Beatles, raspando o fundo do tacho

Durante décadas, o legado dos Beatles foi mantido com uma pureza que nenhuma outra banda, na história, repetiu. Os Stones vivem raspando seus tachos em busca de algo que possam vender já desde os anos 60. Até Bob Dylan, desde os anos 80, vem revirando seus baús e transformando em algo rentável sobras de estúdio e quetais.

Os Beatles, não. Durante o quarto de século seguinte ao seu fim, o catálogo original de 13 álbuns foi mantido intacto, entronizado como a obra cristalizada de uma banda revolucionária e inigualável, um cânon pelo qual a música popular ocidental deveria se guiar. Suas músicas não eram licenciadas para comerciais. Raramente apareciam em filmes (eu só consigo lembrar de Shampoo). A integridade de sua obra nunca foi ameaçada.

O que a gente não sabia é que isso talvez se devesse menos a um purismo excessivo do que ao fato de, durante aqueles primeiros 25 anos, o emaranhado de processos e contra-processos em que os Beatles se meteram impediam o mínimo acordo para a rentabilização do seu catálogo. Além disso, ainda vigorava a era do LP: as vendas lhes davam dinheiro suficiente para que pudessem manter a compostura.

Resolvidas as questões judiciais, no início dos anos 90, a Apple se viu livre para colocar caça-níqueis em cada loja de discos do mundo e faturar com o que, até então, tinha sido o playground dos piratas. Os primeiros lançamentos foram excelentes: o Live at BBC e os Anthologies trouxeram gravações importantes, de grande qualidade. Mas o se seguiu foi apenas uma sucessão de bobagens desnecessárias. O Let it Be…Naked decepcionou quem quer que conhecesse a história de suas gravações. On Air, Hollywood Bowl — não sei se sou só eu, mas a cada novo lançamento dos Beatles eu venho torcendo o nariz e criando uma resistência que só faz crescer.

E agora que eles aprenderam a lição de Paul McCartney, a coisa parece ter saído de controle.

Enquanto a Apple se perguntava se liberava ou não suas canções para o iTunes, Paul McCartney veio tratando seu material solo de maneira diferente, até agressiva. Quando lançou seu catálogo em CD, nos anos 90, tentou agregar valor a eles incluindo os compactos contemporâneos, dando um panorama histórico mais abrangente e muitas vezes fortalecendo o próprio disco. (E mesmo assim eu não gosto. Um LP é uma obra fechada. Se o Ram se tornou um pequeno clássico ou se Wild Life é até hoje esculhambado, é pelas canções que traziam quando foram lançados, não pelas correções feitas depois. Isso é trapacear.)

Nos anos 2010, às voltas com a necessidade de reembalar um material tantas vezes relançado, McCartney resolveu dar um passo adiante. Agregou a seus discos outtakes, demos, livrinhos, o escambau: seus relançamentos são pacotes caros, feitos para fãs dispostos a pagar por arrotos engarrafados, e que vão muito além da única razão de ser de um LP: a música.

Ano passado a Apple parece ter aprendido essa lição e cruzou o Rubicão. Lançou um Sgt. Pepper’s cheio de badulaques desnecessários. A impressão que um velho fã chato como eu tem é a de que conspurcaram algo sagrado, como se tivessem passado batom e maquiagem pesada numa criança e enfiado a coitada em lingerie vermelha. Mas o resultado parece ter sido satisfatório para os cofres da Apple, porque agora anunciaram uma nova versão do “Álbum Branco”, cheio de penduricalhos para aumentar seu valor de mercado.

A versão deluxe, aquela a que todos vamos dar preferência na hora de baixar ilegal e gratuitamente nas redes da vida, traz um volume enorme de material.

São seis discos, ao todo, além das fotos e pôster originais e um livreto. Os dois primeiros CDs são o velho e bom “Álbum Branco”, agora remasterizado — pela segunda vez em menos de dez anos. O terceiro disco traz as famosíssimas “Esher demos” (voltando da Índia e precisando gravar um novo disco, os Beatles se reuniram na casa de George, Kinfauns, em Esher, e gravaram versões de demonstração das suas novas canções para escolher o repertório do disco, cujas sessões seriam caóticas e serviriam como marco, um tanto arbitrário, do início do fim da banda). Os três discos restantes, intitulados Sessions, trazem sobras de estúdio. Takes alternativos, jams, ensaios. Algumas das faixas aparentemente já foram lançadas oficialmente, como Step Inside Love/Los Paranoias, no Anthology III. O resto parece ser basicamente o que vimos na edição comemorativa do cinquentenário do Sgt. Pepper’s, ano passado: material ruim que uma pessoa honesta jamais revelaria para o mundo.

Isto aqui não é uma resenha porque parece estranho resenhar sobras de estúdio e demos, ainda mais antes de serem lançadas. E porque a grande maioria desse material está disponível, há muitos anos, nas redes. From Kinfauns to Chaos é um entre tantos álbuns feitos apenas como as demos de Esher, e boa parte das sobras de estúdio incluídas nos outros discos também circula fartamente na internet. Quem tiver curiosidade procure pela versão deluxe do “Álbum Branco” lançado pela Purple Chick.

Definitivamente, esses não são os discos que eu gostaria de comprar. Principalmente porque, fora desse esquema de recauchutagem, há uma imensidão de faixas realmente inéditas oficialmente que dariam novos álbuns interessantes. Eu compraria um Decca Tapes oficial, mesmo tendo o pirata há mais de 30 anos; compraria, se fosse lançado como um álbum isolado, as demos de Esher. Compraria um disco com curiosidades como versões de Maxwell’s Silver Hammer, I Lost My Little Girl, I’ve Got a Feeling e Get Back cantadas por Lennon, Something por Paul e por John, Get Back em algo que parece alemão ou cantada por George. No entanto, aparentemente isso não seria suficiente para fazer alguém comprar esses discos. Por isso a versão desnecessária de Sgt. Pepper’s do ano passado, e agora esse “Álbum Branco” gordo, pesado.

***

Mas essa nova orientação de lançamentos pode vir a trazer uma coisa boa para os fãs.

Em 2020, o Let it Be completará 50 anos. É a chance de lançar o filme restaurado nos cinemas (embora eu goste mais da sugestão que já dei aqui: entregar o material bruto para Martin Scorsese e deixar que ele faça algo decente daquela mixórdia), e as versões de Glyn Johns para o Get Back original. Eu entraria em qualquer fila para comprar esse LP, talvez um álbum duplo com as duas mixagens e com a capa original.

New Egypt Station

Cinco anos atrás, quando Paul McCartney lançou o álbum New, alguém no Twitter disse que ia esperar minha resenha sobre o álbum. Eu nunca me acostumei àqueles 140 caracteres e, quando fui olhar de novo, a mensagem desapareceu e eu não lembro mais quem escreveu. Por isso, caso ainda leia isso aqui, peço que me perdoe. Eu tinha uma boa razão para não responder.

O problema era que eu também estava esperando.

Assim que o álbum saiu, minha filha me perguntou se ele era bom. Respondi que não. (Na verdade eu disse que era uma bosta, mas esse não é o tipo de resposta que se deve dar a uma filha.) O fato é que minha primeira impressão de New foi horrorosa. Eu detestei o disco, sua produção, virtualmente todas as canções. Me pareceu um álbum ruim que se tentou salvar através de uma produção excessiva, e a emenda saiu pior que o soneto.

Ao longo dos meses seguintes, eu o ouvi insistentemente. Era menos uma tentativa de gostar do disco, elogiado pela crítica em geral, do que de entendê-lo. Cheguei a comprar o vinil um ano depois, achado por acaso numa Barnes & Noble qualquer enquanto eu procurava livros baratos, e que ainda está lacrado porque mp3 é suficiente para mim.

O tempo passou e, à medida que fui me acostumando às canções e aos valores de produção, passei a achá-lo quase tolerável. O disco traz boas faixas. Save Us, Early Days, On My Way To Work (mais pela evocação trazida pela letra do que pela melodia medíocre e a produção bombástica), New — talvez a única a demonstrar neste disco a capacidade sobre-humana de McCartney de criar melodias pop absoluta e enganosamente fáceis —; Turned Out não faz muito feio, embora pareça tão velha, Looking at Her tem alguma classe, e Get Me Out of Here é um bom aceno aos anos 60.

Tem também faixas ruins, em número infelizmente grande demais. Queenie Eye, apesar de alguns bons momentos, é fraca, e o seu videoclipe não vai muito além de um desfile idiota e sem significado de celebridades. Appreciate é irritante. Everybody Out There é um tipo de sub-rock de arena que McCartney gosta de cometer eventualmente (e uma letra absolutamente pedestre: “do some good before you say goodbye” vai para o seu panteão de letras cretinas, empatada com “changes in the way we treat our fellow creatures”, de Looking For Changes). Hosanna é muito chata. I Can Bet, idem. Road, ibidem. E Struggle tem um título que anuncia o esforço que você vai fazer para escutá-la até o fim.

É só fazer as contas e ver que um dos principais problemas do disco é que a maioria das faixas é ruim. Essas canções parecem excessivamente trabalhadas, resultado antes de um grande esforço para fazer algo diferente do que da inspiração absoluta e quase matemática que sempre foi a marca de McCartney. A isso se junta uma produção estapafúrdia, exagerada e modernosa, que nivela por baixo as canções e as submerge em camadas e camadas de mediocridade. O resultado é isso: um disco ruim, piorado pela decisão de soar jovem demais.

Em suma, em New McCartney tentou fazer um álbum moderno, cool. Só conseguiu nos fazer lembrar que, como diziam os Skrotinhos do Angeli, no cool dói.

Mas New trazia alguns elementos curiosos. Ali ficou definitivamente claro que a ausência da voz de Linda McCartney nos backing vocals tornava a música de Paul diferente, para quem ainda lembrava dos Wings. Além disso, confirmava definitivamente uma tendência razoavelmente recente de McCartney a escrever letras mais intimistas, mais pessoais. Nos últimos anos, suas letras parecem refletir cada vez mais uma angústia existencial e uma tentativa de entender o mundo à sua volta que não existia nos seus verdes anos. McCartney era o sujeito que encarava a composição principalmente como artesanato, o mestre para quem o que realmente importava era encaixar uma letra em uma melodia, e não o seu significado. Mas agora, bem adiantada a sua oitava década de vida, McCartney parece querer fazer as pazes com a sua existência, e às vezes deixar registrada a sua versão da sua própria história, o que acontece em canções como On My Way To Work e Early Days.

E agora ele se sai com um novo disco.

