Novamente o cinema de autor

Foi o Pinheiro quem me lembrou.

A atual greve de roteiristas nos EUA deve servir para mostrar, de maneira cabal e irrefutável, que aqueles que defendem a tese do cinema de autor estão absolutamente certos, e que este blogueiro defendia posições erradas ao insistir que a função de direção não implica a autoria de um filme.

Como o autor é o diretor, a greve não vai mudar nada no sistema de produção de filmes e seriados. Os diretores vão fazer seus filmes normalmente. Afinal, os filmes são deles. Eles são os autores.

Anatomia do comportamento de manés na internet

Comentário de Felipe Alves Fonseca a um post sobre o filme ruim do Diogo Mainardi:

Rapaz,você não entendeu nada. Nada mesmo. O filme se explica na última fala onde Diogo diz: ” A morte da Maria não serviu pra nada.” Vinni responde: ” Serviu sim, serviu pra financiar o nosso filme”
O filme é uma transcrição de Ave Maria. Só que na São Paulo do sec xxI o sacrifício de Maria não traz nenhuma boa nova. Não há salvação. É a mesma coisa em “Cama de Gato” onde Deus diz aos garotos “Afinal vocês nãotiveram tiveram tanta culpa assim”
Aconselho você a sair de casa, ir para as ruas onde essas coisas se passam e não ficar se masturbando na internet…

A explicação dada pelo Fefê é a explicação que o Mainardi deve ter dado a quem se deu ao trabalho de questionar seu filme. Foge de todas as críticas feitas no post, críticas que diziam respeito ao filme como objeto realizado. Fefê justifica “Mater Dei” pelas intenções, pelo “querer dizer”. Infelizmente isso não quer dizer nada. Eu posso até não ter entendido; mas o Fefê também não entendeu. Porque pouco importa o que os incompetentes cineastas Mainardi quiseram dizer: importa o que efetivamente disseram, e não foi nada mais do que um amontoado de bobagens. É triste ter que lembrar isso, mas de boas intenções o inferno está cheio. Quando alguém tem que explicar quais as intenções de um filme, a obra tem sérios problemas.

Pela irritação do Fefê se deduz fácil e talvez equivocadamente que ele está no círculo de bajuladores do Mainardi. Talvez por isso seu argumento beire o delírio. Transcrição da Ave Maria? Clichês da crítica como a frase “não há salvação” em oposição à idéia de redenção que caracteriza a maior parte dos filmes feitos em Hollywood?

Tudo isso é velho. É batido. É só a repetição de clichezinhos de universidade, parte do léxico de pseudo-críticos de segunda ou terceira. Milhares de bobinhos de classe média já repetiram esses argumentos para tentar agregar algum valor ao vazio do que defendem. E o que é pior: nada disso normalmente se traduz em verdade.

Digna de atenção também é a ofensa que o sujeito dirige ao seu incauto desafeto — no caso, este pobre paraíba solitário que datilografa estas maltraçadas: “pare de se masturbar na Internet”.

Há algo de estranho nesse tipo de conselho. Não costuma refletir apenas pobreza de argumentos; por alguma razão que um bom psiquiatra pode definir, vitupérios recorrentes como esse principalmente refletem e projetam o comportamento do ofensor. É o padrão que ele tem para julgar. É algo que ele sabe que lhe ofenderia porque doeria ao atingir um nervo exposto, e que por associação lógica certamente ofenderá o outro.

Por sua vez, o conselho de “ir para as ruas” é francamente imbecil. Não é nas ruas que se vê empreiteiros travando guerras com políticos. O Fefê, tão alienado em sua bajulação aos Mainardi, não compreende que esse tipo de ação se passa distante das ruas, e que elas apenas sentem as suas conseqüências. O Fefê não pode admitir que tema e o tratamento do filme dos Mainardi são elitistas como poucos outros na história do cinema brasileiro, e têm a mesma ojeriza às tais “ruas” que caracteriza a classe que ele representa.

Além disso, conselhos esnobes dados a quem se desconhece normalmente caem no ridículo. Não apenas para mim, macaco velho que provavelmente já bateu mais calçada que a dileta mãe do Fefê; mas porque não reflete apenas ignorância. Reflete também uma postura típica de classe média, que acha que “rua” é o boteco ao lado da universidade onde aprendeu as primeiras letras. As ruas de verdade, para “gente ‘culta’ de classe média” como o Fefê, são um lugar misterioso e exótico como a África Negra de um século atrás. Eu aposto que o Fefê anda de carro.

Se ele entendesse mesmo de rua saberia que, em primeiro lugar, o povo não vê um filme como “Mater Dei”, e que é feio invocar seu santo nome em vão. Nas ruas para onde o Fefê me degreda anda um povo que, com bastante razão, prefere “Titanic”. É uma das razões, inclusive, que fazem o seu ídolo chamar este país de “Bananão”. Quando, por algum acaso ou política de incentivo cultural, vê uma mediocridade absoluta e pretensiosa como “Mater Dei”, esse povo a abomina. Sai do cinema. Troca de canal. Queira ou não o Fefê, escastelado em algum lugar da pirâmide de bajuladores do Mainardi, o povo tem um padrão estético e narrativo razoavelmente claro, baseado no senso comum, por menos que se goste dele. Costuma ter juízo, também. É o que os mantêm longe de pequenas tragicomédias involuntárias como “Mater Dei”.

