João Gilberto

Ao contrário de tantos outros artistas brasileiros, João Gilberto era um samba de uma nota só. Nunca evoluiu. Aquilo que ele trouxe de uma temporada de surto em Juazeiro o acompanhou a vida inteira. Ele nunca fez algo diferente, nunca foi adiante. O que ele fazia em 1959 era exatamente o que fazia meio século depois, mas agora brigando com aparelhos de ar-condicionado. Era um maluco — chame de excêntrico, se quiser, mas ele era maluco — com um talento único, capaz de descontruir harmonias inteiras e reconstruí-las de maneira surpreendente, que inventou um jeito assombroso de tocar violão e repetiu isso pelo resto da vida. E que, de lambuja, aperfeiçoou um jeito de cantar que iria se afirmar definitivamente em Roberto Carlos.

Mas essa única coisa que ele fez foi revolucionária. Sozinho, João Gilberto criou um gênero musical que revitalizou a música brasileira de maneira impensável e irreversível. Sem ele, Tom Jobim e Vinícius de Moraes fariam uma música diferente — bela, certamente; melódica e liricamente sofisticada, com certeza; mas não nova. Basta ouvir o disco “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso, para entender isso. Sem João, a bossa nova seria pouco mais que uma cópia descarada do jazz temperada com pouquinho de samba aguado, eventualmente cedendo aos arroubos semi-sinfônicos de Tom Jobim. Seria Carlinhos Lyra cantando “Influência do Jazz”, ou Billy Blanco jogando uns panos mais arrumados nas costas da música da favela e usando a coitada para cantar as agruras da classe média carioca.

A bossa nova é talvez o gênero musical mais superestimado da história da música brasileira. Se esgotou rápido demais, e no fim das contas não conseguiu superar suas origens de elite carioca. Mas a sua influência é imensurável, e ela certamente não seria a mesma sem João Gilberto. Se conquistou os jazzistas americanos — e sua influência, pelo menos durante um breve instante, foi enorme; o que me vem à cabeça imediatamente é Sonny Rollins tocando If I Ever Leave You, mas exemplo é o que não falta — não foi porque os deslumbrou com algo diferente ou no mínimo exótico com Carmen Miranda 20 anos antes; foi porque eles reconheceram sua própria música ali, mas com a impressão digital de João Gilberto.

E isso basta.

Fases

Eu nem ligo muito quando vejo o pessoal falar que a segunda fase dos Beatles é que é boa, que o resto é bobagem. Pessoalmente, considero a tal primeira fase muito mais revolucionária que a segunda, como já escrevi aqui, mas entendo que as pessoas pensem diferente. Entendo inclusive que algumas pessoas pensem que a Terra é plana. O único problema é que elas estão completamente, uterinamente erradas.

Primeiro porque essa divisão é equivocada. Não há apenas duas fases dos Beatles. Essa ideia foi sedimentada por aquelas coletâneas lançadas alguns poucos anos depois do fim da banda, The Beatles 1962-66 e The Beatles 1967-1970, também conhecidos como os álbuns Vermelho e Azul. Mas a obra dos Beatles é uma evolução constante, do primeiro compacto ao Abbey Road, e foi assim que foi vista em seu tempo. Para efeito de classificação, entretanto — essas imbecilidades em que a academia é mestra —, é possível no máximo fazer uma divisão porca em três fases, mais ou menos. Essa classificação foi feita pela primeira vez por Joe Brennan, se não me engano.

A primeira fase, caracterizada pela abordagem mais básica, estruturada sobre as possibilidades de uma banda com duas guitarras, baixo e bateria, e adequada à necessidade de ser reproduzida ao vivo, iria até o Help!; a segunda, que compreende as fases “de transição” e a “psicodélica”, extremamente experimental, poderia ter como marcos inicial e final o Rubber Soul e o Magical Mystery Tour (incluindo aí o Yellow Submarine, lançado depois mas composto por sobras de 1967); finalmente, uma terceira e última fase, inaugurada com o “Álbum Branco”, que um materialista dialético — fora de moda em tempos de pós-verdade, mas me perdoem por não conseguir deixar de ser um velho comunista — poderia chamar de síntese.

Essa divisão, no entanto, não sobrevive a uma investigação mínima de cada canção.

Olha She Came in Through the Bathroom Window. É uma das faixas do último e mais perfeito álbum dos Beatles, o Abbey Road. Agora compara a danada com uma canção menos conhecida chamada It’s Only Love, do Help!. It’s Only Love tem um problema a mais: para muita gente é uma canção ruim, porque Lennon disse que não a suportava e a palavra de Lennon deveria ser lei.

John Lennon foi para o inferno não pelas barbaridades que cometeu ao longo da vida, mas porque o seu revisionismo magoado e despeitado no início dos anos 70 induziu milhões de pessoas em todo o mundo a uma visão deturpada e errônea da obra da banda que ele fundou, mas não soube levar adiante. Um de seus grandes pecados foi macular algumas canções com opiniões bizarras que um fã que o conhece bem até entende, explica e desculpa, mas que para o resto do mundo serviu apenas para gerar preconceitos infundados. Não custa lembrar: Lennon é o sujeito que disse que o melhor trabalho dos Beatles é aquele hoje disponível nos Live at BBC I e II.

De modo geral, Lennon tinha muito orgulho dos Beatles. Mas por razões que dizem respeito unicamente à sua evolução intelectual e espiritual e à influência muitas vezes nefasta de Yoko Ono, chegou à conclusão de que It’s Only Love, entre umas poucas outras, era uma canção muito ruim, que o envergonhava. É possível que se referisse especificamente a algumas soluções líricas pouco brilhantes, a algumas rimas pouco elaboradas. Lennon via uma canção, prioritariamente, do ponto de vista da letra. A sorte é que não é assim que as pessoas enxergam a música: por exemplo, em nenhum momento os Beatles se aproximado da sofisticação e brilhantismo literários de Bob Dylan em sua melhor fase, os seis discos absolutamente geniais entre The Freewhelin’ Bob Dylan e Blonde on Blonde. E no entanto os Beatles eram tão maiores que Dylan.

O que interessa é que para uma parte significativa das pessoas It’s Only Love é ruim, ponto, foi John quem disse. E se um pai renega seu próprio filho, boa bisca ele não deve ser.

Por causa disso, quase por definição She Came in Through the Bathroom Window é muito superior a It’s Only Love.

É claro que Bathroom Window traz qualidades a mais, que vêm principalmente da evolução sem precedentes da música pop e da própria banda nesses curtíssimos anos; os músicos são mais experientes, mais hábeis, mais inventivos: não dá para comparar, por exemplo, o baixo de McCartney nas duas canções. Mas qualquer doido que toque as duas canções num violão entenderá o óbvio: melodicamente, It’s Only Love é muito superior. Nela, a progressão de acordes, além de mais rica, é por vezes surpreendente — é mais ou menos como se Lennon tivesse compreendido com perfeição o ideal platônico por trás daquele F que Buddy Hollly tirou da manga para encaixar em Peggy Sue. A estrutura de She Came in Through, por sua vez, é muito mais simples, A D, A D, A Dm, A Dm, G7 C, G7 C A, e uma pessoa mais malvada poderia dizer que é a mesma base de Lady Madonna, descontado um Bm aqui, um G ali, um F acolá.

Alguém pode argumentar que liricamente a canção do Abbey Road é mais sofisticada. E é aí que a desgraçada da porca torce o rabo.

Por que é mais sofisticada? Porque fala de algo que nos parece mais chique, porque fala de coisas que a gente não entende direito? “Ela entrou pela janela do banheiro protegida por uma colher de prata”. “Ela trabalhava em quinze boates por dia; e embora achasse que eu sabia a resposta, bem, eu sabia mas não podia contar”. E o melhor dos melhores: “O domingo telefona para a segunda, a terça telefona para mim”.

O uso excessivo de maconha por Paul McCartney é demasiado conhecido e deveria servir para explicar essa letra. De qualquer forma, se você sabe o que ele queria dizer com isso, por favor me dê um alô.

Enquanto isso, It’s Only Love fala de algo que milhões de adolescentes reconheceram como verdadeiro imediatamente. Why am I so shy when I’m beside you?, Lennon perguntava, e aquela matilha de garotos incapazes de chegar junto da garota pela qual, juravam naquele momento, morreriam de amor mais cedo ou mais tarde compreendia isso perfeitamente bem. Entendia também a resposta dada pelo próprio Lennon um pouco adiante: “É só amor, e isso é tudo; por que eu deveria me sentir desse jeito? É só amor, e isso é tudo; mas é tão difícil amar você”.

It’s Only Love é um exemplo muito melhor da conexão estabelecida entre os Beatles e a multidão de seres humanos que se reconheciam em sua letra ao mesmo tempo em que descobriam, através de suas melodias, novas possibilidades musicais. Essa conexão foi única em toda a história. Não se repetirá jamais. E It’s Only Love a exemplifica adequadamente.

Perdidos na TV

Andei vendo, na Netflix, uns seriados que derivam diretamente de programas dos anos 60, meus velhos conhecidos.