Egypt Station teve uma das campanhas de lançamento mais competentes de que tive notícia. A equipe de McCartney soube utilizar bem as mídias sociais, em todas as suas variedades, e as possibilidades que elas oferecem. Shows de surpresa, aparições em programas de TV, e finalmente a liberação homeopática de faixas ao longo dos últimos três meses. Pouco antes do lançamento do álbum, lançou no YouTube uma série de comentários sobre cada canção e transmitiu um show na Grand Central de Nova York. Conseguiu gerar, assim, uma expectativa entre os fãs que não se via há muitos anos.

Resta o disco em si, que é o que realmente importa.

Duas coisas chamam a atenção em Egypt Station, imediatamente. A primeira é o nível de degradação da voz de McCartney. Em 1969, tentando gravar Oh! Darling em infinitas tentativas, McCartney comentou que cinco anos antes teria conseguido de primeira. Sua voz seguiu mais ou menos igual até os anos 90, mas de lá para cá a coisa parece ter saído de controle, e rapidamente. Depois que as vendas de discos diminuíram e ele precisou voltar a tocar ao vivo, o processo de deterioração de sua voz se acelerou de maneira assustadora.

Isso ficou claro para mim, pela primeira vez, quando o vi cantar She’s a Woman no Rock in Rio Lisboa, em 2004. Ele já não conseguia alcançar as notas mais altas, e o resultado chegava a ser constrangedor.

Hoje, a voz de McCartney é a de um ancião que gritou muito a vida inteira e agora faz um esforço sobre-humano, até dolorido, para cantar. Se alguém prestar atenção, vai ver que ele mudou também a maneira de cantar algumas das antigas canções dos Beatles, tocando seu baixo pelo menos uma oitava acima do original. Ele fez isso, por exemplo, ao cantar A Hard Day’s Night em Nova York. Isso é ainda mais triste quando lembramos que ele só cantou o middle eight dessa canção porque Lennon não conseguia alcançar aquelas notas mais altas.

O som do baixo de McCartney é a outra curiosidade. Paul McCartney é provavelmente o baixista mais influente da história da música pop e um dos mais criativos. Durante o seu auge, seu baixo foi um Rickenbacker 4001. Mas depois que voltou a fazer turnês, McCartney voltou ao velho Hofner 500/1, o “beatle bass”, certamente por evocar o velho beatle Paul e porque o Hofner é extremamente leve e confortável, algo essencial para velhos que insistem em fazer shows de duas horas e meia. Com isso, sua música perdeu o peso e o punch que o Rickenbacker lhe oferecia. Além disso, o nível de compressão a que McCartney o submete durante as gravações torna o seu som, bem particular, absolutamente comum. Mais importante, no entanto, é que McCartney adotou definitivamente uma abordagem burocrática e fácil ao instrumento, muitas vezes até repetititva. Vão longe os tempos em que ele mostrava ao mundo que o baixo podia ir muito além da marcação da canção. O baixo de McCartney hoje é elegante como sempre, correto, mas é medíocre e deixa saudades do tempo em que se aventurava de maneiras inimaginadas.

Mas isso são bobagens, meu bem, bobagens. Egypt Station é o melhor álbum de Paul McCartney desde Chaos and Creation in the Backyard, de 2005.

O disco abre com I Don’t Know, uma bela balada, típica de McCartney. Tem classe e a elegância harmônica que sempre foi sua marca, e uma letra decente. É uma excelente canção, digna da lenda do seu autor.

Come On To Me é um ótimo rock, de uma vitalidade contagiante. Poderia ser gravada por qualquer dessas bandas pop que andam por aí. Mas aqui já se começa a ver o excesso de computadores. De qualquer forma, é uma das boas canções do álbum e expressa uma vitalidade muito agradável.

Happy With You é uma bela cançãozinha, aparentemente dedicada à sua mulher, em que ele canta que “eu era um bêbado, e vivia drogado, hoje estou curado, encontrei Jesus” — ou melhor, Nancy Shevell. É o velho McCartney, e agradável de reencontrar.

Who Cares é uma boa canção, um daqueles rocks simples que fazem você bater o pé no chão e mexer os ombros discretamente. Poderia talvez ser melhor com sua velha e boa banda de apoio, sem muitas firulas. Mas ao oferecer uma reflexão sobre bullying e trolls de internet, mostra que Macca ao menos tenta entender o mundo em que vive e oferecer a ele um posicionamento.

Em contrapartida, Fuh You é embaraçosa. Um pouco pela letra: “I just wanna fuh you” não é coisa que mesmo um velho safado como McCartney cante em público. Certo, é legal essa ideia de a terceira idade ter uma vida sexual ativ — ei, vovô, sua dentadura caiu! Mas o principal problema da faixa é o tratamento pop radiofônico que ela recebeu. Computador demais, adulação demais ao gosto jovem atual. McCartney tem tamanho suficiente — quem tem esse tamanho fora ele? — para dispensar esse rastejar. É como se McCartney tivesse se rendido a Phil Spector.

Evocativa de Chaos and Creation in the Backyard, seu melhor álbum nas últimas décadas, Confidante é uma canção de gratidão, como parecem ser muitas baladas de McCartney nos últimos tempos. Mas aqui essa gratidão é ao seu violão. Não é a melhor canção do álbum, mas é digna.

Eu pensava que McCartney já tinha desistidos dessas tentativas de hino-hippie-odara-vamos-ver-o-sol-nascer-no-Vale-do-Amanhecer, como People Want Peace. O discurso político de McCartney sempre foi frouxo, fácil — medíocre, na melhor das hipóteses. É uma das canções fracas do disco. Alguns detalhes da melodia empolgam, mas são só detalhes, que não chegama redimir a canção.

Hand in Hand é uma canção belamente construída, com referências claras à música medieval inglesa, que ele já não consegue cantar. Típica de sua produção mais recente, é uma prova de talento e de domínio de sua arte.

Dominoes, por sua vez, é uma grande canção, que traz a marca de McCartney ao mesmo tempo em que desvenda caminhos melódicos. É uma daquelas canções que fazem valer a pena comprar um disco.

Back in Brazil é uma canção curiosa. De certo modo, parece que suas referências são pré-samba canção: para mim, que sou velho e ouço coisas mais velhas que eu, tem detalhes que parecem tirados do filme “Alô Amigos” ou de “A Dama de Shanghai”; mas me parece que uma certa moderna música brasileira tem esses grooves de que a canção se apropria. Diz McCartney que compôs essa canção no Brasil depois de ouvir o Bonde do Rolê. Ele devia ter vergonha de falar essas coisas. Ao mesmo tempo, essa atitude é absolutamente louvável, e enriquece a música.

Do it Now parece sobra de New, em seu tom menor e no jeito de que foi construída com esforço e sofrimento diante das teclas de um piano. Não tenho mais nada a dizer sobre ela.

Caesar Rock é uma dessas canções que atualmente se fazem num estúdio, feita no Pro Tools. Mas tem qualidades. Aqui a voz desgastada de McCartney empresta uma verdade cuja ausência era um dos problemas quando ele podia cantar o que queria. Lembra bastante a música solo de Mick Jagger.

Despite Repeated Warnings nos lembra novamente que McCartney não é o melhor sujeito do mundo para nos falar de política. Ele é rico demais para isso. No entanto é uma boa faixa, melodicamente mais complexa que a maior parte da música feita hoje. Seu grande problema é que é longa demais. Tem 6’57”. Só para lembrar, meio século atrás McCartney compôs uma canção com metragem semelhante. Se chamava Hey Jude.

O disco fecha com um típico medley de McCartney, Hunt You Down/Naked/C-Link. O riff inicial de Hunt You Down parece resgatado dos anos 80, mais precisamente de uma banda chamada The Clash, e não sabe se vai ou se fica. Isso não impede qua a canção seja agradável e forte. Naked, especialmente, é uma excelente canção. O verso “I’ve been naked for so long, now” adquire um sentido pungente quando lembramos que há quase 60 anos a vida de McCartney, um dos formadores da cultura ocidental, se dá debaixo dos holofotes. E C-Link parece estar aí como um lembrete de McCartney: “Eu sei que você sabe que eu sou o maior baixista do mundo, mas quero te lembrar que sou um grande guitarrista”.

No fim das contas, Egypt Station é um belo álbum. Um ótimo disco de McCartney, e poderia ser um disco memorável de cada uma dessas bandas pop modernas, o álbum que evitaria que elas pululem por aí durante uns meses e depois sumam definitivamente.

E o que mais me impressiona é que eu insisto em chamar esse negócio, que baixei da internet e só existe como zeros e uns, de “disco”. Eu estou velho. Mas ao contrário de McCartney, eu não quero ser novo.

Adeus ao Pato Donald

É mais ou menos como se, de repente, você recebesse a notícias de que seus avós estão se separando.

Na semana passada, a notícia de que a Editora Abril tinha perdido os direitos de publicação dos personagens Disney no Brasil chocou os fãs mais antigos. A manchete do Planeta Gibi, que deu a notícia, resume tudo: é o fim de uma era.

Eu cresci com esses quadrinhos, e os considero muito melhores que os da Turma da Mônica; enquanto Carl Barks e Don Rosa nos apresentam o mundo, Maurício de Sousa nos regala com as pequenas coisinhas fáceis de um mundo restrito à rua do Limoeiro. Para a Abril, no entanto, esse episódio deve ter um peso ainda maior.

A Abril nasceu com a revista do Pato Donald, em 1950. Victor Civita costumava parafrasear Walt Disney ao dizer que “tudo começou com um pato”. Há uns 20 anos, uma matéria com um colecionador das revistas do Pato Donald no Brasil, no caderno de cultura da Gazeta Mercantil, contava que a publicação do Pato Donald era uma questão de honra para a Abril, algo que transcendia os meros interesses comerciais; tive a impressão de que os Civita viam o Pato Donald como o Tio Patinhas via a sua moedinha número 1. A notícia então se torna ainda mais melancólica. Mesmo sendo a Abril, uma editora cujos desserviços para o país são numerosos demais para contar, é impossível não ficar triste. É um pedaço da história de um bocado de gente que vai embora.

Aí pela segunda metade dos 70 havia umas quatro editoras que publicavam quadrinhos de maneira mais consistente. A Vecchi, com seus faroestes tipo Tex e Zagor e os personagens da Harvey (além da Mad); a legendária Ebal, que publicava entre outros Tom e Jerry, a DC, Epopéia Tri e Zorro; a RGE (depois Rio Gráfica e finalmente Globo, quando a rede carioca conseguiu comprar a Editora Globo gaúcha), que publicava a Marvel, Fantasma e Mandrake, Sítio do Picapau Amarelo; e finalmente a Abril, a melhor de todas, com uma qualidade editorial muito superior às concorrentes e que tinha também a Turma da Mônica.