O filme do Mainardi não foi feito para o povo, e isso desautoriza o Fefê a encher a boca para invocar seu nome; foi feito para uma elite que o desprezou por reconhecer sua mediocridade. E isso fere. Isso machuca. Isso magoa.

“Mater Dei” não é só pretensioso. É medíocre, também, medíocre até dizer chega. Como colunista da revista Veja, Mainardi já foi sucessivamente interessante, engraçado, deletério e patético. Sua carreira cinematográfica, no entanto, não experimentou o fastígio: foi sempre de uma mediocridade acachapante. E filmes medíocres costumam aliciar defensores também medíocres.

Republicado em 09 de setembro de 2010

Kind of Blue

Há algo de desgraçado no jazz. Algo que faz com que ninguém o ouça impunemente, que condena aquele que o conhece a nunca mais conseguir voltar atrás, a nunca mais se contentar de verdade com menos que aquilo; algo que eleva, para sempre, os padrões pelos quais se julga a música, qualquer tipo de música, não apenas a popular.

É difícil, para aquele que ouve o trumpete de Louis Armstrong, ouvir qualquer outra música com trumpete e não exigir que seja no mínimo tão boa, que tenha a mesma qualidade dramática, a mesma síncope, o mesmo swing — em última instância, as mesmas oitavas altas e desesperadas. E isso vale também para o piano, para o trombone, para o saxofone. É no jazz que a banda de música tradicional atinge o ápice, e eleva a arte de tocar esses instrumentos à perfeição.

O jazz é a forma superior de música popular. É o que de melhor fez um século que viu a música erudita se diluir em redundâncias medíocres como as trilhas para cinema ou grandes vazios como a música experimental, e que teve como principal trilha sonora o rock e o pop, galhos menos floridos do mesmo tronco que gerou o jazz.

Kind of Blue, disco de Miles Davis, é a forma superior de jazz. Nunca mais se atingiria um ponto semelhante. Foi ali que o jazz atingiu a perfeição, em um disco com a participação de mestres como John Coltrane e Bill Evans, gravado em duas sessões e com o primeiro take sendo o que valia. Kind of Blue é um desses discos fundamentais por uma razão: é perfeito. Das notas iniciais de So What ao último alento de Flamenco Sketches, o que se tem não é a apenas a obra-prima do que chamavam jazz modal; é uma síntese de tudo o que o jazz tinha feito até aquele momento, do dixieland ao bebop: é a música popular elevada ao nível máximo, talvez mesmo ao nível da música erudita tradicional.

Embora tenham sido Louis Armstrong e Duke Ellington a dar ao jazz o status de arte, foi aquela geração — Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Miles Davis e John Coltrane, pela ordem — que o elevou ao ponto máximo da música ocidental. Uma geração ambiciosa, consistente, que explodia os limites do gênero e apontava uma infinidade de caminhos ao mesmo tempo em que solidificava, com um talento nunca mais igualado, uma tradição de 50 anos de música. Infelizmente, quase na mesma época surgiria Ornette Coleman com uma nova mudança, e a porteira seria aberta para bobagens como free jazz e fusion; mas isso não importa. Ouve Ornette Coleman quem quer e quem gosta. O importante, mesmo, é que há um disco que explica, sem sequer uma palavra, o que é o jazz, que concentra em cinco faixas cinqüenta anos do mais assombroso gênero musical que o século XX criou. E esse disco é Kind of Blue.

A Barracuda, do Freddy Bilyk, lançou no começo deste ano um livro que narra a saga desse disco: “Kind of Blue — A história da obra prima de Miles Davis“, de Ashley Kahn, conta essa história de maneira inteligente e simples. Contextualiza-o em sua época e nas trajetórias de seus músicos, sem perder tempo com fofocas e explorações sensacionalistas ou simplesmente mundanas de detalhes pouco importantes, como os problemas com drogas que praticamente todos eles enfrentaram.

Kahn mostra todo o processo de criação do álbum, explicando a razão de cada termo utilizado com clareza e simplicidade notáveis. Detalha cada sessão e explica cada música de um jeito simples mas abrangente. Explica por que o disco foi tão importante. E explora o legado de um álbum que foi recebido sem tanta euforia, mas que aos poucos se consolidou como o mais importante da história do jazz.

A importância de Miles Davis pode ser medida pelo que ele disse em um jantar na Casa Branca. Naquela ocasião, ele não mentiu. E Kind of Blue foi uma dessas revoluções. Talvez não tão importante, do ponto de vista da “inovação”, quanto Birth of Cool; mas um disco estupidamente superior.

Por explorar com simplicidade um assunto tão fascinante mas ao mesmo tempo tão complexo, “Kind of Blue” é um daqueles livros indispensáveis para quem gosta de jazz. Mas não apenas para eles: também para músicos que querem saber como pode funcionar uma sessão de gravação. É importante, também, para compositores que buscam densidade em seu processo criativo.

Há alguns anos a Gabi me convidou para escrever uma coluna sobre jazz no site da Antena 1. A resposta foi a costumeira, uma recusa, mas dessa vez não foi apenas pela falta de tempo crônica: eu sabia que jamais poderia escrever sobre jazz porque isso requer uma erudição que eu, definitivamente, não tenho. Palavras e expressões como diatônica, escala cromática, modalismo não fazem parte do meu vocabulário habitual. E ler “Kind of Blue” me deixou com a certeza de que eu estava certíssimo ao dizer não. Mas, ainda mais que isso, me deu o conforto de saber que um sujeito como Ashley Kahn pode tornar essas palavras difíceis compreensíveis até para mim.

