupe. A maneira como, em menos de um século, tomaram conta de praticamente todo um continente é impressionante e, dentro de seu contexto, ao menos parcialmente invejável.

Os comanches são talvez meus personagens favoritos. De tribo vagabunda e humilhada por milênios, em menos de 100 anos se tornaram a nação mais poderosa das Grandes Planícies americanas. Foram eles, junto com os apaches, que barraram a expansão espanhola na América do Norte, e apenas a invenção do revólver de ação dupla possibilitou aos americanos vencer definitivamente a guerra contra eles e os sioux. E tudo isso por causa de uma nova tecnologia: o cavalo.

A chegada do cavalo não teve tanto impacto, por exemplo, no leste americano. É compreensível: numa região com vegetação densa, o bicho não faz tanta diferença. Mas em uma pradaria quase infinita, ele coloca tudo em um nível diferente. Ao dominar o cavalo como pouquíssimas outras tribos, os comanches adquiriram um poder que a maioria dos outros índios americanos jamais sonharia em ter.

Hoje em dia é feio, em muitos círculos, falar qualquer coisa positiva dos colonos americanos que se aventuraram rumo ao oeste. A maneira como seu país roubou terras valiosas aos mexicanos e praticou um dos mais vergonhosos casos de genocídio contra os índios se sobrepõe a qualquer de suas qualidades, e a isso junta-se um processo de “beatificação” do índio, que passa a ser visto, de maneira excessivamente maniqueísta, apenas como o bom selvagem de Rousseau vítima de brancos odiosos.

Mas o fato é que a americana é uma história bela. Uma história que, apesar de tudo, é também a das pessoas que abandonaram tudo em busca de uma vida melhor. E que sofreram, e muito. Essa história é fácil de entender — e infelizmente, mais fácil ainda de mitificar erroneamente. Crescemos com esses estereótipos falsos: do cowboy galante (mal sabíamos que no Oeste se matava mesmo era na tocaia e atirando pelas costas), do índio morto em guerra aberta, do valor pessoal diante dos grandes interesses econômicos. Mas mesmo que tudo isso seja falso, há também o outro lado: o do cotidiano criado por gente que, apesar de branca e de fazer parte de um dos mais canalhas processos históricos, tinha também o seu valor pessoal. A história acaba sendo obra de gente que, apesar de branca, era corajosa e arriscava, ali, não apenas suas posses, mas também suas vidas.

O western conta um pedaço dessa história. Deturpa tudo, repito. Mas como cinema, como entretenimento, é absolutamente fantástico. Para algumas pessoas, o western é a própria definição do cinema, porque é apenas nele que pode existir em sua plenitude. E quem pensa assim tem toda a razão.

Fala, memória

Há algum tempo escrevi um post sobre algumas lembranças da TV nos anos 70. Uma delas eram os filmes exibidos em “Disneylândia”, dos quais lembrava nitidamente de alguns, como Child of Glass, visto em 1979.

Mas foi o bocado de gente que também lembrava do filme, muito mais do que eu — incluindo nessas lembranças até uma pequena quadrinha — que me impressionou. E é por causa delas que esse post é daqueles que estão sempre recebendo um novo comentário, normalmente de alguém que vem parar aqui por acaso através do Google.

O post mencionava também um filme específico de que eu lembrava mas sobre o qual não conseguia achar nenhuma informação. Falava de um garoto mimado e um velho negro, náufragos em uma ilha deserta onde o menino, temporariamente cego, aprende a ser gente. Vi esse filme no outono de 80 e desde então não tinha encontrado absolutamente nada sobre ele. Sem lembrar do título ficava difícil encontrar alguma referência.

E é aí que entra a internet.