Uma a uma, essas editoras foram desaparecendo. A Vecchi faliu no início da década de 80. A Ebal agonizou durante anos, e quando fechou já não tinha nenhuma relevância. Em 1985 a Abril parecia ser a dona do mundo: Disney, Mônica, Marvel, DC — tudo parecia estar em suas mãos. É verdade que esse fastígio absoluto não durou muito tempo e logo depois a Turma da Mônica foi para a Globo; mas ainda assim a Abril era a grande editora de quadrinhos do país. No início dos anos 2000 foi a vez dos super-heróis irem para a Panini, e a partir daí a decadência parece ter se acelerado, inexorável.

Mais ou menos nessa época, uma olhada nas bancas deixava claro que os quadrinhos Disney passavam por uma fase muito ruim. A Abril tinha deixado de produzir histórias da Disney já fazia algum tempo, e a qualidade das revistas era muito inferior ao padrão a que ela havia nos acostumado ao longo de décadas. (Curiosamente, foi nessa época que, graças ao Inagaki, descobri Don Rosa.)

Mas de lá para cá a situação havia mudado, e isso é o mais irônico. Parecia que a Abril tinha encontrado uma saída comercial para a crise óbvia no setor de quadrinhos, publicando edições de luxo com o melhor da sua produção e reedições dos manuais que tinham feito a alegria das crianças dos anos 70. Ela tinha se voltado para um segmento mais específico e de maior poder aquisitivo — velhos saudosistas e fãs de quadrinhos, especificamente. Além disso, tinha ressuscitado alguns dos seus títulos clássicos, como Disney Especial e Almanaque Disney, embora sem a qualidade editorial de outrora — o novo Almanaque Disney, por exemplo, não tinha nada a ver com a revista original e era muito inferior.

Eu não faço ideia do que está acontecendo, obviamente. Mas os números dos prejuízos recorrentes da Abril, impressionantes, devem servir de indício. A Abril está em processo de falência há muito tempo, e não para de encolher. O que foi um império simbolizado pelo prédio imponente ao lado da rua do Sumidouro está implodindo de maneira consistente há muitos anos, e quando ela chega ao noticiário é com demissões e “reestruturações”, uma palavra bonita que nunca significa outra coisa que não encolhimento. Normalmente, essas notícias são lamentadas por jornalistas que vêm seu mercado de trabalho encolher, ou comemoradas por quem, como eu, tem verdadeira ojeriza ao papel malfazejo da Abril na política nacional. Mas dessa vez não há nenhum aspecto positivo na notícia.

Porque em tudo isso há um aspecto que não devia passar batido, e que deve ajudar a dar a dimensão real desse acontecimento: nos últimos 68 anos, em nenhum momento deixou de haver uma revista Disney nas bancas brasileiras. Isso não aconteceu sequer nos Estados Unidos, onde a Disney passou alguns períodos sem ser publicada. É isso que estamos perdendo agora. É bem provável que os quadrinhos sejam assumidos por alguma editora — a melhor aposta seria a Panini, que já tem todo o resto, mesmo —, e quem gosta dos personagens que ajudaram a definir a visão de mundo de gerações vai continuar sendo servido, talvez até melhor.

Mas há um pessoal que gostava, também, da Disney na Abril. Talvez porque ver o Pato Donald ou o Mickey numa banca de revistas lhes desse um pouco de segurança e familiaridade em um mundo que não para de mudar e que, nos últimos tempos, passou a desafiar até os mais otimistas. Talvez porque mesmo em tempos de Facebook a desgraça dos outros não seja motivo de regozijo. Eu me junto a eles.

Olivetto

Saiu uma autobiografia do Washington Olivetto, e junto obviamente saíram as esculhambações devidas. A mais pesada — entre as que li, ao menos — foi do Mário Sergio Conti na Folha. O título do artigo deixa claro o que se pode esperar dele: “No umbigo da Washingtonlatria”. Eu não sabia do livro até ver a matéria, e me assustei com o vitriolismo do texto. Talvez eu esteja completamente equivocado, mas tive a sensação de que Conti nutre ódio genuíno e pessoal a Olivetto, e não cabe aqui tentar descobrir as razões.

De alguma forma, me senti enviado de novo ao fim dos anos 80, começo dos 90, quando jornalistas e publicitários viviam às turras disfarçadas. Jornalistas gostavam de dizer que tinham uma missão social, que buscavam imparcialmente a verdade, essas coisas que a história recente do país tem passado na cara deles com desprezo, mas também um publieditorial aqui e ali para garantir o leitinho das crianças. Publicitários, por sua vez, então bem pagos e dedicando-se a um tipo curioso e provinciano de sofisticação, se achavam mais do que eram: fingiam que não eram os mascates, do pior tipo, que somos.

Passei os olhos no livro dia desses. É o tipo de obra que eu não compraria, porque é essencialmente o que o Conti diz dele: uma sequência pueril de “eu fiz”, “eu sou”, “eu brilho”. Não acrescenta nada à publicidade, não ensina nada. Está longe de um Ogilvy on Advertising, ou mesmo dos livros dos brasileiros Júlio Ribeiro e Alex Periscinotto, por exemplo. Sendo Olivetto quem foi, teríamos o direito de esperar, ao menos, reflexões e lições sobre o ofício de criador, ou pelo menos da publicidade como negócio; no entanto, encontramos apenas algo que se assemelha a uma “auto-hagiografia” glamourizada e edulcorada de Olivetto. Isso quase reforça o veredito do Conti. Quase.

Porque antes de tudo é necessário lembrar uma coisa simples: Washington Olivetto é maior que Mario Sergio Conti, no sentido de ser infinitamente mais importante para a publicidade brasileira do que o Conti o é para o jornalismo pátrio. E olha que a concorrência é desleal. A publicidade brasileira é, ou pelo menos foi, uma das melhores do mundo, digna, competente, talentosa; o jornalismo brasileiro é um desfile macabro de Chateaubriands, Marinhos, Civitas, Alzugarays, e isso para ficar apenas nos capi dei tutti capi; entre os soldados a lista é ainda mais insalubre, indo de Albericos da Souza Cruz e Mírians Leitão ao jornalista de província que escreve qualquer coisa em troca de uma assessoria ou um contrato de publicidade.

Por isso é injusto, talvez, esperar mais do Olivetto do que aquilo que ele sempre se propôs a fazer. Boa publicidade consiste em descobrir o que há de singular e verdadeiro no óbvio, e utilizar isso para vender. Fazer isso, ao contrário do que parecem pensar, não é tão simples. As pessoas confundem o óbvio com o medíocre, infelizmente. Washington Olivetto entendeu isso e por essa razão foi o maior publicitário da história brasileira.

Deslumbrado com a elegância do texto de um Neil Ferreira, ou a consistência de um Julio Ribeiro, durante muito tempo me recusei a reconhecer esse fato simples. Para mim Olivetto era apenas o símbolo da geração dos 80, aquela que consolidou a publicidade como  uma profissão digna, até desejável. Mais que isso, talvez: Olivetto foi fundamental para fazer do criador o grande protagonista da publicidade, ainda que abusando da autopromoção além do limite do ridículo — muitas vezes incentivado por essa mesma imprensa que gostava de se alardear superior, mas que gastou hectolitros de tinta em textos a respeito das gravatas ridículas que ele usava.

Olivetto foi o primeiro sujeito que se assumiu orgulhosamente, ostensivamente, até ofensivamente como publicitário. Orígenes Lessa criava anúncios para poder comprar o tempo necessário para escrever seus romances. Ricardo Ramos também. Uma multidão de jornalistas em todo o país se aventurou, bissextamente ou não, pela publicidade porque o jornal não pagava. Mas Olivetto não era um jornalista com contas atrasadas ou um escritor frustrado. Ele era publicitário. Não vinha do jornalismo, do direito, não era vendedor. Ele criava anúncios e tinha orgulho disso. Eu sempre tive a impressão de que só vagabundo se mete com publicidade, gente que não sabe fazer conta de dois mais dois; mas Washington Olivetto, com sua egolatria e sua vaidade, deu dignidade moral à profissão. Cada um dos meninos que, coitados, saem todos os anos das faculdades de comunicação lhe deveriam prestar reverência todos os dias — ou rogar uma praga, não sei bem.

Olivetto emergiu de uma geração singular da publicidade brasileira. Um desses estudiosos universitários poderia expandir uma tese que defendo há um bom tempo: a leveza provocativa da abordagem publicitária da Doyle Dane Bernbach nos Estados Unidos encontrou um terreno fértil no Brasil e possibilitou uma abordagem criativa única. Uma geração inteira parece ter se empenhado em criar uma propaganda que era ao mesmo tempo profundamente brasileira e universal. E brilhante.

Aqueles anos 70, que se estenderam 80 adentro, foram impressionantes. Houve tantos grandes publicitários, dos quais cito uns poucos: Neil Ferreira que morreu ano passado e chegou a comentar neste blog (para meu orgulho eterno); Júlio Ribeiro que também morreu há pouco; Duailibi, Petit, Zaragoza; Enio Mainardi que era um publicitário genial mas que parece que vai entrar para a história pelas imbecilidades que fez, a defesa intransigente do porte de arma e o filho Diogo; os baianos Rodrigo Sá Menezes e Duda Mendonça, e um Nizan Guanaes começando a aparecer, como a Christina Carvalho Pinto. Foram esses sujeitos (e mais uns tantos, claro, que a lista é grande demais para ser colocada aqui) que criaram aquela que chegou a ser considerada a segunda melhor propaganda do mundo, perdendo apenas para os ingleses porque os ingleses, bem, os ingleses sempre foram hors-concours. E nessa geração, Olivetto foi especial.

Eu acompanhei a sua trajetória, mesmo quando ainda não sabia que acompanhava. Sem saber de nada, vi alguns dos seus grandes momentos, como os primeiros comerciais do Garoto Bombril no final dos anos 70. Fiquei sabendo de sua existência em 86, quando uma matéria na Veja contava que ele tinha saído da DPZ para montar uma agência chamada W/GGK; a partir daí lembro da maior parte das suas grandes campanhas (até porque ele fazia questão de assinar seus comerciais): o primeiro sutiã que hoje é chamado de machista mas na época era de uma sensibilidade incrível, o comercial “Hitler” da Folha (tirado, acho, do livro do Menna Barreto, “Criatividade em Propaganda”), os anúncios excelentes para o SBT. Lembro da criação da W/Brasil em 89, um nome maravilhoso para uma agência que representava com perfeição a mística da publicidade dos anos 80.