O primeiro foi Star Trek: Discovery, mais um spinoff do seriado que só fui entender e admirar recentemente, agora em sua segunda temporada. O segundo é Lost in Space, versão nova do familiar “Perdidos no Espaço” que assolou as TVs do mundo a partir de 1965. Sua segunda temporada deve estrear em alguns meses.

Star Trek: Discovery é uma prequel da série original. Na realidade faz muito pouco sentido, principalmente pelas discrepâncias históricas e estéticas, como a exibição de uma tecnologia obviamente muito mais avançada do que a que víamos no seriado dos anos 60. Em acordo com os tempos, a principal personagem do novo seriado é mulher, negra, complicada, forte: isso a coloca a anos-luz de distância de um seriado em que mulheres apareciam de preferência em trajes sumários. E Sonequa Martin-Green é uma atriz muito melhor que William Shatner.

Mas o seriado começou muito mal. Já vão longe os tempos em que cada episódio de um seriado continha uma história estanque. Agora, cada um deles está mais preocupado em contar a parte que lhe cabe de uma história muito maior e garantir que você assista o episódio seguinte, porque seriados viraram grandes novelas, essa é a verdade. Em tese isso não é bom nem ruim; mas na prática, o resultado é que não temos mais grandes episódios como tantos da primeira série, porque eles não almejam isso.

O “Jornada nas Estrelas” original, com todos os seus defeitos, permaneceu porque conseguiu se tornar maior que seu tempo, utilizando como matéria prima exatamente o melhor que este lhe oferecia; discutia os grandes temas da então atualidade, e mais que a simples aventura, que a simples ficção científica, tentou abordar temas universais como tolerância, preconceito, amor. Star Trek: Discovery abdica disso na maior parte do tempo, e aqui os problemas individuais e a ação são o que realmente importa. O novo seriado é medíocre e a ele falta aquilo que tornou o original atemporal: o humanismo, a busca por respostas a questões maiores do que a simples aventura espacial, a defesa quase militante do respeito à diferença. Isso é ainda mais notável no ano da graça de 2019, em que esses temas são obrigatórios, ainda que normalmente em uma nota só.

Star Trek: Discovery respeitou o seu tempo ao colocar como protagonista uma mulher, negra, com nome masculino; mas mostrou o quanto isso pode ser vazio ao abdicar de qualquer discussão sobre o assunto; é como se estivesse apenas se antecipando ao tribunal do Facebook.

De modo geral, Star Trek Discovery é umbiguista como qualquer outra série menor produzida hoje, e isso dá o seu tamanho exato, lhe insere em seu tempo e o torna medíocre. Star Trek Discovery tentou encaixar pés frágeis em sapatos muito grandes demais, e não conseguiu.

(A situação mudou um pouco na segunda temporada. Não que milagres tenham sido operados, esta ainda é essencialmente a mesma série; mas parece que entenderam um pouco do que tornou imortal o seriado original. Agora, temas um pouco mais amplos se imiscuem em alguns episódios, embora esta ainda seja uma série dos anos 10, o que significa privilegiar acima de tudo os pequenos dramas individuais e o “arco” da estória.)

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“Perdidos no Espaço” é outro velho amigo das gentes que se aproximam dos 50 anos, e dos mais velhos que isso. Crescemos assistindo a ele, e apesar de ter durado apenas três temporadas, como “Jornada nas Estrelas”, “Perdidos no Espaço” me parece ter sido reprisado com mais frequência, pelo menos no Brasil. Para mim isso nunca fez diferença, porque eu não ligava tanto assim para o seriado. Will Robinson era um idiota e o dr. Smith era um pé no saco e eu nunca entendi por que não davam um fim nele, ei, esquecemos o dr. Smith em Órion XIII, que coisa.

Para mim é tentador dizer que refilmar “Perdidos no Espaço” talvez seja a maior prova de que o mundo em que vivemos está criativamente esgotado, tendo que buscar referências em programas  medíocres feitos meio século atrás. Meio século é muito tempo. Só não é mais tentador porque não consigo esquecer que Walt Disney criou um império reembalando contos de fadas com mais de 400 anos de idade (na verdade, tem gente que diz que essas estórias na verdade têm milhares e milhares de anos).

O fato é que o novo Lost in Space tem uma vantagem inestimável em relação a Star Trek: Discovery: o original era ruim. Se qualquer sequência de “Jornada nas Estrelas” já começa em desvantagem, uma refilmagem de “Perdidos no Espaço” tem tudo a seu favor.

Para começar, é tão agradável ver novamente o letteringCreated by Irwin Allen”. Eu sei que na ortodoxia das coisas é Gene Rodenberry o bambambam das galáxias, mas a verdade é que nós, cá no meu torrão natal e no meu tempo, gostávamos muito mais das tosqueiras simplórias e mal produzidas de Allen. “Túnel do Tempo”, “Terra de Gigantes”, “Viagem ao Fundo do Mar”, tudo isso nos dizia mais que as indagações aparentemente profundas do capitão Kirk. E eram mais engraçados.

Sua nova encarnação não tem muito a ver com o original, além dos nomes dos personagens e da nave. A história é diferente, os personagens são diferentes. À primeira vista, deve mais aos filmes de astronautas feitos recentemente — especialmente aos filmes menos que medíocres de Ridley Scott, como Prometheus — do que à pequena tradição da comédia de ficção científica da TV americana dos anos 60. E isso é desnecessário. Lost in Space se sustenta sozinha. Talvez se sustentasse melhor se, 50 anos depois, fosse buscar mais inspiração na ”Tempestade” de Shakespeare, mas não dá para esperar demais.

Importante mesmo é que o novo seriado faz sentido, muito mais que Star Trek: Discovery. A família perfeita americana de 1965 não existe mais — já não existia naquele tempo, talvez —, por mais que os saudosistas queiram: os casais estão se divorciando, os filhos têm pais diferentes, nada é tão perfeito como nos anos 60.

O novo “Perdidos no Espaço” entende esses novos tempos, e isso parece ter incomodado muita gente. Comentaristas no IMDb reclamaram da nova abordagem “politicamente correta”: uma mulher à frente das grandes decisões, uma filha negra, o Dr. Smith como uma mulher, tudo isso parece incomodar muito um número muito grande de pessoas.

Por um lado, é inegável que há uma parcela assustadoramente grande da humanidade com muitos problemas para aceitar o mundo novo, e extremamente vocal em sua revolta.

Mas em parte essa revolta é compreensível. A sensação que essas pessoas parecem ter é que não basta lhe negarem uma primazia que lhes deveria ser reconhecida naturalmente — do homem sobre a mulher, do branco sobre o preto, do europeu sobre o resto do mundo; mas querem tomar também o seu passado, num momento em que, ao menos na seara do discurso, eles são cada vez mais minoria. Eu mesmo tenho dificuldades em entender a razão pela qual insistem em pegar símbolos que são caros a algumas pessoas e transformá-los a ponto de não os reconhecermos. Quem quer uma 007 feminina passa longe do que, para algumas pessoas, devia ser o objetivo da luta feminista: em vez de fazer uma cirurgia de sexo e dar um nome social ao Bond, James Bond, me parece mais justo criarem seu próprio ícone feminino. Talvez fosse mais fácil fazer Lara Croft se tornar adulta, por exemplo. (Isso merece um post à parte, que em suma discutiria o seguinte: para começar, Lara Croft diz mais às novas gerações do que James Bond. Mas se mesmo assim você insiste em emascular Bond, dá razão a quem reclama do discurso “hétero cis opressor estuprador por princípio”.)

Voltando a “Perdidos no Espaço”, o mais interessante nessa série — e em virtualmente todas as refilmagens de seriados antigos — é que eles perderam o humor. Agora eventuais tiradas engraçadinhas são restritas a um personagem, como tem acontecido nestes tempos, e neste caso o que mais se aproxima disso é Don, que de piloto e genro virou mecânico muambeiro.

Mas talvez as coisas sejam um pouco mais complexas do que isso.

O “Perdidos no Espaço” original nasceu como um programa para toda a família, em sua primeira temporada em preto e branco. Mas sendo tão estereotipado, tão esquemático, rapidamente se transformou em um seriado voltado para o público infantil, e daí a excessiva proeminência do Dr. Smith e de Will Robinson, sempre acompanhados pelo robô B9. “Perdidos no Espaço” nunca aspirou à profundidade de “Jornada nas Estrelas”; ainda assim, o Dr. Smith de Jonathan Harris foi um personagem razoavelmente ambíguo. Era um comunista canalha, covarde, aético, mas extremamente carismático em sua humanidade, a ponto de fazer o seriado passar a girar em torno de si. Agora, a Dra. Smith de Parker Posey, em um mundo em que o egoísmo substituiu a ideologia como motor da humanidade na TV, é uma boa personagem, mas sem as muitas vantagens que a comédia trazia para o Smith original.

Por tudo isso, você se vê torcendo pelo personagem menos humano de todos, o robô, e isso é muito triste.

