Hitler no Brasil

Uma senhora de grande imaginação chamada Simoni Renée Guerreiro Dias revelou — certamente com grande perigo para sua própria integridade física — um segredo que forças ocultas tentam esconder de nós reles há mais de 70 anos, junto com a existência de ETs congelados nos porões de Washington. Vi agora no National Enquirer History.com que a dita senhora lançou no início do ano um livro em que afirma que Adolf Hitler morreu no Brasil, aos 95 anos.

O History, citando um autor russo chamado Dimitri Boryslev, diz que Stálin estava “convencido de que Hitler havia escapado. Ele suspeitava de um pacto entre o tirano alemão e as potências ocidentais, que teriam poupado sua vida em troca de conhecimentos de tecnologia bélica.” O que é tão óbvio que chega a ser vergonhoso duvidar: todos sabemos que, perto de Hitler, Von Braun era um estudante de terceiro ano primário.

Segundo a tese, foi assim: um submarino veio para a América do Sul deixando os refugiados — como Mengele e Eichmann — em vários países, mais ou menos como uma van parando de ponto em ponto com o sujeito pendurado na porta gritando; “Rio de Janeiro! Puerto Stroessner! Buenos Aires! Aceitamos vale-transporte e tique-refeição!” “Comboio do Holocausto” seria um bom nome para esse submarino da esperança. Ou, se alguém me perdoa a ironia, “Exodus”.

Sem ler o livro, o que posso intuir é que deve ser especificamente aí que entra a tese da senhora Dias. Segundo ela, assim que deu com os costados no Brasil, Hitler se transformou em um tal de Adolf Leipzig e foi morar em Nossa Senhora do Livramento, em Mato Grosso, como prova a foto ao lado.

Eventuais discrepâncias em sua aparência devem ser relevadas. Leve em consideração a passagem do tempo, a diferença de clima: há um mundo de diferença entre a temperatura amena de Obersalzberg e os 89 graus Celsius do inverno mato-grossense, e deve ter sido isso que fez o Führer repensar sua vida, colocar em xeque seus valores e emergir como uma pessoa melhor, provando que nem todo pau que nasce torto morre torto, que todo mundo no fundo é bom, e que a gente deve continuar a acreditar na humanidade.

Porque vir ao Brasil fez bem a Hitler, e a foto prova isso. Antes racista convicto, aqui se atracou a uma negona de responsa que deve ter ensinado a ele coisas que aquela lambisgoia da Eva Braun, com sua rigidez alemã, jamais poderia; e dizia em seu ouvido “ai, Dodô… ai, Dodô…” Seu nome, segundo o Daily Express, era Cutinga; ninguém pode ser amargo se se deita com uma Cutinga.

Antes antitabagista fanático, aqui se rendeu ao cigarrinho — como não sei de quando é a foto, não posso dizer se é Clássicos, Belmont ou Derby; mas o fato de estar na mão esquerda significa que, além de tudo, Hitler se tornou canhoto, o que prova a sua capacidade inacreditável de mistificação. Os trópicos aumentaram suas orelhas e ele provavelmente terminava a noite com uma cachacinha na bodega, não sem antes derramar o pouquinho do santo para abrir os caminhos.

E aí a gente não pode deixar de admitir que Araripe Júnior tinha razão quando falava na tal “obnubilação tropical”:

Agora, responda-se francamente: nessa constante surmenage, quando os corpos, atrelados a uma imaginação superexcitada, a todo o instante gravitam para o leito, há estilo que resista, há correção que se mantenha?

Mas por mais que eu goste da tese da senhora Dias, por mais que a admire pela coragem quase insana, a verdade é que tenho outra teoria. Está mais para “Meninos do Brasil” que para desesperos de fuga num pinga-pinga submarino. Além disso, estou plenamente convencido de que minha tese faz mais sentido na atualidade, e ajuda a explicar o mundo em que vivo.

Todos sabemos que a ciência alemã era uma das mais avançadas do mundo aquele momento. Todos sabemos também que Hitler era chegado numas macumbagens, numas coisas de ocultismo.

Graças a uma farta documentação fotográfica, hoje posso afirmar que, com a ajuda de seus cientistas e de seus magos, descobridores da conexão graálica entre ciência e sobrenatural, Hitler digitalizou completamente a sua mente, tornando-a imortal. Mandou queimarem seu corpo para todos acharem que ele estava morto: aquele churrasquinho de chucrute que os soviéticos encontraram era mesmo de Adolf. Mas a sua essência estava mais viva do que nunca, certamente mais viva que os judeus torrados em Auschwitz.

Hitler não fez isso à toa. Antes de todo mundo, ele percebeu para onde o mundo seguia. Anteviu o mundo hiperconectado do século XXI. Hoje, Hitler está completamente interligado à rede elétrica mundial e à internet, se multiplicando a cada clique numa página do MBL e a cada acendimento de uma lâmpada; e basta olhar em volta de você, basta ver o que as pessoas andam dizendo e pensando para entender que a minha tese este correta: só isso pode explicar o mundo em que vivemos.

Hitler hoje é uma tomada, é milhares de tomadas, talvez milhões, e está mais ativo do que nunca.

O tempo que passa

Da primeira vez que fui a Paris, décadas atrás, eu olhava para os velhinhos com quem cruzava na rua, alguns deles sobraçando baguetes, outros com aquele indefectível boné coroando um rosto curtido pelo tempo, e pensava: esse sujeito atravessou a II Guerra, aquele talvez tenha lutado na Resistência.

Depois os velhinhos começaram a rarear. Ou melhor, as suas histórias começaram a rarear.

Agora, eu olhava para os velhinhos e no máximo podia pensar: esse aí viu as barricadas de 68.

O passado não é mais como era antigamente.

Cinderela 77

Imagino que um bocado de gente já tenha visto isso, o último capítulo de “Cinderela 77”, uma novela da Tupi exibida em — surpresa! — 1977. Mas não custa postar aqui.

