Yoko Ono

Uns anos atrás, um comentário a uma foto de Yoko no Instagram me chamou a atenção.

Alguém teve a pachorra de deixar ali uma série de ofensas à velha dama, acusando-a de ter acabado os Beatles e enveredando pelo racismo puro. Podia ser apenas mais um lembrete do fato triste de que as redes sociais desvelaram a imbecilidade global antes contida em cada pessoa ou pequeno grupo; mas era muito mais que isso. Imediatamente pensei que, se Lennon estivesse vivo, talvez tivesse que cantar novamente para ela dois versos de I’m Losing You, do seu último disco: “But hell, that was way back when / Well, do you still have to carry that cross?

É impressionante que alguém, mesmo meio século depois, ainda tenha que conviver com isso, com esse ódio impessoal que, ainda que fosse justificado, deveria ter arrefecido com o tempo. Não interessa que tenham se passado 50 anos desde que a queridinha das gentes acabou, em meio a uma briga excessivamente pública. As pessoas ainda odeiam Yoko Ono porque a elegeram para a desgraçada que acabou com os Beatles.

E não foi.

Em 1968, a banda estava em crise por várias razões, a menos importante das quais não era a musical. A chegada de Yoko pode ter ajudado a catalisar algumas das tensões já presentes, pode ter sido mais um fator para o seu fim; mas ela não tinha como terminar algo do qual não era parte. Os Beatles estavam acabando porque seus fundadores tinham se tornado adultos; porque cinco anos de pressões inimagináveis cobravam sua conta; porque sua situação financeira era caótica; porque suas concepções musicais se tornavam divergentes ou, no mínimo, mais individuais; porque Lennon, com alguma razão, e Harrison, sem nenhuma, achavam que a banda os limitava; porque a mudança no centro de gravidade da banda de Lennon para McCartney deu início a uma nova dinâmica de poder e influência dentro do grupo.

Nesse aspecto, a injustiça com Yoko é ainda maior. Naqueles momentos em que Paul McCartney consegue disfarçar bem o seu desconforto, lembra uma coisa importante: ele acha que Yoko salvou a vida de Lennon.

Há muito tempo me pergunto se, fosse outro o destino e Lennon tivesse conhecido Yoko em outra fase de sua vida, sua fascinação pela mulher e pela artista teria sido a mesma. Lennon em 1967 era um sujeito absolutamente perdido. Os Beatles tinham deixado de excursionar, o que para outra banda teria significado seu fim imediato, e ele passava seus dias em um torpor que misturava apatia e consumo exagerado de LSD. Isso é perfeitamente visível na sua produção no período. A contribuição solo de Lennon ao Sgt. Pepper’s é pífia, quase coadjuvante — o que é, aliás, a razão do seu eterno despeito em relação ao álbum. Descontando Strawberry Fields Forever, uma canção genial mas que também deve muito ao trabalho feito no estúdio, suas duas melhores canções no álbum, Lucy in the Sky with Diamonds e A Day in the Life, são parcerias ainda que desiguais com McCartney. Tente imaginar A Day in the Life, especificamente, sem a segunda parte cantada por Paul, sem o “I’d love to turn you on”, e sem as ideias orquestrais que poderiam ser creditadas, no mínimo, à participação coletiva da banda e de George Martin: seria só mais uma excelente canção simples como Watching the Wheels, composta em Weybridge por um eremita com surtos esporádicos de inspiração, um sujeito que passava o dia viajando diante de uma televisão com o som desligado, frustrado com aquilo em que sua vida parecia ter se resumido: um casamento fracassado, um filho com o qual jamais teria alguma intimidade e uma banda em que o poder real se consolidava a cada dia nas mãos de seu melhor amigo, maior parceiro e maior rival.

Não dá para saber se outro Lennon, livre das drogas e um pouco mais seguro de si em relação ao seu papel na banda e no mundo, teria reagido da mesma forma ao ir à exposição de Yoko na Indica Gallery em novembro de 1966, se enxergaria nela a “mulher-dragão” que lhe daria a proteção e o estímulo de que ele precisava com desespero.

Yoko supriu em Lennon a necessidade de alguém que fosse ao mesmo tempo mãe, amante e parceira. Ela conseguia ocupar, sozinha, o espaço de Julia, Mimi e McCartney, e um pouquinho mais. Em Yoko, Lennon encontrou alguém que podia respeitar intelectualmente e na qual podia se apoiar sem medo. De certa forma, era uma McCartney que ele podia levar para cama.

Infelizmente, isso ajudou a desarticular toda a estrutura de funcionamento dos Beatles, em um momento particularmente difícil. Enquanto as mulheres dos Beatles se adequavam ao que tinha se estabelecido como uma divisão natural do trabalho e seus espaços nas vidas de cada um, Yoko instigava e forçava a si mesma dentro de um ambiente que lhe era hostil.

Não era algo inocente. Yoko não era burra e era extremamente ambiciosa. Talvez as coisas não sejam tão frias e objetivas como podem parecer, mas Lennon e os Beatles eram claramente a sua grande chance na vida: ela percebia que ali estava, no mínimo, uma oportunidade única de dar visibilidade ao seu trabalho, e eu não duvidaria que, em algum momento de delírio, ela tenha acalentado ao menos secretamente o sonho de se tornar parte da banda. Pelo menos em um momento inicial, Yoko tentou aproveitar a proximidade dos Beatles para fazer deslanchar sua carreira, quase como um parasita daquele tipo que mata o hospedeiro. McCartney reclamaria que, durante as filmagens do que viria a ser o Let it Be, ela sempre dava um jeito de ficar diante das câmeras, muitas vezes fazendo o seu próprio trabalho. Mais tarde, o que ela permitiu (e provavelmente incentivou) que Lennon fizesse com seu filho mais velho, Julian, foi desumano (curiosamente, tanto o filho dela, Sean, quanto Julian são músicos. E a ironia é que Julian é infinitamente mais talentoso que Sean; vale a pena escutar sua discografia). Nisso qualquer fã dos Beatles tem razão: sua presença era desagregadora.

Mas ela só podia fazer o que Lennon permitia. Foi Lennon quem levou sua cama para os estúdios quando ela sofreu um aborto; quem insistiu para que ela aparecesse no Let it Be e nas fotos de publicidade do conjunto; foi ele quem de repente tentou impor uma mulher estranha a uma banda singularmente coesa, o “monstro de quatro cabeças” como definiu Mick Jagger.

Acho que inconscientemente Lennon acreditou que isso poderia redefinir a estrutura de poder dentro da banda. O resultado foi o contrário: a manobra de Lennon acendeu o pavio para a implosão dos Beatles. E sob vários aspectos, essa foi a pior coisa que poderia acontecer a Yoko.

Dentro do seu campo, da sua linguagem, Yoko era uma artista capaz, até onde minha ignorância e desdém por esse tipo de arte me permitem avaliar. Entendo ainda menos de arte de vanguarda do que de mecânica de aviões — mas pelo menos gosto de aviões. Ainda assim, acho Cut Piece um negócio interessante. E por inaudíveis que sejam seus discos de esgoelamento, o fato é que ela tinha uma ideia do que queria dizer, um conceito claro do que era arte, e é até possível ouvir ecos da música que ela fazia nos discos do B-52’s. Finalmente, quem quer que tente escutar sem preconceitos o Some Time in New York City, de 1972 — e conseguir abstrair sua voz irritante—, vai perceber que as canções de Yoko estão, no mínimo, no mesmo nível das de Lennon.

Lennon reconhecia e respeitava, talvez até mais que o justo, o talento e a capacidade de sua nova parceira. Juntos, os dois embarcaram em uma bad trip típica dos anos 60, com bed ins, surtos de messianismo odara, uma exposição de suas vidas sem precedentes na cultura de massas e a tentativa de fazer de suas vidas uma obra de arte, tudo condizente com a concepção artística de Yoko e que John, sempre em busca de algo para preencher o seu vazio, abraçou incondicionalmente.

Fãs podem reclamar, mas o Lennon que entrou para a história foi exatamente esse recriado por Yoko Ono, um Lennon sem humor, que se levava a sério demais e que acabaria se tornando ícone de uma paz que, em sua vida privada, ele jamais seria capaz de alcançar.

O mais irônico é que, enquanto as pessoas culpam Yoko pelo fim dos Beatles, em vez disso deveriam agradecê-la por algo que é realmente responsabilidade sua: impedir a reunião da banda. Em 1974, solto em Los Angeles, longe de Yoko, Lennon considerou a possibilidade de voltar a compor com McCartney. Se isso ocorresse, uma volta dos Beatles seria possível, embora talvez sem George Harrison. Mas antes ele reatou o casamento com Yoko (ironicamente por intermédio de McCartney), e é impossível saber o que resultaria dessa reunião hipotética. Do ponto de vista das composições, é provável que o nível subisse bastante. A competição e colaboração entre os dois certamente traria bons frutos. E é possível que a própria realização das canções melhorasse bastante. Só não dá para deixar de lembrar que o tempo dos Beatles havia passado e que o mais provável é que essa reunião apenas quebrasse a mística da banda.

Foi nesse momento que se consolidou definitivamente a lenda do johnandyoko, do casal 20 do rock, do rock star feliz em casa fazendo pão e cuidando do bebê enquanto a mulher ia para a rua garantir sua fortuna, ou pelo menos assim diz a lenda.

Nunca foi bem assim. Naqueles seus últimos anos, Lennon voltou à apatia em que se encontrava quando conheceu Yoko. Mas ele tinha se tornado dependente dela, em sua eterna busca pela mãe que o tinha rejeitado. Yoko não tinha esses problemas, e quando percebeu que o casamento estava condenado, tratou de arranjar um amante, Sam Havadtoy, rapaz novo que logo depois da morte de Lennon ela passou até mesmo a vestir com as roupas do defunto, num relacionamento muito mais duradouro que o seu com Lennon.

E então veio o dia 8 de dezembro de 1980, a partir do qual Yoko Ono se tornaria a curadora da memória de John Lennon e a mais feroz guardiã do seu legado.

Ela até podia frequentar outras camas, mas nisso ela foi extremamente fiel ao falecido. Uma constante na vida de Lennon foi o seu esforço em passar uma imagem idealizada e edulcorada de si mesmo. O rebelde, o artista corporificado, o revolucionário da classe operária, o homem que vivia uma história de amor perfeita. Yoko cumpriu o seu desejo. A imagem quase santificada de Lennon, do gênio que mudou o mundo com uma mensagem de paz e amor e se tornou o grande mártir do rock and roll, que ela passa ainda hoje às portas da morte, não condiz com que o se sabe sobre ele; mas é uma imagem vitoriosa e, acima de tudo, leal, seja lá por quais razões for.

E ela fez tudo isso às custas, de certa forma, de seu próprio sacrifício. Seu envolvimento com os Beatles tirou, para sempre, a sua individualidade — e paradoxalmente teve o efeito contrário do que ela parecia querer naqueles primeiros anos. Ela jamais será lembrada por outra coisa que não John Lennon. A exposição e a riqueza que Lennon lhe possibilitou garantiram que ela continuasse produzindo, mas a avaliação dessa produção será sempre contaminada por sua história com os quatro rapazes de Liverpool.