Ele merece um parágrafo. Seu desenho é muito bom: do ponto de vista de um designer, ele respeita as linhas originais e as atualiza ao máximo. Certo, ele não é mais feito por humanos. Isso tira da série a possibilidade de discussão de um tema que que surge no horizonte, as possibilidades e os perigos da inteligência artificial geral, mas mostra que a própria percepção do espaço como reflexo da humanidade mudou, e muito, nos últimos 50 anos. Nos tornamos menos antropocêntricos e menos geocêntricos.

O robô original se chamava B9 — benign, sua besta, nunca percebeu? —, mas de benigno o novo robô não tem nada. E isso reflete o mundo pós HAL-9000. Se nos anos 50 e 60 a humanidade ainda podia ver a tecnologia como uma aliada subalterna e perfeita, hoje ela pode ser nada mais que uma esfinge. E essa é talvez a grande qualidade de Lost in Space.

Gourmet

A única coisa mais chata que essa nova subcultura “gourmet” é reclamar dela, admito.

Mas eu não tenho problemas em ser chato, e é quase impossível controlar minha profunda antipatia a essa moda, quase tão irritante quanto ver alguém chamar um gato ou cachorro de “serumaninho” ou “filhinho”. Uma porra de um gato.

Cresci achando que “gourmet” era substantivo. Transformá-lo em adjetivo, tascar um “gourmet” depois de qualquer palavra — “hambúrguer gourmet”, “self-service gourmet”, “podrão da esquina gourmet” — é, para mim, apenas garantia de comida pretensiosa com ágio excessivo, nada mais que isso. Ninguém jamais viu um “El Bulli Gourmet”, ou um “Ducasse Gourmet”. Eu poderia encerrar meus argumentos aí. E encerro, porque o que vem a seguir é basicamente a eterna arenga de um velho cansado da estupidez que tem virado a norma nos dias de hoje.

Essa coisa de gourmet é, em essência, contraditória: é profundamente antidemocrática, mas é também resultado de uma certa democratização. A princípio, me parece a convergência de dois fatores curiosos. Um é a proliferação dos cursos superiores de gastronomia, que fez com que um bocado de gente sem talento real para a coisa, como sói acontecer em qualquer profissão (e eu sou a prova viva disso), precise ganhar a vida de maneira digna, que pelo menos pague os dinheiros gastos nos anos de curso — embora, sem querer desmerecer ninguém, mas pouco me lixando se desmereço, me pareça desaforo alguém passar anos estudando técnicas gastronômicas para depois ganhar a vida como pouco mais que chapeiro de luxo. O outro, e certamente o mais importante, é a necessidade de uma sociedade perdida no labirinto de um interminável fin de siécle, cujo hedonismo crescente nunca deixa de me espantar, de se diferenciar individualmente através do que tem ou daquilo a que aspira ter. Comer todo mundo come; mas só uns poucos comem diferente, porque podem pagar mais por isso — e esse pagar é a garantia de superioridade da bobagem que estão comendo, da “experiência”.

Obviamente não posso fazer nada quanto a esse estado de coisas. É inútil e uma implicância extremamente pessoal. Junto minha antipatia às idiossincrasias daqueles que não gostam de, sei lá, Beatles ou suco de mangaba: reclamar é ainda mais chato, e no fundo não interessa a ninguém, ou pelo menos não interessava antes que virasse moda doirar a própria vida medíocre no Facebook ou no Instagram: o idílio com o marido que trai você, a viagem cuja foto no Instagram esconde a bolsinha da CVC, o filho horroroso que você diz ser lindo (você quer acreditar nos comentários, uma sucessão de lindo lindo lindo, sem maiúsculas nem pontos; saiba que eles estão mentindo) — tudo isso está umbilicalmente ligado a essa coisa de gourmetização.

O que posso fazer é me recusar, por princípio, a fazer algumas coisas.

Eu não como hambúrguer gourmet, ponto. Não como porque a ideia de hambúrguer gourmet é um contrassenso para mim, uma confissão abjeta do fracasso de uma civilização em processo acelerado de decadência. O hambúrguer foi inventado para tornar mais palatável e macia uma carne dura mas saborosa, e é coisa para ser combinada de maneira rápida e simples; na prática isso é, ou deveria ser, antitético à ideia de comer realmente bem, que pressupõe uma elaboração e riqueza de sabores impossível de ser alcançada por aquela mistura simples de pão, carne e otras cositas más em uma mordida só.

É uma razão diferente da que me faz não comer macarrão na rua — eu faço melhor, quase sempre —, e diferente também daquela que me faz olhar com reservas esse pessoal que tenta reinventar a comida do cotidiano, aquela comida entrincheirada na cultura e tradição de um povo e feita de maneira simples, quase automática, por quem não precisa sobrevalorizar o que faz com aquela conversa intragável e canalha de que “cozinhar é um ato de amor”. Por exemplo, há poucas coisas mais gostosas que sarapatel, do jeito que é feito. Inventar sobre isso é chover no molhado, e o resultado por ser justamente o contrário do que se pretendia.

Claro que em tese — embora eu duvide muito— seria possível fazer isso, reduzir o sarapatel à sua eventual essência (para entender melhor o que quero dizer, é só lembrar da ratatouille servida ao crítico gastronômico no desenho homônimo). Mas para isso é preciso um talento que as pessoas, em sua virtualmente absoluta totalidade, não têm. O resultado é garam masala na rabada.

Eu já vi hambúrguer de filé mignon, e custei a acreditar no que via. Porque o filé não é, nem de longe, a carne mais saborosa de um pobre boi. É a mais macia, apenas, e por isso os franceses inventaram tantos molhos para acompanhá-la. Um hambúrguer de filé mignon é uma confissão de estupidez como poucas outras no mundo culinário. Maior só a daquele infeliz que colocou pó de ouro em seus pratos, um sujeito que certamente merece os mais dantescos castigos que o inferno pode oferecer.

Da mesma forma, acho tão estranho essa mania de “degustar” cerveja cara. O sujeito compra uma cerveja de 50 reais, 300 ml apenas. Não. Está errado. Que me desculpem os aficcionados, mas isso é um desrespeito à cerveja, à sua história e à sua finalidade.

Cerveja é bebida de quantidade. É bebida social, feita para beber em grupo, em grandes quantidades. Você fica bêbado com uma cerveja? Se não, não vale a pena empurrar 60 reais numa cerveja artesanal feita por monges trapistas em Connard de Poche-Pleine, só porque é a última explosão da moda. Se vai me dizer que bebe apenas pelo gosto — por favor, respeite os seus próprios anos de esforço para passar a gostar daquela bebida amarga porque não queria se sentir socialmente deslocado. Mais degradante que isso, só cerveja sem álcool.

Mas a cultura gourmet faz você sentir que precisa comprar coisas caras, singulares — mesmo que você precise fingir não perceber o paradoxo da singularidade na cultura de massa. Mais que isso, é a disposição em ser roubado que me incomoda. Tem pouca coisa como uma Guinness tirada na hora, ou uma Urquell preparando o seu apetite para seu joelho de porco que vem chegando. Não porque são boas, apenas, mas também porque são baratas em seus respectivos buracos. E no entanto as pessoas se esforçam para mostrar que estão bebendo uma cerveja cara. Estão se esforçando para serem otários.

Acontece algo semelhante com o vinho. Eu gosto muito de vinho. Muito, mesmo. Bebo mais que a média brasileira, o que não é grande coisa: no Brasil se bebe dois litros de vinho por cabeça ao ano, enquanto os padres do Vaticano bebem mais de 54 — embora não se saiba quanto disso é destinado a embebedar garotinhos inocentes. O desnível é muito maior porque a lista brasileira provavelmente inclui clássicos imorredouros como Dom Bosco, Canção e Sangue de Boi; se se restringir a vinhos minimamente decentes deve dar menos de uma garrafa por pessoa, e posso apostar que o grande campeão é aquele Reservado Concha y Toro — contra o qual, a propósito, eu não tenho nada. Só para comparar, cada brasileiro bebe 82 litros de cerveja por ano.

Eu bebia mais que os padres do Vaticano, e olha que nem gosto de menininhos. E sei que com 50 reais você compra uma garrafa de um vinho honesto, e com uns 100 compra um bem decente, naqueles dias em que você se sente muito rico. É o bastante para mim. Ainda é caro, e pode ser ainda mais — aqui você compra por 800 reais um bom Brunello di Montalcino que sai lá fora por uns 50 euros —, mas é o mercado, fazer o quê. No limite, não nego que se tivesse dinheiro eu seria capaz, uma vez na vida, de derramar 4 mil euros num Chateau Pétrus — se 4 mil euros equivalessem a uns 200 reais para mim —, apenas para saber por que é tão caro. Mas jamais, jamais, jamais jogaria fora 20 mil euros para comprar um Romanée-Conti, porque não acredito que alguém tenha papilas suficiente no diacho da boca para sentir a diferença desses 15 mil tostões. A cultura gourmet, no entanto, é a eterna busca pelo Romanée-Conti, e cada um vai se contentando com o mais próximo a que pode chegar dele, uma proximidade medida em reais.