(É a maravilha da internet, especificamente do YouTube. A maior parte das gentes louva o link com o futuro que essas coisas de internet propiciam; eu sou grato pela chance de acertar as contas com o passado. De repente, um mundo de informações que pareciam perdidas para sempre no último grotão de minha memória reaparece aqui. Ninguém jamais vai saber o quanto sou grato ao YouTube por essas coisas. Eu vi capítulos dessa novela nessa época. Odiava novelas e desprezava quaisquer coisas associadas a elas — mal-estar que o tempo e a velhice destruíram, substituindo-as por uma condescendência extemporânea; mas lembro do robô que falava “PT saudações” [as gerações mais novas imaginarão que ele se referia ao Partido dos Trabalhadores e não a telegramas, pobres gerações ignorantes de um passado inútil] e de Sandoval. Eu sempre gostei dos vilões.)

Olhando agora, em retrospecto, fico impressionado com o uso da metalinguagem nessa novela.

Nos anos 70, a Tupi era uma empresa que respondia pelos erros de julgamento (e familiares) de Assis Chateaubriand e estava condenada ao fim. Reclamem o quanto quiserem, apontem as teorias conspiracionistas que desejarem: a verdade é que Figueiredo só apressou o desenlace inevitável. Ela mal pagava seus funcionários, se pagava. As condições técnicas eram terríveis. A sensação de fim cada vez mais próximo era inevitável, apenas contrabalançada pela fé na força de sua história.

Em diversos lugres vejo pessoas lembrando dos bons tempos da Tupi, muito parecidas com as que lamentam o fim da PanAir. A verdade é que tudo aquilo era heróico, sim, mas também era trágico. Conheço bem o espírito de improviso que fez parte do universo da TV durante muito tempo, e acho que ele só é bonito em retrospecto. Imagino quantos comerciais não foram editados clandestinamente na TV Tupi, quando o jabá era praticamente institucionalizado. Imagino o clima de “cada um por si e Deus que se foda” que a situação decadente da TV propiciava.

Mas quando vejo a liberdade criativa que era possível na Tupi, tudo isso acaba parecendo valer a pena.

A Tupi já tinha inventado a telenovela moderna com “Beto Rockefeller”, quase 10 anos antes. Há alguns capítulos disponíveis no YouTube, tirados do site da Cinemateca Brasileira, e eles são fascinantes. A linguagem se assemelha, em vários momentos, à do Cinema Novo, e imagino que se deva à mesma falta de dinheiro e de tecnologia. Os atores trazem muitas vezes os vícios do teatro, as marcações rígidas, o apego excessivo aos rr ditos corrrrretamente. Mas conseguem passar a emoção necessária, ao contrário dos atores despreparados que se vê nas novelas de hoje em dia.

É por tudo isso que fico impressionado com a liberdade criativa de que uma novela como “Cinderela 77” pôde desfrutar. Uma novela feita para o público do início da noite com resultado é fascinante, e quem tem alguma familiaridade com as tragédias gregas vai encontrar um bocado de pontos de convergência. E depois, se não for pedir demais, compare com as novelas pasteurizadas e engessadas da Globo hoje.

Isso não quer dizer que eu ache que a Globo destruiu a criatividade na TV. Pelo contrário. Ao contrário de outros comunistas velhos de guerra, tenho uma admiração sem tamanho pela tal Vênus Platinada. Mas para mim, pessoalmente, rever essa novela significa rever padrões estéticos que definiram a base do meu modo de ver TV, e que já foram superados há mais tempo do que ouso contar. Mas representa acima de tudo um deslumbramento com o talento, a ousadia e o amor que você vê em cada frame. Não se faz mais TV aberta como antigamente.

(Este post é um oferecimento da Associação dos Leitores Revoltados com a Cagada na Cabeça de Rafael Naqueles que Falam que “Minha Infância Foi Melhor Que a Sua”.)

“Dona Olga não tirou essa fotografia em vão.”

Eis uma confissão desnecessária: eu estou longe, muito longe de ser um sujeito modesto. Não tenho culpa, foi Deus que me fez assim.

Mas sempre que leio esses anúncios, tenho a certeza de que precisaria comer muito feijão até ser um redator tão bom.

(Outros três títulos dessa mesma campanha: “Não trabalha na Prefeitura, mas já tapou muito buraco por aí”; “Já passou dos 30. Mas podem vir quente que ela está fervendo.”; e “Roubaram a mulher do Romeu. Juro por Deus que não fui eu”.)

Essa campanha tem quase 40 anos, e foi veiculada em 1978 pela Publivendas, em Salvador. São os textos que me fascinam, que me impressionam além do normal.

São praticamente crônicas da vida comum. Contam detalhes da vida do ouvinte de rádio que mesmo hoje, quatro décadas depois, ainda são verdadeiros. É uma campanha absolutamentebrilhante.

E ela acabou participando de um episódio curioso na minha vida.

Olhando para trás, é assustador que esse episódio já tenha um quarto de século — fazendo aniversário por esses dias, se já não fez.

Eu trabalhava em uma agência de Aracaju e estava fazendo uma campanha para uma rádio local. A primeira campanha que fiz ficou legal, mas foi rejeitada pelo dono da agência.

Fiz uma segunda. E essa ficou muito boa. Leve, engraçada, abrangia os públicos-alvo da rádio. Brincava com nomes locais famosos e tentava se aproximar do universo dos ouvintes. Ela foi rejeitada também.

E aí eu cansei. Tá certo, vamos brincar.

Datilografei os títulos dessa campanha e levei para o sujeito que tomava as decisões. Joguei o melhor papo de vendedor que eu tinha — o que não devia ser grande coisa, porque se eu vendesse bem não seria redator. De novo: “Não tá bom.”

Era a minha deixa.

“Olha, essa campanha ganhou não apenas o Colunistas de melhor campanha de jornal, mas também o Melhores da Década. Mas se você não gostou, paciência. Eles não entendem nada mesmo.”

Pedi demissão uma semana depois.

(A propósito, o título deste post é a legenda do anúncio da dona Olga.)