Uma moça que também havia assistido a esse filme lembrava dos nomes dos personagens, Timothy e Phillip, e deixou um comentário aqui:

Por favor, ajudam-me, a quase 30 anos mais ou menos procuro saber o nome desse filme, e hoje graças a Deus encontrei esse site onde alguem um dia tbm assistiu a esse filme, estou cadastrada em uns 5 ou 6 sites de busca por filmes antigos, e nesse site foi onde a minha esperança voltou a crescer, alguem sabe por favor me dizer o nome do filme do garotinho e do velho que naufragaram numa ilha, lembro-me que ele se chamava Timoty e o garoto Feliph. Ahhhh que tempo bom que naum voltam mais, agradeço a qm possa me ajudar, me mandem e-mail , qqr coisa mas, preciso saber o nome do filme , pois qdo assisti com minha mae(in memoria) eu era uma criancinha de 3 ou 4 anos naum me lembro bem…desde de ja agradeço do fundo do meu coraçao !!!!!!

A partir daí ficou fácil.

O nome do filme é The Cay. Foi feito para a TV em 1974 e é baseado em um livro aparentemente ainda popular no ensino de literatura para meninos americanos de 8 a 11 anos, uma espécie de “Capitão Coragem” misturado com “A Cabana do Pai Tomás” e com molho de “Robinson Crusoé”. Mais impressionante, no entanto, é o fato de ser estrelado por ninguém menos que James Earl Jones com uma carapinha branca artificial.

Mais de 30 anos depois, eu não lembrava mais do filme, e para garantir a integridade de minhas lembranças, boas ou ruins, decidi não assistir a ele. (Mas não consigo deixar de imaginar aquele negão olhando para o menino e dizendo: “Phillip, I am your father.”)

A cada dia as pessoas me surpreendem mais, e de maneira positiva. Em um desses carnavais perdidos de Deus, um sujeito chamado Jota apareceu nesse post procurando por outro filme, com um menino chamado Benjamin que era guiado por um texugo. Lembrei imediatamente da existência desse filme; e lembrei também que foi assistindo a ele que aprendi que existia um animal chamado texugo. (Esse foi fácil de descobrir: The Boy Who Talked to Badgers.) Eu só espero que esse seja um filme que Benjamin aparece caminhando em um trigal.

A verdade é que é esse tipo de coisa que, quase 20 anos depois, ainda me fascina na internet. É o fato de que, graças à colaboração de milhares de desconhecidos, e gente que não espera nenhuma retribuição pelo que oferece aos outros, um mundo inteiro de informação pouco relevante está acessível.

Porque informação digna desse nome a gente sempre achou. Certo, nem sempre tão facilmente — mas as coisas importantes, mesmo, a gente sempre achava em uma enciclopédia, num livro do ano, no Almanaque Abril. O que a internet trouxe de verdadeiramente revolucionário foi a informação pouco significativa, aquelas coisas que parecem não interessar a ninguém, mas das quais um número surpreendentemente grande de pessoas ao redor mundo lembra com carinho. Essas coisas estavam condenadas a desaparecer junto com as memórias de quem as viveu; é a possibilidade de essas pessoas, que antigamente não teriam nenhuma chance de conhecer-se ou de trocar lembranças, se conectarem de alguma forma que faz toda a diferença.

Só depois da internet consegui achar informações sobre alguns dos seriados a que assisti na infância e de que a minha geração já não lembrava. Descobri também que essas lembranças não têm atrativos só para mim. O Edilson, por exemplo, compra DVDs de seriados esdrúxulos como “Manimal” (uma espécie de protótipo melhorzinho de Animal) — e está atrás de alguém que tenha “Os Campeões”. O Maurício não esquece a Linda Carter. Eu também não.

Em qualquer lugar você acha grandes textos sobre a história da TV. Todo mundo escreveu um livro sobre isso. Mas os detalhes, mesmo, só na internet. É aqui que se pode saber onde andam atores dos quais só você parece se lembrar — mas isso apenas porque você ainda pertence a um mundo que já acabou, um mundo ainda não conectado. Aqueles seriados de que ninguém lembrava, como “Joe, o Fugitivo”, de que o Daniel ainda lembra; ou “Shazam”, ou “Ísis”, ou “O Homem do Fundo do Mar”. Sem falar nos desenhos, como os produzidos por DePattie e Freleng e a infinidade de tentativas da Hanna-Barbera que não deram certo. Alguém ainda lembra do desenho do Tarzan, produzido por Norm Prescott e Lou Scheimer, e que estreou no Brasil em 18 de novembro de 1979 (não, não me pergunte como eu lembro dessa data)?