É isso que essa conversa de “gourmet” significa para mim. É apenas um desvirtuamento do que significa prazer, comer e beber bem. Comida tem apenas duas funções reais: encher a barriga e, se possível, dar algum prazer sensorial. Vinho também, com o prazer sensorial tomando a dianteira. Mas a cultura gourmet os eleva acima disso, e por isso, para esse pessoal, qualquer chianti de 400 reais é por definição melhor que um portuga de 60, não interessa quais sejam.

É isso. Agora que as definições mudaram, que gourmet deixou de ser um sujeito que gosta de comer bem e variadamente, a palavra para mim passou a definir algo diferente: aquele sujeito mais interessado em espalhar aos quatro ventos que dormiu com uma mulher do que em fazer safadeza com ela.

Get Back and Let it Be

Eu já escrevi sobre isso aqui, em mais de um momento, mas não custa escrever de novo.

Basicamente, o filme Let it Be pode ser visto como a crônica de uma banda superando suas dificuldades através da força redentora da música.

A primeira parte do filme foi filmada nos estúdios Twickenham, em Londres, a partir de 2 de janeiro de 1969. Frio de assustar pinguim num espaço enorme e vazio com um bocado de gente estranha em volta: fazer música assim, principalmente sem se darem o tempo necessário para superar as sessões conturbadas do “Álbum Branco”, era impossível, como apontou George Harrison. O resultado é um clima estranho, hostil até. Vemos uma banda que está claramente se desintegrando, em que a intolerância mútua não para de aumentar. A presença tóxica de Yoko Ono não ajuda em nada; o vício de John Lennon em heroína, tampouco. Paul McCartney tenta fazer a banda funcionar tomando a frente, o que para os outros soa apenas como uma tentativa de controlá-los e fazer deles sua banda de apoio, uma impressão que talvez não fosse totalmente disparatada.

Quando Harrison finalmente saiu da banda, depois de uma discussão com Lennon, uma de suas condições para voltar era a de que saíssem de Twickenham e fossem para o estúdio da Apple. O estúdio montado por um picareta chamado Alexis Mardas não valia nada, mas ali era sua casa — mais que isso, era um estúdio de gravação, o seu ambiente natural. Foi a decisão mais acertada que poderiam tomar. Os ânimos melhoraram instantaneamente, e certamente para isso contribuiu também a presença de Billy Preston, obrigando-os a se comportar com civilidade. Essa melhora é facilmente perceptível no filme, mas também nas gravações não incluídas no produto final.

Finalmente vem o concerto no telhado da Apple, no penúltimo dia de gravação. Foi outra das condições de Harrison, que não queria fazer o grande show ao vivo que McCartney propôs (pensaram até em Pompéia, antecipando o Pink Floyd em alguns anos). Apesar do frio desolador, a intimidade entre os quatro, o entrosamento musical único, a cumplicidade histórica entre Lennon e McCartney e, paradoxalmente, as semanas desgraçadas que passaram ensaiando fazem daqueles poucos minutos quase um revival da velha banda que havia conquistado e ajudado a mudar o mundo. Naquele momento não existem os problemas financeiros, as diferenças de visão artística e musical, a queda de braço entre McCartney e os Eastman e os outros Beatles ao lado de Allen Klein. O que existe é a música, exatamente o que fez deles a maior, a melhor e a mais influente banda de toda a história.

Se s Beatles tivessem continuado, o Let it Be seria visto assim: a história de uma banda em crise que graças à música supera os seus problemas; essa é a sua estrutura básica. Mas não foi bem isso que aconteceu, e o resultado é um filme que, sendo lançado com um ano de atraso, um mês após o anúncio da separação, soa unicamente como um epitáfio, um pós-escrito, e não dos melhores. Não é mais o crescendo musical e pessoal, a apoteose alegre, os olhares cúmplices entre Lennon e McCartney que sobressaem: é a irritação, a má vontade, o descaso, é Harrison dizendo que tocará como McCartney quer, ou não tocará se ele preferir assim.

Mas não é só isso. O fato é que, além do interesse histórico e musical, o Let it Be é um filme muito ruim.

Eu assisti a ele — ou melhor, vi que estava passando na televisão e aturei alguns momentos — no dia 14 de dezembro de 1980, quando a TV Aratu o exibiu numa tarde quente de domingo, certamente motivada pelo assassinato de Lennon uma semana antes. O pouco que lembro consegue evocar apenas uma palavra em mim: tortura. Mas tarde, já fã da banda, assisti várias e várias vezes. Continuo achando muito, muito ruim.

Os Beatles cometeram um erro gravíssimo ao entregar uma tarefa que se revelaria hercúlea a Michael Lindsay-Hogg. Verdade seja dita, seria muito difícil para qualquer um ter que lidar com uma banda em crise mas perfeitamente consciente do seu tamanho e do seu poder, e certamente com um profundo senso de unidade quando confrontada com qualquer pessoa de fora — o que incluía Brian Epstein e George Martin. Mas além de tudo isso, ele não tinha a experiência necessária, e provavelmente nem o talento.

Lindsay-Hogg não soube editar um filme que fosse coerente e inteligente. Ele parece ter tentado costurar uma narrativa linear, mas realmente não sabia o que estava fazendo. O resultado é abaixo do medíocre. Há uma infinidade de conversas registradas que fariam do filme algo surpreendente, sólido, valioso (recomendo uma visita ao A Moral To This Song, que faz um trabalho belíssimo transcrevendo esses diálogos); mesmo obedecendo aos limites estabelecidos pela banda seria possível fazer um grande filme — se ele soubesse como fazer.

Let it Be já foi restaurado digitalmente há muito tempo, mas os Beatles sempre relutaram em relançá-lo. O filme conseguiu a proeza de desagradar a todos, e ainda hoje deve ser um dos pontos de conflito entre os remanescentes e os herdeiros dos já defuntos. Mas o tempo passa, o dinheiro da venda de discos que possibilitou a George Harrison e John Lennon viverem nababescamente sem fazer nada não existe mais, e o Let it Be pode descolar alguns caraminguás tão necessários nestes tempos difíceis.

A oportunidade virá em 2020, quando ele completará 50 anos. No entanto, eu já disse aqui e repito: eu jamais relançaria o Let it Be. Em vez disso, entregaria as 90 horas de material bruto para Martin Scorsese e deixaria que ele fizesse um novo filme, como quisesse, utilizando o que se sabe ser uma experiência e talento muito, muito superiores aos de Lindsay-Hogg e com o benefício de meio século de distância. Acho que ele faria isso até de graça.

Eu daria ao resultado o título original do filme: Get Back.

Mas isso é impossível. Basta ver o que fizeram com Eight Days a Week, dois anos atrás: entregaram o trabalho a um diretor medíocre como Ron Howard, porque eles já consolidaram a sua história e não querem alterá-la, e precisam apenas de um artesão obediente que organize uma narrativa de acordo com as versões que querem deixar para a posteridade.

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Musicalmente o cenário é melhor, com mais possibilidades, mas também com mais chances de dar tudo errado.

Agora que a Apple Corps. finalmente se rendeu ao modelo utilizado por McCartney há anos para continuar a vender material antigo — remixar um disco velho, incluir outtakes, demos e eventualmente canções inéditas, jogar no balaio livretos e souvenirs e vender tudo isso por dez vezes o preço de um disco comum —, dificilmente deixará de aproveitar as próximas oportunidades para reembalar seus cacarecos e vendê-los a fãs que comprariam qualquer coisa com a chancela dos Beatles. É desonesto: todo esse material é simplesmente inferior, que jamais deveria ver a luz do dia ou, ao menos, ser oficializado. Mas as pessoas querem ser enganadas, como prova Jair Bolsonaro.

Eu posso apostar que as primeiras gravações retiradas das sessões do Let it Be serão lançadas em agosto do ano que vem, numa eventual edição comemorativa do cinquentenário do Abbey Road. Podemos esperar uma nova mixagem, discos e mais discos de outtakes e etc. Várias dessas gravações serão retiradas das sessões de janeiro de 69, quando boa parte delas foi ensaiada. Há cerca de 90 horas de gravações do Let it Be — que, para quem tem pressa e paciência, podem ser encontradas na internet, na série A-B Road, da Purple Chick.

Mas é em 2020 que virá chance de os Beatles finalmente resolverem as questões que envolvem o Let it Be e que estão mal resolvidas há meio século, Curiosamente, essa seria a única remixagem que eu gostaria de ouvir. Realmente não liguei para as do Sgt. Pepper’s e do “Álbum Branco” (as do “Álbum Branco”, por sinal, me pareceram ter retirado um pouco do som distinto do álbum, encaixando-melhor no padrão George Martin dos outros discos dos Beatles, o que não é bom), mas sempre achei o som do Let it Be estranho, abafado. Uma remixagem vai lhe fazer bem.

Mas a principal questão é: e o resto? Que vai haver uma edição comemorativa do Let it Be eu não tenho dúvidas. O problema é saber como ela vai ser, porque ela poderia ser realmente boa, rica, nova.