Sítio do Picapau Amarelo

Uns anos atrás surgiu uma dessas polêmicas que adquirem mais importância graças à caixa de ressonância das redes sociais. Um professor tentou proibir a reedição de “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, por causa do conteúdo racista que ele colocava na boca da Emília; mais tarde, o Conselho Nacional de Educação desaconselhou o seu uso nas escolas, a não ser que fosse “acompanhado de explicações sobre o seu conteúdo” — o que, cá para nós, equivale a uma proibição de fato: é esperar muito da maioria dos professores deste país que eles discutam algo um pouco mais profundamente.

Na quiproquó que se seguiu, o mais chato foram os argumentos ad hominem. Cartas pessoais de Lobato, em que ele defendia a eugenia, apareceram na mídia. É um fenômeno antigo, mas que tem se agravado em tempos de redes sociais e de matérias como “Caetano estaciona no Leblon”: toda obra literária é necessariamente o retrato cuspido e escarrado do homem. Lobato era racista, o que ninguém jamais pensaria em negar; logo, sua obra deveria ser proibida. Infeliz ou felizmente, seus livros eram muito maiores que o racismo, e é justamente isso que faz dele um grande escritor. Da mesma forma, o conservadoríssimo Honoré de Balzac conseguiu gravar um retrato absoluto da França na primeira metade do século XIX, bom a ponto de um tal de Karl Marx (ou Engels? Eu não lembro) dizer que aprendeu mais sobre a França da primeira metade do século XIX com ele do que nos livros de história. Por isso, o mesmo sujeito que colocava nos lábios de Dona Benta afirmações justas sobre o respeito às pessoas e ao conhecimento passou a ser julgado unicamente pelas referências irritadas e canalhas da Emília aos “beiços da tia Nastácia”.

Não escrevi sobre isso na época; deveria ter escrito. Porque eu fui criado com Monteiro Lobato. Primeiro com o seriado da Globo e da TV Cultura, depois com os livros do Sítio do Picapau Amarelo, aquelas edições ainda com as ilustrações de André Le Blanc.

É possível que eu não tenha escrito sobre isso, numa época em que este blog ainda podia ser considerado ativo, porque não queria me ocupar com as discussões que se seguiriam, ou mesmo eventuais acusações de racismo que iriam aparecer. Então eu teria que responder que dificilmente sou racista — ultimamente é difícil dizer cabalmente que não se é racista a não ser que você se mostre disposto a se enquadrar num discurso específico, com termos ainda mais específicos, então eu acharia mais prudente deixar espaço para a dúvida e tascaria o “dificilmente” redentor, e se necessário faria um daqueles mea culpas hipócritas que nos dias de hoje fazem as vezes da autocrítica soviética da época do grande camarada.

Mas em minha defesa, caso se chegasse ao veredito de que eu sou racista-mas-racista-mesmo, eu poderia dizer que não foi o Sítio que me fez assim, não foi o Sítio que nunca me tratou com amor (eu e a Lílian queríamos ser como uma criança, cheias de esperança e felizes). Ao contrário, com ele aprendi a respeitar os talentos da Tia Nastácia, e a sabedoria popular do tio Barnabé. Com Dona Benta, por sua vez, aprendi a importância da racionalidade e do bom senso. Com a própria Emília, mais do que os comentários disparatados de sempre, alguns dos quais nitidamente racistas, aprendi que era bom manter a minha curiosidade acerca do mundo que me rodeava, e que era bom questionar o estabelecido. Eu só não aprendi porra nenhuma com o Quindim. Mas acho que ninguém aprendeu.

O que me fez racista foi o rebolar da neguinha de carne tão dura andando por uma quebrada da Federação, ah, danada, ela deslizava pela rua, ereta, os seios apontando para a torre da TV Aratu, e ela caminhava orgulhosa, sem dar nem tchuns aos bestas que tentavam controlar a saliva que lhes escorria pela boca, pelo queixo, que molhava o seu olhar assombrado; foi aquele rebolar que me fez usar esses termos racistas-mas-racistas-mesmo. Peço perdão por isso.

Para mim, diante de uma escolha entre o valor cultural e didático dos livros do Sítio e as posturas racistas da Emília, que eu posso identificar (ao contrário dos pobres alunos que não parecem ter a quem recorrer), não há escolha possível. Sem falar, claro, na estupidez que é proibir qualquer livro — seja “Caçadas de Pedrinho”, Mein Kampf ou a Bíblia.

O problema é que acho muito improvável que um livro pudesse transformar uma pessoa em racista. Ainda menos os livros de Lobato, escritos nos anos 30. O conteúdo que hoje salta aos olhos como racista era moeda corrente em sua época; estava dentro da normalidade de seu tempo, e por essa razão tudo isso que hoje incomoda mesmo a quem, como eu, normalmente estranha os termos utilizados, simplesmente passava batido, assim como a expressão “preto de alma branca” podia parecer elogio 40 anos atrás.

Acima de tudo, a estupidez de sequer pensar em deixar de oferecer a crianças e adolescentes o universo de Monteiro Lobato porque simplesmente não se quer discutir em sala de aula a questão do racismo, ir além de um “racismo ruim, tolerância bom” orwelliano, nem colocar as declarações da Emília em perspectiva histórica — o que em si representa uma chance rara de mostrar a maneira muitas vezes imperceptível como o preconceito pode ser normal em um tempo e inaceitável em outro —, é mais uma prova não apenas do desprezo como se vê a capacidade de percepção e compreensão das crianças, mas principalmente da falência do sistema educacional brasileiro. (A outra sou eu, mas isso é assunto para outra hora.)

Muito mais que isso, mais do que essa discussão que apenas reflete um tempo em que um certo obscurantismo de boas intenções parece estar se tornando um valor universal, me dói saber que catorze contos ou novelas do Sítio só foram publicados na Argentina e permanecem inéditos no Brasil, dos quais um é um tal “Ciência do Visconde” — de três outros ninguém sabe sequer o nome. Em vez de polêmicas vazias, a academia bem que podia tentar encontrar essas histórias nas bibliotecas hermanas. Faria mais bem à cultura nacional do que com essas discussões estéreis. E os senhores acadêmicos dariam mais sentido ao tempo que gastam na universidade e aos salários que recebem.