Pensando bem, o parágrafo acima é desnecessário porque a história de Olivetto é conhecida. Ele a repete há uns 40 anos, e há pelo menos uns 20 isso é tudo o que ele diz: as mesmas coisas, das mesmas formas. Que começou na publicidade por causa de um pneu furado, que não saberia fazer marketing político, que é preciso estar atento ao povo, que lê Contigo e Amiga, essas coisas que foram interessantes na primeira vez que foram ditas, mas que aos poucos se tornaram redundâncias chatas, a mesma piada repetida e repetida e repetida, apenas ilustrando o seu envelhecimento e a perda de importância do seu papel na publicidade. Durante anos, Olivetto esteve aquém do limite do ridículo porque oferecia um trabalho à sua altura, até maior. Ultrapassou esse limite quando a vaidade ultrapassou a sua obra. E por isso, epíteto do criador publicitário, Olivetto também oferece involuntariamente uma lição a quem entra nesse mercado: criação publicitária é mister ingrato, adequado especialmente a jovens com fome de conquista do mundo.

Essa redundância acompanhou a W/Brasil. Já no final dos anos 90 ela parecia ter desenvolvido uma fórmula única para todos os seus comerciais: sempre uma coisa engraçadinha, com uma gag no final. Uma fórmula muito limitada, diga-se. Seu primeiro comercial para a Vésper, por exemplo, era inadequado, impertinente e perigoso: se lembro bem, uma série de cenas de bichos tirados do Discovery Channel e, ao final, um sujeito com uniforme da empresa dizendo algo como “Mãe, é isso que eu faço”. Pensávamos que veríamos um comercial de uma empresa telefônica, mas fomos apresentados a um fiscal da natureza, e eu não tenho dúvidas de que esse comercial equivocado, feito para uma empresa que nascia do zero para concorrer com a Embratel e sua estrutura construída ao longo de muitas décadas, deu sua pequena contribuição à debâcle da empresa.

Em 2001, se não me engano, a W/Brasil atendeu a ANEEL, ou algo assim, e se mostrou absolutamente inepta. Ainda lembro de um comercial que eles veicularam em pleno apagão e racionamento de energia dos anos FHC. Um comercial absurdo, aferrado à fórmula de Olivetto, fórmula que exigia uma gag no final. Se não me engano era um casal que conversava com um vendedor de pizza. Ali, a agência simplesmente não sabia o que estava fazendo, a verdade é essa, não entendia que precisava de uma abordagem mais séria. Ou pior, talvez: tinha acreditado no mito de Olivetto e passado a achar que mostrar um filme “criativo” era mais importante que resolver o problema do cliente.

Já então Olivetto tinha deixado de me interessar. Seu tempo já tinha passado. Tivemos um lembrete disso quando, uns tempos atrás, ele deu uma declaração envolvendo aspectos feministas que foi desancado nas redes sociais. Eu compreendi o raciocínio dele, e não discordo; mas ele não entendeu que nestes tempos estranhos a maneira de falar as coisas, e até mesmo as coisas em que se fala, precisam obedecer a critérios e mecanismos mais complexos e delicados. Olivetto dizia ter orgulho de ter “o dedo no pulso no Brasil”; era óbvio que não tinha mais.

Mas quando, há alguns meses, descobri que ele tinha se aposentado e ido morar em Londres eu fiquei chocado, porque tive a sensação de que uma era se encerrava definitivamente. Com atraso, talvez, porque o negócio publicitário mudou muito nas últimas décadas e não permite mais o tipo de protagonista que Olivetto era e preconizava. Além disso, já há algum tempo está claro que a geração de Olivetto também tinha criado um monstro. E não me refiro à publicidade ruim ou à apenas correta que sempre se fez e sempre se fará, agora cada vez mais respaldadas pelas novas ferramentas de marketing e pela própria evolução dos mercados. Falo das centenas de redatores e diretores de arte que hoje fazem serão criando peças fantasmas para concorrerem a prêmios em festivais, que não resolvem problema nenhum, que não contribuem em nada para absolutamente nada, que trabalham por miséria porque acabam acreditando num mito que, hoje, ninguém sabe mais direito qual é. A publicidade brilhante que o Olivetto ajudou a criar tinha se transformado em um clone disforme.

Mas isso não diminui, em nada, o papel do sujeito na história. E pensando no assunto, para mim já não era possível negar o que devia ser óbvio há muito tempo: ególatra ou não, velho ou não, Olivetto foi o maior publicitário da história do Brasil, e dificilmente haverá algum maior que ele, porque aquele tipo de publicidade morreu, as mídias mudaram, de certa forma as coisas se apequenaram, depois de terem esgotado suas possibilidades. Como o próprio Olivetto.

Sobre o crescimento do cristianismo em Roma

Os comentários do Thiago e do Serge sobre as razões para o crescimento do cristianismo em Roma merecem um post à parte. Ao contrário do Thiago, não acredito que o processo tenha sido mais ou menos como transformar Wall Street em um reduto marxista; ao contrário do Serge, acho difícil identificar, dentro do contexto histórico romano, a alegada superioridade do cristianismo. Essa, aliás, é uma noção bastante comum. É inerente às causas apontadas por Gibbon para esse crescimento, mas ele escreve dentro da tradição cristã, pressupondo ainda que inconscientemente uma certa superioridade doutrinária e histórica do cristianismo, e certamente não tem à disposição o volume de dados e análises que apareceram depois.

Primeiro é preciso entender o ambiente em que o cristianismo surgiu.

As religiões romanas, se podem ser chamadas assim, eram basicamente cúlticas, antes de doutrinárias. Mais importante que a crença em si era o cumprimento dos rituais. Cultuava-se um deus porque respeito lhe era devido; porque cumpria mantê-lo satisfeito para evitar que ele se irritasse e mandasse uma hecatombe como uma seca, uma enchente, ou mandasse sua sogra morar em sua casa; para conseguir alguma coisa — a cura de uma doença ou a vitória numa batalha, por exemplo; porque seus pais o cultuavam. Não era muito diferente do que vemos hoje. E como lembrou o Thiago, era algo mais cívico do que propriamente místico. Muitas vezes era o interesse da sociedade que estava em jogo, não a crença individual. Era uma espécie de imposto.

Um aspecto importantíssimo e determinante para o crescimento posterior do cristianismo é que os cultos romanos eram includentes. Ou seja, o fato de você cultuar o deus de sua família, ou da sua cidade, não implicava a necessidade de negação dos outros — nem da sua existência, nem da sua validade. Você podia passar a cultuar um novo deus sem precisar abandonar o que você já cultuava.

Além disso, a ideia de um deus hierarquicamente superior aos outros estava crescendo no mundo romano, em cultos como o de Isis ou do Sol Invictus, por exemplo. Se tornava mais comum, também, a visão dos diversos deuses e daemons como manifestações de um ser superior e único.

O mais próximo disso que temos hoje é o culto aos santos católicos. Você é devoto de Santa Edwiges, mas pode trocar para Santo Antônio daqui a pouco, ou apenas rezar para Santo Expedito em uma situação específica, e em nenhum momento você nega a santidade ou a força de Santa Bárbara ou Santa Zita. É fascinante como a Igreja Católica Apostólica Não Por Acaso Romana conseguiu acomodar, dentro de si, as práticas do paganismo romano.

Mas o cristianismo era diferente, e aqui está uma das principais razões para o seu crescimento: ele era excludente. Deus não pedia apenas que você O adorasse, como todos os outros: Ele também exigia que você negasse todos os outros. A bicha era ciumenta. Ninguém pode fazer ideia de quantas conversões se deram de maneira completa — para alguma parte dos convertidos, é bem provável que Jeová fosse apenas um novo deus superior aos outros, ao menos inicialmente —, mas de qualquer forma a exigência de exclusividade, mais cedo ou mais tarde, cobrava sua conta.

Um estudioso propôs uma situação hipotética que ilustra bem essa matemática. Imagine que numa cidade que cultua Minerva chegam dois pregadores, um cristão e um adorador de Esculápio. Cem pessoas vão assisti-los debater e pregar. No fim da sessão, cada pregador consegue convencer cinquenta pessoas. Parece um empate? Não é. No fim das contas, Jesus conseguiu cinquenta novos fiéis e não perdeu nenhum, porque mesmo os pagãos não se preocupavam em negar Sua existência. Mas Esculápio, Minerva e todos os deuses pagãos perderam cinquenta adoradores.

O cristianismo cresceu não pela oferta de aceitação de Jesus, mas pela exigência de negação dos outros deuses, como um cuco que precisa matar os filhotes dos outros para sobreviver.

De qualquer forma, isso só era importante, mesmo, dentro de outra característica única do cristianismo: o fato de que, acima de tudo, ela foi a primeira religião evangelizadora. Esse foi, talvez, o seu grande diferencial.

Nenhuma outra religião fazia algum tipo de esforço missionário. Conversões, como são entendidas hoje, eram um conceito estranho aos pagãos, porque para cultuar um novo deus não era necessária essa mudança absoluta de visão de mundo. Em termos religiosos, o mundo romano era extremamente tolerante.

Diferente delas, o cristianismo apostou no proselitismo. E mais que uma escolha, isso está no seu DNA.

Do ponto de vista da história judaica, Jesus foi um Messias absolutamente fracassado: não construiu reino nenhum, não resgatou nada. Ao contrário, foi executado por crimes contra o Estado. Assim, para seus seguidores a única forma de legitimá-lo como o Salvador foi fazer d’Ele não um rei secular, mas um redentor que veio salvar as almas imortais daqueles que O aceitam a partir do seu próprio sacrifício, ao mesmo tempo em que ameaça jogar todos os outros em algo pior até que Maricá. E se Deus amou a humanidade a ponto de sacrificar Seu filho por ela, era obrigação de todos os seus fiéis salvar essa humanidade, levar a ela a Boa Nova, dar-lhe a chance de se salvar.

Nisso, os cristãos estavam sozinhos. De certa forma, é quase como um time ganhando um jogo por WO.

O cristianismo cresceu no boca-a-boca, na convivência entre cristãos e pagãos, no trabalho de formiguinha. Cresceu no esforço sincero, altruísta e fanático dos fiéis para trazer mais ovelhas ao rebanho do Grande Pastor, e para isso é provável que a vida comunitária dos cristãos, os valores que professavam e sua ética social tenham tido algum papel. É muito fácil entender como funcionava: não é como uma Testemunha de Jeová batendo na porta de desconhecidos. Em vez disso, pense na sua vizinha bem-intencionada, sempre disposta a lhe ajudar sem pedir nada em troca, que vive lhe dizendo como a Igreja Universal melhorou sua vida, como tirou seu filho das drogas e salvou o emprego do seu marido — pense nela lhe chamando para ir a um culto, sem nenhum compromisso.