Eu tenho certeza de que ninguém, absolutamente ninguém da minha idade lembra de Esper.

O que é realmente belo na internet é que não importa em que você pense: aqui você vai descobrir que mais gente também assistiu àquilo que marcou a sua infância, e essas pessoas se lembram disso e estão dispostas a compartilhar informações sobre eles. É o caso do Francisco Gomes, que anteontem deixou um comentário me informando que o filme a que me referi no início era o The Cay, e acrescentando algo que eu desconhecia: o filme está disponível no YouTube.

Com a chegada do P2P a coisa melhorou ainda mais. Boa parte dos filmes exibidos na Disneylândia hoje está disponível para download, em algum lugar — de preferência no Pirate Bay. As pessoas podem achar Child of Glass, por exemplo, além de um bocado de filmes antigos exibidos na Disneylândia. É só procurar. Curiosamente é mais fácil achar esse tipo de filme do que alguns clássicos do cinema, o que mostra que nada é capaz de vencer a lembrança afetiva das pessoas. Elas preferem assistir de novo a um filme bobo mas que lhes marcou, por alguma razão. E talvez, no fundo, eu saiba exatamente por quê.

Capitão América

Descobri, numa dessas descobertas tardias que velhos como eu fazem de vez em quanto, alguns sites que disponibilizam revistas antigas escaneadas.

O trabalho realizado pelo Quadradinhos PatópolisOnomatopéia DigitalRapadura Açucarada e Rock & Quadrinhos, entre outros, é inestimável. Escaneando e disponibilizando essas revistas antigas na web, elas realizam um trabalho valoroso e imprescindível. Revistas em quadrinhos já extintas, manuais Disney, a história da Marvel e da DC; tudo isso está lá, disponível gratuitamente, em um serviço público de preservação da memória editorial do país que supera, de longe, o de muitas bibliotecas. Os donos desses blogs e seus colaboradores são abnegados que compartilham com os outros suas coleções, material que gente menor tenta apenas vender em sebos por quaisquer 5 reais. Já perdi a conta do que reencontrei ali — coisas que tinha lido há mais de 30 anos, que tinham sido parte da minha formação, mas que não tinha esquecido totalmente. As pequenas felicidades que esse pessoal possibilita são inestimáveis, e eu gostaria que eles soubessem disso.

Acima de tudo, tudo isso tem um grande valor afetivo para muitas pessoas, e eu certamente estou entre elas. Reencontrar essas revistas, depois de tanto tempo, é algo que me faz mais feliz e mais certo do que fui. Elas atualizam e corrigem minha própria cronologia; me ajudam a me situar novamente no tempo, avivam e refazem minhas memórias.

Foi lá, por exemplo, que reencontrei as revistinhas do Capitão América.

Naqueles primeiros anos da década de 80, quando comprei virtualmente todas as revistas de super-heróis que a editora Abril publicava (eu não gostava da RGE, hoje Globo, por causa do papel muito inferior), o Capitão América era o meu preferido.Tudo começou com ele. Embora eu tivesse comprados outras esporadicamente ao longo dos anos anteriores, foi a Capitão América 20 que comprei num sábado de fevereiro ou março de 1981 porque era a mais barata na banca, e que me fez desenvolver uma paixão por histórias de super-heróis que duraria muitos anos. A Capitão América e a Heróis da TV acabariam, nos anos seguintes, substituindo as revistinhas Disney que eu comprava até então; tantas revistas já não caberiam no meu orçamento e, mais que isso, não caberiam mais na minha idade. Olhando agora, tantos anos depois, representaram um ritual de passagem. Quem diria. Cada um tem o que pode. Gary Grimes tem a Jennifer O’Neill; eu tive Stan Lee e John Buscema. Coitado de mim.