Republicado em 07 de setembro de 2010

Os 100 filmes essenciais da Bravo

Devo ter comprado três ou quatro revistas Bravo na minha vida; a última foi sobre a bienal de 2004. Saí do jejum agora porque ela lançou uma edição especial com seus 100 filmes essenciais, e como sabe qualquer leitor antigo deste blog, eu gosto de listas de filmes.

Uma das razões é que elas sempre são discutíveis: ninguém concorda integralmente com qualquer lista. Por exemplo, Bergman tem dois filmes aqui. “O Sétimo Selo” é o meu preferido, também, mas eu teria substituído “Persona” por “Morangos Silvestres”. O mesmo acontece com Almodóvar, cujos “Ata-me” e “Fale Com Ela” prefiro a “Tudo Sobre Minha Mãe”, e com Buñuel, cujo maravilhoso “Viridiana” poderia ser substituído sem problemas por “O Anjo Exterminador”.

Nesses casos é apenas idiossincrasia que leva à discussão. As escolhas refletem as preferências de cada um. Mas estão dentro de uma certa margem de segurança, de um padrão mínimo de qualidade e de contexto em que elas não são absolutamente questionáveis. Woody Allen tem os filmes de sempre, mas eu prefiro “Manhattan”. E daí? Problema meu. Por sua vez, a ausência de “O Gabinete do Dr. Caligari” pode ser apontada, mas o expressionismo alemão está bem representado por “Nosferatu” — por falar em Murnau, “Aurora” faz uma falta danada em qualquer lista, porque o movimento de câmera foi praticamente inventado por ele.

Os problemas estão em duas outras categorias de escolha.

O primeiro, menos grave, é o daqueles filmes que ninguém tem coragem de dispensar. “Roma, Cidade Aberta” é presença constante nessas listas porque ninguém parece ter coragem de lembrar que ele vale mais como documento inaugural do neo-realismo italiano do que como o filme envelhecido, datado e enfraquecido que é. Rossellini (cuja grande obra foi a Isabella, embora o mérito seja mesmo de Ingrid Bergman) nunca esteve no mesmo nível do Visconti que está bem representado na lista, com “O Leopardo” e “Morte em Veneza”, mas cujo “A Terra Treme” suportou melhor o tempo do que “Roma, Cidade Aberta”. O filme de Rossellini é uma vaca sagrada que não dá mais leite. Mais ou menos como “Dr. Fantástico”, de Kubrick, filme velho que não sai das listas por preguiça daqueles que as fazem.

O outro problema é ainda mais grave: são os equívocos claros, escandalosos.

“Fantasia”, da Disney, é um desenho interessante, de muitas formas inovador, mas é pretensioso, confuso e chato. Não tem metade da “essencialidade” narrativa e emocional de “Branca de Neve e os 7 Anões”, filme que criou um mercado e definiu um padrão narrativo e técnico que é seguido até hoje. “Branca de Neve” não está na lista.

Enquanto isso, o western tem apenas quatro filmes incluídos. É um dos gêneros fundamentais do cinema; mais que isso, o único que se pode dizer realmente cinematográfico, porque não tinha tradição teatral ou literária anterior, ao contrário do drama ou da comédia de costumes. O western só se pôde realizar no cinema. Mas, ainda mais importante, foi um dos gêneros fundamentais na era de ouro. O western é a quintessência do cinema americano, de longe o mais importante do mundo ao longo do século. Quatro faroestes, portanto, são muito pouco, ainda mais quando se lembra que uma série de bons filmes, mas apenas bons, povoam a lista, como “As Invasões Bárbaras”, “Amor à Flor da Pele” ou “Um Convidado Bem Trapalhão”.

Pior: dos quatro westerns incluídos na lista, dois são “Os Imperdoáveis” e “Butch Cassidy”. São excelentes filmes; mas são também derivados de uma tradição anterior, secundários, e não se sustentam diante de filmes que estabeleceram a estrutura narrativa do gênero. Onde estão “No Tempo das Diligências”, “Rio Vermelho”, “O Homem Que Matou o Facínora”, “Matar ou Morrer”? Só São John Ford, sentado na Grande Planície sobre um tapete feito com o couro de John Wayne, sabe. E esses são filmes que não apenas representam o melhor do gênero: são também obras fundamentais para a própria evolução da arte cinematográfica.

George Stevens tem dois filmes na lista. “Um Lugar Ao Sol” é pule de dez. Mas “Assim Caminha a Humanidade” não é, sob nenhum aspecto, um grande filme — é só um filme grande, recortado, megalomaníaco, com o pior desempenho de James Dean em sua carreira de apenas três filmes. “Assim Caminha a Humanidade” é longo demais e ainda assim excessivamente curto para que possa contar adequadamente sua história.

Stevens, para quem não lembra, é o diretor de “Os Brutos Também Amam”, que não está na lista.