A aura inexplicável que beatifica os Beatles, que desculpa e justifica todas as suas ações e os torna imunes a virtualmente toda crítica, é a mesma que demoniza todos aqueles que cruzaram seus caminhos, como Allen Klein. É a mesma que faz pessoas dizerem, ainda hoje, desaforos em seus posts no Instagram. Yoko, inocente ou não, é mais uma vítima dessa aura. No fim das contas, o preço que ela pagou foi bem alto.

O tempo passa até nos quadrinhos

Cena um: há alguns anos, numa banca de revistas, um sujeito grisalho futuca a seção de revistas de super-heróis. Minha primeira reação é de susto calado: o que esse coroa está fazendo lendo revistinhas de super-herói?

Cena dois: um amigo, Edilson, leitor e colecionador de quadrinhos há mais de 40 anos, sai do cinema onde foi assistir a “Homem Aranha: Longe de Casa” e se submete à extrema humilhação de, ao reclamar do novo Peter Parker como discípulo humílimo de Tony Stark, ouvir de um adolescente: você não entende nada de quadrinhos.

As duas cenas parecem não ter nada a ver uma com a outra, mas têm. Eu e Edilson estávamos errados.

O sujeito grisalho na banca de revistas não era mais que alguns anos mais velho que eu, se tanto — vai ver ele era só mais acabado, mesmo. Eu não percebi algo que devia ser óbvio: aquele senhor vetusto, fruto envergonhado dos anos 80 como eu, cresceu lendo os mesmos quadrinhos que eu lia. O meu susto então se devia especificamente a um preconceito: para mim, criado em outros tempos, quadrinhos eram leitura de crianças e adolescentes — ou pessoas descalibradas como o personagem de Richard Gere em Breathless, o que não é muito diferente.

A minha foi a primeira geração que levou esse padrão de leitura para a idade adulta, e não sei se porque os roteiros ficaram mais complexos, ou porque nós ficamos mais infantilizados; ultimamente, tendo a botar mais fé na última hipótese. Estranhar o velhinho na banca de revistas é muito mais que uma recusa estúpida a admitir que envelheci: é não compreender que a minha geração transformou a maneira como se consome quadrinhos. Nós demos legitimidade cultural ao que era visto, até então, como algo meramente comercial e inferior. Duro de aceitar é que isso foi também o resultado de um processo generalizado de emburrecimento. Em qualquer lugar hoje se vê gente falando de quadrinhos como alta literatura, ou seu equivalente, com a mesma seriedade que reservaria a um Faulkner. A aceitação social dos quadrinhos como arte significou, para milhares de pessoas, que elas não precisavam castigar um Proust ou um Joyce para serem consideradas minimamente cultas.

Mas justamente por não serem alta literatura, por estarem em primeiro lugar submetidos às lógicas do mercado e dos tempos, os quadrinhos são eminentemente mutantes, como os X-Men. Eles dialogam quase que exclusivamente com o seu tempo, e têm a liberdade de fazer tábula rasa do passado. Não interessa que você leia “No Caminho de Swann” em 1913, 1955 ou 2016: Gilberte vai ser sempre Gilberte, a menina do seu tempo percebida pela sensibilidade infantil de um mariquinhas que gostava de madeleines e que durante muito tempo costumava deitar-se cedo. Mas o Batman adquire sempre as cores do presente: o justo implacável dos anos 30, o detetive infantilizado dos anos 50, o borderline dos anos 90.

Por isso o Edílson se sentiu profundamente ofendido por aquele trombadinha arrogante. O problema é que o moleque tinha razão.

Imagine um sujeito de seus 40 anos em 1990, que passou a infância e a adolescência lendo Batman ou Homem Aranha. Ele lia histórias com uma dinâmica estrutural que ainda pertencia aos quadrinhos idiotizados dos anos 50, guiados pela hecatombe de “A Sedução dos Inocentes” — talvez nem tivessem chegado a Stan Lee. Agora imagine-o assistindo, horrorizado, à transformação de heróis tão seus conhecidos. Ele olharia para o Batman de Frank Miller e diria não, não é isso, vocês não entenderam o personagem. Vocês não entendem de quadrinhos.

Ao estranhar o novo Peter Parker, ao desprezar seu conformismo submisso e a relação de dependência não só ao grande capital, mas à figura paterna acolhedora que Tony Stark representa para uma geração que não sabe mais o que é passear na rua, que sequer tem coragem de ir sozinha à banca de revistas da esquina, eu e o Edílson simplesmente não conseguimos admitir que os quadrinhos mudaram, falam para um público que não é mais o nosso. Pior, nos recusamos a entender que nada disso faz desse Peter Parker lambe-botas menos verdadeiro do que o que acompanhávamos todos os meses nas revistinhas da hoje desgraçada Editora Abril.

Quadrinhos são assim mesmo. Já faz tempo que deixei de acompanhar esse mundo. Eu não consigo gostar, geralmente nem mesmo entender, de virtualmente nada do que se faz hoje. Quando abandonei esse universo, eu sentia falta de alguma simplicidade. Para mim, é tudo complicado e confuso demais, e o que era um golpe de marketing em 1992 se tornou a regra, como a morte dos super-heróis e sua substituição por qualquer bizarrice que atenda ao zeitgeist. Acredito que os meninos de hoje olhem para as histórias de que gosto — a não ser quando transformadas pelo cinema, como a origem do Homem de Ferro ou as partes de “Capitão América: Soldado Invernal” inspiradas nas histórias que eu acompanhava no início dos anos 80 — e as desprezem por serem simplórias, óbvias, esquemáticas demais. Em resumo, infantis. Mais ou menos como eu olhava as historinhas desenhadas pelo Jerry Robinson, e que hoje leio feliz e nostálgico no tablet.

O Peter Parker de 1963 era o resultado do olhar de um sujeito nascido nos anos 20 sobre o que eram os baby boomers (alguém deve ter falado em algum lugar que o Aranha é o primeiro grande herói baby boomer, não é possível que ninguém tenha escrito sobre isso). Era um olhar de fora, com os limites de compreensão que o gap geracional condicionava. Por genial que fosse, Stan Lee era um sujeito de outro tempo tentando compreender uma geração que começou a exercer seu protagonismo nos anos 60 e 70. O novo Aranha, que antevi em meio a engulhos em Spider Man: Homecoming, reflete necessariamente uma geração diferente, de millenials e Y’ers e X’ers e seja lá qual o nome dessa meninada: garotos mais dependentes do que fomos, com uma ética de vida e de trabalho diferentes da minha, e cujo maior sonho é serem completamente inseridos no establishment e chamar Tony Stark de painho. Eu sou suspeito para falar deles porque os tenho em muito baixa consideração, mas não é possível relevar o fato óbvio de que é a sua sensibilidade que define o que será feito desses personagens, as maneiras como suas histórias serão conduzidas. Eles estão acostumados a padrões narrativos e artísticos que eu não consigo mais, nem quero, entender.

Mas me sobrou um mínimo de racionalidade. Já passei da idade de ter que achar que tudo o que é novo é bom, porque não é, e espero que os longos anos que passei neste vale de lágrimas tenham sido suficientes para me conferir algum juízo e integridade. E por isso, do alto da sabedoria e da maturidade que os cabelos brancos supostamente me conferem, eu sinceramente acho que o Edilson deveria ter dado um cascudo naquele pivete idiota e dito pra ele: o meu Homem Aranha é melhor que o seu.

Sobre o Oscar 2020

Ford vs Ferrari é o melhor que se pode esperar de um filme já visto tantas vezes, com todos os clichês possíveis num desses pilares do cinema americano: o filme sobre underdogs e carros e a amizade masculina que só a graxa e a celebração da velocidade possibilitam — inclusive na adulteração da história e na redução de uma decisão de negócios a um ato de despeito de um empresário. É o mais fraco dos concorrentes deste ano. Tentaram fazer um Thunderbird 1957 mas tudo o que conseguiram foi um Edsel.

Once Upon a Time in Hollywood é apenas uma piada contada pela segunda vez. O que foi genial em “Bastardos Inglórios” — a ousadia de mudar a história porque o cinema pode ser instrumento de transformação da realidade — agora é pouco mais que uma reprise na Sessão da Tarde, ilustrando uma visão edulcorada de Hollywood, uma celebração emaciada e disfarçada de um modelo de fazer cinema, mas agora sem o vigor que Tarantino demonstra em outros filmes.

The Irishman é Scorsese mais uma vez confortavelmente instalado em sua obra. Traz uma interpretação magistral de Joe Pesci e até mesmo um Pacino um pouco mais contido do que o normal; mas é só o mesmo filme que Scorsese vem fazendo há décadas, pouco mais que Mean Streets e Goodfellas requentado, com menos vigor; a julgar pelos atores, é quase como se Scorsese quisesse fazer um corolário de sua obra. Nos últimos anos ele deu excelentes filmes como Hugo Cabret e Silence. Não é o caso deste.

Marriage Story é exatamente o que se esperaria de um filme de Noah Baumbach. Ele é um sub-Woody Allen, mas não um qualquer: é um sub-Woody Allen em seus momentos de sub-Ingmar Bergman. Bom filme, correto, com bons atores. Mas não vai muito além da superficialidade egocêntrica típica da geração millenial novaiorquina, de que Baumbach está se tornando o cronista. Há filmes piores este ano, mas há melhores também.

Little Women é um bom filme, competente, dirigido com firmeza por Greta Gerwig (que a julgar pela crítica novaiorquina é a maior cineasta de todos os tempos) e bem superior ao seu superestimado Lady Bird. Atualiza um livro mais que centenário e filmado dezenas de vezes, reforçando seus aspectos feministas até o limite. Mas a opção por uma narrativa baseada em flashbacks torna tudo meio confuso, e apesar da direção segura o filme acrescenta bem pouco ao que já se viu por aí. Alguns atores estão mal escalados, como Emma Watson que não poderia ser Meg, embora Saoirse Ronan esteja perfeita como Jo. Mas é Louis Garrel como Bhaer que mostra o exagero que essas leituras podem chegar. Bhaer jamais poderia ser tão bonito, e ao fazer essa concessão estética Gerwig mostra que não entendeu um aspecto importante do livro e no protofeminismo de Jo.

Parasite deve ganhar o Oscar de filme estrangeiro. Mas é um filme superestimado: bom o suficiente, mas que resolve mal boa parte das ideias que apresenta e que acaba apresentando uma visão confusa e inconsistente da luta de classes que está na base de sua história, mais ou menos como alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe exatamente onde.

1917 ganhou o Globo de Ouro merecidamente. É um exemplo de excelência técnica e narrativa, tão bem feito que consegue a proeza do one shot sem que isso seja mortalmente chato. Formalmente é o melhor filme do ano, e Sam Mendes merece o Oscar de melhor diretor. Mas falta muito a ele. No fim das contas, fica a sensação de que é tanta proeza técnica em tela que se torna difícil estabelecer uma conexão emocional real com o filme. Em muitos aspectos é semelhante ao último Mad Max: um interminável desfile de perícia técnica mascarando um vazio profundo.