O cristianismo também cresceu principalmente entre a ralé, e é bom nunca esquecer isso. Não foi à toa que ele não conseguiu muito sucesso entre os judeus. Em vez disso, cresceu principalmente entre os pagãos pobres, mais tolerantes, mais abertos, criados dentro da noção de que não havia problema em cultuar um novo deus; e mesmo assim principalmente em segmentos intelectualmente pouco favorecidos, empobrecidos, ignorantes e incultos. Só no século IV começa-se a ver um número ainda pequeno de intelectuais cristãos.

Para essa patuleia, vulnerável e crédula, dois aspectos interligados devem ter sido importantes na criação de razões para a conversão: a ameaça de um inferno corroborada pela realização de milagres.

A literatura cristã fala de milagres quase tão grandes quanto o crescimento econômico do governo Temer com emprego informal. É preciso admitir: os cristãos nunca tiveram nenhuma vergonha de mentir descaradamente, de inventar as coisas mais mirabolantes se isso servia à sua missão.

Então como hoje, ninguém vê milagres acontecendo. Mas todos ouvem falar — olha aí o dr. Fritz ou Chico Xavier como prova —, e acreditam a partir daí, pelo desejo de acreditar e pela confiança em quem lhe conta deles. A força evangelizadora do milagre não está em seu acontecimento, mas na sua apresentação como fato e na fé de quem o utiliza como argumento. Não era diferente em Roma. A mensagem dos cristãos tinha como base um evento miraculoso, a ressurreição do Cristo que um primo do tio do cunhado da irmã do seu amigo tinha visto com seus próprios olhos; e a toda hora relatos de novos milagres apareciam. A literatura cristã, canônica e apócrifa, tem coisas do arco da velha: conversões imediatas de cidades inteiras, bichos falando, apóstolos matando e ressuscitando. Procure pelos duelos de São Pedro com Simão Mago, ou os Atos de João, um dos tantos apócrifos sobreviventes, e divirta-se com fábulas que deixam Hogwarts parecendo uma convenção de ateus materialistas. Mas elas funcionaram na época, mais ou menos como os martírios que foram pouquíssimos mas, recontados por cristãos fervorosos e fanáticos, viravam exemplos cabais e insuperáveis da força de Jesus.

O fato de esse ser um Deus pródigo na realização de milagres dava força à Sua maior ameaça: o desgraçado que não cresse n’Ele estaria destinado ao sofrimento eterno no inferno. Parece pouco cristão ameaçar as pessoas dessa forma, e ainda demoraria séculos até Dante nos mostrar a miséria que eram aqueles círculos, mas relatos detalhados nunca foram necessários: um Deus que fazia tantos milagres tinha força suficiente para lhe castigar de formas inimagináveis. O cristianismo cresceu também impondo o medo às pessoas, mais ou menos como uma milícia cobra proteção a um comerciante.

Mais tarde, quando o Império Romano entrou em crise, quando as ameaças bárbaras se tornaram mais presentes, com um imperador matando outro apenas para ser assassinado em seguida, o ambiente de incertezas e insegurança pode ter reforçado a mensagem apocalíptica dos cristãos. A promessa de um retorno iminente de Jesus, para acertar as contas com todos, e a oferta da ressurreição devem ter tido o seu apelo aumentado. Mas isso simplesmente não é relevante. O que importa é o inferno.

A conversão de Constantino é um excelente exemplo de tudo isso. Se se converteu por um sonho com Deus lhe dizendo in hoc signo vinces, ou depois de observar o crescimento do cristianismo entre seus soldados, ou por calcular que esse deus era mais forte que os de Maximiano — nada disso interessa: o fato é que ele é mais consequência do que causa do crescimento do cristianismo. Àquela altura, o cristianismo já tinha pelo menos 10% das almas do Império. Mais cedo ou mais tarde, canibalizando as outras religiões, ele seria dominante.

Claro, sua conversão deu início a um novo tempo. A boa vontade imperial e a construção maciça de novos templos favoreceram o crescimento do cristianismo. Provavelmente pavimentou o caminho para que as elites aderissem, também, vencendo o preconceito contra aquela religião de pobre e solidificando-a definitivamente. O Édito de Milão de 313 abriu as portas para a legislação anti-pagã de Teodósio 70 anos depois. O cristianismo se tornou totalizante, ameaçador, criminoso. Mas isso é outra história, e o resto é história.

Jesus, Maria e José

Dia desses vi um pastor falando do Jesus revolucionário (nessas horas eles esquecem do “a César o que é de César”), que andava com a escória da sociedade (e eu, besta, pensando que os apóstolos eram gente boa, o que me faz pensar agora que Simão assaltava caravanas, Tomé pedia esmola se fingindo de cego, Filipe vendia muamba, Tiago era estelionatário e João filho de Zebedeu, bem, João filho de Zebedeu era michê. Judas Iscariotes, claro, era X-9 da polícia, mas isso a gente já sabia). Outros falam do Jesus quase zelote que expulsou os vendilhões do templo, pouco condizente com Aquele que mandava dar a outra face.

É aquilo que todo mundo já sabe: Jesus é o que a gente quer que Ele seja.

Mas pouca gente fala da mensagem estranhamente retrógrada, reacionária de Jesus em relação às mulheres — fora, é claro, o bom gesto em relação a Maria Madalena ao salvar sua pele de umas pedras que andaram querendo jogar nela, ou a outra Madalena de quem Ele expulsou sete demônios.

Os judeus aceitavam o divórcio. Era muito simples: não dava mais certo, você oficializava a coisa com uma carta e cada um seguia o seu caminho, de acordo com a lei de Moisés. Mas então veio Jesus e disse que não, que casamento era sagrado, que se você fizesse isso estava cometendo adultério. O casamento era indissolúvel, era pior que tiro na boca.

Ninguém se pergunta por quê?

Eu me pergunto. E por isso cheguei a uma teoria que é tão válida quanto aquelas que dizem que Jesus era budista, que Jesus viveu na Índia, que Jesus escapou da cruz, pegou Sua nega Madalena e se mandou para a França porque sabia que um dia viraria tema de filme do Tom Hanks: é uma teoria que, como essas, não vale nada, mas a gente joga e espera que algum bobo acredite nela. Sei de gente que ficou rica acreditando que bobos não faltam neste mundo.

Minha teoria é a de que José largou Maria. Aquele safado. Cafajeste. Homem cis hétero canalha, como todos eles.

Antes que alguém se erga em suas patas traseiras e diga que essa ideia é idiota como as outras que ando tendo por aí, quero reafirmar que ela faz sentido e é profundamente lógica. Os evangelhos falam tanto de José na infância do Cristo, mas quando Jesus começa a pregar não há mais nenhum sinal dele. Nada. Citam Maria e Tiago, citam até seu primo maluco que batizava as gentes no Jordão, mas necas de José. É como se, em algum momento entre os 13 e 30 anos de Jesus, José tivesse saído para comprar mirra e não tivesse voltado. O pessoal supõe, claro, que ele morreu, que morrer é coisa comum até hoje e naquela Judeia as pessoas ainda por cima caíam no gládio. Mas isso não justifica a ausência absoluta de referências ao carpinteiro.

A mim, que não entendo dessas coisas de religião, me parece pouco cristão obliterar dessa forma a memória de um ancestral. Então José não ensinou nada a Jesus? Então o coitado estava ali apenas para aturar as piadinhas de corno e os risinhos disfarçados quando ele passava com aquele menino que, por não parecer com o pai, devia parecer com um vizinho cachaceiro?

Eu fico imaginando José vendo aquele menino crescer. Sentado à mesa, partindo o pão ázimo, ele olhava para Jesus e olhava para Maria. E uma raiva surda crescia dentro dele. “Esse guri é filho do pedreiro”, ele devia pensar, engolindo a dor e a frustração junto com o pão, ajudado por uns litros de vinho. Até o dia em que disse que ia comprar falafel e não voltou mais: chegou o momento em que José não aguentou mais o peso dos chifres, ainda que putativos porque chifre de Deus é ainda mais honroso que chifre do chefe, e largou Maria com o filho que não era dele e também os filhos que eram.

Não deve ter sido fácil para Maria, uma moça de seus vinte e poucos anos, de repente obrigada a sustentar o legado que José lhe deixou. Tendo que se virar para criar aquelas crianças, lavando roupa para fora, costurando tarde da noite à luz mortiça de uma vela, fornecendo marmitas. Imagino que naqueles dias de sofrimento e ocupação romana, o único alívio que a pobre Maria tinha eram os encontros de sábado à tarde com a prima Isabel, cada uma falando do desgosto que seu filho lhe dava.

Mas tampouco foi fácil para Jesus. Imagine o trauma que aquele menino sofreu. De repente, lá estava sua mãe, abandonada como adúltera e sabendo-se inocente. Os amiguinhos de Jesus, enquanto brincavam de apedrejar apóstatas, faziam piadinhas sobre ela. Contavam para Ele seus pensamentos impuros quando a viam passar pela rua, carregando na cabeça a trouxa de roupa que lavara nos dias anteriores nas margens do rio Jordão e que agora levava para Caifás.

Para piorar, que nessas horas o diabo tem artes do cão, cumpre lembrar uma das verdades universais: tudo sempre sobra para o filho mais velho. Pense naquele garoto que até uns dias antes estudava para ser rabino, impressionava os doutores no templo, e agora rodava as ruas de Nazaré carregando aquele bocado de marmitas nos braços. Ele tinha passado os primeiros anos de vida com algum conforto; Seu pai (“Pai coisa nenhuma!”, gritou José) era carpinteiro, ou mais exatamente um technon, artesão, mas isso não vem ao caso: Jesus era de classe média, José conseguia botar comida na mesa. A vida não era fácil, mas tinha peixe e tinha mel na mesa, e umas tâmaras para a sobremesa. Agora tudo havia mudado, e imagine Jesus se perguntando no meio da rua, debaixo do sol do meio-dia: “Mas poxa, Eu sou tataraneto do rei Davi, Eu sou um sujeito de família tradicional, e agora tenho que entregar essas marmitas.”