Há outros pequenos absurdos incompreensíveis. “Brazil”, de Terry Gillian, é um excelente filme — mas a lista não inclui nenhum de Gillian com o Monty Python, o que é não só um crime, mas um atestado de burrice. Em “O Sentido da Vida”, um esquete traz uma canção deliciosa: Every sperm is sacred / Every sperm is great / When a sperm is wasted / God gets quite irate. Talvez Deus não ficasse puto em sua túnica branca se o espermatozóide desperdiçado fosse o de quem elaborou essa lista.

Quanto a filmes brasileiros (numa lista extremamente generosa com a brasilidade suingante de nossa gente: quatro), a lista inclui o indefectível “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Cidade de Deus” e duas escolhas esquisitas: “Pixote” e “Lavoura Arcaica”. “Cidade de Deus” é uma escolha discutível — “Central do Brasil” continua sendo o melhor filme da retomada, na minha opinião –, mas “Pixote” e “Lavoura Arcaica” não são essenciais em lugar nenhum. Onde está “O Pagador de Promessas”? “Todas as Mulheres do Mundo”, com sua leveza carioca e cinemanovista, é melhor que qualquer desses dois. E assim como sempre incluem “Roma, Cidade Aberta”, poderiam incluir “O Bandido da Luz Vermelha”, do Sganzerla. Pelo menos não colocaram “Terra em Transe”.

Mas o ponto baixo da lista está no comentário a “Los Angeles Cidade Proibida”. Ponto baixo em termos: porque ilustra com clareza inquestionável os critérios de inclusão. Ali a revista diz:

Parece até um daqueles noir do cinema clássico americano estrelados por Humphrey Bogart, (…) o filme chamou a atenção pelo gostinho de naftalina e por lembrar aos cinéfilos que Hollywood já foi espaço para tramas inteligentes e imprevistas, diálogos espirituosos e grandes atuações, mais do que efeitos especiais mirabolantes.

É isso. Quando uma lista escolhe colocar filmes que apenas lembram os verdadeiros clássicos, é porque ela não vale muita coisa.

Republicado em 05 de setembro de 2010

Os anos 90 vêm aí

Terça-feira e eu vou para o cinema com uma missão apenas aparentemente simples: escolher o filme mais bobo em cartaz, apenas para clarear a cabeça — acompanhado de uma senhora que tinha acabado de me mostrar que, com dois pauzinhos na mão e algum sushi diante dos olhos, se transforma na Madame Mãos-de-Tesoura e deixa o Johnny Depp se achando um mero alicate de unhas.

O filme escolhido, de acordo com esses critérios claros mas de difícil realização, foi “Apenas Amigos”, comédia romântica com uma moça que lembra muito a Michelle Pfeiffer quando ela ainda era novinha.

O filme é uma porcaria e, apesar das risadas eventuais, não merece um comentário. Portanto, foi ideal para aquilo a que eu me propunha: sair do cinema dizendo “oba, não pensei por hora e meia”.

Mas uma coisa me impressionou nele, e enquanto escrevo isto um calafrio percorre minha espinha, porque adivinho uma tragédia que já vi antes se desenrolar novamente diante dos meus olhos.

O filme tem início em 1995.

E então está começando, gabriel tocou sua trombeta. Eu, que ainda não consegui superar o revival dos anos 80 que me fazia ter pesadelos ao som do Menudo em que era perseguido por pares de calças jeans verdes e espancado por tênis quadriculados com cadarços rosa-choque enquanto o Ritchie gargalhava de maneira inequivocamente maníaca, agora me vejo às voltas com os princípios de um nova ressurreição. A dos anos 90, década que não parecia sequer ter acabado. Os anos 90 foram ontem. Mas eles morreram, foram enterrados por Osama bin Laden, e aqueles que cresceram nele se preparam para, como todas as outras gerações antes dela, contar as mentiras de sempre sobre aqueles anos tão dourados.

Foi um começo tímido e incompetente, como costumam ser os começos daquelas grandes ondas — quem levou a sério Ike Turner quando ele gravou Rocket 88? –, mas para alguém que ainda hoje pula assustado e tem convulsões aos primeiros acordes de Jump, do Van Halen, enquanto imagina Dave Lee Roth babando no microfone, os sinais são inequívocos. E aterrorizantes.

Os anos 90 vêm aí.

Vêm com festas ao som do Greenday, com “Almanaques dos Anos 90” contando que Kurt Cobain esbagaçou a própria cabeça e que no dia, sei lá, 12 de março de 1997 o mundo dançava ao som do Hanson e o Brasil batizava suas filhas com o nome da minhoca contorcionista, a Thalia. As pessoas vão lembrar como eram boas aquelas novelas mexicanas, Maria Mercedez, Maria do Bairro, Maria da Casa do Caralho. Os anos 90 vêm com adolescentes vestindo preto e tentando ser tristes no verão brasileiro. Como todas as retomadas, essa virá com o reaproveitamento do que a década teve de pior.

Eu gostei tanto dos anos 90. Foram tão bons. A música melhorou, um mundo novo apareceu com o computador e as redes. O futuro era brilhante, e alguém mais otimista poderia dizer que depois do que havia começado ali nunca mais teríamos que voltar os olhos para trás, em busca de uma visão rósea do que teria sido o nosso passado. Recém-adultos mentirão para si próprios e tentarão se convencer de que a sua adolescência não foi tão ruim; pior, tentarão se convencer de que têm uma longa história para contar.