Mas eu sou um otimista, e a cada dia tenho mais certeza dessa característica antes insuspeita em mim. Não gosto dos exageros dos tempos atuais, mas acredito que do choque de concepções que dão as tônicas destes tempos, que dou a sorte de presenciar, vai surgir uma síntese que expurgue esses exageros e absorva os novos valores sem precisar obliterar absolutamente o passado, nem abdicar completamente da inteligência.

Pensando melhor, não; “acreditar” é demais. Então me deixe substituir esse verbo por “esperar”. Confiar e esperar, pedia o Conde de Monte Cristo quando eu era pequeno.

***

Mas no fundo o problema talvez seja outro. Deixa eu admitir: o problema todo é que o Sítio é um assunto pessoal para mim.

A partir de 1977, e principalmente em 1978, o Sítio do Picapau Amarelo foi parte do cotidiano de todos nós — do meu, ao menos. Os fins de tarde, depois que tínhamos amealhado os cortes, hematomas e arranhões do dia, tinham que ser passados diante da TV, assistindo às aventuras do Pedrinho, Narizinho e Emília.

Há uns poucos anos encontrei no YouTube o primeiro capítulo do Sítio. Fiquei impressionado com a sua qualidade didática, com a modernidade (para sua época) de um produto que conseguia juntar muito bem educação e entretenimento. Mas para ser objetivo, seu maior mérito foi dirimir uma antiga dúvida minha: durante quase 40 anos achei que não tinha visto o primeiro capítulo. Na verdade, vi; mas em vez de assistir a ele no dia da estreia, à tarde, quando provavelmente estava na escola, vi a reprise na manhã seguinte. É graças a isso que sei exatamente onde eu estava na manhã do dia 8 de março de 1977: em casa, assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo.

Estranhei, em 1978, a mudança da Emília; Dirce Migliaccio saiu e foi substituída por Reny de Oliveira. Eu não gostava de mudanças assim. Hoje, olhando para trás, Reny sempre foi “a” Emília, ela só não tinha entrado ainda no Sítio. E foi justamente naquele ano que o Sítio deu um salto enorme de qualidade. Imagino que a experiência acumulada no ano anterior tenha possibilitado esses avanços narrativos. O resultado foram grandes episódios, como “O Minotauro”, hoje disponível no YouTube, e “Os Piratas do Capitão Gancho”.

Dando uma olhada na lista de episódios do Sítio do Picapau Amarelo, percebo que para mim ele começou a perder a graça já a partir de 1979. “Davi e Golias” foi uma das coisas mais chatas a que assisti, com Jonas Bloch fazendo um pobre Davi sofredor. Provavelmente não eram roteiros ruins; talvez fosse eu que estava crescendo.

Mas o Sítio acabou definitivamente, para mim, quando Júlio César, que fazia o papel de Pedrinho, e Rosana Garcia, a Narizinho, foram substituídos porque haviam crescido demais, estavam velhos demais, no final de 1980. Acabava ali um pedaço importante da minha infância; outros iriam acabar nos poucos anos seguintes.

(É engraçado assistir aos episódios hoje. Rosana Garcia era uma atriz medíocre, mas Júlio César é impressionante em sua naturalidade. Era um ator nato que infelizmente desistiu da carreira.)

(N. do A.: Parei agora para tentar entender as minhas paixões. Eu era apaixonado simultaneamente pela Rosana Garcia, pela Lynda Carter [que fazia a Mulher Maravilha], pela Paula Saldanha e por uma menina que fazia um comercial dos biscoitos Tupy com uma versão de “Ciranda, Cirandinha”. Eu tinha 6, 8 anos. Rapaz, eu tinha problemas.)

Tokusatsus

E daí que eu passei a tarde assistindo a tokusatsus. Escrevo tokusatsu com gosto, porque tokusatsu é palavra que aprendi hoje: tokusatsu, tokusatsu, e me esforço em pronunciar a palavra estranha com aquele jeito gutural que não diferencia paroxítona de oxítona, um jeito agressivo de japonês rico que se quer descendente de samurai: tokusatsu. Vou repetir tokusatsu até cansar.

Tokusatsu.

Tokusatsus são aqueles filmes com monstros e efeitos especiais do tempo da TV a lenha — o meu tempo. Parecem toscos hoje. Mas esses meninos de hoje estão mal-acostumados com essas coisas de CGI barata que em todo canto se acha, que nem bolacha, mulher e patrão. Para quem foi menino quando eu fui, eles eram fascinantes.

Quase 40 anos atrás eu assistia a esses trecos todo o tempo. Obviamente não sabia que os tokusatsus tinham sido uma febre no Japão, como descobri hoje. Começaram com o Nacional Kid da Panasonic, que não fez muito sucesso naquele tempo e lugar. E então, de uma hora para outra, na metade dos anos 60 eles começaram a pipocar: Ultraman, Ultraseven, Robô Gigante, Vingadores do Espaço e o mais elusivo de todos, Ésper (criado pela concorrente da Panasonic, a Toshiba). Nos anos 70 eles eram parte da programação da TV Tupi — que, para crianças, era muito melhor que a Globo.

Mas só hoje, assistindo a episódios de Vingadores do Espaço, Ultraman, Ultraseven e Ésper, eu entendi por que esses filmes apareceram.

Pode-se datar a origem do tokusatsu no dia em que o almirante Matthew Perry usou seus canhões para obrigar o Japão a abrir seus portos aos Estados Unidos, pondo fim a séculos de isolacionismo e dando início a uma cadeia de acontecimentos e sangue ruim que desembocou no ataque japonês a Pearl Harbor, quase 90 anos depois. Mas eles só existem mesmo por causa da ocupação americana capitaneada pelo general MacArthur.