Ser abandonado pelo pai putativo não cai bem para um filho de Deus; cai menos ainda a mácula no passado de Sua mãe, a dúvida sobre um mau passo, como se dizia em tempos d’antanho. Não admira que o menino tenha ido atrás do primo, aquele que enchia Santa Isabel de desgosto, e o resto é história. Uma história que mostra a pobre Maria correndo atrás do filho pregador, tentando fazê-lo abandonar sua missão divina, desesperada, e só quem não tem coração consegue não derramar uma lágrima pela pobre mulher, que passava as noites angustiada pelo seu filho, sem poder ao menos rezar uma Ave Maria.

Claro, contra mais essa teoria rafaeliana há um detalhe complicador. Os evangelhos, a começar pelo de Marcos, apareceram pelo menos uma década depois das epístolas de Paulo, que não conheceu Jesus, e mesmo o lendário Q não deve ter aparecido muito antes. É bem possível que a mensagem original de Jesus, seja ela qual fosse, já tivesse sido corrompida pela visão paulina das coisas; certamente foi pela transmissão oral ao longo de umas poucas décadas, a ponto de, a essa altura, o profeta que precisou da chancela de João Batista para se legitimar como pregador já ter virado o filho de Deus e ser o responsável por uns milagres bem batutas. E não é bom esquecer que Paulo tinha uns problemas aí com as mulheres. Minha teoria, portanto, depende muito da visão paulina, do Paulo criador do cristianismo e dono de uma misoginia que faria envergonhar o Bolsonaro.

Mas ela ainda é válida. E isso leva a mais uma explicação necessária. Diz respeito ao dia em que Jesus foi crucificado.

Ali, entre ladrões, sufocando aos poucos pelo peso do Seu próprio corpo, Jesus filho de José agoniza. Uma dor lancinante vem de Seus pés, das Suas mãos presas ao patibulum. Ele não consegue enxergar direito, cego pelo sangue que a coroa de espinhos faz escorrer pelos Seus olhos. Ele lembra de sua trajetória, de tudo o que fizera até ali, Sua vida passa diante de Seus olhos como um filme que ainda não haviam inventado. Então Ele lembra de José mais uma vez, como se algum dia tivesse deixado de pensar, como se José não estivesse presente em cada um dos Seus pensamentos, como se a angústia e a dor em algum momento O tivessem abandonado. E Ele grita para um Gólgota que não pode entendê-lo:

“Pai, por que me abandonaste?”

O cinema morreu

Andei fazendo as contas, noite dessas.

Eu vejo filmes há 40 anos. São mais de 14 mil dias. E assim cheguei ao número de uns 8 mil filmes assistidos.

É na verdade uma estimativa muito conservadora, mas segura. Lembro de tempos em que chegava a assistir a três filmes por dia, eventualmente até mais. Mas também lembro de períodos em que assistia a pouca coisa, ou de semanas em que não via nada, por impossível. Muitas vezes revi filmes que já tinha visto, e não foi só Casablanca; tem um número de filme bobos aí que eu não gostaria de lembrar.

Assim, 8 mil é um número razoável, garantido para não chegar ao exagero. Há números mais assustadores que esse. Devo ter passado mais de 40 mil horas desta ainda curta vida diante da TV, o que inclui, além dos filmes, seriados, desenhos animados, telejornais e até — credo em cruz três vezes — novelas da Globo.

Não lembro da grande maioria dos filmes que vi. Espontaneamente, devo lembrar de algumas poucas centenas. Diante de títulos e sinopses, talvez lembre de uns poucos milhares. Mas certamente há filmes de que jamais vou lembrar, mesmo que sente para assistir novamente, principalmente aqueles que deixaram impressão apenas mediana. São os males do excesso, é verdade, mas para que me enganar: é principalmente um reflexo da idade. O tempo passa e joga o desimportante fora. É muito tempo desperdiçado, tempo em que poderia ter lido Finnegan’s Wake, por exemplo, ou encarado “Guerra e Paz” com mais seriedade e sem apelar para mais momentos de leitura dinâmica do que jamais admitiria, e que não admito agora. (Woody Allen: “Fiz um curso de leitura dinâmica e li ‘Guerra e Paz’ em vinte minutos. Tem a ver com a Rússia.”)

Devem ser essas horas assistindo a filmes que me fazem ter a impressão de que o cinema morreu.

Já há alguns anos deixei de ir regularmente ao cinema, um passatempo maravilhoso do século XX que os anos 2000 tornaram desnecessário, às vezes até desagradável. Meu sonho sempre foi ser um velho chato, e certamente estou conseguindo. Infelizmente, uma das primeiras vítimas dessa ancianidade foi um dos hábitos de que eu mais gostava em meus verdes anos. Em grande parte, claro, isso aconteceu porque cinemas se tornaram ambientes menos ricos para mim. Mas principalmente porque acho que não há muita coisa que valha a pena aparecendo nos cartazes.

Como linguagem, o cinema parece ter se consolidado há muito tempo, mais ou menos como um revólver é uma máquina perfeita há uns 100 anos, sem possibilidade de avanços estruturais. Excelentes, até mesmo brilhantes filmes se fazem aqui e ali, porque afinal de contas cinema é, principalmente, contar histórias (que o finado Godard não me veja falando isso). Na verdade, o número de bons filmes lançados a cada ano não é, hoje, menor que há 60 anos. Se assim parece para alguns é porque eles esquecem que, para cada “Intriga Internacional” lançado em 1959, foram feitos dezenas de The Oregon Trail, e mesmo uns Plan 9 From Outer Space. Quem fala que “os velhos tempos é que eram bons” é idiota ou não sabe o que fala; na melhor das hipóteses é alguém que não consegue se desprender de padrões definidos quando ainda conseguia aprender alguma coisa. O resultado é um número justo de filmes melhores que a maioria na época de ouro de Hollywood, ou da França ou da Itália.

Mas quase por definição, não conseguem alcançar as alturas a que o melhor dessas épocas conseguiu chegar, ao menos em relação ao seu tempo e ao que veio antes.

O problema real é que há muito tempo não se vê, ao menos de maneira consistente, uma grande ruptura, algo que leve o cinema um novo patamar. O último filme que me impressionou nesse aspecto foi Dogville, em que o Von Trier reduziu o cinema ao que ele pode ter de mais básico, uma experiência fascinante que, paradoxalmente, só era possível porque não havia mais barreiras a serem quebradas; fora isso, o que se vê são apenas construções bem ou mal feitas sobre uma estrutura já secular. É possível ver hoje “A Paixão de Joana d’Arc”, de Dreyer, e encontrar nele o mesmo senso de frescor estético que se teve quando ele foi exibido há 90 anos, entender exatamente o que faz dele um filme revolucionário; não se encontra mais isso por aí.

De certa forma, o último grande avanço tem a ver com o uso da tecnologia, e esse é talvez o maior indício de seu esgotamento. O CGI possibilitou o surgimento e consolidação dos filmes de super-heróis. Mas em pouco menos de 15 anos esse gênero se estratificou numa repetição constante de fórmulas e clichês, e ao menos para mim, hoje, acabam lembrando que o cinema oferece menos possibilidades de co-participação criativa do que os quadrinhos.

(Explicando: nos quadrinhos, grande parte da ação era criada pelo leitor. Entre um quadro e outro havia um vácuo que lhe possibilitava imaginar como o Batman ou o Superman ou o Homem Aranha tinha chegado ali. É isso que o cinema lhe entrega pronto, e a briga agora não é mais para lhe fazer ver o que você não tinha imaginado, mas lhe mostrar como isso foi feito de maneira como você não tinha imaginado. É a diferença entre o substantivo e o adjetivo.)

Cinema está cada vez mais chato, é essa a verdade.

De um lado, os blockbusters americanos repetem ad enjoum a fórmula do bombardeio insistente dos sentidos utilizando, para isso, as ferramentas possíveis: música repetitiva em tons menores e frequências estranhas, edição rápida, movimentos de câmera inovadores possibilitados pelos drones e ronins da vida, efeitos especiais cada vez mais próximos da perfeição. Do outro, outras cinematografias parecem tentar ainda realizar no cinema o equivalente a uma literatura que trata cada vez mais do minúsculo, que se esmera em investigar repetidamente as mesmas miudezas da vida porque a forma do grande romance clássico se esgotou ainda antes de Joyce.

Não é à toa que hoje se diz que a criatividade está na TV, nos seriados que os canais pagos exibem. Isso é apenas meia verdade: os seriados podem ser grandes exemplos de dramaturgia, mas a forma em si tem quase cem anos; não há realmente inovação, em nenhuma delas. Game of Thrones pode ser maravilhoso, mas o que há de revolucionário em relação aos seriados da Republic e às telenovelas, além do conhecimento, da tecnologia e das mudanças estéticas e narrativas acumulados paulatinamente ao longo dos tempos? O que é Mad Men além de uma novela bem gravada?

Eu sempre tive um orgulho bobo, como aqueles sujeitos que enchem o peito para dizer que conseguem comer 20 hambúrgueres, ou que podem mexer as orelhas: sempre fui capaz de dizer em que década um filme havia sido feito em menos de 3 segundos. Pela textura do filme, pela intensidade e espectro das cores, pela edição, pelos movimentos de câmera, pela música, ou pelas roupas, penteados e maquiagem. Mas isso não é mais possível, porque neste século parece que tudo isso foi uniformizado, e confesso que fui derrotado pelo século XXI, e agora vou ter que me contentar com alguma outra coisa, e estou pensando em me especializar em joguinhos de mesa de bar com palitos de fósforo.

De como Nero Wolfe resolveu um mistério e desmascarou o Kindle

Andei namorando a ideia de comprar um Kindle.

Parece uma ideia estranha, eu sei. Desde o início, encarei essa nova bugiganga com desconfiança. Mas o tempo passou, e nas redes da vida a oferta de coisas que eu até gostaria de ler, mas não o suficiente para comprar, fez com o pequeno trambolho parece uma compra interessante. Os preços estão razoáveis, tem muita coisa por aí, pois é, talvez valesse a pena.

Mas o namoro acabou de forma rude, quase misógina, diante de um livro de Rex Stout.

Eu nem sou lá um grande fã de Nero Wolfe, ao contrário do Alex Castro, por exemplo. Me parece essencialmente o típico whodunit inglês da velha dama indigna, com uma cobertura insossa de hardboiled americano personificado no Archie Goodwin que diz só beber leite. Até reconheço suas qualidades, e à medida que envelheço simpatizo cada vez mais com o gordo pernóstico. Mas eu gosto mesmo é de Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Ross MacDonald — o Pai, o Filho e o Espírito Santo —, e ultimamente do Walter Mosley, além de uns tantos por aí, como James M. Cain, David Goodis e algum Chester Himes. Ainda assim, uma aventura de Nero Wolfe é um policial legítimo, que quase me lembra a grande literatura noir.