Os anos 80 voltaram ao cinema com Grosse Pointe Black. Era um filme melhor que “Apenas Amigos”. E se a qualidade de suas inaugurações significa alguma coisa, os próximos dez anos de revival dos fabulosos anos 90 serão absolutamente, completamente, desgraçadamente deprimentes.

Originalmente publicado em 21 de junho de 2006

O homem que morreu de amor, depois de roubar minhas palavras

Poetas houve, nos tempos dos românticos, tempos idos em que a miséria era bela e o sofrimento desejável, que se diziam morrer de amor — e se diziam languidamente, “ai, que morro!”, com um levar das mãos à testa e um suspiro dolorido e afetado.

Suspirava-se muito naqueles tempos.

No entanto era tudo mentira, tudo fingimento; não era de amor que se morria, era de tuberculose.

Mas houve um homem que morreu de amor. E não foi naqueles tempos de tavernas azevedianas ou luzes mortiças de lampiões; mas ainda agora, há quase um instante, nos tempos da prensa, da televisão, da fissão do átomo, quando o amor parecia tão vulgarizado que para alguns era pouco mais que a desculpa por uma mão que passeia semi-percebida pela pele arrepiada de uma moça bonita.

Antônio Maria morreu de amor, mas antes deixou como prova desse amor, de todos os amores, algumas das crônicas mais belas vistas por este país, manjedoura de cronistas como Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta e Rubem Braga. O que há nelas de verdade, de universalidade, não pode ser compreendido por quem jamais viveu algo parecido com o que ele, diante de uma máquina de escrever em uma redação de jornal, soube descrever como ninguém.

Canção modal do homem que chama sua amada

Vem, se quiseres. Bebo álcool e fumo cigarros fortes. Gosto de música sem palavras, no piano de Peffer e no instrumento grave de Mulligan. Gosto das palavras sem música, como se sabia dizer Albert Camus. De dia para dia, mais aquiesço à aridez dos sons.

Vem, se quiseres. Sou irascível, quando trabalho. Digo nomes feios, se me interrompem. Volto bêbedo para casa e não trago mais que a inocência, o cansaço e o hábito dos bêbedos. Tenho todos os defeitos que, nos outros, detesto.

Só uma disposição, em mim, é generosa — a do amor. Se um dia fores minha, ao ter-te, amar-te-ei demais, e mais ainda depois de ter-te. Vestirei o teu corpo com as minhas mãos e algumas vezes fecharei os olhos, para ver-te ainda mais bela. Haverá horas lentas de ciúmes, e um silêncio angustiado sufocará as palavras que nos faria negociar o perdão. Ah, o martírio dos amantes, que não se acreditam, que não se confiam, que não têm senão um cárcere de medos, onde afogam o sentimento espiritualíssimo da carne.

O corpo é espiritual. O espírito nem sempre.

Vem, se quiseres. Se crês numa alma oculta em minha rudez. Se não professas a abominável esperança esperança do amor eterno. Se acreditas, lucidamente, no “amor até quando” (?)… Se não te amas e se me amas, vem, e aqui te esperam séculos de sede e de dor, sem um momento de paz verdadeira, a não ser aquele, de lassidão, quando, depois de ter-te, amar-te-ei mais ainda…

Originalmente publicado em 13 de junho de 2006

Ainda o golpe do film d'auteur

A comparação do diretor com o maestro, feita pela Cláudia, é interessante. Lembrei de um de que gostava muito, o Herbert von Karajan. Eu era fascinado pela mão esquerda do Karajan. Nazista ou não, ele era grande.

Mas por bom maestro que fosse, Karajan continua sem ser o autor da Quinta Sinfonia de Beethoven. Podia alterar o andamento, podia enfatizar determinadas passagens — mas era só um intérprete. Aliás, a própria definição de interpretação presume algum tipo de acréscimo pessoal à obra. Mas não lhe usurpa a autoria.

O mesmo valeria se a comparação fosse com o teatro. Por mais “iconoclasta” que seja uma montagem de, digamos, Gerald Thomas, por mais que ele subverta o texto e tente dar ou ressaltar novos significados a uma peça como “Hamlet”, ela continua sendo de Shakespeare.

A tese central do post — a de que o diretor não é o autor do filme, ao contrário do que dizem os franceses — continua em pé, na minha opinião.

Quanto ao que disse o Bia, que Hitchcock desqualificou uma trilha, etc., a pergunta é: e daí? Como disse o post, esse é o trabalho que qualquer produtor faria — e normalmente faz. O que se questionou acessoriamente no post foi a função específica de direção, e não das pessoas ou do processo de produção de um filme; até agora não vi nada que contestasse isso definitivamente. Hitchcock era o produtor efetivo de seus filmes. Chegava aos sets com storyboards detalhados. Ele tinha controle total sobre tudo ali, mas não por causa especificamente de sua função de diretor.

No que se refere a “Os Sonhadores”, o problema do Bia é uma generosidade excessiva, e a crença de que porque fulano fez alguma coisa boa deve haver um significado em tudo o que faça depois. Uma espécie de presunção de inocência. Deve ser o que o faz dizer que aquele é um filme “visual”, com todos aqueles diálogos pseudo-profundos. Para mim, filme “visual” (e todo filme não é visual?) é “O Clã das Adagas Voadoras” ou “Sonhos”. “Os Sonhadores” é um filme tipicamente europeu dos anos 2000, inclusive naquela nova tendência de fazer filmes “multilíngües” que apresentam como novidade, esquecendo que “A Grande Ilusão” de Renoir já fez isso com muito mais propriedade e significado há quase setenta anos. “Os Sonhadores”, por mais boa vontade que o Bia tenha para com ele, é filme inconcluso e medíocre.