Mas na época isso interessava pouco e eu não sabia que aqueles super-heróis que passei a ler — Capitão América, Homem de Ferro, Surfista Prateado, Thor, Capitão Marvel, Mestre do Kung Fu, Punhos de Ferro, sei lá o que mais — eram o segundo escalão da Marvel. Para mim, isso não interessava — até porque eu já conhecia boa parte deles dos desenhos animados exibidos pela TV Tupi. Mais tarde, em 1983, a Abril conseguiria o creme, que na virada da década estava na RGE, e passaria a publicar as revistas do Homem-Aranha, do Hulk e todos os outros super-heróis. Curiosamente, para mim foi o início do primeiro fim. Em algum momento de 1984 ou 1985 eu deixaria de comprar essas revistas. Voltaria a comprá-las mais tarde, intermitentemente — até recentemente, por sinal —, mas jamais voltaria a ser como antes.

De qualquer forma, durante muitos anos, muito tempo depois de ter abandonado e esquecido suas histórias, eu não entendi por que gostava do Capitão América — e por que, de todos os super-heróis existentes, foi justamente ele a servir de porta de entrada para mim nesse mundo. Havia outros super-heróis por aí, personagens mais adequados e mais bem-sucedidos como o Homem-Aranha — àquela altura com 20 anos de sucesso na vizinhança.

Relendo essas revistas descobri por quê. As histórias eram típicas da Marvel — ou melhor, de Stan Lee: o Capitão América sofria por um romance cheio de mal-entendidos (com uma louraça daquelas), e os dramas pessoais do seu alter ego tinham o mesmo peso das aventuras típicas do herói uniformizado. Mas, principalmente, o Capitão atravessava o drama de viver em uma era que não era a sua. Essa era a essência do seu personagem, e isso o aproximava tanto do Surfista Prateado. A diferença é que o conflito do Surfista era espacial, o estar longe de seu lugar, enquanto o do Capitão era temporal, ele que estava longe de seu tempo.

Claro que isso não era desenvolvido como, talvez, fosse hoje. Lendo essas histórias agora, mais de 30 anos depois, dá para perceber como eram tão mais leves do que o que se publica agora em quadrinhos, quase pueris. Mas ao mesmo tempo — e eu não sei o quanto há de preconceito pessoal aqui, a insistência em achar que “no meu tempo as coisas eram melhores” — elas me parecem mais interessantes, mais simples, mais palatáveis. Os tempos mudaram muito, mas aquilo que passou não perdeu totalmente seu apelo. O Capitão América em 1981 era mais interessante do que hoje. Provavelmente ele só funcionava porque, criança ainda, eu não fazia noção que ele representava. Mais tarde, a dicotomia entre o personagem e o país real levaria à decadência completa do super-herói, e mesmo hoje tenho a impressão de que ele só existe porque o meio-oeste americano ainda tem habitantes.

(As coisas não são assim tão simples e esquemáticas como escrevi aí em cima. Se eu soubesse que essa fase do Capitão América tinha sido uma das campeãs de vendas da Marvel, e que em 2010 seria considerada o quarto melhor momento da Marvel nos anos 70, talvez entendesse melhor as razões da minha paixão repentina e irremediável, e talvez devolvesse um pouquinho de respeito às opiniões e critérios da criança que fui.)

30 anos se passaram. Ao ser revivido por Stan Lee nos anos 60, ele tinha passado 20 anos congelado; hoje, para fazer sentido, teria que ter passado 70. O Capitão América é um personagem desgraçado, e sua maior desgraça não é sequer a passagem do tempo, e sim o país e a bandeira que representa. O tempo o condena, apenas: o seu país o destrói.

Mas isso é o que eu acho hoje. É tão pequeno. Reencontrar essas revistas me lembrou de um tempo em que as coisas eram mais simples e o mundo era tão grande. E isso é bom.

Balada do Andarilho Ramon

É simples.

Os acordes, como eu aprendi há quase 30 anos, são G / Em / G / Em / Am / C / D, repetidos em cada estrofe (e aí você pode, se quiser, brincar um pouco com os acordes de You’ve Got to Hide Your Love Away, D#4 / D / D#9 / D.

A letra é a seguinte:

Balada do Andarilho Ramon
(Braulio Tavares)

Vou lhes falar sobre um amigo
Que tornou-se andarilho
E a sua mãe ainda hoje
Espera a volta desse filho
Que antigamente era tão
Obediente e tão bom.
A sua infância foi cercada
De ternura e de carinho
Tudo fizeram pra que ele
Se tornasse um cordeirinho
Foi batizado na igreja
Com o nome de Ramón.