Na metade dos anos 60, fazia menos de 15 anos que os Estados Unidos Aliados tinham assinado o tratado de São Francisco, dando início ao fim da ocupação do Japão, um país naturalmente isolacionista, orgulhoso, e extremamente consciente de valores como honra — onde mais o seppuku poderia nascer? A humilhação de se ver, pela primeira vez em sua história milenar, um país ocupado ainda estava muito viva no subconsciente dos japoneses; aquele era um país mais acostumado a cometer atrocidades no país dos outros. Esse era o seu grande medo.

Os tokusatsus são a resposta perfeita ao orgulho japonês. Suas sinopses são sempre as mesmas: alienígenas malvados, como antes os americanos, tentam invadir o Japão; mas não vão conseguir, porque os japoneses são carne de pescoço. É sempre essa a briga: a defesa da Terra, e a Terra não pode ser mais que a terra japonesa. É verdade que esse tipo de resistência patriótica é um valor universal; mas para que ele se consolide na psique de um povo e encontre o seu caminho para o mainstream televisivo é preciso um trauma específico, e nesse caso foram os samangos americanos estuprando ou comprando milhares de japonesas e fazendo o possível para destruir sua cultura e sua memória.

Se Mishima fosse um pouco mais novo teria assistido fascinado a esses filmes.

Mas entender a gênese dos tokusatsus é apenas parte da diversão, e uma parte pequena. Rever esses filmes depois de décadas é uma sensação muito boa, porque me ajuda a entender a criança que fui e, talvez, com boa vontade, talvez sentir de novo aquilo que senti quando assisti, pela primeira vez, ao Ultraman dando uns golpes safados de caratê num monstro que, com sorte, pareceria o Godzilla.

Enquanto somos crianças qualquer coisa serve, qualquer coisa fascina e nos coloca diante do novo. É essa a graça de ser criança. Mas aí você cresce e vira isso que é hoje. Agora é impressionante ver a mediocridade da produção dos Vingadores do Espaço, por exemplo. É muito ruim. Ultraman, por sua vez, impressiona pela qualidade, se nos lembrarmos que eram filmes feitos para a TV, em prazo apertado, e em 1966.

Em todos eles, no entanto, há roteiros com aquela qualidade básica de oferecer às crianças os arquétipos com que elas se identificam. Não são ruins. Além de colocar crianças como agentes heróicos do futuro, condição sine qua non para que meninos se sentem no chão diante da TV em preto e branco com olhos atentos, equacionam tragédias e valores razoáveis. Simplórios, e mal escritos quase sempre; mas suficientes.

É engraçado descobrir agora que nunca vimos as versões japonesas. Não acho que houvesse muitos tradutores de japonês na TV Tupi. Em vez disso, nossas traduções eram feitas sempre a partir das versões americanas, e por isso “Vingadores do Espaço” não se chama “Embaixador Magma”, e Goa no Brasil virou Rodak, como na gringolândia.

Ésper, por sua vez, é uma das razões pelas quais sou grato à internet. Durante anos, não encontrei ninguém que tivesse visto o seriado, ninguém que sequer lembrasse que ele havia existido. Só com a internet pude ter a certeza de que não estava louco, inventando coisas, ou que o pipoqueiro da porta do colégio não tinha colocado LSD na minha pipoca. Que eu realmente tinha assistido a um seriado com um menino que trazia um jetpack nas costas e tinha um passarinho mecânico que às vezes aparecia em seu ombro — Oscar Wilde tem um conto que fala de um rouxinol mecânico, conto que li quando criança. Esse rouxinol, para mim, sempre foi igualzinho a Shikar, o tal passarinho.

Talvez seja por causa desse passarinho que, em vez de assistir a “Era Uma Vez em Tóquio” pela enésima vez nesta tarde de domingo, fiquei assistindo a Ultraman. Não me arrependo nem um pouco.

Porto da Barra

Só agora, mais de quatro décadas depois, eu descubro que o meu amor único, ciumento, exclusivista, neurótico-psicótico, é praga de mãe.

Então eu digo que as velhinhas têm razão: praga de mãe pega, pega de verdade, e lhe condena aos seus desejos e lhe dá a régua e o compasso com o qual você vai medir o mundo nos dias bons e ruins que se seguirão depois.

Foi assim que saí do Espanhol, onde sofri a primeira das tantas derrotas na minha vida e me trouxeram a este mundo. Acho que àquela altura o Carnaval que a cidade tinha feito para me receber já tinha acabado, porque demorei para sair do hospital. No táxi que me levaria ao apartamento na 8 de Dezembro, minha mãe me ergueu e mostrou para mim aquela nesguinha de praia entre dois fortes portugueses: “Olha, Rafael, essa vai ser a sua praia”. Minha avó Celeste, assustada, mandou que ela tivesse cuidado comigo, mas minha mãe sabia com quem estava falando, e de quem estava falando, e do que estava falando. Naquele dia de fevereiro ela me deu a posse daquela praia. Ela ainda é minha.

Não importa quanto tempo eu fique longe. O Porto da Barra é um daqueles poucos lugares onde lembro quem é Rafael Galvão. É a praia que tive inteira: perto do forte de São Diogo quando eu ia com Romário — e Tony, e Mário, e Magno, e onde Romário me ensinou a nadar —, no meio quando ia com meu pai porque ali havia um bar, mas principalmente perto do forte de Santa Maria quando ia com minha mãe, e via os barcos chegando para me darem manjubinhas com as quais eu criaria brincadeiras dignas de “Tubarão” — e um dia até mesmo uma cabeça de tubarão. No quebra-mar de onde, quando a idade se fez adequada e um vislumbre de coragem apareceu, passei a mergulhar. Na areia onde catei vidros do mar e fiz os meus primeiros castelos e recebi as primeiras lições sobre a efemeridade da vida, numa das tantas ondas que me jogaram no fundo e de novo na superfície e de novo no fundo, num rocambolear que durante aquele átimo sempre parecia infinito.

O amor à praia do Porto da Barra me fez cego para as belezas eventuais de outras praias. O mar cristalino e morno de Maceió, as águas geladas de Ipanema, o azul único do Mediterrâneo e do Egeu? Tudo tão pequeno, meu Deus, tudo tão menor que aquela praia onde as ondas batem com a cadência de uma canção de Caymmi.