E quanto a imaginar o roteiro de Sin City sem Robert Rodriguez, é o que falei antes: um mau diretor pode fazer um bom filme com um bom roteiro, mas um bom diretor jamais fará um filme com um mau roteiro. Basta olhar o monte de lixo que tanto o Rodriguez e o Tarantino (que é um grande diretor) produzem. É algo na mesma linha do que falou o Ina: o Bogdanovich fez bons filmes com bons roteiros, afinal, embora nós dois discordemos do seu valor como diretor (apesar de o Ina admitir que, com exceção dos quatro primeiros, ele só fez bobagem).

Sin City, aliás, é o pior exemplo que o Bia poderia dar. Por favor, o storyboard do filme foram os próprios quadrinhos de Frank Miller. Até nisso, na definição de cenas, ângulos, etc., a primazia do “roteiro” é absoluta, maior que na maioria dos filmes; não é à toa que o título completo do filme é Frank Miller’s Sin City . E Tarantino dirigiu uma seqüência do filme. Se você não sabe antecipadamente, saberia dizer qual é ela? Improvável. (Só para constar: é o trecho do Benicio Del Toro degolado no carro.) E aí a tal história da “marca do diretor” vai por água abaixo. Se eu estivesse defendendo o ponto de vista do Bia, preferiria ter usado filmes refeitos pelo mesmo diretor, como “O Homem que Sabia Demais” de Hitchcock ou Rio Bravo e El Dorado, de Howard Hawks. Daria para argumentar melhor.

O trecho de que o Gabriel discordou é mais do que válido para o studio system, como demonstra o livro que o finado Smart Shade of Blue (que o Grande Designer o tenha em bom lugar, Adriano) citou (e que não, não foi a inspiração para aquele post; na verdade foi um ensaio de Gore Vidal e a decepção com “Os Sonhadores”). Não é questão de interpretação, é um fato histórico. Pode não valer necessariamente para o cinema feito no resto do mundo, mas aí o problema é muito mais de estrutura de produção que filosófico: nesses casos, o diretor normalmente é também o produtor e o roteirista. É aí que está o tal golpe: falar em caméra stylo nesses casos é tentar se apropriar de um mérito que não é exclusivo da função.

Quanto aos “filmes de roteiristas”, eu acho que há sempre uma grande confusão sobre a própria qualidade do roteiro e a sua importância. Acho que o que impressiona no caso de, por exemplo, Charlie Kaufman é a qualidade da trama. Mas o processo continua o mesmo, com um bom ou mau roteiro. O filme continua sendo feito a partir dele.

O trecho de Truffaut que o Gabriel citou é interessante, mas me parece um grande sofisma. Porque todas as sugestões aceitas ou não, as contribuições recebidas ou não, são posteriores à definição do fato primordial: o próprio filme. Essas contribuições só existem em função do reconhecimento de uma estrutura prévia. Elas não existem sem um roteiro que os guie. É por isso que continuo achando que cinema é arte coletiva, que cada um dá sua contribuição, e que o dono do filme é o produtor — o dono do dinheiro, como diz o Nelson. Mas que se autoria houver é a de quem o concebe. E quem o concebe é o roteirista, e não importa se ele o dirige depois ou não.

Originalmente publicado em 10 de abril de 2006

P.S.: Gabriel, não vale “des-discordar”. 🙂

O golpe do film d'auteur

Certo, o mundo deve muito à revolução teórica e estética que veio daquele pessoal da Cahiers du Cinéma. Pelo resgaste de gente muito boa em Hollywood, pela apresentação e pela crítica do que a França tinha de melhor e pior.

Mas a tese do cinéma d’auteur é uma das maiores bobagens que já se fez em cinema, com a provável exceção de “Godzilla”. É uma mistificação, e nisso se aproxima muito de boa parte da filosofia francesa moderna.

A idéia de caméra-stylo é, provavelmente, o ápice desse 171. O fato é que a função do diretor é dispensável. E a maior parte do que se convencionou chamar de “marca do diretor” é o resultado do trabalho de outros.

Não que um diretor não tenha nada a acrescentar a um filme. Normalmente tem (embora no mais das vezes seja basicamente um copidesque, retocando aqui e ali o roteiro, inserindo um travelling aqui, um close ali). Mas acrescenta usurpando outras funções, como a do cinegrafista. Em que diferem, por exemplo, a maior parte dos filmes feitos por Spielberg e os de George Lucas? Se Spielberg — e estou escolhendo um diretor que acaba tendo uma marca autoral relativamente forte — dirigisse aquele roteiro bobo e diálogos inanes de Star Wars, qual seria a diferença? Ou seja, o problema não é a pessoa do diretor, que no processo de criação de um filme acaba fazendo mais que simplesmente “dirigir”, mas a função de direção.