Jojo Rabbit é uma comédia de frescor admirável, que não tem medo da gargalhada mais aberta nem do deboche puro e simples e que entende que a melhor maneira de abordar o absurdo é transformando isso em linguagem. É uma comédia agridoce surpreendente, que reconhece o ridículo do ódio e mesmo da vida, sem deixar de ser otimista. “Jojo Rabbit” é a antítese destes tempos sombrios, e é isso que faz dele um dos dois melhores filmes dessa noite. E é difícil não gostar de um filme cuja música de abertura são os Beatles cantando Komm, Gib Mir Deine Hand.

Joker acaba sendo paradoxalmente prejudicado pelo desempenho excepcional de Joaquin Phoenix, que o ofusca e diminui os méritos que o filme tem. Além disso, traz um número muito grande de falhas de roteiro. Mas é o filme que melhor dialoga com os tempos atuais. Utiliza um gênero que já estava esgotado para jogar luz sobre a loucura do mundo em que vivemos, sobre os impasses de uma modernidade ternamente conectada e que lida com novos símbolos e valores aos quais ainda não conseguiu se acostumar. É o filme em que eu votaria.

E em 2020 o Oscar virou uma menina branca.

Mais 10 melhores faroestes

Nunca foi segredo que o faroeste é o meu gênero cinematográfico favorito. Foi ele que me fez gostar de cavalos, por exemplo. O que nem todo mundo sabia é que eu realmente acreditava que o gênero estava morto e enterrado, que já não havia mais o que dizer, nem como dizer.

Eu estava errado.

Para muita gente, hoje, a história da conquista do oeste americano é essencialmente a história de brancos maus matando e roubando terras a mexicanos e índios bonzinhos. E, se tirarmos os adjetivos, é uma percepção verdadeira.

Mas é muito mais que isso. É também a história de milhares de famílias que juntaram o quase nada que tinham e cruzaram um continente pelas trilhas do Oregon e Santa Fé em busca de uma chance de trabalhar e viver melhor. Famílias de origem europeia para as quais era incompreensível e inadmissível que uns poucos índios tivessem tanta terra enquanto outros não tinham nada, porque não conseguiam nem podiam compreender seu modo de vida e o relativismo cultural ainda não tinha dado as caras por aquelas bandas. Muitas dessas famílias deixaram relatos de suas travessias e das dificuldades que enfrentaram, dos cadáveres que foram deixando pelo caminho, e lendo-os é possível fazer um paralelo entre aquela gente e os imigrantes ilegais de hoje, que pagam coiotes para que os levem a uma terra prometida onde poderão viver melhor, não importa se bem vindos ou não. Obviamente eles não falam dos índios que viram os bisões desaparecerem e com eles não só o seu modo de vida, mas a sua existência; não falam dos índios que perderam suas terras e sua cultura, nem das traições do governo americano ou do sofrimento e humilhações que tiveram que enfrentar, das mães e filhos que foram deixando ao longo da Trilha das Lágrimas, por exemplo. Mas não é possível ser simpático à luta dos imigrantes ilegais de hoje ao mesmo tempo em que se condena completa e peremptoriamente a expansão americana.

No fim das contas, a maneira mais isenta de entender esse processo é simplesmente como a luta eterna da humanidade por espaço e produção de riquezas — nem sempre justa, raramente humana. Foi assim com os romanos, foi assim com os visigodos, foi assim no Texas. Pode-se fazer o julgamento moral que quiser sobre o assunto, e cada tempo faz o seu. O veredito atual basicamente inverte o maniqueísmo anterior, condenando indistintamente governo e povo americanos, canonizando índios e vilificando mesmo o pobre imigrante sueco que não tinha o que comer e se apegava à promessa de 40 acres de terra em Oklahoma como a uma tábua em uma corredeira.

Não sei os outros, mas eu acho essa uma história magnífica e rica.

O filme de faroeste foi a maneira como os Estados Unidos sistematizaram e deram dignidade e significado a essa história; de gênese canalha e genocida, é verdade, mas também heróica e brava, que representou uma aventura homérica para o povo que a empreendeu — e que teve, sim, momentos de beleza e grandeza imensos. Único gênero que nasceu com o cinema, o western mitificou a história americana, tornou-a maniqueísta enquanto pôde, entendendo que aquela era uma batalha de civilizações e, ao definir seu lado, não hesitou em apelar para a mentira e para o jingoísmo.

Mas o western também cristalizou no imaginário humano a ideia de que esse fenômeno pertencia a um tempo e espaço específicos e indistintos entre si. E isso é falso.

Pode-se dizer que quando o cinema nasceu a fronteira clássica já tinha sido fechada e estabilizada, e por isso tanta gente pensa no Velho Oeste como algo pertencente ao passado, aquele processo iniciado nos anos 1830 e intensificado após o fim da Guerra de Secessão. Mas em outras regiões o progresso demorou mais a chegar. The Good Bad-Man, um faroeste de 1916 de Allan Dwan com Douglas Fairbanks, se passa no Wyoming daquele ano. E é fantástico ver a cidade típica do oeste com postes telefônicos alinhavados na rua; fosse feito uns anos depois e teria Fords T compartilhando a rua com cavalos e boiadas.

Isso me fez perceber, antes de mais nada, a subjetividade do tempo. Wyatt Earp, um dos maiores ícones dessa era, morreu em 1929. Isso quer dizer que hipoteticamente ele poderia ter conversado com minha bisavó, que morreu quando eu já ia adiantado na minha terceira década de vida; posso imaginar Earp chegando na casa da rua Cedro, chapéu na mão, para dois dedos de prosa com o velho Valois e dona Sinhá, mentindo mais a cada dia sobre o duelo no OK Corral, contando histórias que 60, 70 anos depois minha avó contaria para mim, em primeira mão. Bastou perceber isso para o western deixar de pertencer a um passado distante e se tornar algo quase palpável.

Mas essa história vai além. Pensando nisso e assistindo a um filme de 2005, finalmente entendi que a essência do faroeste nunca foi o tempo em que ele se passava. Era o lugar e as contradições que ele propicia. O faroeste não diz respeito a um período na história americana; fala da vida na fronteira, do conflito entre povos, da violência inerente a esse processo humano, e isso ainda está longe de acabar.

***

Anos, muitos anos atrás, fiz uma lista dos 10 melhores westerns, na minha imodesta opinião. Mas o fato é que 10 filmes são muito pouco para ilustrar um gênero que, até o início dos anos 60, era talvez o maior da indústria cinematográfica e garantiu boa parte do material produzido nos primeiros anos da TV; quem cresceu nos anos 60 e 70 via faroestes o tempo todo, muitos dos quais permanecem até hoje em canais por assinatura ou streaming.

Ao mesmo tempo, tudo isso ajuda a complicar as coisas. O western tem uma natureza essencialmente esquemática. Nasceu assim, como contos de cavaleiros andantes nas pradarias americanas; basta ver os filmes de Tom Mix. Stagecoach é um clássico porque rompeu esse molde e mostrou que o gênero podia ter uma densidade dramática superior ao limite de cinco neurônios. Além disso, nos anos 50 o faroeste foi espremido até o esgotamento absoluto. Por todas essas razões, e mais algumas, em muitos momentos é um pouco mais difícil perceber a grandeza de um bangue-bangue; daí porque este é um dos gêneros que mais sofre revisões críticas. Por outro lado, muitas vezes é alvo de uma condescendência injustificada, porque esse pessoal da academia está sempre precisando falar alguma coisa diferente, por absurda que seja, para garantir o leitinho das crianças. Assim, um filme malvisto em seu lançamento muitas vezes adquire status superior quando uma nova geração assiste a ele com outros olhos; e quando aparece um filme artisticamente ambicioso como Heaven’s Gate — o filme que quebrou a United Artists —, é tentador dar a ele um status que não merece. Heaven’s Gate é só um grande filme mal feito, que não conseguiu concretizar suas ideias.

Por tudo isso, esta lista é, como sempre, uma escolha muito pessoal. Outros poderão escolher filmes diferentes. Azar o deles. E parando para pensar nas escolhas que fiz, preciso admitir que não vejo lá muita graça na maior parte dos westerns dos anos 70, como McCabe & Mrs. Miller ou Missouri Breaks, impregnados da aura contestatória de sua época. Coisa de velho.

Consciências Mortas (The Ox-Bow Incident, William Wellman, 1943)
Um filme que deveria estar presente em qualquer lista de 10 melhores faroestes de todos os tempos, “Consciências Mortas” é uma obra-prima do cinema como investigação da psique humana e do comportamento da turba. É um filme magnífico, poderoso ainda hoje, que tenta reviver e questionar os padrões éticos sob os quais os americanos gostam de dizer que vivem, ou acham que viviam.

Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, John Ford, 1946)
É provável que esse filme tenha feito tanto para a definição do arquétipo do western quanto “No Tempo das Diligências”, e talvez fosse ainda mais importante se feito 7 anos antes. Ford não foi só o maior cineasta do gênero (para alguns, como o Moniz Viana, foi o maior cineasta, ponto); foi também o homem que definiu o que era faroeste, inclusive definindo os Colts Navy e Peacemaker como o padrão de armas usadas no Oeste, o que nunca correspondeu à realidade. É possível que a história dos Earp seja a mais icônica do gênero, a que melhor condensa a experiência do western, e sua narrativa foi definida aqui. É a lenda impressa, e não se pode almejar nada maior que isso.

O Preço de um Homem (The Naked Spur, Anthony Mann, 1953)
Dois grandes personagens, abordados com mais profundidade psicológica que a média dos faroestes, numa narrativa invejável. “O Preço de um Homem” é daqueles filmes que extrapolam o gênero e acrescentam camadas e camadas de leituras diferentes. Não há nada de revolucionário aqui: há, no entanto, a exploração de possibilidades diferentes de que poucos foram capazes.

Da Terra Nascem os Homens (The Big Country, William Wyler, 1958)
Em última análise, este filme é a mitologia da aventura americana exemplificada no seu maior arquétipo. A cena em que Gregory Peck e Charlton Heston lutam até cair, dois homens com H maiúsculo, corajosos, decididos, é uma das grandes metáforas do espírito que o americano gosta de imaginar em si próprio e, mais ainda, na história do seu país. Uns marotos, esses americanos. Mas é também um filme que exemplifica a conquista dos amplos espaços do sudoeste, a luta contra uma natureza quase sempre hostil, e o processo de imposição do capitalismo em uma área virgem. A história americana é mais complexa, mais e menos digna do que estrangeiros costumamos imaginar. É a consciência dessa complexidade e do seu valor que faz deste um filme magnífico.

Pistoleiros do Entardecer (Ride the High Country, Sam Peckimpah, 1962)
O faroeste tem uma característica curiosa: nenhum outro gênero cinematográfico demonstra tamanha consciência de seu próprio ocaso, do seu prazo de validade, e talvez por causa disso a ideia de finitude é tantas vezes central aos seus argumentos. “Pistoleiros do Entardecer” é talvez o filme que melhor retrata essa consciência, ao mostrar dois velhos amigos que, sabendo que seu tempo passou mas divergindo quanto ao que fazer e como enfrentar uma nova era que os superou inclementemente, cavalgam juntos pela última vez, representando o espírito dualista do espírito da fronteira.