Talvez sejam elas, as ondas. Talvez mais que tudo, mais que a água verde e o cheiro de maresia: as ondas. O Porto tem a calma do espírito da Bahia, a certeza de que o tempo é seu, e de que ali você pode enganar a vida. A praia dos velhinhos que a amam quase tanto quanto eu, das crianças que aprendem ali a perder o medo das ondas, das moças que ali se fazem mais bonitas para os homens que amam, ou daqueles que podem vir a amar. A praia daqueles que, ao contrário de mim, a têm como amante certa, que ainda têm a certeza de que amanhã ela ainda estará lá.

Nunca pude deixar de imaginar que deve ser por isso que, no dia dois de fevereiro, as pessoas vão para uma praia tão mais feia, coitada, dar presentes que Iemanjá quase sempre recusa; porque elas sabem que o Porto da Barra lhes é interditada, é a praia de Oxum. A Oxum que, como Iemanjá, oferece o seu regaço aos seus filhos, e isso é o máximo que o Rio Vermelho pode oferecer; mas que também oferece a beleza, a cadência das suas ondas como quadris que se movem apenas para você, com você, e junto ao espelho ela traz a sua espada.

Pode reparar. Na maior parte das praias do mundo o barulho das ondas é um rimbombar incessante, bruto, um big bang sem começo nem fim que nocauteia os sentidos e se perde na vulgaridade da oferta excessiva. Nas madrugadas caladas de Aracaju escuto da minha varando o troar constante das praias da capital e da Barra dos Coqueiros — diferentes apenas no nome, porque são a mesma praia, não há diferença.

Mas as ondas que batem na praia do Porto da Barra falam com a delicadeza da mulher que ama sem condições, sussurram no seu ouvido, e você já não as ouve 50, 100 metros depois. Elas dizem a você que tudo podem lhe dar, mas apenas se você não se afastar; o Porto da Barra é a praia de Oxum.

Por tudo isso olho para aquelas pessoas que usam a minha praia, sem a decência de pedir a minha permissão, com a condescendência de um senhor feudal magnânimo. Eles não sabem, mas a praia é minha. Podem se deitar em seu colo de areia, podem receber o abraço confortante de suas águas verdes. Eu não ligo. Você não sabe, mas a praia é minha. E, lá no fundo, eu sei que ela sabe disso.

Salvador, em algum lugar do passado

Não sei muito sobre o filme abaixo. Encontrei em um grupo do Facebook, que tampouco sabia alguma coisa sobre ele.

O que sei é que ele mostra uma Salvador que ainda existe e que já não existe mais, mas da qual lembro perfeitamente: o Jardim de Alah com barracas de camping; a região do Iguatemi, ainda em sua primeira encarnação, ainda vazia; a Rodoviária então nova, e daqui a pouco substituída por outra em Águas Claras; o Dique, um parque que mais ou menos ainda existe às suas margens, camelôs no comércio vendendo antiguidades nas calçadas, o Plano Inclinado.

As baianas que ainda não tinham sido contaminadas pelo vírus evangélico e ainda não vendiam “bolinhos de Jesus”; o monstrengo que conhecem por Prefeitura de Salvador ainda não existia; e as putas ainda faziam ponto nos bregas da Ladeira da Montanha, embaixo do Elevador Lacerda

Estão ali a Ribeira, a feira de São Joaquim, o Bonfim ainda sem o costume estranho de amarrar fitinhas em suas grades, o Humaitá e Mont Serrat.

O Parque da Cidade ainda tinha os tipis e os iglus estranhos em fibra de vidro que deveriam ser brinquedos infantis, mas eram utilizados basicamente como banheiro — assim como o labirinto e o castelo que não aparecem aí.

Estão ali também o Iate das gentes chiques, o Pelourinho de praxe antes da reforma de ACM, Santo Antônio, a Acalanto, a Arembepe longe dos meus domínios, Itapuã e Pedra do Sal, o Abaeté e a mais bela entrada de aeroporto do mundo. O Centro Administrativo, o Pestana que ainda se chamava Méridien visto ao longe, os hotéis de Ondina que ainda tinha as piscinas artificiais de água salgada — o Bahia Praia Hotel que nem sei se ainda está lá.

Ali também estão os sinais da destruição irreversível. Eis ali um casarão da Vitória funcionando como loja de material de demolição, abastecida pela destruição criminosa das mansões que ainda existiam naquela rua em grande número, mas sumiam a cada dia. Essas lojas floresceriam ao longo dos anos 80, até que não houvessem mais casarões a serem destruídos.

Acima de tudo ali está o Porto da Barra ainda com saveiros. São dois momentos distintos, um fim de tarde com a maré alta e um dia normal de praia. E quero acreditar que, em meio àquelas pessoas, eu estou bem ali.

O Jesus histórico

Sempre que vejo alguém falando do “Jesus Histórico”, tenho a certeza de estar diante de um quase picareta. Não existe Jesus histórico fora do Novo Testamento. As poucas menções contemporâneas, ou quase, feitas a Jesus que existem fora dos evangelhos, canônicos e apócrifos, e das tantas epístolas, atos e etc. são, no mínimo, questionáveis. No máximo fraudes, mesmo.

Talvez por isso tanta gente levante a possibilidade de que Jesus jamais existiu; que ele é uma espécie de Robin Hood, uma lenda formada a partir da combinação de várias pessoas diferentes, separadas no tempo e no espaço.

A Salon publicou uma pequena lista de razões pelas quais Jesus não deve ter existido. São válidas. Mas elas não provam que Jesus não existiu: apenas mostram que é impossível escrever algo honesto sobre o Jesus histórico.

A razão 1 — a inexistência de fontes seculares que comprovem a existência de Jesus — não quer dizer muita coisa. Não é porque não há citações das fontes oficiais que ele não existiu: a árvore cai na floresta mesmo que você não veja. Na verdade, seria até improvável haver tais citações naquele momento.