É simples. A idéia do diretor como autor do filme é um ultraje. Cinema sempre foi “arte” coletiva, típica da era taylorista. É o resultado do trabalho direto de muita gente, de atores ao assistente de montagem. É difícil, para começo de conversa, dizer que um filme tem um autor, especificamente. O que seria de “O Último Tango em Paris”, por exemplo, sem a atuação de Marlon Brando? E ele foi mais além do que o ator normalmente vai, com a sua interpretação: alterou a própria estrutura do filme, com improvisos fantásticos como o monólogo sobre Buddy.

Se fosse para um filme ter um “autor”, este seria é o roteirista. É uma lógica simples. Um mau diretor pode fazer um bom filme com um bom roteiro, e Peter Bogdanovich é a prova viva. Mas nem um grande diretor consegue salvar um mau roteiro. Não há filme sem roteiro, mas um roteiro tem existência própria — e se for muito bom pode ser lido isoladamente: há alguns anos a LP&M publicava em livro os roteiros de Woody Allen, e eles valiam por si sós. A Rede Globo, uma grande produtora de teledramaturgia, reconhece esse fato primário sem muito alarde: não existem novelas de Dênis Carvalho ou Herval Rossano, mas de Janete Clair e Manoel Carlos.

Por outro lado, coordenação da direção de arte, direção de fotografia, cenografia, são coisas facilmente desempenhadas por um bom produtor. E a melhor prova de que a importância do diretor é superestimada está na própria evolução histórica da função.

Durante a era do cinema mudo, o diretor era rei. Mas com o surgimento do cinema falado e a consolidação do studio system o produtor passou a ser o “dono” do produto cinematográfico, e o diretor se tornou pouco mais que um técnico, algo como um capataz ou um cabo de turma. Normalmente só era chamado quando o produtor já tinha definido o filme com os roteiristas, escolhido a equipe, feito o teste do sofá com os atores. Ainda hoje não é o Spielberg diretor, aquele sujeito que grita “ação!” no set de filmagens, que dá uma cara própria a seus filmes. É o Spielberg produtor, que concebe o filme e eventualmente mete a mão no roteiro.

Gore Vidal defende que o cinegrafista tem mais influência em um filme do que o diretor, e ele tem razão. Por exemplo, não é o trabalho do diretor Robert Rossen que faz de Body and Soul um filme razoavelmente famoso. Foi a decisão do cinegrafista James Wong Howe de usar patins para filmar as cenas de luta. E o que conheço de ilhas de edição me dá a impressão de que um editor é quem realmente define o resultado final do filme.

Houve ao longo dos tempos um bocado de exceções, claro. Frank Capra, Howard Hawks, Billy Wilder; todos esses tinham marcas fortes e próprias. Mas essa marca se revela não no trabalho específico de direção, mas em atribuições típicas de um produtor, como a escolha do roteiro e dos atores. Capra só pôde imprimir sua marca porque, antes de tudo, capitaneava uma unidade de produção independente. E todos conhecem o trabalho de Billy Wilder, essencialmente, como roteirista — um dos melhores da história. Os produtores da era de ouro de Hollywood costumavam entender mais de cinema que seus diretores, e “…E o Vento Levou” deveria calar a boca de quem prega a sua primazia. É um grande film d’auteur, se alguém quiser chamá-lo assim, mas esse autor não foram os diretores que se sucederam numa produção tumultuada, e sim David O. Selznick, o produtor. Falar em Chaplin, então, é covardia.

Mas a mística do diretor é muito forte.

Vi “Os Sonhadores” pela primeira vez há algumas semanas, e dele lembrava que houve alguns comentários blogs afora, mais nada. Perdi os cinco minutos iniciais, e no final cheguei à conclusão de que a única coisa que prestava ali eram as tetas divinas de Eva Green. Porque o filme é uma porcaria sem sentido, mal narrado, que não dá resposta a nada e que tem um dos finais mais incompetentes da história.

Há incesto, não consumado. Há homossexualismo, não consumado. Há cinefilia, não consumada. Há um questionamento político, não consumado. Enfim, o que há ali é um filme não consumado.

A impressão que ficou ao final era a de que o filme tinha sido feito por um bando de universitários (categoria onde se inserem, felizes, alguns dos mais burros e mais pretensiosos seres perpetrados pela humanidade) que passaram tempo demais vendo filmes antigos e tempo de menos pensando. Pareciam falar de de um tempo cuja alma não conseguiam apreender, o que talvez explicasse o uso de canções de Morrison Hotel, disco dos Doors de 1970, em um filme que se passa no início de 1968.

No dia seguinte peguei o filme do começo e vi que o diretor era Bernardo Bertolucci.

O mais curioso é que passei a duvidar do meu próprio julgamento. Se o filme era do sujeito que amanteigou a Maria Schneider, que escreveu o argumento de “Era Uma Vez no Oeste”, deveria ter alguma qualidade que eu não tinha conseguido ver.

Não tinha nenhum, na verdade. O fato, triste, é que eu também havia caído no golpe do film d’auteur.

Originalmente publicado em 6 de abril de 2006

Saint-Honoré

Se alguém quer saber como era Rafinha Galvão aos 20 anos, é simples: é só imaginar um sujeito que, em boa parte das conversas, provavelmente interromperia seu interlocutor dizendo “Isso me lembra Bixiou debochando de Blondet” ou “Esse é o tipo de coisa que um Rastignac ainda pobre faria” ou “Ele fez como Paulo de Mannerville, não ouviu os conselhos de De Marsay e se ferrou.”