Eu tenho a minha ideia de uma edição comemorativa. Para começar, eu relançaria o Get Back, a segunda mixagem de Glyn Johns, com a capa original. (Falo “relançar” porque o álbum chegou a ser distribuído para algumas rádios, mas foi quase imediatamente recolhido.) No entanto, acho difícil. É mais fácil relançarem o livro que acompanhava a primeira prensagem do Let it Be, excluído logo depois porque encarecia muito o disco.

Em vez de incluir o amontoado de outtakes que costumam incluir, eles poderiam fazer um álbum apenas com gravações realmente inéditas da banda. Certo, duvido que eles lancem pequenas pérolas como Negro in Reserve, When You’re Drunk You Think of Me ou What’s the Use of Getting Sober, mas ali há material suficiente para encher três ou quatro discos com qualidade.

Mas tudo isso são apenas desejos. O histórico da Apple nesse sentido é muito ruim, e eles sempre passam a impressão de estarem sempre segurando material, para garantir que possam lançar algo “novo” daqui a alguns anos. A mim isso não importa mais. Quase todo esse material está na internet. Ninguém precisa mais da Apple. Let it be.

Mais um sobre Jerry Lewis

Assisti nos últimos dias a alguns filmes de Jerry Lewis. Fiz isso porque percebi que fazia mais tempo do que eu imaginava desde sua morte. Na minha cabeça ele tinha morrido há três, quatro meses. Tomei um susto quando vi que foi em agosto do ano passado. O tempo está passando rápido demais para mim, e isso é ruim, mas Jerry foi um dos meus ídolos de infância e agora me percebo um fã ingrato, indigno.

Acontece.

Na verdade, fazia alguns anos que eu não assistia a um filme dele, com exceção de “Max Rose”, de 2013. E fazia muito mais tempo que não assistia a algo que já tinha visto várias vezes, como “Bancando a Ama Seca” ou “Errado Pra Cachorro”.

Então no fim de semana assisti a “A Barbada do Biruta”, “Artistas e Modelos” e “Cinderelo Sem Sapato”. Amanhã assisto a “O Terror das Mulheres”.

“A Barbada do Biruta” eu peguei da metade para o final, em 82. Assistindo a ele sem prestar a atenção devida, concluí que era um filme ruim, talvez porque nos últimos tempos vinha vendo apenas suas obras ruins, como “3 em um Sofá” e, antes disso, “O Fofoqueiro” e “Um Biruta em Órbita”. Eu estava enganado: esse é um dos bons filmes de Martin & Lewis, típico dos seus primeiros tempos, com todos os vícios maravilhosos das apresentações da dupla.

“Artistas e Modelos”, que assisti há quase 40 anos, é outro bom filme, e embora eu não lembrasse de muita coisa, há cenas indeléveis que me acompanham há quase 40 anos, como Jerry pegando um bife na janela (na versão dublada, eu lembro, era filé), e Shirley MacLaine cantando Innamorata para ele.

“Cinderelo Sem Sapato” eu vi em 1999 ou 2000. Achei ruim na época. Mas depois vi críticas boas sobre o filme, a cena da dança na escadaria é antológica, e achei que estava errado, que não lhe tinha dado a devida atenção. Não estava: o filme é muito ruim, mesmo. Passa a sensação de que foi severamente cortado, tirando do corte final elementos essenciais para a compreensão da história, como a transformação dele pelo “fado padrinho”. Além disso, a história de amor é completamente absurda, mal construída e inverossímil; deve ter sido outra vítima de cortes.

Foi coincidência, mas esses filmes, nessa ordem, acabam ilustrando bem a evolução de sua carreira. E me fizeram pensar em algo que eu nunca tinha pensado de verdade: a causa de sua decadência a partir da metade dos anos 60.

Em Dean and Me, Jerry credita sua derrocada ao divórcio entre ele e o gosto do público. Ele está parcialmente certo, mas as causas são muito maiores do que apenas isso, ou pelo menos mais variadas.

A principal é o fato de que, sem Dean Martin, ele foi forçado a crescer, ou (se levarmos em conta o seu ego monstruoso e a certeza da própria genialidade) aproveitou a oportunidade para isso. Do espiroqueta amalucado e anárquico dos filmes da dupla, ele tentou desenvolver uma persona mais complexa, mais hollywoodiana: se tornou mais “ator”. Seus personagens deixaram de ser tão histriônicos, tão naturalmente engraçados, porque ele se viu obrigado a demonstrar um espectro maior de sentimentos e atuação. Talvez não tivesse escolha: basta assistir a “O Delinquente Delicado”, concebido para Martin & Lewis mas filmado depois do rompimento, para ver que aquele modelo só funcionava com aqueles dois indivíduos. (O filme também mostra que Dean tinha razão em juntar os panos de bunda e ir embora:  é um veículo para Jerry, não para a dupla, embora a mutilação do papel que caberia a Martin possa ter sido feita depois da separação.)

O Jerry Lewis mais velho já não podia se permitir o completo abandono de si mesmo em que aquele garoto, que tinha Dean Martin para o controlar, se esbaldava. Ele não era mais infantil, e embora seus personagens sempre apostassem na ingenuidade e na pureza de coração, era a ingenuidade do adulto comparada à ingenuidade da criança: a atitude que desperta nas pessoas a vontade de dar uns tapas, em vez de rir. Não tinha como dar certo por muito tempo.

A isso se junta algo que eu sempre senti, mas nunca tinha racionalizado: fisicamente ele foi mudando muito à medida que se aproximava dos 40 anos. O rosto antes magro e anguloso, adolescente, ficou mais gordo, mais cansado, e ele perdeu aquela pureza transparente e ansiosa que tinha nos anos 50. Mais que isso, seu rosto oleoso e sua expressão passaram a ter algo cansado, cínico, até ruim — o rosto de um magnata do cinema, gasto, vicioso. Ele deixou de ser alguém de quem você gostaria imediatamente. Talvez eu esteja exagerando, mas o fato é que não dava para um homem de 40 anos se comportar como um menino de 8. E acho que Jerry percebeu isso.

Ao mesmo tempo, rever seus filmes dos anos 50 reavivam a sensação de deslumbramento que eu e o público, torcendo nossos narizes para os críticos, sempre tivemos. Sobre isso eu já escrevi aqui, não faz sentido me alongar. “A Barbada do Biruta” traz um bocado desse esplendor. Mas a verdade é que nada pode se aproximar do que esses dois sujeitos faziam no palco.

Hoje qualquer pessoa pode achar suas apresentações no Colgate Hour. Estão disponíveis no YouTube. Dia desses encontrei uma que não tinha visto ainda. E estou maravilhado até agora.

Por isso faço uma aposta com você. Assista a esse vídeo aí embaixo e não ria. Não acredito que seja necessário entender inglês para cair na gargalhada. Mas se você conseguir, volte aqui e eu te pago uma Heineken. Eu preciso ser honesto e avisar que pago, mas vou pensar em você, por todo o sempre, como o personagem de Kevin Kline ouvindo I Will Survive em “Será Que Ele É?”.

Já vai tarde, Saraiva

O Luiz Schwarcz publicou uma carta aberta em defesa das redes de livrarias Cultura e Saraiva, que pediram concordata dia desses.

É curioso que, quando o sapato aperta no calo de algumas pessoas, elas de repente se arvoram em defensores de todos os calos do mundo, principalmente os pequenos, aqueles de que ninguém parecia se lembrar antes. A carta do Schwarcz parece ser um caso desses. Invoca a devoção aos livros, pede a união amorosa e idealista de editores, autores e livreiros — é, aqueles mesmos que editoras grandes como a Cia. das Letras e a Record, e redes como a Saraiva, sempre asfixiaram.

Se eu fosse um pouco mais cínico enxugaria uma lágrima furtiva pela dor da Saraiva e pela bondade insuspeita da Cia. das Letras. E não riria com incredulidade ao ver empresas — que fizeram suas fortunas investindo em um modelo predatório — pedindo a solidariedade dos antes esquecidos para ajudar essas coitadas altruístas, vitimadas pela concorrência desleal da internet e da Amazon. Felizmente a bondade que mamãe colocou no meu coração tem limite, e tudo o que eu consigo fazer é me perguntar: só agora? Só depois que a Civilização Brasileira, a Distribuidora de Livros Salvador, a Didática, a Modelo, que centenas de livrarias pequenas fecharam é que vocês vêm falar em “união pelos livros”?

Não. Desculpe, mas não. Eu estou pouco me lixando para o destino da Saraiva.

Trinta anos atrás, Aracaju tinha umas cinco, seis livrarias. Provavelmente não eram o suficiente para uma cidade do seu pouco tamanho, mas cada uma delas era o retrato de um modo singular de ver livros e cultura, o estilo do seu dono. A Didática tinha identidade específica, a Modelo tinha um jeito diferente, a Regina tinha cara própria. Salvador, tão maior, tinha muitas mais, tinha inclusive algumas pequenas redes locais como a Civilização Brasileira e a Distribuidora de Livros Salvador, além de uma infinidade de pequenas aqui e ali, algumas especializadas, outras não. Livrarias como a Estante na Alameda Antunes ou a Freitas Kanitz em Ondina, umas tantas na Praça da Sé onde hoje só existem armadilhas para turistas.