Pouca gente conhece o episódio de Zé Lourenço e o Caldeirão. Se mora fora do Nordeste, menos ainda. Ao contrário de eventos semelhantes como Canudos e o Contestado, o Caldeirão ficou pouco conhecido fora do Ceará. No entanto, foi a primeira vez em que o Estado brasileiro utilizou bombardeio aéreo contra sua própria  população civil.

Se esse nível de desconhecimento acontecia ainda em pleno século XX, não é difícil imaginar como os eventos trágicos, e relativamente comuns em uma província perdida num cudemundo do Império Romano, podiam não interessar aos historiadores romanos. A condenação de um pregador judeu qualquer simplesmente não era importante na época; como comparar às dezenas de seguidores de Spartacus crucificados ao longo da Via Ápia? Mesmo que a notícia chegasse aos centros de poder, seria vista como mais uma entre tantas crucificações de fanáticos religiosos. O estranhamento sobre a ausência de Jesus dos anais só é possível quando se dá a ele uma importância que só viria posteriormente. É mais ou menos como o Velvet Underground e sua influência bem tardia.

A segunda razão (os primeiros escritos do Novo Testamento desconhecem detalhes demais da vida de Jesus) é muito mais complexa, e contém a principal verdade desse texto: Jesus Cristo, mais que causa, é efeito do cristianismo.

Parece óbvio que a maior parte dos elementos que constituem a mitologia de Jesus — a imaculada conceição, a ressurreição, a fuga para o Egito, o hímen complacente de Maria — foram definidos aos poucos, com o passar do tempo, como forma de caracterizar o caráter divino de Jesus e adequar a narrativa ao zeitgeist místico de sua época. Ninguém mente mais, para si e para os outros, que religiosos.

Mas o principal argumento do artigo, a ausência dos aspectos biográficos de Jesus nas epístolas de Paulo como evidência de sua inexistência, é muito frágil. O problema é que o fato de os evangelhos sobreviventes só terem sido escritos algum tempo depois não impede que a história fosse contada desde antes de Jesus cair nas mãos de Pilatos. Além disso, é preciso lembrar que Paulo falava a comunidades cristãs, que presumivelmente já conheciam a história de Jesus. Paulo era um pregador e um doutrinador. Um livro de doutrina jurídica não costuma perder tempo explicando a canalhice de um Gilmar Mendes.

A terceira razão apresentada, a de que os livros do Novo Testamento não pretendem ser relatos em primeira mão, é mais um problema para os historiadores do que para a existência ou não do nazareno. Escritos décadas após a morte do sujeito e baseados na tradição oral de uma população majoritariamente analfabeta, ela acaba se misturando com a quarta, a de que os evangelhos se contradizem entre si, e que também é frágil. As diferenças entre eles, afinal, não são tão grandes assim, se devendo principalmente aos ruídos na transmissão oral. Se não fosse a existência de tantos evangelhos apócrifos seria até admirável que sejam tão semelhantes (não, é mentira: aparentemente uns basearam-se nos outros); mas o fato é que essa é a narrativa selecionada pela Igreja, em um tempo em que a própria ideia de historiografia era bem diferente.

E finalmente a quinta: o tal Jesus histórico. O fato é que quem escreve livros sobre isso poderia muito bem escrever sobre o Abominável Homem das Neves ou sobre o Eldorado ou sobre a Fonte da Juventude, daria no mesmo. Esses autores fazem, no mínimo, um grande exercício de imaginação e conjecturas para justificar o que certamente já é sua tese inicial, juntando fragmentos históricos reais para validar, de alguma forma, a sua própria ideia de Jesus. Por isso, de acordo com o livro que você ler, o Jesus resultante pode ser um rabino, um zelote, um fariseu, um pacifista — ele é essencialmente o Jesus que você constrói, seu alter ego.

Sempre tive a impressão de que Yeshua ben Yosef, se existiu, era pouco mais que um maluco pregando algum tipo de mensagem apocalíptica nas praças da Judeia. Tempos de ocupação política e militar como aqueles são extremamente propícios para isso, e ele não devia ser o único. Provavelmente não era o mais influente ou respeitado enquanto vivo: o fato de ele precisar da bênção de João Batista para se legitimar indica que aquele que transformaram em seu primo era a verdadeira grande liderança religiosa popular da época, naquele espaço específico. Além disso, Josefo fala muito mais de João do que de Jesus.

E em verdade, em verdade vos digo: por alguma razão o sujeito foi crucificado. E as pessoas acharam injusta a crucificação, e Jesus se tornou maior na morte do que tinha sido em vida, e o seu nome circulou de boa em boca, e catalisou um sentimento de mal-estar e de inquietação que as gentes viviam naqueles dias. E aos poucos a sua lenda foi se criando; e novos milagres foram inventados, e a sua mensagem foi se consolidando, adaptada aos tempos e aos públicos; e Saulo de Tarso entendeu que era preciso uma ruptura com a tradição judaica e pregou aos gentios, e elementos romanos foram agregados para que Ele se tornasse o Deus e o Filho de Deus. Amém.

O cachorro do Vinícius

Lembro bem de todos os cachorros que não tive. Primeiro foi um collie, como quase todo mundo que viu “Lassie” uma vez na vida. Depois, graças a “Joe, o Fugitivo”, um pastor alemão que só faltaria falar. Um brevíssimo idílio com os são bernardos durou os poucos meses até ver dois afghan hounds que moravam na Princesa Isabel, e desde então eu nunca mais quis saber de qualquer outro cachorro.

Mas antes vi um são bernardo de perto.

Era 1980, final do primeiro semestre. Eu morava em Itapuã, a uns 500 metros da casa de Vinícius de Moraes, que hoje é um hotel. Ia caminhando em direção ao centro do bairro, por uma das ruas de dentro, com o meu tio, duas crianças que não tinham muito o que fazer naquele dia. E então ali estava ele na varanda gradeada de outra casa, um pouco distante: deitado, indolente, muito maior do que eu imaginava. Ele nos viu e se levantou latindo, babando quinze litros de uma baba densa.