Todas as noites ao dormir
Fazia sua oração
E aos sete anos de idade
Fez a primeira comunhão.
Velas de cera, terno branco,
Flores de papel crepon.
Foi sempre o melhor aluno
No curso ginasial
E até hoje os professores
Do Colégio Estadual
Inda recordam o talento
E a disciplina de Ramón.

Mas ao chegar os quinze anos
Tudo muda de repente
Pois ninguém sabe o que se passa
Em cuca de adolescente
E haja gíria extravagante,
Barba grande e muito som.
Ele lê livros e jornais
Com uma linguagem esquisita
Passa a sair com moças feias
Que ele diz que são bonitas
Ninguém em casa compreende
O que se passa com Ramón.

O pai acende um charuto,
Traça as cartas do baralho
E diz que o problema do filho
É só falta de trabalho
E esses LPs dos Beatles,
Bob Dylan e Rolling Stones.
Ele esbraveja pela casa,
Diz que a coisa é muito séria.
E que vai falar com um amigo
Oficial da Força Aérea
Que é pra ver se arranja vaga
Pra alistar o seu Ramón.

Mas sua mãe ainda acha
Que são as más companhias
Pois se não fossem os amigos
O seu filho poderia
Ser um bom pai de família
Ser católico e maçom.
Ela ouve nomes esquisitos
Cineclube, diretório
Rock and roll, latinoamérica
E corre pro oratório
Rezando um terço pede a Deus
Que cuide bem do seu Ramón.

O pai rugindo, a mãe chorando,
A casa era um pandemônio
E no fim de sessenta e oito
Foi guilhotinado o sonho
Dos estudantes marselheses
A cantar marchons, marchons.
E então quando foi mil novecentos
E sessenta e nove
Deixou na porta um bilhete
Em que dizia peace and love
E desde então ninguém mais soube
O que foi feito de Ramón.

Me disse um cara que vai sempre
Ao Rio Grande do Sul
Que foi tomar umas cervejas
Lá no bar Danúbio Azul
E viu um cabeludo estranho
Trabalhando de garçom.
Ele sorria e cantava
Enquanto servia as mesas
E enganava o patrão
Quando cobrava as despesas
O cara nunca perguntou,
Mas pensa que era Ramón.

Mas me disseram que um dia
Ele foi visto numa esquina
De um pequeno vilarejo
Lá em Santa Catarina
Onde as mulheres usam anágua,
Espartilho e califon.
E logo ali o idiota
Acabou se apaixonando
Pela filha de um antigo
Imigrante italiano
Que sustenta ainda hoje
Os quatro filhos de Ramón.

Teve também um cabeludo
Que foi visto em Cabedelo
Usando um chapéu de palha
Para esconder o cabelo
E embarcando num navio
Com destino a Hong Kong.
No bolso levava a gaita
E nas costas a mochila
Tinha um sorriso irônico
E a cuca muito tranquila
E só por essa descrição
Eu penso que era Ramón.

Mas me contaram que ele andou
Um certo tempo na Argentina
Lá se casou com uma chilena
E foi pai de uma menina
Que nasceu no dia exato
Do regresso de Perón.
Ele andou nas passeatas
Pintou versos sobre os muros
Mas depois chegou Videla
E os tempos ficaram duros
E nem mesmo a chilena
Tem notícias de Ramón.

Me disseram que um dia
Ele foi preso na fronteira
Quatro guardas o pegaram
Lhe rasparam a cabeleira
E o deixaram vários meses
Na cadeia de Assunción.
Mandou mais de dez bilhetes
Para o cônsul brasileiro
E uma noite foi levado
A passear — com o carcereiro
E quem me diz onde é que fica
A sepultura de Ramón?

A sua mãe ainda o espera
Quer esteja vivo ou morto
O pai diz “pau que nasce torto
Não tem jeito, morre torto”
E o irmão mais novo está viajando,
Mas no Projeto Rondon
Vocês desculpem se a história
Vai ficar inacabada
Não vou dizer se a escolha dele
Estava certa ou errada
Tem os que ficam como eu
E um que parte, que é Ramón.