Todas elas desapareceram. Hoje, a única livraria local em Aracaju é a Escariz, que nasceu como banca de revistas há mais de 30 anos e aos poucos migrou para o mercado de livros. A Escariz representa uma resistência heróica (desculpe, eu não sei escrever “heroica”) a um sistema em que editoras e grandes redes se uniam para oferecer mais vantagens ao leitor, ao mesmo tempo em que as negavam para as pequenas livrarias.

Mais triste foi o destino de Salvador, que viu a Civilização Brasileira passar pela humilhação de tentar macaquear seu algoz, transformando-se por algum tempo num arremedo de algo que não deveria ser imitado jamais, antes de fechar definitivamente as portas. Há umas poucas décadas a Avenida Sete era repleta de livrarias; hoje as lojas onde funcionavam vendem bugigangas e badulaques e roupas vagabundas.

Isso, claro, não pode ser creditado apenas à ação predatória das grandes redes; é o resultado das mudanças urbanas causadas pelo crescimento das cidades, pelo surgimento dos shopping centers, pela mudança de padrões culturais. Mas as redes foram um instrumento importante na derrocada das livrarias, e com isso, o que a cidade perdeu foi muito mais que alguns lugares onde comprar livros. Não apenas porque todas elas tinham algo em comum, a individualidade. Nem porque eram obras de pessoas mais interessadas em realizar suas próprias ideias de mundo do que em ganhar carroças de dinheiro, e portanto não eram, nem podiam ser, criações de entrepreneurs, de executivos modernos, de gente que quer apenas ficar rica, tanto faz se vendendo ideias, papel ou linguiça. Mas porque a cada livraria que fechou as portas na Avenida Sete ou no Calçadão da João Pessoa, as cidades morreram um pouquinho.

Não quero que fique a impressão de que estou dizendo que “naquele tempo era melhor”, porque não era. O mundo das pequenas livrarias era restrito, limitador. Mas elas tinham uma ligação orgânica com suas cidades, refletiam suas comunidades de uma maneira completamente inversa à de livrarias como a Saraiva, que impõem o seu modelo pasteurizado independentemente de onde se instalem.

Foram essas livrarias, retratos únicos das cidades onde estavam, que redes como a Saraiva e a Siciliano engoliram sem pena e sem cartinhas. Ninguém fez apelo bonitinho quando a livraria da esquina fechou as portas diante da concorrência impossível das grandes redes. E agora, quando o Schwarcz lamenta que “muitas cidades brasileiras ficarão sem livrarias”, só pode estar brincando. Para começar, a maioria das cidades pequenas do país já não têm livrarias há muitos anos, e quando essas cidades precisaram de uma, nunca interessou à Saraiva ou à Cultura abrir uma lojinha nelas. Ele certamente se refere às médias, aquelas onde a Saraiva dizimou a concorrência disponibilizando descontos oferecidos apenas a ela por editoras como a do Schwarcz.

Pior que isso, esse apelo é extemporâneo e inútil. Pequenas ou médias, essas cidades já não precisam da Saraiva, ou de qualquer outra rede.

Dia desses comprei “Os Anos 20”, de Edmund Wilson, livro que quis mas não tive dinheiro para comprar uns 30 anos atrás. Comprei também “Olympia”, de Otto Friederich, livro que quis mas não tive dinheiro para comprar uns 25 anos atrás. Ambos usados, já saíram de catálogo há alguns anos. E não foi na Saraiva, na Cultura ou mesmo num sebo local: foi na Amazon. Foi ela quem mitigou a ausência de livrarias.

Não é só isso que, na carta do Schwarcz, soa falso e até desonesto. “Com a recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos – gerando um rombo que oferece riscos graves para o mercado editorial no Brasil”, diz Schwarcz. Vamos falar a verdade. Dezenas de lojas foram fechadas — confere, embora ele se refira a redes como a Fnac e Saraiva. Editoras ficaram sem 40% ou mais de seus recebimentos depois de apostarem num modelo que prejudicava as pequenas livrarias — confere, e é essa a razão dessa carta. Centenas de livreiros foram despedidos — epa.

Se ele se refere aos vendedores da Saraiva, meninos mal pagos e explorados e sem conhecimento real do mercado editorial, chamá-los de “livreiros” é um desrespeito às centenas de pessoas apaixonadas por livros, que tocavam negócios além do comercialmente viável, e que foram tiradas do mercado pelas Saraivas da vida. Livreiro é outra coisa. Livreiros são aqueles de quem a Saraiva veio ajudando a tirar empregos e ganha-pães há décadas, com a ajuda das grandes editoras. Sempre em silêncio, acompanhados de pequenos choros aqui e ali, mas que ninguém fazia questão de ouvir.

Não, não, eu não vou chorar a morte da Saraiva. Sua eventual falência não me vai me dizer absolutamente nada. A vida é assim mesmo — devem ter sido exatamente essas as palavras ditas quando a Civilização Brasileira fechou. Agora é a minha vez de louvar a lógica fria da consolidação de mercado e do ganho de escala que fez da Saraiva um instrumento de destruição das pequenas livrarias, a mesma que agora faz da Amazon a guilhotina no pescoço das “megastores”. Foi na Amazon, aliás, que aprendi que, procurando, posso comprar livros novos — inclusive livros da própria Companhia das Letras — por preços muito mais baixos, como meu pai me ensinou há quase 40 anos numa Civilização Brasileira da Avenida Sete e que as Saraivas da vida tinham tornado coisa do passado.

Desculpe, mas para mim essas redes de livrarias podem morrer, com seus descontos insuficientes, com seus cafezinhos de dez reais, com seus iPhones e Blu-Rays. Para mim, a Saraiva já vai tarde.

Júlia, Sabrina e Bianca — e Momentos Íntimos

Anteontem parei numa banquinha de livros e revistas usados no mercado, enquanto ia comprar camarão, e comprei também uma Sabrina e uma Momentos Íntimos.

Alhures nesta internet sem lei você vai encontrar resenhas e críticas bem fundamentadas de livros decentes, como os do Machado de Assis, Alex Castro e Luiz Biajoni. Aqui neste blog não há lugar para tantas sofisticações, e portanto seguem alguns comentários sobre essa categoria literária tão desprezada por aí.

Antes, no entanto, uma explicação.

Uns sete lustros atrás, quando eu ainda era criança, costumava acompanhar minha mãe ao trabalho. Nunca tinha o que fazer, mas uma colega dela, que trabalhava no turno anterior, era viciada nesses romances de banca: Júlia, Sabrina e Bianca. Na época eu lia compulsivamente o que quer que me aparecesse na frente, e além disso tinha algumas horas completamente livres em minhas mãos. Assim, ao longo de alguns meses, li dezenas desses romances, a ponto de entender perfeitamente a estrutura comum a todos eles.

Lembre-se, era o começo dos anos 80. Aqueles livros editados então pela Abril tinham sido publicados nos EUA e na Inglaterra cinco, dez anos antes. Suas protagonistas eram sempre garotas belas, às vezes belíssimas, mas sempre despretensiosas. Sempre jovens, sempre querendo saber bem mais que seus vinte e poucos anos; trabalhavam, modernas que eram, mas muitas vezes apenas como um esforço orgulhoso e sensato por independência, antes que a necessidade mesquinha e pouco romântica de garantir o pão com manteiga da manhã seguinte e a prestação da geladeira. Porque no fundo, como moças sérias e direitas que eram, o que elas queriam era casar. Como um plus a mais adicional, essas heroínas eram invarialmente virgens, e embora já demonstrassem sentir alguma vergonha por insistirem em ser moças à moda antiga (o que obviamente as qualificava mais diante de suas leitoras), estavam decididas a se guardar para quando o amor verdadeiro chegasse.

Para essas moças que toda leitora queria ser, o de cujus chegava na forma de um homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico. Tinha sempre um “olhar magnético” — até hoje, quando lembro desses livros, é essa expressão presente em nove de cada dez deles que me vem à cabeça: um “olhar magnético”, geralmente vindo de olhos cinzentos.

Ela se apaixonava perdidamente, loucamente, descontroladamente, e a paixão era obviamente recíproca. Eles começavam a namorar, mas em algum momento um mal-entendido os separava, normalmente resultado da grande paixão e da grande insegurança de ambos. Era a suprema vitória dessas moças: conquistar o macho alfa, fazê-lo menino de novo, inseguro diante delas. Claro que, no final, o mal-entendido se resolvia. E a moça virtuosa e forte em sua feminilidade e o homem poderoso mas subjugado pelo amor seriam felizes para sempre.