E esse é um amor antigo, muito antigo.

Desde muito cedo eu lia os livros da Colecção Vampiro. É uma das grandes heranças paternas. Me acostumei a palavras maravilhosas como “chui” e “sarilho”, a mulheres perigosas e sujeitos traiçoeiros. Como não podia deixar de ser, a Colecção Vampiro trazia principalmente autores de segunda, como Agatha Christie, Mickey Spillane, Erle Stanley Gardner, Frank Gruber, E. Phillips Oppenheim, Leslie Charteris, Ellery Queen, Fredric Brown, Lionel White, Lew Bruce, Anthony Berkeley. Mas também publicou virtualmente tudo o que se escreveu de decente em literatura policial

(Citei apenas os que lembro de ler por volta dos 10 anos. Mas um louco publicou um site maravilhoso com todas as capas da coleção.)

Havia outra série. Na verdade, ela não chega aos pés da Colecção Vampiro, mas foi tão ou mais importante para mim. Em 1981 a Abril lançou uma coleção chamada Mistério. Papel vagabundo, capas que jamais chegariam perto das da Colecção Vampiro, mas um elenco que, em meio a muita gente menor, incluía alguns bons autores. Foi nela que li pela primeira vez Ed McBain, Patrick Quentin, Ruth Rendell, Lawrence Block, Collin Wilcox, John Wainwright e John Ball, e principalmente Ross MacDonald.

Juntas, essas duas coleções definiram, em grande parte, o que entendo por prazer da leitura. Não é tão importante sequer o aspecto gráfico do livro — e talvez por isso objetos bonitos como os da CosacNaify me encantem um pouco menos do que deveriam. Mas o ato de pegar um livro, virar as páginas, tudo isso faz parte de um processo que ainda hoje ajuda a me definir como eu mesmo. Criaram também um amor indelével a sebos; eu gosto de livro, mas gosto mesmo é de livro barato.

E então chegamos a Nero Wolfe, tantos anos depois.

Como disse, eu estava namorando a ideia de um Kindle, para ver se conseguia me tornar um pouco menos ogro, um tiquinho mais moderno. Até que peguei um livro de Stout (“A Confraria do Medo”, para ser exato) e comecei a ler.

Um livro policial, desses que têm sido publicados no Brasil ultimamente, tem em média umas 250 páginas. Na verdade podia ter muito menos, mas as editoras arranjam uns artifícios para o volume ficar maior e justificar o ágio absurdo que cobram. Esse, especificamente, tem pouco mais de 350.

E foi então que percebi algo que, lá no fundo, eu sempre soube, apenas não sabia que sabia.

Umas 50 páginas antes do final do livro o coração começa a bater mais rápido, a ansiedade dispara. Você sabe que está chegando ao fim. Cada página virada aumenta a parte já lida e mostra que o final está cada vez mais próximo. Você sabe que o crime vai ser resolvido em breve, e agora cada detalhe é importante. Você vê que está chegando ao fim.

Você não tem isso num Kindle. Essa emoção de virar a página traduzida em algo palpável, no número cada vez menor de páginas. Imagino que o Kindle traga algo como “página 60 de 234”, mas não, isso não é a mesma coisa. Não muda a espessura de páginas que faltam, e que você sente sem olhar para elas. Muda só um número em algum lugar da tela, se é que muda.

O namoro acabou ali. Continuo ogro e velho, continuo preferindo o papel. O cheiro dos livros novos, inconfundível, e os cheiros dos livros velhos, particular e único como o cheiro de cada biblioteca onde eles ficaram; a emoção de se ver chegando ao clímax daquilo que lhe tomou umas horas preciosas em sua vida; não, o Kindle não vai me dar algo parecido. É como diz o Chico Buarque, é namorar uma mulher sem orifício, esse namoro não tem futuro.

Quando a CosacNaify fechou

Deve estar fazendo por esses dias dois anos que a CosacNaify fechou.

Na época, achei engraçadas as reações desoladas das pessoas, lamentando o final da editora e até fazendo parecer que ali terminava, também, a grande aventura editorial brasileira. Me lembraram imediatamente as pessoas que volta e meia lamentam o fechamento de um ou outro cinema de rua.

Acontece sempre, seguindo invariavelmente o mesmo roteiro: ninguém ia mais àquela joça, porque uns preferem os cinemas de shopping e outros, como eu, descobriram os prazeres torpes e baratos da pirataria numa TV de tamanho suficiente. Mas todos parecem querer que o cinema vazio continue ali enfeitando a cidade, como se por um passe de mágica e ainda que caindo aos pedaços, e agora choram como se perdessem um grande amigo; no caso, um amigo pobrinho que não viam há décadas e do qual mal lembravam o nome.

Se uma editora fecha não é apenas porque as contas não batem, porque normalmente já passaram desse estágio há tempos: mas porque a situação se tornou insustentável. Editoras — todas elas, sem exceção — são antes de tudo o resultado do trabalho de abnegados. De gente que ama livros, que se realiza na labuta editorial e quer compartilhar esse amor com outros. Gente esperta que quer dinheiro vai para o mercado de ações, vai vender tomate na feira; o mercado editorial é o reduto de dons Quixotes que têm uma visão própria, necessariamente elitista do mundo — mesmo quando esse elitismo se traduz virtuosamente na oferta de bens culturais melhores para as massas.

Nisso o papel do Charles Cosac, como o de qualquer outro editor, é invejável e necessário. Mas é preciso também lembrar que ele está longe de ser o único, ou mesmo tão importante assim.

Contei agora os livros da CosacNaify que tenho. Não chegam a dez, sem contar alguns que comprei para dar de presente e dos quais ainda lembro. A maior parte é Faulkner; a Cosac foi a sua melhor editora no Brasil, sem nenhuma sombra de dúvida, soltando edições impecáveis dos livros mais importantes do cachaceiro sulista. Eram bons a ponto de me fazer substituir algumas das antigas edições da Nova Fronteira que eu tinha.

Porque o cuidado da CosacNaify com o produto final era impressionante. Não apenas com a apresentação material, com o visual, as capas e contracapas, o papel e a tipologia — qualidades estéticas que, desconfio, eram o principal atrativo para as carpideiras de agora; um livro da Cosac na mesinha de centro chama mais a atenção dos visitantes incautos. O que realmenet interessa é outra coisa: um livro de Faulkner editado por ela não contém erros, traz a melhor tradução possível e uma revisão rigorosa. Não se pode pedir nada mais de uma editora.

Mas havia uma diferença gritante e fundamental entre a CosacNaify lançando uma nova edição de “Este Lado do Paraíso” com um cuidado editorial invejável, papel tão legal, capa dura com um projeto gráfico moderno e elegante, e Monteiro Lobato reinventando o mercado editorial brasileiro, ou Ênio Silveira ousando publicar Ulysses em português. Assim como há uma diferença entre a Martin Claret possibilitando o acesso a obras clássicas e Alfredo Machado investindo no mercado de massa. Nomes como José Olympio, Ênio Silveira têm uma importância infinitamente superior na formação de um mercado editorial brasileiro, pelo pioneirismo e, sim, pela ideologia que os motivava. Por legal que a CosacNaify fosse, seu legado não é realmente tão importante quanto a coleção “Cantadas Literárias” da Brasiliense nos anos 80.

E então lembrei dos anos 80, os bons anos 80 — na verdade anos de merda, mas o tempo passa e doira o passado, então a partir de hoje essa década miserável passa a ser “os bons anos 80”.

Naqueles bons anos 80, a editora que me apaixonava era a Companhia das Letras — pelo menos até o início dos 90, e eu certamente não estava sozinho nessa admiração. Acho que o impacto produzido por ela em seu tempo foi muito maior do que o da Cosac. O volume de boa literatura que a Companhia das Letras trouxe a partir do seu lançamento é impressionante. Não tenho nenhuma dúvida de que foi a editora mais importante desse tempo — mesmo lembrando que a Brasiliense oferecia à juventude da época um material inestimável, em muitos aspectos mais ousado. Depois a Companhia das Letras se tornaria uma editora grande, e isso acarretaria as escolhas comerciais necessárias que a colocam em outro patamar. Mas naquele momento, editando Edmund Wilson, John Cheever, Dorothy Parker, Georges Perec, uns tantos por aí, a editora do Luiz Schwarcz era invejável e fundamental para o cenário cultural do país.

Basta compará-la à CosacNaify para entender o óbvio: a Cosac era uma editora elitista demais. E não pretendia ser outra coisa. Isso nem longe a desmerece; ao contrário, se se deixar de lado o tanto que há de demagogia populista naquela tal de literatura para as massas, há que se reconhecer que uma editora como ela é necessária.

Havia algo de imensamente lúdico nos livros dela. Comprei “Zazie no Metrô” numa das tantas promoções porque gosto do filme do Malle mas nunca tinha lido o livro. Depois de ler, acho um livro superestimado; mas o conceito gráfico desenvolvido pela Cosac, com a estética dos cartazes de rua da época intercalando as páginas (que me forçaram a malabarismos razoáveis, já que eu jamais cortaria o papel para ver o material gráfico — que energúmeno seria capaz de algo tão monstruoso?) dão um valor ao livro que, cá entre nós, o enriquece e o valoriza. Não é fundamental; mas acrescenta algo ao mundo.

Havia rigor técnico, uma vontade de fazer o melhor produto possível, algo que deve ser sempre aplaudido. E digo isso mesmo admitindo que, por ver livros de outra forma, seu material não me fazia ter vontade de gastar dinheiro demais. Lançaram uma bela edição de “Bartleby, o Escrivão”, com uma abordagem de manuseio que extrapola o “mero” ato da leitura? OK, mas isso não me faria comprar um livro que já li e que poderia ser comprado por uma fração do preço cobrado pela nova edição. Era simples assim.

Por essas coisas, durante anos não me importei muito com a CosacNaify. Para piorar, o primeiro contato que tive com ela foi através de uma entrevista numa dessas revistas semanais, provavelmente a Época, aí pelo final dos anos 2000. Um perfil do Charles Cosac mostrava um sujeito elitista além do socialmente aceitável, com uma visão de cultura que, digamos assim, extrapolava a minha. A partir daquele momento, vi no sujeito um esteta rico, meio delirante que podia se abandonar aos seus devaneios; ele me parecia um daqueles playboys cariocas dos anos 50, que passavam as noites na Vogue gastando um dinheiro que não ganharam e se tornavam a matéria da lenda do Rio de Janeiro. Ou melhor, uma visão extemporânea e deslocada de Des Esseintes, ou um Jacinto de Tormes.