Sua Última Façanha (Lonely Are the Brave, David Miller, 1962)
É curioso que este filme tenha sido lançado umas poucas semanas depois de Ride the High Country. Porque os dois estão entre os que os westerns que melhor realizaram essa consciência de seu próprio fim, e ainda assim são tão diferentes: enquanto “Pistoleiros do Entardecer” mostra o processo do fim da fronteira, “Sua Última Façanha” é uma espécie de olhar no retrovisor, a celebração de um anacronismo, onde o cowboy, ainda que represente um elemento fundamental e extremamente valorizado do que é ser americano, já é visto como definitivamente superado e incompatível com a moernidade. Há um quê de loucura heróica em Jack Burns, uma loucura que o filme associa a um espírito americano agora domado. É o fim dessa loucura que “Sua Última Façanha” lamenta.

A Conquista do Oeste (How the West was Won, 1962)
Dirigido por John Ford, Henry Hathaway e George Marshall, “A Conquista do Oeste” pode ser visto como o canto de cisne do faroeste tradicional americano. Não e realmente um filme notável como arte, e um pouquinho mais de rigor o impediria de estar nesta lista. Mas ele reuniu alguns dos maiores diretores e os principais atores do gênero para contar em Cinerama (que utilizava três câmeras simultâneas e cujas divisões podem ser vistas claramente na versão em Blu-Ray) uma espécie de sumário da história que vinham contando há meio século. É a narrativa americana típica dos anos 50, e serve como um epitáfio de um modo de fazer cinema, uma espécie de gran finale do velho e bom western americano. Logo depois chegariam os italianos e o gênero nunca mais seria o mesmo.

Meu Ódio Será Tua Herança (The Wild Bunch, 1969, Sam Peckimpah)
Aquela mesma sensação de mortalidade inescapável e iminente está presente aqui, enriquecida por artifícios diretoriais como o abuso da câmera lenta e a sua transformação em marca semi-autoral. “Meu Ódio Será Tua Herança” é um daqueles grandes filmes que buscam plantar um epitáfio num gênero, depois de um olhar de soslaio e desconfiado para o spaghetti western, que enriqueceu e alargou seus horizontes —  se há uma cena para definir o filme, é aquela em que, logo no início, crianças colocam escorpiões para brigar e então os queimam. E o título brasileiro, inspirado nos delírios melodramáticos italianos que tomaram de assalto os cinemas brasileiros no fim dos anos 60, é infinitamente melhor que o título original.

Pequeno Grande Homem (Little Big Man, Arthur Penn, 1970)
O faroeste americano não é gênero que se preste facilmente à comédia; são muito poucos os exemplos bem sucedidos, como Blazing Saddles. Mas este é um filme que faz comédia com inteligência. Ele não poderia ter sido feito antes de 1968 — antes da Guerra do Vietnã, do movimento pelos direitos civis, antes da era de desconforto e autocrítica que definiram as décadas seguintes e do qual somos consequências. Esses novos tempos fizeram mal ao western; aos americanos já não era possível encarar a sua história sob a ótica maniqueísta e dourada de seus primeiros tempos; ao contrário, naquele momento parecia ser impossível olhar para o passado com algo menos que ironia e vergonha, e eu não tenho muitas dúvidas que essa mudança ajudou a acarretar a decadência do gênero. Mas aqui esse desconforto é narrado com talento e graça, até uma certa estupefação.

Os Imperdoáveis (Unforgiven, Clint Eastwood, 1992)
O que mais me chama a atenção é que, acima de tudo, o último western de Clint Eastwood é um bom e velho faroeste americano. As influências renovadoras do spaghetti western já tinham sido digeridas e regurgitadas em alimento, mais que transformação. Eastwood vem tanto do velho faroeste americano — era ator em Rawhide — quanto do spaghetti de Sergio Leone. E aqui escolheu fazer um faroeste tipicamente americano. É um filme que reflete a filosofia do seu diretor, e que pode ser resumida em uma simples frase, dita antes de um dos tantos assassinatos: “Merecimento não tem nada a ver com isso”. Nesse aspecto, é o último grande faroeste clássico. É também um filme do seu tempo, levantando questões que não seriam necessárias nos anos 50.

Três Enterros (The Three Burials of Melquiades Estrada, Tommy Lee Jones, 2005)
Este é talvez um dos mais importantes westerns feitos em muito, muito tempo. Subestimado e pouco visto, “Três Enterros”consegue retomar a mais verdadeira essência do gênero, porque entendeu que o que realmente o define, o que o faz único, singular, não é o tempo: é o espaço. Tommy Lee Jones entendeu que os conflitos que são a razão do faroeste continuam vivos, e captou de maneira impressionante a violência da vida na fronteira e a influência desse ambiente específico sobre as pessoas. Até então, boa parte das tentativas de atualização sempre foram frustradas pela falta de apreensão desse conceito, que pode ser visto como atemporal. Por isso a importância dessa estreia de Tommy Lee na direção. “Três Enterros” poderia ter sido ambientado em qualquer época, e ainda assim seria um faroeste de primeira. É um western de verdade, o mais importante do século XXI, e a prova de que o gênero continua vivo.

E eu continuo sem saber matemática.

O tempora, o mores

No dia 4 de novembro de 1963, a apresentação dos Beatles diante da família real inglesa no Royal Variety Performance entrou para a história por uma frase dita por Lennon antes de introduzir Twist and Shout: “Para o próximo número, gostaríamos de pedir a sua ajuda. As pessoas nos lugares mais baratos, batam palmas. Ao resto de vocês, basta chacoalhar as joias”.

A frase entrou para a mitologia do rock and roll. Todo mundo conhece.

Mas isso foi há quase sessenta anos. Os tempora passaram e os mores mudaram muito.

Hoje a frase de Lennon seria vista como uma brincadeirinha de roqueiros inconsequentes e superficiais que apenas querem aparecer, que afinal de contas a família real não merece muito respeito desde Charles e Diana, e sua repercussão se daria apenas em pequenas bolhas na internet. Os tempora não perdoam.

Não é nada que mereça muita atenção, no fundo. Falar sobre isso é apenas repetir as platitudes que recheiam virtualmente tudo o que se fala sobre essas coisas na internet. Mas dia desses, revendo a apresentação, um detalhe me chamou a atenção. E esse detalhe diz mais sobre estes tempos estranhos que vivemos que a boutade pseudo-operária de Lennon.

Na introdução a uma canção anterior, a maneira como McCartney apresentou Till There Was You hoje seria amaldiçoada, e geraria protestos ainda mais fortes.

Durante esse mais de meio século ela passou despercebida, porque naquele tempo foi vista apenas como uma piadinha boba e trivial, e a importância política e simbólica da frase de Lennon era muito maior naquele contexto.

Mas, repito, os tempora mudaram. Mas é o tipo de piada que hoje não é mais permitida, porque as sensibilidades mudaram.

E então é possível entender o escândalo que nasceria quando lá foi McCartney para o microfone dizer que a próxima canção “é do musical The Music Man e também foi gravada pelo nosso grupo americano preferido, Sophie Tucker.”

Ah, se isso fosse hoje. O mundo das redes cairia. E aí, aí nem a cara de menino doce criado por vó de Paul o salvaria da ira justa do mundo.

As críticas mais suaves falariam da sua gordofobia ou da sua gerontofobia e da sua indelicadeza.

Milhares de pessoas iriam teorizar sobre isso em posts lacradores. Bolsominions, moristas, olavistas e outras variedades de simplórios acusariam os Beatles de comunistas, abortistas, satanistas, beneficiários canalhas da Lei Rouanet.

Negros reclamariam que não se sentiram representados e que os Beatles representavam a branquitude de uma classe opressora há 300 anos e que não percebe seus privilégios.

LBGTs, ou seja qual for a sigla atualmente utilizada, diriam que a atitude dos Beatles era francamente homófoba.

Feministas fariam passeatas chacoalhando não banha nem peitos gelatinosamente balouçantes — a não ser que fossem as maluquinhas do FEMEN, que disfarçam peitos belos sob ataques de histeria neonazista —, mas cartazes pitados ‘a mão: “Gordo é o seu preconceito, Paul”.

Pessoas com deficiência diriam que aquilo não mascararia a atitude canalha e ofensiva dos Beatles, especialmente Lennon, diante do que chamavam derrogatoriamente de aleijados.

Sophie Tucker, por sua vez, ganharia os jornais se dizendo muito abalada. Contaria a história de dias de sofrimento, a luta contra a depressão que essa frase a fez empreender. A velha gorda podre de rica falaria do seu sofrimento. Talvez processasse os Beatles e destinaria o dinheiro para o Retiro dos Artistas.

E quando tudo estivesse prestes a amainar, quando outro escândalo de igual importância surgisse, apareceria alguém para dizer que, ao chamar Tucker de gorda, McCartney estava ofendendo os vegetarianos; para isso, um raciocínio tortuoso que me vejo absolutamente incapaz de formular seria construído.

Talvez McCartney tentasse se desculpar. Diria que Tucker era um grupo pela dimensão do seu talento, não por ocupar duas poltronas no avião. Diria que não foi sua intenção magoar ninguém — nunca é.

E em duas semanas, claro, tudo isso desapareceria.

Ninguém lembraria mais, com exceção daqueles mais rancorosos que, a cada menção sobre os Beatles, tiraria esse evento de sua gaveta mental e escreveria um texto lacrador no Facebook — ou, pior, aquelas sequências odiosas de tweets, mais ou menos como hoje lembram que dona Elizabeth Bishop um dia elogiou o regime militar de 1964.

Depois disso, os Beatles gravariam Revolver e Sgt. Pepper’s, mas ninguém ouviria. Sua música desapareceria, ficaria restrita a alguns guetos, até ser resgatada como influência por uma banda cool dos anos 2030. Talvez até seguissem a sina abjeta do Ultraje a Rigor, ser o Caçulinha do Danilo Gentili — e certamente John Lennon teria que antecipar a sua frase sobre os Beatles serem mais famosos que Jesus, para ver se conseguiam ainda algum espaço na mídia. Mas ele não teria sucesso, e os Beatles entrariam para história como uma nota de rodapé.

Uma pequena proposta para um curso de cinema

Vi a grade curricular do curso de cinema da UFF.

Entre as disciplinas oferecidas, Teoria da Percepção; Realidade Socioeconômica e Política Brasileira; História das Formas de Expressão; Português XVII; Introdução à Filosofia; Introdução à Sociologia; Ética; Legislação e Pol. do Cinema e do Audiovisual (imagino que o Pol. se refira a “política”, mas vai saber, né?). Entre as optativas uma miríade espantosa de assuntos, que vão de Comunicação Interpessoal a Ética e Ciência.

São oito semestres. E depois desses quatro anos o garoto que entrou na faculdade achando que ia sair de lá transformado magicamente em um novo Scorsese — ou, se tem desvios graves de caráter, um novo Godard — sai praticamente como entrou; talvez apenas um pouco mais arrogante, um pouco mais iludido sobre o seu papel no mundo, com uma variedade maior de conhecimento raso sistematizado e a capacidade de discutir cinema no bar usando termos típicos da academia, como parametrizar, paradigma e intersubjetividade.