Aí pela metade dos anos 80 apareceu um novo título. Se chamava Momentos Íntimos e trazia uma diferença fundamental, ainda que com um atraso de dez ou vinte ou oitenta anos em relação à vida real: agora as moças abriam as pernas. Momentos Íntimos tinha esse nome porque aqui o véu casto do pudor não mais caía depois do beijo mais ardente; em vez disso, éramos brindados com descrições lúbricas da maneira como ele, amante insaciável e talentoso, a fazia descobrir um novo significado para a vida. É bom lembrar que até o meio do livro as moças, assim como suas colegas belas, recatadas e do lar em Júlia, Sabrina e Bianca, eram virgens. Mas agora hímens rompiam a três por quatro, como barragens em Mariana.

Era isso que eu queria rever quando decidi comprar os livros.

Escolhi com algum cuidado. Os que eu queria precisavam ter sido publicados na primeira metade dos anos 80, no caso de Júlia, Sabrina e Bianca, e na segunda metade no caso de Momentos Íntimos. Escolhi a Sabrina pela logomarca, minha velha conhecida, e a Momentos Íntimos pelo preço original, marcado em Cz$.

A Sabrina traz “Terra de Paixões”, de Janet Dailey, publicado originalmente em 1975 e, aqui, em 1983. Antes de me aventurar no conto de fadas tive um lembrete agradável de que às vezes o melhor de comprar livros usados são os brindes involuntários que você recebe. Nesse caso, ganhei dois vales-transporte de uns 30 anos atrás e uma xerox da carteira de identidade de dona Maria Luiza Teixeira dos Santos. As sucessivas donas desse livro também deixaram suas marcas. Uma rubricou seu nome com a data: 16/01/84; outra, pioneira da economia colaborativa, preferiu deixar seu veredito: “Muito boa. Agradável de ler, curiosa, diferente. 18/05/12, Aju”´.

Eu não queria diferente, eu queria igual. De qualquer forma, o nome da autora não me era estranho. Fui catar e ela está na Wikipedia. Morreu dia desses, não sem antes vender a bagatela de 300 milhões de livros. Dizem que inovou o gênero ao criar o “romance de western”. E “Terra de Paixões”, um dos seus primeiros livros e que ainda está no prelo, é exatamente isso: uma modelo linda e virgem e esforçada conhece um cowboy de rodeio com metro e noventa, belo, arrogante, infelizmente sem o clássico “olhar magnético”. Se casa por impulso, porque percebeu imediatamente que esse era o homem de sua vida, e vai para a fazenda nele no Novo México. O choque cultural causa problemas, o pobre vaqueiro rico se sente inseguro porque acha que ela não vai se adaptar à vida no campo, e naturalmente o orgulho de ambos os afasta. Mas ai de você, pessoa pobre do século XXI já descrente da felicidade que só se pode encontrar num homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico, se aposta que eles continuaram distantes um do outro: no final vence o amor, sempre o amor.

A Momentos Íntimos traz “Insensato Amor”, de Catherine Coulter, publicado originalmente em 1985 e aqui um ano depois. Pertenceu a dona Maria Juvanira Nunes, que o comprou em 24/01/1986 — não, 1987: ela tinha escrito 1986, antes de riscar e marcar a data correta. Ainda não tinha se acostumado com o novo ano.

Dona Coulter também está na Wikipedia, numa página que parece ter sido escrita por ela mesma mas sem o destaque de Mrs. Dailey. Neste livro a digna senhora conta a história de uma modelo linda e virgem que conhece um médico de metro e noventa, de olhos verdes (diabo, aqui também falta o “magnético”), atlético, bem-sucedido, 15 anos mais velho, por quem se apaixona perdidamente. Se no livro anterior a história é contada exclusivamente do ponto de vista da mocinha, aqui Coulter, menos talentosa em seu ofício, é uma narradora onisciente, e sabemos que o pobre doutor também está loucamente apaixonado, mas inseguro por ser tão mais velho e achando que a família dela não vai aceitá-lo; e então eles se afastam, apenas para se reconciliarem no final, que acaba lembrando o do filme Lover Come Back sem a graça deste.

Mas isto aqui é Momentos Íntimos, não é Júlia nem Sabrina nem Bianca; aqui a jurupoca pia e geme e grita. A primeira vez da mocinha deste livro é descrita em detalhes:

A língua ardente tocou-lhe o sexo, e foi como se seu corpo todo entrasse em comunhão. Nunca imaginara que pudesse existir um prazer tão intenso!

— Oh! Elliot… Não pare agora, por favor… — sussurrou, sentindo-se transportada para o paraíso.

Elliot afastou-se um pouco para admirá-la. Sentia-a reagir e beijou-a com sofreguidão, contornando-lhe a boca com a língua.

— Você é tão doce! — murmurou, segurando-lhe os seios.

Christine gemeu baixinho, contorcendo o corpo. Percebendo que ela estava pronta para recebê-lo, Elliot então penetrou-a lentamente, tentando não machucá-la.

Os dedos delicados cravaram-se nas costas largas. Christine sentia um misto de dor e desejo. Olhou atônita para o homem cujo sexo latejava dentro de seu corpo.

— Elliot! — chamou, num espasmo de prazer.

Sinceramente não sei o que é pior, se a penetração lenta por um sexo que latejava dentro do seu corpo ou os adjetivos ou os pontos de exclamação. Mas o fato é que milhares, muitos milhares de senhoras neste país afora compraram e leram esses romances, e eles, ainda que por uns breves instantes, tornaram suas vidas um pouco melhores, com mais fé no amor e mais poesia.

Ler esses dois livros me fez perceber duas coisas curiosas. Uma, bem boba, é entender que pelo menos uma das minhas lembranças estava errada: eu achava que o rompimento entre protagonistas vinha antes, e não a apenas algumas páginas do final, como nesses dois romances; mas isso faz todo o sentido do mundo.

A outra é, antes de tudo, uma impressão: essas moças não faziam sexo oral. Em Momentos Íntimos a protagonista é servida magnificamente várias vezes, mas não retribui. Puxando pela memória, não lembrei de nenhum caso semelhante em algum dos tantos livros que li. E acho que há uma razão para isso.

De uma forma estranha, esses livros eram feitos não apenas para que as mulheres sonhassem com um príncipe encantado, mas para aumentar sua autoestima. Não importa a mediocridade da escrita, as estruturas dramáticass sempre iguais; o fato é que elas davam voz às mulheres, ainda que dentro de um contexto que dificilmente uma feminista, mesmo em sua época, iria admitir. Aqui as mulheres eram princesas modernas. E receber sexo oral pode implicar mais poder do que fazer. Sem falar no que pode ser um certo pudor natural da época: aprendia-se na Socila que uma moça decente não devia falar com a boca cheia.

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

Mesóclises

O Serge e o Thiago, nos comentários ao post anterior, me fizeram lembrar de alguns aspectos da língua escrita nas revistas em quadrinhos d’antanho. Por uma dessas coincidências da vida, andei pensando nisso ultimamente.

Nos últimos anos baixei o que pude de revistas antigas digitalizadas. Principalmente do final dos anos 70, início dos 80, e principalmente da Disney — porque essa, antes de tudo, é uma viagem nostálgica. Mas também de outras épocas, anos 50 e 60 e 2000, e me impressiona a maneira como os diálogos mudaram.

Nos anos 50 e 60 a linguagem era excessivamente dura. Não acho que tenha visto um “cáspite” nas revistinhas que baixei, porque isso era coisa do Tex, se lembro bem; mas tenho certeza de que havia um sem-número de ênclises. E não duvido que até mesóclises pudessem ser encontradas numa fala simples do Pato Donald.

O mais grave é que eu acho mesóclises bonitas. Quase passei a gostar do Temer por causa delas. Neste blog, se elas aparecem, é certamente de maneira irônica, porque eu sou um frouxo incapaz de desafiar as normas da escrita conscientemente (só inconscientemente, mas isso tem outro nome: ignorância); mas elas são bonitas, porque a língua não precisa ser simples, sempre. Ela precisa dar ao menos um espaço possível para ir além. É a diferença entre a Sétima Sinfonia do alemão surdo e a Melô do Não Sei Qual do Bonde do Sei-Lá-o-Quê. E que concisão: um ato, um objeto, um tempo contidos no mínimo espaço necessário. Em vez de “você vai fazer aquilo”, “fá-lo-ás”.

Nos anos 70 a linguagem nas revistinhas começou a se soltar. Volto a elas daqui a pouco. E a partir dos anos 80, assim como enfiaram o Zé Carioca num boné com a pala para trás, também aderiram de maneira decisiva ao coloquial. Quadrinhos mais adultos, tipo super-heróis, ousaram muito mais, mas eles se dirigem a outro público. O que interessa é que a linguagem utilizada então, se ainda correta, já não diferia tanto da língua falada por gente comum.

Quando deixei de ler revistas Disney elas ainda se mantinham nesse nível. Não sei como estavam até deixarem de ser publicadas em Pindorama. As revistas mais recentes que li, geralmente de super-heróis, abusam da informalidade, da tentativa de transcrição da língua das ruas. E usam um bocado de palavrões.