Nunca tinha visto um antes. Conhecia o cachorro, claro, não apenas porque tinha um livro com as raças de cães que eu jamais compraria, o “Livro de Ouro dos Cães”, mas porque mais ou menos naquela época tinha assistido a um episódio de Disneylândia que contava a história de Barry, o mais famoso de todos os são bernardos.

É uma lembrança desimportante, que ficou apenas pela coincidência de ter visto o primeiro exemplar da raça pouco depois de ver um filme sobre um deles. Até que neste feriado, lendo a biografia de Vinícius de Moraes por José Castelo, cheia de defeitos mas suficiente, descobri que quando foi morar em Itapuã ele comprou um são bernardo.

Vinícius tem uma certa história com minha família. Passou muito perto de levar um soco de meu pai, uns dez anos antes.

É uma história curta, simples. 1969: recém-casados, meus pais, Vinícius e alguns amigos estão num bar de uma Itapuã ainda meio selvagem. O poeta ainda não tinha se mudado definitivamente para lá nem casado com a Gesse Gessy.

Simpático, exuberante, galanteador e bêbado, embora já um tanto decrépito e prestes a dar início a uma fase estranha em sua vida, Vinícius resolve cantar “Minha Namorada” para minha mãe e lhe passa um bilhete.

Diante do constrangimento de minha mãe, meu pai começa a rir. E, rindo, fala para o poeta:

“Pare com isso, Vinícius. Porque se você continuar eu vou ter que lhe dar um murro, e vai ficar feio pra mim bater num velho como você.”

Tem coisas que a gente fala rindo mas o olhar da gente não sorri junto. A serenata parou, os bilhetes também. A noite seguiu tranquila e alegre, como eram as noites em que, dizem, Vinícius estava à mesa.

Agora fico sabendo que pouco tempo depois Vinícius se mudou para a Bahia, casou com Gesse — e, de certa forma, com Toquinho —, construiu aquela casa em frente à qual eu passava todos os dias no caminho para a praia ou para a escola e arranjou o tal são bernardo. Deu-lhe o nome de Meu, como o papagaio de Ungaretti; mas num dia em que Ricardo Ramos foi lhe fazer uma visita rebatizou o pobre cão como Graciliano — porque, você sabe, era um são bernardo. Imundo, cheio de pulgas, o coitado passava seus dias na piscina, correndo do calor que faz na terra de Oxalá, até que Vinícius resolveu o problema instalando um condicionador de ar em sua casinhola.

Mas isso tinha sido uns 10 anos antes. Àquela altura ele sequer morava em Salvador. Agora tenho quase certeza de que aquele são bernardo que vi numa manhã em Itapuã, aquela visão rara, era o de Vinícius. Não era um cachorro comum em Salvador, e quais as chances de haver dois tão perto? Imaginei que quando se separou de Gesse ele deu o cão a algum amigo, talvez Calazans Neto, talvez Carlos Bastos, sei lá quem morava naquela casa.

***

Ler a biografia de Vinícius, principalmente a parte que cobre seus últimos dez anos, me deixou pensativo.

Como quase todo mundo, sempre achei fraca sua última fase, marcada pela parceria com Toquinho. Na verdade o problema não era ele, porque ali estão algumas de suas melhores letras. Era Toquinho: a música inofensiva que ele fazia, leve, boba e derivada, apesar de extremamente melódica, parecia insuficiente, quase antitética, para o poeta que foi um dos vértices da bossa nova e fez os afro-sambas com Baden Powell — uma antítese ainda mais evidente em tempos de Tropicália. Seus amigos, por sua vez, olhavam com estranheza a escolha de vida que ele fez: a palavra decadência é usada não poucas vezes em sua biografia. De grande poeta e letrista, Vinícius virou um velho macumbeiro excessivamente hedonista que parecia se apegar à juventude do parceiro, e dos estudantes que iam aos seus shows em diretórios acadêmicos, como Dorian Gray se agarrava ao seu retrato.

Mas hoje, mais velho, mais cansado, olhando para trás cada vez mais amiúde, vejo as coisas de maneira um pouco diferente. E nessas horas tenho inveja de Vinícius. Porque entendi o que ele era então: um sujeito que simplesmente decidiu se abandonar à vida — nem que para isso tenha abandonado também uma mulher grávida, mas o que é um cafajeste a mais ou a menos no mundo? — como tão poucos de nós jamais tivemos coragem.

Há muito tempo acho que no fundo só não se pode morrer entre os 30 e os 50 anos; aí é como se algo então tenha dado profundamente errado, porque é quando as pessoas finalmente vivem uma plenitude que nunca mais recuperarão. Morrer na adolescência é uma tragédia mas as pessoas morrem assim mesmo, às vezes vítimas da temeridade própria dos que ainda se acham imortais; depois dos 50 estamos todos na mesma roleta, e se é triste, é pelo menos aceitável. A própria tristeza vai diminuindo com o passar dos anos, e aos 90 o que o defunto ouviria, se ouvidos ainda tivesse, não seriam as expressões de dor e a mulher histérica se jogando ao seu caixão: seria um “descansou, coitado” melancólico e conformado.

Vinícius morreu aos 66 anos, uns poucos dias depois de eu ver seu são bernardo. Tinha vivido mais que a maior parte das pessoas viveria em 150. Mais que isso, se deu o direito de viver como bem lhe aprazia, e o preço que pagou em seus últimos anos, doente, foi mais que uma pechincha; tanta gente paga o mesmo preço e recebe bem menos.

Eu e quase todo mundo olhamos para trás e, mesmo quando temos a sorte de nos orgulhar do que fizemos, também sentimos aquela ponta de tristeza diante da miragem de tudo o que não fizemos, por impotência ou covardia. Por isso, agora tenho a impressão de que Vinícius sentia um pouco menos de tristeza que o resto de nós.

O que dizem ser sua decadência hoje chamo de ápice. E se a poesia, essa que os bobos escrevem com P maiúsculo, perdeu alguma coisa, paciência. Vinícius entendeu: nenhum poema jamais valeria uma noite de uísque, música, amigos e mulheres.