Não quero subestimar a ignorância dos jovens que chegam à universidade antes mesmo de terminarem a adolescência, com toda a imaturidade e características específicas que isso implica, nem fazer pouco dos professores dessas matérias que parecem só existir para garantir que a economia do país continue funcionando, gerando emprego numa indústria de educação superior cada vez mais inchada. Talvez seja necessário, mesmo, desasnar os novos alunos em questões que dizem mais respeito ao seu posicionamento na vida do que ao cinema propriamente dito. Mas é estranho que esse tipo de coisa hoje caiba a um curso superior. Eu não sei, porque não entendo muito disso. Não sou professor, não sou pedagogo, não tenho licenciatura em nada — talvez em licenciosidade, vá lá. Gente mais bem qualificada que eu pode falar melhor sobre o assunto.

O que sei é que desses cursos de cinema saem, principalmente, jovens completamente preparados para repetir aulas em universidades, a passar adiante aquilo que aprenderam nos bancos desse tipo de escola — inclusive a não dizerem nada sem a chancela de um bocado de autores que, como eles, passaram suas vidas dentro desse ambiente acadêmico, cada vez mais hermético. A universidade, nos últimos tempos, parece estar se dedicando obsessivamente a perpetuar um círculo vicioso, a se realimentar constantemente enquanto se esgota em si mesma, cada vez mais distante do mundo real.

Os resultados práticos são pífios. A Universidade Federal de Sergipe, por exemplo, tem um curso de Audiovisual (recentemente promovido a Cinema) há muitos anos. E no entanto o mercado de produção audiovisual sergipano, que já não era exatamente notável e hoje sofre mais que os outros os efeitos da crise econômica e, mais grave, estrutural que está destruindo o setor de publicidade, sofre com a falta crônica de profissionais razoavelmente qualificados.

Por tudo isso, se eu fosse criar um curso de cinema mandava esse modelo às cucuias.

Uma das coisas que mais me impressionam é o número de estudantes que, tendo que estudar para a prova de Sociologia ou de Teoria da Comunicação, não viram os mais básicos filmes da história e não compreendem o seu papel na evolução da linguagem cinematográfica. O ambiente ao menos lhes possibilita falar obviedades sobre o cinema iraniano, ou sobre a militância em prol do cinema brasileiro, que é e pelo visto sempre será um valor que se esgota em si mesmo e não precisa de justificativa existencial. Mas tantos, tantos parecem não conhecer cinema de verdade.

Na Universidade Rafael Galvão (URGH! para os íntimos) o curso oferecido seria bem diferente.

No primeiro ano eu escolheria 200 filmes que, de alguma forma, fizeram o cinema evoluir aos longos desses últimos cento e poucos anos e os exibiria em ordem cronológica. Um filme por dia, com exceções abertas para obras como “Berlin Alexanderplatz”, por motivos óbvios.

Sei exatamente com qual filme começaria: The Wonderful Wizard of Oz, de Otis Turner.

Depois de cada exibição, chamaria profissionais da área e mesmo professores para explicar aos alunos o filme que acabaram de ver. Detalhar e realçar os elementos do filme, inovações narrativas. Explicar as técnicas em cada um, as razões pelas quais foram utilizadas. Contextualizá-lo em seu tempo e em relação ao que veio antes. Contaria a sua história e o seu papel na ordem geral das coisas. Mostraria, por exemplo, o que há de revolucionário nas mãos de Mae Marsh em “Intolerância”, ou na narrativa não-linear de “Cidadão Kane”, ou o que há de inovador em “Acossado”. Exibiria, por exemplo, “Perigo Delicioso”, com Tom Mix, “No Tempo das Diligências” e “Era Uma Vez no Oeste”, para que pudessem entender as diferenças e a evolução de um dos gêneros mais importantes do cinema, e também como e por quê.

No segundo ano eu exibiria tudo de novo, na mesma ordem, mas agora para estabelecer um grande debate com a participação de todos. Seria mais aberto, porque a meninada a essa altura teria, espera este eterno otimista, uma visão mais abrangente do que é o cinema e de sua trajetória, e certamente enxergaria tudo de outra forma e compreenderia melhor cada filme. E só então os alunos estariam liberados para se especializar no que quisessem.

Mas em vez de um curso generalista como os de hoje, os dois anos seguintes seriam segmentados: cursos de montagem, de roteiro, de direção, de sonoplastia, cenografia. Não seriam esse amontado de matérias isoladas sobre temas disparatados que não parecem fazer nenhum sentido, a maior parte dos quais não interessa de verdade aos alunos ou a ninguém com juízo. Seriam dois anos de prática, de resolução de problemas, de mão na massa. A tecnologia para isso já existe há muito tempo e é cada vez mais barata.

Obviamente, não dá para garantir a formação de novos cineastas, porque talento é coisa que não se ensina, no máximo se alimenta e incentiva. O que eu poderia garantir é que esses garotos no mínimo estariam preparados de verdade para pensar e fazer cinema, saber o que estão vendo, ter os critérios necessários para avaliar um filme e o conhecimento para fazer também, se quisessem. E eu acho que querem.

Mas, como já disse, eu não entendo desses negócios de escola.

Disney na Culturama

Quando a Culturama, uma editora pequena do Rio Grande do Sul, anunciou que tinha conquistado os direitos de publicação das revistas Disney no Brasil após a derrocada da Abril, recebi a notícia com um pé atrás: independente de qualquer coisa, duvidei que ela conseguisse distribuir as revistas em algum nível minimamente comparável ao que a Abril tinha alcançado.

É claro que não faço ideia das razões que fizeram a Disney escolher uma editora pequena do extremo sul de um país continental para editar e distribuir suas revistas. Eu não entendo do mercado editorial e não sei como funcionam suas razões. Mas não precisava ser Sir Lock Holmes para ver que isso tinha tudo para não dar certo. Achava difícil que a Culturama conseguisse colocar suas revistas no Amapá, por exemplo, ao menos de maneira regular. Essa era a grande diferença: durante quase setenta anos, sempre houve uma revista Disney nas bancas de todo o Brasil. Isso não aconteceu nem nos Estados Unidos, e era em grande parte mérito da impressionante sistema de distribuição da editora dos Civita. Eu duvidava que a Culturama fosse capaz de conseguir algo remotamente parecido.

Mas foi pior que isso. As novas revistas foram lançadas com algum estardalhaço, ao menos nas redes sociais, em março. Desde então, procurei por elas em quatro estados: Sergipe, Bahia, Pará e Ceará. Em nenhum deles consegui achá-las; nem nas bancas, nem em lugar algum. Finalmente achei as número zero na Bienal do Livro em Fortaleza, em agosto, cinco meses depois de terem sido lançadas. Basicamente, eram encalhe em busca de uma segunda chance. Agora, em outubro, achei algumas revistas em Aracaju, números que aparentemente foram lançados há alguns meses. No site dizem que estão distribuindo as revistas em todo o Brasil. É uma meia mentira. A Culturama parece ser incapaz de ao menos estabelecer uma estrutura de distribuição sistematizada, distribuindo suas tiragens e datas de lançamento de modo a minimizar o encalhe, coisa que a Abril fazia desde sempre com algumas publicações.

Agora que li as revistas, posso dar uma opinião sobre os quadrinhos Disney nestes tempos pós-Abril. É preciso lembrar que li essas revistas em seu auge e acompanhei o início de sua decadência, e é esse padrão, defasado por décadas de ignorância quanto à sua evolução, que ainda hoje define para mim o que deve ser uma revistinha Disney.

São cinco novos títulos: Pato Donald, Tio Patinhas, Mickey, Pateta e Aventuras Disney. São todas muito parecidas: 64 páginas, papel offset. A impressão é excelente, mas para mim o papel é estranho. É culpa minha: para mim, que tenho lembranças demais, lembram as revistas da EBAL, de que não gostava muito. As capas são de uma mediocridade assombrosa, como já eram na Abril nos últimos anos. Vão longe os tempos em que, com exceção da Almanaque Disney, cada capa trazia uma gag visual, sendo quase uma outra historinha. Para piorar, uniformizaram os logos, tirando das revistas a identidade própria que carregaram em seus tempos áureos no Brasil.

A uniformidade mediocrizante não se restringe ao logo, no entanto. A Abril buscava ocupar faixas diferentes de mercado. Das mais baratas, como a Pato Donald e a Zé Carioca, às mais caras, como as Disney Especial, havia sempre uma revista para cada bolso, o que provavelmente ampliava sua penetração de mercado. Mas as revistas da Culturama, independente do título que carregam no alto de suas capas, parecem ser a mesma revista, apenas com personagens diferentes. Pelo visto, só existe um tipo de leitor padrão para elas — e imagino que sejam velhos caquéticos semi-esclerosados, saudosos de outros tempos. Gente como eu.

A falta de variedade é outra deficiência. Cada revista traz apenas os personagens que lhes dão título, com exceção da Aventuras Disney, que parece tentar ocupar mais ou menos o lugar da antiga Almanaque Disney, embora seja muito mais pobre que o original: é só uma coletânea com os mesmos personagens das outras revistas. Infelizmente, ainda lembro que uma revista Disney, em outros tempos, tinha um universo absurdamente diversificado: além dos Donalds e Mickeys da vida, traziam também personagens variados como Quincas, Bambi, Havita, Banzé e personagens originados nos longas da Disney — além de quadrinizações dos filmes que ela lançava —, e tornavam a experiência de leitura algo muito mais rico do que é hoje.

As histórias publicadas agora vêm da Dinamarca e da Itália. Desde sempre eu não gosto das histórias italianas, cujo histrionismo e exagero gráfico mais parecem uma caricatura do italiano médio. Para mim elas nunca tiveram a universalidade simples e cosmopolita das histórias de Carl Barks, nem a sofisticação narrativa de Don Rosa, e sempre achei que elas foram um dos ingredientes da decadência da Disney no Brasil. Ninguém com bom gosto podia gostar daquilo.

Mesmo assim as histórias apresentadas me surpreenderam. Talvez por estar esperando uma tragédia total, medo que se aliava ao absoluto desconhecimento do que se andou fazendo nos últimos tempos, o que vi me deixou satisfeito. Há boas histórias sendo produzidas mundo afora, mesmo na bota. E a edição da Culturama é boa, cuidadosa, embora se note uma falta de criatividade impressionante — basta lembrar dos nomes dos personagens de décadas atrás, sempre com trocadilhos que faziam a delícia das crianças e que agora estão ausentes. O único grande defeito que consegui ver foi o fato de as histórias estarem longas demais agora. Nos tempos áureos da Disney no Brasil, mesmo a Pato Donald e a Zé Carioca traziam um número grande de histórias em cada edição, sempre variadas. Essa variedade não existe mais.

A maior deficiência nesse relançamento da Disney, no entanto, ainda maior que a distribuição abaixo do medíocre, não é exatamente culpa da Culturama.