Eu realmente tenho problemas com o uso excessivo de palavrões. Acho que são desnecessários. É engraçado ver essa pudicícia em mim mesmo: escrevendo isso, fico me achando um daqueles sujeitos que é contra a legalização do aborto mas enfia Cytotech na namorada quando ela engravida. Eu falo palavrões o tempo todo, tenho uma das bocas mais sujas que conheço, e para mim qualquer substantivo e qualquer adjetivo podem ser substituídos por algum deles. Na verdade eu não acho que não se deva usar palavrões nunca na língua escrita; só acho que devem ser usados com moderação. A força do palavrão está na sua transgressão, em sua imprevisibilidade.

(Claro, um gramático lexicógrafo semântico semiótico desses tipos novilíngua poderia dizer que isso é a língua em transformação, que o palavrão de ontem é a moeda corrente de ontem. Foda-se.)

E aqui voltamos aos pontos levantados pelo Serge e pelo Thiago.

Eu não aprendi a ler com os quadrinhos; foi minha mãe que me ensinou, antes do tempo normal. E não tenho certeza de que eles colaboraram demais para o pouco que entendo de português. Colaboraram, e muito, para a minha cultura geral; mas quanto à intimidade com a última marafona do Lácio eu realmente não sei, porque nessa época havia um bocado de livros de que eu gostava e dos quais não esqueci até hoje. Talvez esteja sendo injusto com o Tio Patinhas, talvez queira lembrar de mim mesmo lendo mais livros do que realmente li. Eu não sei.

Mas acho que a linguagem utilizada nos anos 70 ainda respondia a algumas das âncoras do português culto sem deixar que elas a prendessem a um passado que, se existiu realmente, já fazia muito tempo. As ênclises eventualmente estavam lá. E tenho certeza de que quem as lia tinha mais facilidade em falar e escrever corretamente.

Eu não concordo, nunca, com aqueles que adotam uma postura de absoluto laissez faire em relação à língua, que dão validade excessiva aos falares mais incultos. Uma coisa é respeitar o sujeito que fala “nós vai”; outra, completamente diferente, é tentar me convencer que ele está certo. No fundo, isso é reflexo de um paternalismo extremo. Lá está o sujeito que passou por sei lá quantos doutorados, que reconhece na educação formal e no reconhecimento de códigos um valor importante, tentando convencer o sujeito que mal cursou o ginasial que o jeito dele falar “estrupo” é aceitável. Então tá. O que chamam de respeito eu chamo de perpetuação da dominação.

Resumindo, eu acho que são necessários padrões. A função da língua escrita é, principalmente, possibilitar que alguém seja completamente entendido por outros. Agora imagine um texto todo escrito com expressões e termos exclusivamente gaúchos lido por um sujeito do interior do Piauí.

Por outro lado, é cada vez menos incomum para mim achar um sinônimo de algumas palavras mais facilmente em inglês do que em português. Isso não é sinal de proficiência em inglês, é sinal de deficiência crescente no portuga velho de guerra. Como o filho do português que, ao emigrar para Londres — no meu caso, a internet e a Netflix —, não aprendeu o inglês e estava esquecendo o português.

E por tudo isso eu fico cada vez mais pessimista em relação ao futuro da língua. De um lado, uma geração que simplifica em excesso os códigos que nunca dominou e torna aceitável a ignorância. Do outro, uma classe que se aproxima do inglês com a veneração de um melanésio diante de um caixote largado em suas cabeças. Isso não pode dar certo.

Stan Lee

A morte de Stan Lee não poderia acontecer em hora mais adequada, se é que há algum tipo de adequação na morte que justifique uma frase tão infeliz quanto a que abre este texto.

Durante algumas décadas, Lee foi um velho conhecido dos fãs de quadrinhos de super-heróis, e nesse nicho da cultura pop nada é capaz de obscurecer o seu legado. Ele foi o maior de todos, o sujeito que revolucionou o segmento ao incluir nele elementos da vida real, criando personagens como o Quarteto Fantástico, e logo depois o Homem-Aranha, com algo semelhante aos problemas cotidianos das pessoas comuns: contas para pagar, amores mal-resolvidos.

Resumindo da melhor forma possível, a verdadeira revolução de Stan Lee não foi criar o Homem-Aranha, foi criar Peter Parker.

Nos últimos 15 anos, no entanto, o cinema fez sua fama extrapolar o mundo dos quadrinhos. Stan Lee se transformou no tipo de celebridade que é ainda maior do que sua obra, com o detalhe raríssimo de ter uma obra realmente importante. A internet fez dele um mito, e hoje um número monstruoso de pessoas sabe que ele é o “pai dos super-heróis”, o que é uma injustiça com nomes como Jerry Siegel e Joe Shuster, Bob Kane, Lee Falk e mesmo Will Eisner, mas não está muito longe da verdade. Mesmo os mais desavisados sabiam que ele era o velhinho de bigode que aparecia nos filmes de super-heróis.

E isso ainda é pouco para Lee. Seu impacto na cultura popular do mundo inteiro é incalculável, e poderia ser o objeto da inveja de milhares de filósofos, escritores e músicos, que faziam cultura e arte mais séria, mas para infinitamente menos pessoas.

Como tudo tem outro lado, no começo dos anos 70 Stan Lee já tinha dado o que tinha de melhor como criador. Havia estabelecido uma fórmula infalível e a repetia em todas as histórias que assinava. Isso é compreensível se lembrarmos o volume desumano de roteiros que escrevia mensalmente, mas isso significa que seus personagens ficaram cada vez mais parecidos. Assim, os dilemas vividos por Steve Rogers eram muito parecidos com os de Peter Parker: amores desencontrados e às vezes silenciosos, um profundo senso de inadequação ao mundo, intermináveis dúvidas existenciais — basicamente, Lee colocava em quadrinhos a vida dos adolescentes que o liam. Hoje suas histórias soam até pueris, embora ainda mantenham uma aura de verdade intrínseca que não é moeda corrente em boa parte da produção atual.

Nada disso diminui a sua importância. Suas histórias foram revolucionárias em sua época. O homem foi um dos gigantes do século XX — eu já escrevi aqui que acho os super-heróis uma das grandes invenções do século passado, e Stan Lee foi fundamental para a sua permanência.

Mas o século XX já passou. E Stan Lee morre exatamente no momento em que a indústria que ele ajudou a revolucionar está desaparecendo.

Durante todo o século passado, revistinhas em quadrinhos foram um dos principais passatempos de crianças e adolescentes. A partir dos anos 80, quando houve uma explosão criativa e elas se tornaram mais complexas (se eu fosse escolher um marco arbitrário para essa transição seria “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller), passaram a ser consumidas sem culpa por adultos, o que garantiu status de quase arte para o gênero.

Mas os anos pós-HAL-9000 (curiosamente Douglas Rain, que deu voz a HAL em “2001”, morreu no mesmo dia que Lee) têm sido espinhosos com essa indústria e as revistinhas em quadrinhos estão condenadas a desaparecer.

O fim recente da publicação dos personagens Disney pela Abril não é resultado apenas da crise em que a editora se encalacrou. As vendas vêm despencando nas últimas décadas, e nada indica que deixarão de rolar morro abaixo. Como disse o Paulo Maffia, que editava a Disney cá nos trópicos, o problema é muito mais grave: a verdade é que a era das revistas baratas vendidas mensalmente em bancas está chegando ao fim, porque elas estão perdendo o sentido e a importância para as novas gerações. Aliás, até as bancas estão acabando, para minha tristeza inconsolável. Quadrinhos estão deixando de ser mídia de massa para se alojar nos nichos dos encadernados de luxo, à venda em livrarias.

(Uma pessoa mais chata poderia lamentar isso, apontar para o fato de que em vez de ler livros de verdade as pessoas estão lendo quadrinhos, e isso estaria contribuindo para a epidemia de burrice que assola o mundo e tem surtido efeitos tão nefastos em eleições mundo afora. Que bom que eu não sou chato.)

Diante do esboroamento de seu mundo, os super-heróis — certamente ajudados pelos seus superpoderes — se adaptaram e encontraram uma sobrevida no cinema. Mas há um grande paradoxo nisso. A tecnologia que permite que eles sejam representados de maneira verossímil é a mesma que está matando o astro de cinema (nesses blockbusters o importante é, por exemplo, o Hulk ou o Pantera Negra, não os atores que os representam. Estes podem mudar sem problemas: só o coitado do Homem-Aranha já foi interpretado por três sujeitos diferentes desde 2001) e, paradoxalmente, as próprias revistas em quadrinhos; mas isso não interessa.

Talvez por isso a morte de Stan Lee pareça tão tempestiva. Morrer aos 95 anos não é injusto para ninguém, para sermos francos. Tampouco é motivo de alegria. Mas se é possível achar algum motivo de, pelo menos, consolo nesse pequeno incidente, ele está em entender que a vida foi mais que boa para o velho e bom Stan: ele morreu antes de ver a sua indústria, pela qual ele fez muito mais que a maioria de seus colegas, agonizar e morrer.

Obviamente, resta ainda uma esperança: que a sua morte seja igual às de tantos super-heróis, mortes espetaculares que invariavelmente são revertidas logo depois.

Talvez Stan Lee volte no próximo número.