(Charles Cosac me lembrava um artista plástico que conheci algumas décadas atrás. Pintava quadros de nítida inspiração clássica, o tal pintor. Ticiano antes de Modigliani, Rafael antes de Bacon. Parecia viver no século XVIII. E em seu primeiro vernissage lá estava ele, envergando um trench coat e uma echarpe em pleno calor aracajuano — senhora, senhor, o calor de Aracaju sabe ser parecido com o carioca quando quer, acredite no que vos digo —, empunhando uma bengala desnecessária e tendo ao lado um menino, vestido como pajem renascentista, que oferecia ao transeunte incauto os seus cartões de visita, tirados de uma caixa de madeira.)

Brincadeira de rico para deleite de rico, era o que eu achava. Mas recentemente, essa entrevista do Charles Cosac me impressionou. Mais que isso, me fez mudar de opinião, e de maneira radical. Vi no Cosac um sujeito necessário, consciente do seu papel. Mais recentemente, depois de ver outra entrevista sua, desta vez à Folha de S. Paulo depois de assumir a direção da Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, vi nele um sujeito que o capitalismo moderno tornou redundante e arcaico, infelizmente: o esteta elitista que, paradoxalmente, tem algo a contribuir para a sociedade. E é esse arcaísmo que o torna mais necessário.

(Vi também um sujeito que, depois de esculhambar o Dória e a mulher e aceitar um convite para trabalhar em sua gestão, se saiu de uma pergunta capciosa com astúcia, classe e educação, sem perder o respeito próprio.)

Não é o bastante para me fazer comprar seus livros. Uma edição barata mas correta de Moby Dick, para mim, ainda tem o mesmo valor real que a bela edição da CosacNaify. Eu envelheço e tento me atualizar, talvez um dia até compre um Kindle, mas não preciso e não quero mudar tanto assim. No entanto, é o suficiente para que eu veja a pequena multidão carpindo o fim do seu período como livreiro com um pouco mais de respeito do que tinha até então.

Ben-Hur

Eu realmente não sei por que insisto em cometer os mesmos erros, vez após vez.

Ben-Hur”, filme lançado em 2016 e devidamente esperado mim com, digamos, cautela, dava todos os sinais de ser uma pequena tragédia. E mesmo assim, mesmo intuindo o que me aguardava, eu assisti a ele.

Refilmagens são problemáticas quase por definição. O primeiro problema está no seu tempo. O significado e a importância histórica que um filme como, por exemplo, “Psicose” teve em 1960 jamais poderiam ser repetidos em 1999, quando o insano Gus Van Sant cometeu a imprudência de refilmar a obra de Hitchcock. Além disso, contar novamente uma história impõe riscos quase imponderáveis.

A coisa é mais grave quando se trata de um clássico absoluto. Como “Os Dez Mandamentos”, “Ben-Hur” está naquele panteão de épicos que definiram o gênero. Curiosamente, o próprio filme de Wyler é uma refilmagem. A primeira versão, de 1925, foi o filme mais caro feito até então e um sucesso absoluto. Mas tratava-se de um filme mudo e, considerando-se que ainda não havia DVD ou video on demand, provavelmente largamente esquecido trinta e poucos anos depois; no máximo visto apenas por cinéfilos em cineclubes obscuros e esfumaçados, se é que essa espécie degenerada já existia. Nessas condições, uma refilmagem podia fazer algum sentido. Você provavelmente não lembra de Ramon Novarro, o ator que fez Judá Ben-Hur naquela primeira versão (bem, talvez conheça a história do seu assassinato). Mas certamente sabe quem é Charlton Heston.

Deve haver algo de muito grave com as novas plateias, uma corrosão do quociente de inteligência e de discernimento crítico. É só assim que consigo explicar as decisões tomadas pelos produtores e roteiristas dessa refilmagem. Quando vi o trailer do filme, adivinhei pelo que ele deixava antever que seria mais uma idiotice do novo cinema de entretenimento. Eu achava que a única maneira de fazer uma refilmagem fazer sentido seria explorar a natureza homossexual possível na relação entre Judá ben Hur e Messala — ah, a cena do duelo das lanças túrgidas e latejantes… —, um favor que Gore Vidal fez questão de deixar nas lembranças de todo cinéfilo. Poderia, por exemplo, dar outra dimensão à relação de Judá com Quintus Arrius, por exemplo, mais ou menos como Antonino e Graco num filme melhor de um diretor de verdade.

Em parte eu estava errado. Havia outras possibilidades: aprofundar mais a questão da resistência à ocupação romana que serve de base para o filme, ou ainda investigar e dar mais nuances ao tratamento do cristianismo nascente.

De qualquer forma, eu podia ter seguido a minha intuição e evitado assistir a um filme que eu sabia que não poderia estar à altura do recordista de Oscars durante quase 40 anos.

Talvez o primeiro comentário a ser feito seja a respeito da mediocridade de todos os atores. Jack Huston e Toby Kebbel, até há pouco ilustres desconhecidos para mim e a partir de agora nomes a serem inscritos num caco de telha e jogados numa urna, interpretam sem nenhum brilho os personagens principais — uma tarefa especialmente inglória, talvez até injusta, para Huston, condenado a reprisar o papel que um dia coube a Charlton “Cold, Dead Hands” Heston. Rodrigo Santoro faz um Jesus insípido, menos por sua culpa do que pelo papel insignificante que lhe deram, e Morgan Freeman faz o seu arroz com feijão.

Desta vez, “Ben-Hur” começa antes do reencontro do protagonista adulto com Messala. Agora eles são irmãos adotivos, e Messala é apaixonado por Tirzah. Mas ele não é um rebotalho plebeu qualquer; seu avô foi um dos assassinos de Júlio César, porque no mundo cinematográfico de hoje todo mundo tem que ter algum pedigree (num filme quase tão repulsivo, o “Robin Hood” de Ridley Scott, transformaram o velho ladrão em filho do ghost writer da Carta Magna e leal ajudante de ordens dos barões). No entanto Messala é rejeitado pela mãe de Judá, e assim, qual um Julien Sorel de saiote, vai para a campanha da Germânia fazer sua fama e fortuna.

Em Jerusalém, Simonide (que no filme de 1961 só aparece bem depois) trabalha na casa dos Ben Hur e sua filha Ester se casa rapidinho com Judá. É estranho: todo mundo mora em Jerusalém, inclusive um certo marceneiro mais tarde dado a pregações, que você deve conhecer pelo nome de Jesus de Jerusalém (é, aquele mesmo, daquela música de Antônio Marcos: “Vem, irmão / Vamos seguir com fé / Tudo o que ensinou / O homem de Jerusalém”).

O filme até se esforça para dar um pouco mais de profundidade política ao contexto histórico e político da Judéia da época, e esse é o seu único ponto positivo. Mas sem muito sucesso: fica a impressão de que isso serve apenas para explicar de maneira nova o acontecimento que muda os rumos do filme. Originalmente, o atentado ao governador romano foi um acidente; agora é uma tentativa de assassinato por parte de um zelote protegido pelos Ben-Hur.

No filme original, ao salvar do afogamento um tribuno romano que o adota em retribuição, Judá ganha seu salvo-conduto para a vida, o que lhe possibilita empreender sua vingança contra Messala. Agora ele vai direto para Ilderim, que da maneira mais rocambolesca e implausível o deixa na boca da corrida de bigas que, neste como no outro, é o clímax do filme. Para isso Judá volta para Jerusalém e vê que na sua ausência as tragédias não pararam de se suceder: sua mãe e irmã pegaram lepra; e como desgraça nunca vem sozinha, a pior de todas: sua mulher virou cristã.

(Rides, hypocrite lecteur? Não, não riais: imaginai a senhora vossa patroa dando a louca e entrando para a Universal e dando todo o vosso dinheiro ao pastor Genoíldes e para desgraçar tudo vos chamando de “abençoado”. Não, não riais, que de certas coisas não se deve fazer troça.)

Em 1961, a cena da corrida era incomparável. Dirigida magistralmente, editada com brilhantismo, significava um passo adiante na estética dos filmes de ação. Ainda hoje é impressionante; mas neste filme ignóbil é apenas mais do mesmo que se vê em qualquer filme com orçamento mediano. Nitidamente inferior a qualquer filme dos Vingadores, por exemplo, é talvez o melhor indicativo da mediocridade rampante de uma obra que deveria ser evitada como se evitava um leproso.

E a partir daí a coisa desce à sarjeta mais baixa. Tirzah e Míriam (que aqui tem seu nome modernizado para Naomi, sabe Jeová a razão), antes curadas da lepra pessoalmente por Nosso Senhor Jesus de Jerusalém, agora são curadas pela chuva de água benta que cai quando Jesus dá seu último suspiro, como um batismo coletivo desses que a igreja faz por aí.

Mas nada, nada, absolutamente nada pode lhe preparar para a cena final. Judá e Messala fazem as pazes, porque eles sempre se amaram, aquilo era só briguinha de irmão, e agora que o romano está perneta e seu orgulho foi para as galés, toda a raiva e ódio podem ser esquecidos: Ben Hur venceu e Messala só precisava ser humilhado e aleijado para virar gente. E o filme termina com aquela que é talvez a cena final mais abjeta de toda a história do cinema: Judá e Messala cavalgando juntos rumo ao futuro, dois garotos que deixaram o passado para lá e para os quais o futuro é belo e risonho.

Pela primeira vez em uma longa história de salas escuras e TVs de todo o tipo, um filme me deu vontade de chorar de raiva. Porque raras vezes vi tamanho desrespeito a uma obra como essa miséria que merece o opróbrio de toda e qualquer pessoa que goste de cinema ou de literatura, mesmo uma de segunda como a do governador Lewis Wallace. E à medida que os créditos subiam, minha mente se perdeu em vinganças imaginárias. Imaginei uma sequência em que aquela corja inteira morria no Coliseu, na boca dos leões ou no gládio de seguidores de Espártaco. É o único fim merecido para esses novos personagens.

Mas tenho que admitir: eu também mereci. Que isso me sirva de lição e de castigo eterno. Infelizmente não poderei desver, jamais, essa cena final. Mas eu sabia que nada de bom me esperava ali, e por meu próprio erro, pela minha própria inconsequência, pela minha recusa em ouvir o que Jesus de Jerusalém me dizia, decidi ver esse filme, como aquele garoto decide experimentar crack. A culpa é minha, só minha, e vou ter que conviver com ela até o final dos meus dias.