Uma das melhores coisas da Disney no Brasil, principalmente a partir dos anos 70, eram as histórias produzidas no Brasil, especialmente as do Zé Carioca. Elas tinham um elemento que falta a todas essas novas revistas: uma brasilidade que tornava as histórias mais atraentes, mais próximas do leitor por lidarem com os mesmos padrões culturais. Se a Turma da Mônica continua firme e forte não é apenas porque tem uma estrutura de distribuição muito superior; é porque suas histórias são criadas por brasileiros, respeitando as características culturais do país. São como sempre foram, imensamente inferiores ao que a Disney publicou de melhor no país, como as histórias de Carl Barks e as do Zé Carioca. (Na verdade são inferiores mesmo ao que Maurício de Souza fazia no final dos anos 70.) Mas são mais adequadas, sentem melhor o pulso dos seus leitores. O material exclusivamente global que a Culturama disponibiliza se ressente da ausência desses pontos de identificação.

Sei que não podem publicar histórias do Zé Carioca porque as antigas pertencem também à Abril, e já há décadas não se produz mais histórias dos personagens Disney no Brasil. Mas o fato de saber não torna as revistas da Culturama melhores.

O  grande problema é que, no longo prazo, nada disso importa.

Ler essas revistas me deixou, acima de tudo, com uma certeza: os quadrinhos Disney não têm futuro no país. Não estou rogando praga, eu que também lamentei o fim das revistas na Abril. Mas a única maneira deles terem alguma esperança seria a retomada da produção de quadrinhos brasileiros, como a Abril fez durante os anos 70 e, principalmente, 80. E nada indica que isso vá acontecer. Na verdade, talvez nem isso fosse garantia de que elas tivessem alguma sobrevida.

No livro “O Homem Abril”, Gonçalo Júnior conta que Roberto Civita sabia exatamente em que momento as revistas em quadrinhos iniciaram a sua decadência no Brasil: o dia em que a Censura Federal liberou as revistas com nu feminino total no país. Naquele instante, os quadrinhos Disney perdiam os leitores adultos — caminhoneiros e quetais em uma população majoritariamente analfabeta ou semiletrada. O efeito foi imediato: a partir dali, as revistas que vendiam centenas de milhares de exemplares a cada edição — a Tio Patinhas chegou a vender mais de 500 mil todo mês — passaram a vender cada vez menos. Jamais voltariam a vender o que vendiam antes. Mas as consequências foram ainda piores que a simples queda nas vendas. Quando os adultos deixaram de ler essas revistas, elas perderam um espaço importante no imaginário das pessoas. Passaram a ser exclusivamente coisa de criança, e portanto menores.

Mas ali era só o começo. Causas mais importantes vieram depois. A internet é a maior delas, mas no Brasil até a violência urbana (que impede as crianças de irem sozinhas às bancas, como eu ia tanto) contribuiu para a decadência. No entanto, na minha opinião a razão mais grave é o simples passar do tempo, a mudança de sensibilidades. As crianças não querem mais ler essas historinhas, ponto final. O mundo que as cerca lhes oferece atrativos mais adequados, como desenhos, jogos, filmes. Revistinhas em quadrinhos pertencem a outros tempos, em que nem todos tinham TV com apenas dois ou quatro canais, em que as relações sociais se davam de maneira diferente e menos intermediada pela tecnologia. A queda da Abril não mudou nenhum desses fatores, e não será a Culturama que irá revertê-los.

Por isso não dá para levar muita fé no futuro desses quadrinhos. É até chato escrever um vaticínio desses porque imagino que para o pessoal que edita essas revistas este é principalmente um ato de amor, e o trabalho que realizam é bom. Há algo de heróico, embora talvez quixotesco, em sua tentativa de manter esse universo vivo, um universo que definiu o imaginário de pelo menos dez gerações de crianças.

Mas não adianta brigar com o tempo. As revistas em quadrinhos acabaram. Sua era está chegando ao fim, assim como as bancas de jornais em que eram vendidas. Eles fizeram a alegria de outras gerações, que envelheceram e trazem consigo as lembranças de sua própria juventude.

Uma das coisas que me impressionam hoje em dia é que tantos dos personagens com que cresci, quase todos, se tornaram anacrônicos, até ridículos. Como levar a sério o Mandrake, hoje? Um mágico de cartola? Como levar a sério uma Princesa Narda quarenta anos depois de Stephanie de Mônaco arrepiar o jet set europeu? Como respeitar a mera ideia de Lothar, o príncipe africano que, como bom neguinho, se permite ser o capacho de um mágico, por poderoso que ele seja?

Ainda pior é o fato de que esse anacronismo vai muito além do simples choque de realidade. É verdade que a minha ignorância permitia o nascimento da magia e de um mistério que só crianças podem criar, mas mesmo hoje o Fantasma, para mim, pode viver numa floresta equatorial tipo as do Congo. Eu sei que isso é teoricamente possível. Mas para a menininha que cresceu assistindo ao Discovery e ao National Geographic, a África deve ser um grande Serengeti, e algo como a Floresta Negra é absolutamente irreal para ela. Mais irreal que jedis derrubando impérios com seus sabres de luz.

São os novos tempos. Não dá para brigar com eles.

A destruição do mundo pelos cristãos

Toda religião é deletéria e nociva. As religiões monoteístas derivadas do judaísmo são ainda piores. Mas nenhuma gerou tanta destruição quanto o cristianismo em seus primeiros séculos.

Da primeira vez que fui à Itália, uma das visões que mais me impressionaram foi, no caminho entre Fiumicino e Roma, uma velha igreja católica construída sobre um templo romano. As colunas de mármore em estilo coríntio estavam lá, mas sobre elas tinham erigido uma nova besta, tijolos de argila assentados por uma civilização mais atrasada, uma cultura nitidamente inferior se sobrepondo a algo mais belo. Ali se podia entender como o cristianismo se impôs à cultura romana: através da destruição de todo um mundo e da construção sobre suas ruínas.

A maneira como se deu essa destruição é o tema de The Darkening Age, da inglesa Catherine Nixey, livro interessante que vale a pena por ser lido.

A história que Nixey conta é aterrorizante. Começando pela destruição do Templo de Atena em Palmira, passando pelos mais diversos exemplos de mutilação e destruição de estátuas, ideias e, quando necessário, pessoas, mostrando sua origem doutrinária e terminando com o fechamento da Academia de Atenas (é, aquela de Sócrates e Platão) pelo Código Justiniano, em 532 D.C., ela narra a trajetória da consolidação do cristianismo a partir da tentativa de obliteração não apenas das religiões pagãs, mas também de seus marcos e de seus fiéis.

Nixey não está no patamar de um Paul Veyne ou mesmo de uma Mary Beard. Seu livro é limitado, com foco excessivamente estreito na crônica da destruição causada pelo cristianismo nos séculos IV e V. Ela não quer ou não pode escrever um livro que tente esgotar o assunto, que aborde com mais profundidade a variedade de fatores que geraram essa destruição. Essa é a grande falha de The Darkening Age: a falta de contextualização e de aprofundamento no processo histórico que possibilitou a consolidação do cristianismo e sua radicalização absoluta e totalitária.

São muitas lacunas, muitas delas no mínimo úteis para que se compreenda apropriadamente o fenômeno da ascensão destruidora do cristianismo. Por exemplo, para um livro que fala tanto em demônios, especialmente em sua primeira parte, não custava lembrar que eles não são um conceito judaico introduzido pelos cristãos na cultura ocidental, mas a vilificação dos daemons que já estavam presentes no cotidiano de cada romano. Ao cristianismo nunca bastou mostrar a opção de um mundo diferente: cumpria também dizer que o mundo ao qual forçavam uma alternativa era maléfico, seus valores e crenças eram intrinsecamente perversos. Era necessário destruir o outro para validar-se.

Nixey gasta páginas demais para contar histórias escabrosas de Nero sem nenhum critério, mais ou menos como a fofoqueira que comenta o “mau passo” da filha da vizinha sem se responsabilizar por isso. Há muito tempo nenhum historiador que se dê ao respeito leva ao pé da letra as histórias fantásticas contadas sobre Nero por historiadores como Suetônio e Tácito. Entendem o viés de classe, ou a menos a luta política entre facções, na formação da lenda negativa do sujeito da lira ardente e sua inserção no contexto histórico de um período turbulento de Roma. Mais importante, levam em consideração outras evidências para perceber que há um problema inerente à imagem de Nero quando entendemos que ele foi um imperador tão popular que, depois de sua morte, pipocaram impostores dizendo ser ele em vários cantos do império. Nixey não quer contexto, no entanto: ela apenas apresenta as estórias sem nenhuma ressalva historiográfica, porque fazem leitura saborosa. Nixey é professora de história, mas é também jornalista — o que talvez tenha lhe angariado uma boa vontade excessiva nas resenhas publicadas na imprensa inglesa —, e quem quer que conheça o mau estado atual dos jornais da velha Albion pode entender os padrões narrativos a que ela obedece.

Mas há falhas mais graves do que o deleite em mostrar Nero prestando serviços sexuais a todo um pelotão de soldados. Por exemplo, Nixey se abstém de lembrar que o processo de afirmação do cristianismo foi acompanhado também por vários níveis de negociação e de acomodação com a cultura pagã. O processo de evolução cultural nunca se dá por via única, nem de maneira absoluta. O cristianismo não se impôs de modo tão puro como o registro de suas atrocidades faz parecer. Absorveu muitas das estruturas religiosas do mundo romano — a começar pela criação de uma hierarquia de santos que guarda semelhança quase xerográfica com a lógica da multidão de deuses romanos —, buscou pontos de convergência entre suas culturas, e com o tempo acomodou muitas das práticas que, antes que religiosas, representavam o modo de vida dos romanos.

É a aparente opção por ignorar aspectos mais complexos desse processo, talvez para reforçar a monstruosidade cristã, que introduz a falha mais grave nesse livro: não colocar o triunfo do cristianismo dentro do contexto do Império Romano.

No século V, o Império Romano estava implodindo. A partir de Trajano, havia se expandido muito além dos limites definidos no testamento de Augusto, menos em razão da busca da glória apontada por Gibbon do que pela necessidade objetiva de sustentar Roma, e agora sucumbia ao seu tamanho. Pressões migratórias enfraqueciam o império por todos os lados, e a sua descentralização cobrava um preço alto. As legiões romanas, antes temíveis e uma das mais fantásticas unidades bélicas da história, agora eram compostas pelos povos que ajudavam a dominar, o que fazia mais difícil e complexa a imposição da pax romana. Se tornara impossível impedir as convulsões sociais causadas pelas necessidades de tantos povos diferentes — cidadãos romanos desde o Édito de Caracala —, e que levariam ao melancólico destino do pobre Rômulo Augusto. Não custa lembrar que Odoacro era cristão.

Aquela era uma civilização em crise, tanto material quanto ética. E nesse contexto, a mensagem cristã — milenarista, salvacionista, austera, fortalecendo-se sobre a ideia de culpa e de negação de qualquer tipo de prazer — encontrou um campo fértil. As pessoas viam o seu mundo ameaçado e tinham medo. Jesus Cristo e sua mensagem de auto-justificativa e perdão a si mesmo se tornavam, cada vez mais, uma opção atraente.

O cristianismo cresceu utilizando a seu favor o medo e a intolerância: o momento histórico ajudava a tornar suas ameaças e promessas mais eficientes, até desejáveis. Explicar esse contexto ajudaria os leitores a compreender melhor como a cristianismo gerou a Idade Média.

Talvez fosse recomendável, também, lembrar que a ascensão do cristianismo se deu de baixo para cima. Cresceu primeiro entre a rafameia, entre os mais ignorantes, desesperados e crédulos, e certamente carregou em si muito da visão de mundo e dos preconceitos dessa camada social. É difícil não ver na ascensão do cristianismo também uma resposta de classe, com seus ressentimentos, seu desejo de vingança e de acerto de contas, seus recalques e a vontade de impor uma visão de mundo condicionada pela escassez material e pela indigência intelectual. Qualquer brasileiro que tenha passado pelas eleições de 2018 poderia compreender o que isso significa.

Mas esse não é o livro que Nixey quis escrever. Seu escopo é muito mais modesto, e ela se concentrou na crônica da destruição. Delineados os seus limites, o que resta é um relato competente e bem escrito de uma história fascinante, ainda que aterradora.

É uma história de fanatismo, ódio, ressentimento, de crueldade pia.

A fúria destruidora dos cristãos dificilmente encontraria paralelos hoje em dia; mesmo o Talibã e o Estado Islâmico, adeptos entusiasmados da destruição de monumentos heréticos, não chegam sequer perto do nível de destruição alcançado pelos cristãos a partir do momento em que tiveram respaldo estatal, com a conversão de Constantino. O linchamento de Hipácia de Alexandria é contado aqui com detalhes, e serve como símbolo do ódio misógino do cristianismo ao conhecimento e à liberdade.

Uma após a outra, Nixey nos apresenta as ideias e ensinamentos assustadores dos primeiros grandes doutrinadores cristãos. São João Crisóstomo, Orígenes, Santo Agostinho e São Jerônimo têm seus textos citados como o que também eram, anúncios e chamados a um mundo diferente: sombrio, odiento, negativo. Aqueles que tentam convencer o mundo de que as tragédias causadas pelos cristãos são obras de indivíduos, e não resultado da religião em si, encontrariam dificuldades em justificar as palavras de seus pensadores. “Não há crime para quem está com Cristo”, disse São Shenoute, e nisso pode-se resumir sua filosofia. Para salvar almas, era válido destruir os corpos dos infiéis; o cristianismo se tornou exatamente o que seus doutrinadores queriam que ele se tornasse.

Nixey dedica ainda alguns capítulos aos ascetas e eremitas que formaram a lenda cristã. São trechos saborosos, em que ela demonstra que grande parte das tentações e das visões desse pessoal se devia basicamente a coisas tão prosaicas como a fome auto-inflingida, e que se tornam ainda mais pitorescos em um tempo em que a humanidade recuperou alguns dos valores hedonísticos que eles tentavam destruir. Para um pobre eremita que não come direito há semanas, é quase inevitável dizer que ele só pensa em enfiar os dentes num pernil de cordeiro, aquela imagem desgraçada que não lhe sai do pensamento e atrapalha cada Pai Nosso que ele tenta repetir, por causa das tentações do diabo. Nixey fala de gente que passou a vida se vestindo com andrajos e abdicando de qualquer noção de higiene, gente que realmente acreditava que não tomar banho lhe colocava mais perto de Deus Nosso Senhor — um ser tão superior que sequer tem olfato. Fala de gente que fez da hipocrisia um modo de vida, que acreditava nas mentiras que contava, de gente que encontrou na religião uma maneira fácil de justificar a sua existência e sublimar sua vaidade apostando na conquista de algum tipo de reconhecimento em outra vida. E que eventualmente transformava isso em perseguição ao resto da humanidade. Afinal, “a perseguição pela Igreja é um ato de amor”, dizia Santo Agostinho.

A negação do prazer e do desejo, o ódio à tolerância — exemplificados na instituição da pena de morte a todos os que fizessem sacrifícios religiosos, na rejeição à boa cozinha ou na criminalização do homossexualismo no século V por Justiniano —, o ódio à arte e a disposição para matar e torturar em nome da piedade definiram o cristianismo e pautaram a existência de seus seguidores e a civilização que eles criaram. Santo Agostinho é o pai carinhoso de São Tomás de Torquemada.

No fim das contas, tudo isso geraria um período de atraso que o Ocidente precisaria de mais de mil anos para superar.

Nixey ajuda ainda a derrubar um mito antigo mas persistente. Ela lembra que embora a Igreja seja louvada pela preservação de tantos textos da Antiguidade, o fato é que ela é responsável, ainda mais, pela obliteração de um volume muito maior. A censura eclesiástica condenou ao esquecimento e à destruição boa parte da produção filosófica e literária da cultura greco-romana, ao escolher preservar essencialmente o que estava de acordo com os preceitos da Santa Madre, ou ao menos não a ofendia em demasia. Foi graças às escolhas discricionárias de monges progressivamente mais ignorantes que o mundo se viu privado de 90% do que o mundo clássico produziu de mais notável. Essa dívida o cristianismo jamais poderá pagar.

The Darkening Age serve também para lembrar que a queda do império romano não é a mesma coisa que a obliteração da cultura clássica. Não é a mesma coisa que, por exemplo, a substituição da Inglaterra pelos Estados Unidos como grande potência mundial. É o fim de uma era e de uma civilização. Roma implodiu, os cristãos destruíram templos e mutilaram estátuas, celtas e pictos botaram os romanos para correr da Britânia; mas os reinos que os substituíram eram cristãos. Foi no campo das ideias que os cristãos levaram o mundo ocidental a um retrocesso cultural sem precedentes na história mundial.  E para que isso fosse possível, primeiro foi necessário destruir o pensamento e os símbolos romanos — que, por sua vez, sintetizavam tudo o que de bom e ruim o Ocidente tinha produzido até então.

Ultimamente tem aparecido gente para dizer que a Idade Média, afinal de contas, não foi uma era tão sombria. Com todas as suas limitações, o livro de Catherine Nixey serve para colocar as coisas em seu lugar: foi, sim, uma era de trevas e de retrocesso inédito. Não foi o resultado de uma hecatombe, como a destruição da Biblioteca de Alexandria, ou as mudanças climáticas que aparentemente causaram o fim da civilização maia, ou os 168 espanhóis de Pizarro chacinando 20 mil soldados do império inca; foi o resultado de um processo lento, constante e consciente de obliteração de uma série de conquistas da humanidade. Tudo isso em nome de Deus. O maior mérito de The Darkening Age é justamente mostrar que o advento do cristianismo interrompeu o processo civilizatório no Ocidente. Pagamos por isso até hoje.

Por que ler os clássicos

Em certo dia, à hora, à hora da meia-noite que apavora, eu, caindo de sono e exausto de fadiga, fadiga inclusive de Poe, eu, ansioso pelo sol, buscava sacar daqueles livros que estudava repouso (em vão!) à dor esmagadora de ouvir essa música idiota e estultificante que se faz hoje e que se tenta passar por música; à dor de ouvir Anitta cantando com a bunda, das letras grosseiras idiotas do funk carioca, das imbecilidades semiletradas com erotismo vulgar da música baiana, das rimas pobres dos sertanejos.

E o repouso estaria nos clássicos, nos tempos em que o respeito dava a tônica, o respeito ao leitor e aos seus ouvidos, o respeito à língua e aos mais belos sentimentos.

Restou-me ir a eles, eu leitor relapso que preferia Suetônio a Virgílio, e Gibbon a Suetônio.

Restou-me Catulo e seu lirismo que, século após século, não importa quantos padres o persigam, encanta e enleva gerações e gerações de amantes, “me prometa, vida minha, que este amor será feliz e perpétuo entre nós”.

Restou-me seu “Carmen 16”, na tradução e reinvenção de João Ângelo Oliva Neto:

Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos,
Aurélio bicha e Fúrio chupador,
que por meus versos breves, delicados,
me julgastes não ter nenhum pudor.
A um poeta pio convém ser casto
ele mesmo, aos seus versos não há lei.
Estes só têm sabor e graça quando
são delicados, sem nenhum pudor,
e quando incitam o que excite não
digo os meninos, mas esses peludos
que jogo de cintura já não tem
E vós, que muitos beijos (aos milhares!)
já lestes, me julgais não ser viril?
Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos.

Os velhos tempos é que eram bons.

Os 10 melhores filmes de super-heróis

Assisti a Shazam e a Captain Marvel dia desses, dois filmes horrorosos que apenas sinalizam o esgotamento de um gênero que andou fazendo muito sucesso nos últimos 20 anos. Mas isso não quer dizer que não tenha havido grandes momentos ao longo desse tempo. Ainda mais para alguém que aos 10 anos deixou de ter como prioridade as revistinhas Disney e caiu no mundo dos super-heróis. Gente como eu.

O primeiro pelo qual me apaixonei foi, entre todos, o Capitão América. Eu já os conhecia, claro. Além dos “desenhos desanimados” que a Tupi exibia nos anos 70, aqui e ali comprei uma ou outra revista do Homem-Aranha quando era criança. Mas foi com o Capitão que as revistinhas de super-heróis passaram a ser as minhas preferidas.

Era o início dos anos 80 e a Abril, que tinha conseguido os direitos de publicação dos personagens de segunda linha da Marvel, estava fazendo um bom trabalho com o personagem. Não só pelo cuidado editorial que a Ebal, a Bloch e a RGE nunca tiveram, mas também porque tomou a decisão correta de começar pela melhor fase do Capitão, do começo dos anos 70 (descobri décadas depois que boa parte das histórias já tinha sido publicada no Brasil). Escrita por Steve Englehart e desenhada por Sal Buscema, apresentava um herói torturado, deslocado em seu tempo. Essa fase representava uma transição do modelo de Stan Lee, àquela altura já em franco processo de esgotamento e repetição das mesmas estruturas ad nauseam, para histórias um pouco menos pueris e esquemáticas.

Pouco depois, passei a comprar algumas revistas do Homem-Aranha, então publicado pela RGE — por exemplo, a edição com a morte de Gwen Stacy e os almanaques, que se não me engano publicavam as tirinhas de jornal. Eram escritas principalmente por Stan Lee e desenhadas por John Romita. Mas só quando a Abril finalmente conseguiu os direitos de todos os personagens da Marvel, em 83 ou 84, é que comecei a comprar regularmente as revistas mensais. Era uma fase estranha, em que o pobre Aranha andava de um lado para o outro feito barata tonta. Desenhada pelo Ross Andru, era essencialmente uma longa ressaca pós-morte de Gwen Stacy.

As historinhas chatas do Aranha, a decadência do Capitão América depois da morte de Sharon Carter e, provavelmente, o fato de eu passar a ter outros interesses na vida me fizeram deixar de comprar essas revistas.

E então veio “O Cavaleiro das Trevas”.

Hoje é lugar comum dizer que a série de Frank Miller que reconstruiu o Batman deu origem a uma nova era nos quadrinhos de heróis. Mas eu estava lá, e se não sabia de sua influência futura, percebia em primeira mão a sua qualidade absurda. A partir daí o Batman — que na minha infância era apenas o personagem ridículo da série de TV — se transformou no meu preferido. Não era por menos: uma a uma, grandes histórias se seguiam: “Ano Um”, “A Piada Mortal”, “Messias”, “Morte em Família”, o deslumbre visual do “Asilo Arkham”. Mais ou menos nessa época o Aranha renasceu nas mãos de Todd McFarlane. E a Abril passou a republicar, numa revista chamada “A Teia do Aranha”, as histórias dos anos 60, início dos 70 do amigão da vizinhança.

Mas os tempos passaram e eu deixei, mais uma vez, de comprar essas revistas. E o responsável por isso foi o Superman.

“A Morte do Superman” foi uma grande ideia, mas foi também uma das coisas mais deletérias que poderiam acontecer para os quadrinhos, pelo menos do ponto de vista de gente como eu, junto com as destruições do mundo a cada 15 dias nas histórias do X-Men — grupo que jamais me interessou, nem mesmo quando desenhado pelo John Byrne.

Em parte porque passaram a mirar um público mais adulto, as histórias se tornaram cada vez mais confusas, e ao mesmo tempo mais repetitivas. Paradoxalmente, eram complexas em excesso e banais demais. Há algo de profundamente chato nas constantes trocas de alter-egos, nas mortes a três por quatro seguidas de ressurreições que agora são quase mandatórias. A morte de Jason Todd, por exemplo, foi um dos grandes momentos dos quadrinhos; sua ressurreição não foi só desnecessária, foi idiota.

Deixei de ler super-heróis há muitos anos. Mas de vez em quando passeio pelas edições digitais antigas do Batman desenhado por Jerry Robinson, Frank Robbins e Sheldon Moldoff, do Aranha de Ditko e Romita e o Capitão América anticomunista dos anos 50. Eu ainda gosto deles. São simplórios, talvez, e muitas vezes pueris. Mas eu gosto. Freud explica, mas eu não estou interessado na explicação.

Todo esse nariz de cera é apenas para dizer que não aguento mais filmes de super-heróis.

É engraçado que, enquanto as revistas em quadrinhos ficaram chatas, no cinema os super-heróis viviam um renascimento. No começo deste século, o “Homem-Aranha” de Sam Raimi me deslumbrou. A evolução da computação gráfica tinha possibilitado transformar em imagens aquilo que só podíamos imaginar, e uma parcela importante da cultura pop finalmente tinha finalmente a chance de se realizar dignamente no cinema. Daí em diante, filmes de super-heróis viraram um segmento fundamental da indústria cinematográfica americana. Tem gente que chega a dizer que se tornaram o “amálgama da civilização moderna” ou algo do tipo, provavelmente porque ninguém pode ser punido por falar idiotices.

Mas eles se esgotaram. Cada vez mais, um filme de super-herói é a repetição da fórmula do filme anterior com um personagem diferente. Quando um filme como “Pantera Negra” é indicado ao Oscar, é mais ou menos como investimento na Bolsa: quando você fica sabendo de uma oportunidade é porque dali em diante aquela ação só vai cair.

Acho que parte do problema está na ênfase nos efeitos especiais, nas sequências cada vez mais mirabolantes de ação e na exigência de que o produto final fique dentro do padrão definido para esse tipo de filme, uma mistura de ação e humor semi-infantil.

O roteiro — ou melhor, a construção dos personagens — parece dizer cada vez menos. A revolução protagonizada por Stan Lee dizia respeito nem tanto aos heróis, mas aos seus alter-egos. Nunca foi o Homem-Aranha: era Peter Parker. Mas isso é menos importante em um filme, até pelas limitações de tempo. O resultado é que os personagens são menos ricos (Tony Stark, um personagem ressuscitado maravilhosamente pelo cinema, não acabou se transformando em pouco mais que uma caricatura?), as identidades civis dos personagens são cada vez menos importantes (o Capitão América tem vida privada?). Um filme de super-herói é basicamente correria, tiro, porrada e bomba, e um esforço sobre-humano em efeitos especiais cada vez mais próximos da perfeição.

Mas há um problema em tudo isso. Se a gente parar para pensar, quadrinhos são bem menos gráficos do que parecem. Sua mecânica faz com que a maior parte da ação seja essencialmente intuída pelo leitor. Um quadrinho apenas lhe dá um indicativo do que acontece, como uma fotografia; os detalhes dos movimentos, os sons, tudo isso acontece apenas na sua cabeça. É o leitor quem acaba de criar esses movimentos, no final das contas. Assim como cria as vozes de cada personagem, por exemplo.

Os filmes eliminam essa participação do espectador. Ele não tem que criar nada. Tem apenas que receber extáticos esse bombardeio sensorial, de preferência sem pensar.

Talvez por isso esses filmes me interessem cada vez menos. Passo batido por alguns (“Esquadrão Suicida”, por exemplo, vi apenas por que estava disponível em um voo), e outros vejo para esquecer logo em seguida. Eu simplesmente não consigo lembrar do último filme do Homem-Aranha, e nem faço questão. Filmes de super-heróis se transformaram no equivalente destes anos aos de Steven Seagal: você sabe exatamente o que vai receber antes mesmo de entrar no cinema. Em alguns casos a decadência é mais que óbvia: basta ver que a cada novo reboot o Homem-Aranha vem sendo humilhado.

Mesmo assim, eu com minha mania de listas resolvi fazer a minha de melhores filmes de super-herói, uma daquelas listas idiossincráticas que volta e meia aparecem por aqui. Alguns filmes poderiam estar na lista, mas têm defeitos que acho graves demais. O Batman de Tim Burton, por exemplo: filme importantíssimo na história da construção da viabilidade do gênero, mas que traz um Coringa totalmente equivocado e um total desrespeito à origem do personagem.

Porque para entrar nessa minha lista boba um filme tem que respeitar as origens quadrinísticas do personagem. Ao mesmo tempo, tem que trazer algo novo. A lista está em ordem cronológica. Obviamente, não assisti ainda ao último dos Vingadores, porque ainda não ganharam as redes e eu não vou mais ao cinema. O penúltimo, no entanto, não me disse muita coisa, além do fato de parecer ser apenas um prólogo para esse filme. Tampouco assisti ao último do Homem-Aranha. Mas esse não tem como ser bom, desde que resolveram violentar o pobre Parker e transformá-lo em pupilo de Tony Stark. Esse não é o meu mundo.

Superman I e II (1978/1980)
40 anos se passaram e Superman I e II continuam insuperáveis. Feito sem os efeitos especiais atuais, mas com um grande cuidado no roteiro, o resultado é um filme novo, equilibrado. Cenas de um lirismo hoje impensável, como o passeio de Superman e Lois Lane no céu, quase inimagináveis hoje, mostraram que o cinema podia enriquecer os quadrinhos com possibilidades que o papel lhes negava. Ele é contado aqui como um filme apenas porque foi gravado praticamente inteiro de uma só vez, por Richard Donner. Richard Lester, creditado como diretor do II, apenas terminou o segundo filme — e destruiria a franquia em Superman III. Em 2006, Superman Returns tentaria retomar o universo criado aqui; o resultado foi um filme que, embora eu goste muito, não foi bem aceito pela maioria das pessoas. Depois vieram os filmes com Henry Cavill, abaixo de qualquer crítica. Sabe Deus o que o destino reserva para o Homem de Aço.

Corpo Fechado (2000)
Embora sem uniformes, e com superpoderes disfarçados, o filme de M. Night Shyamalan é um grande filme de origem de super-herói. Bem feito, brincando adequadamente com as estruturas do gênero, e dispensando efeitos especiais mirabolantes, Unbreakable vai à essência do que é ser super-herói. Dentro desses limites, é um filme brilhante.

Homem-Aranha 2 (2004)
Embora o primeiro filme do Homem-Aranha dirigido pelo Sam Raimi tenha sido o grande responsável pela nova era de filmes de super-heróis, o que faz dele um marco inegável, é em “Homem-Aranha 2” que a série atinge a quase perfeição: os únicos defeitos do filme, como a presença extemporânea de uma Mary Jane interpretada pela atriz errada, são herdados do filme original. O resto são atores adequados e um dos vilões mais ricos desse universo, o Dr. Octopus de Alfred Molina.

O Cavaleiro das Trevas (2008)
Batman Begins foi aclamado como um grande filme, mas era medíocre — sua sorte é que era necessariamente comparado aos filmes anteriores de Tim Burton e Joel Schumacher, que transitavam entre o ruim, o ridículo e o escabroso. Christopher Nolan finalmente conseguiu dar aqui a densidade necessária ao personagem, ajudado pelo melhor super-vilão de todos os tempos: o Coringa de Heath Ledger atualizou e levou o Palhaço do Crime a desvãos assustadores. (Eu falei minhas bobagens aqui sobre Batman Begins e sobre O Cavaleiro das Trevas.)

Homem de Ferro (2008)
Uma coisa que as pessoas deveriam ter em mente é que filmes de super-herói funcionam melhor quando o personagem é relativamente desconhecido, tipo segunda linha, porque isso possibilita mais liberdade na reconstrução do personagem para uma nova mídia. Neste caso, o Homem de Ferro ganhou uma abordagem mais rica do personagem ao mesmo tempo em que teve sua origem respeitada. Além disso, sua armadura era mais fácil de transplantar para o cinema sem violentar os quadrinhos. O resultado é um clássico do gênero.

Vingadores (2012)
A fórmula se consolidou definitivamente aqui: muita ação, umas pitadas de humor para temperar a coisa, muitos efeitos especiais e uma batalha final apoteótica. É um filme redondo, bem feito, e que nortearia virtualmente todos os filmes de super-herói feitos depois.

Capitão América: Soldado Invernal (2014)
Com a fórmula consolidada, basta um bom roteiro para fazer um grande filme. Estruturada livremente sobre a melhor fase do Capitão, do início dos anos 70, e baseada em uma grande história, sólida, o segundo filme do Capitão América faz justiça à lenda de um dos personagens mais antigos do cânon. É um filme brilhante.

Deadpool (2016)
A essa altura a fórmula já estava desgastada, e então aparece Deadpool com uma proposta simples: vamos avacalhar a bodega. Só isso. Mas faz isso com graça e com risadas legítimas.

Mulher Maravilha (2017)
Olhando direitinho, não há muita coisa nova em “Mulher Maravilha”: a protagonista é uma mulher, e estamos conversados. O desrespeito total à mitologia grega é um detalhe apenas, que certamente passou em branco para a plateia. Fora isso não há muito mais que clichês, ou no mínimo as regras básicas do filme de super-herói. Mas os autores entenderam que para fazer um filme com uma super-heroína nos anos 10 não basta simplesmente trocar o nome do protagonista. O filme precisa trazer uma certa ideologia, e por rasa que possa ser — e é —, “Mulher Maravilha” se beneficia disso. Acabou sendo um sopro num gênero cada vez mais cansado; mas a julgar por Captain Marvel, um sopro bem fraquinho, quase um suspiro.

Eu nunca fui bom de matemática.