Entre os 20 e os 22 anos, eu lia Balzac como outras pessoas liam quadrinhos. À medida que ia comprando novos volumes de “A Comédia Humana”, um mundo absurdamente real ia se delineando diante de mim. Balzac foi a minha primeira verdadeira paixão literária, e provavelmente será a última.

Ainda hoje, se alguém me pergunta que livro eu levaria para uma ilha deserta, não perco tempo em afirmar que levaria “A Comédia Humana”. Nada mais é necessário. Nem Shakespeare. Balzac era, e é, leitura essencial para qualquer pessoa que goste de livros.

Havia obras-primas e havia lixo, claro. Coisas como “A Mulher de 30 Anos”, “A Vendetta”, uma ou outra espalhada por aqui. Mas a cada fracasso correspondem pelo menos dez obras brilhantes, pequenas pérolas como “Gobseck” ou “A Missa do Ateu” ou monumentos como “Ilusões Perdidas” ou “A Prima Bette”. São quase 90 livros na Comédia Humana.

Citar tantos títulos pode dar a impressão de que se trata de muitos livros diferentes. É só parcialmente verdade. Porque na verdade é um livro só, e seu enredo é toda a história de um lugar e um tempo, os estertores do regime feudal e da aristocracia na França e a ascensão irremediável da burguesia. Os romances, novelas e contos de Balzac são apenas episódios de uma obra maior. Aqui você lê uma história de De Marsay, sujeito que encontrou alguns livros antes. Mais adiante você vai conhecer sua origem. Essa falta de linearidade é exatamente igual à da vida, onde os encontros se dão de maneira aleatória e inconstante. E em tudo isso há um poder de observação da realidade que jamais seria igualado, por ninguém.

Não foi à toa que, segundo a lenda, Balzac morreu chamando pelo doutor Bianchon, seu personagem. Ele não podia fazer diferente: havia criado um mundo tão gigantesco e tão completo que às vezes parecia mais verdadeiro que o mundo real. Aqui e ali eu encontro um personagem de Balzac. O avarento como o velho Grandet, a socialite esnobe como a Marquesa d’Espard, o bom advogado como Derville, a moça inocente como Modesta Mignon e a víbora disfarçada como Rosália de Wateville; o talento em carne fraca como Luciano de Rubempré e o futuro vencedor como Eugênio de Rastignac.

Podia não ser um grande estilista — pecado ainda maior nos dias de hoje, em que pigmeus tentam calçar os sapatos esgarçados por gigantes — mas era um grande frasista. Um desses sujeitos que se dedicam a antologias de citações poderia fazer um volume bem alentado apenas a partir dos livros de Balzac. De qualquer forma, estilo puro e simples faz grandes redatores, não grandes escritores. Para esses é preciso ter o que dizer. Estilo é essencial em uma época em que o que parece restar a fazer é simplesmente dizer o que já foi dito com palavras mais adequadas, e que possam ser lidas durante os comerciais. Com estilo ou sem estilo, Balzac é um dos três maiores escritores da história. Escolha os outros dois. Qualquer um. Tanto faz.

O que incomoda em Balzac são, principalmente, suas incursões pelo romanesco, concessões ao pior gosto popular como os piratas que aparecem para coroar a mediocridade espantosa de “A Mulher de 30 Anos”. (Baudelaire, ao contrário, achava que essa combinação de fantasia e observação era uma das qualidades de Balzac). Mas ele compensa tudo isso quando fala dos grandes aristocratas e dos pequenos burgueses, dos funcionários públicos, de tipógrafos, dos ladrões baratos e dos ladrões que se sentam nas diretorias dos bancos. Balzac foi o primeiro a perceber que o verdadeiro protagonista do novo mundo capitalista era o dinheiro, a ação eram os livros-caixa, e a peripécia uma promissória vencida.

Quem mais poderia escrever em 1832 um romance chamado “História da Grandeza e Decadência de César Birotteau, Perfumista, Adjunto do Maire do Décimo-Segundo Arrondissemént de Paris, Cavaleiro da Legião de Honra, Etc.”? Ninguém. Foi preciso um Balzac para perceber a grandeza épica na falência de um simples comerciante burguês, e contar tudo isso com uma profundidade psicológica que, em nenhum momento, deixa de lado a observação crua da realidade.

É nos romances menores que talvez o gênio de Balzac se manifeste com mais clareza. Porque é relativamente fácil — se você é um gênio, claro — fazer um “Ilusões Perdidas” e um “Pai Goriot” ao longo de uma carreira. Qualquer escritor de primeira linha traz em sua mochila uns quatro ou cinco grandes livros. Difícil, mesmo, é tirar dezenas de pequenas obras-primas com regularidade e constância, em quinze anos de trabalho, de fatos bobos como uma cena entrevista pela janela, um padreco do interior ou uma mal-amada maquiavélica. É o resultado de um processo de criação espantoso, pelo ritmo e pelo método: vários livros escritos ao mesmo tempo, dezesseis horas por dia, sete dias por semana, e as provas tipográficas eram submetidas a revisões consecutivas que aumentavam três, quatro vezes o tamanho original do livro. Ele queria conquistar pela pena o que Napoleão não pôde pela espada. E conseguiu.

Ninguém jamais disssecou sua época como Balzac. Era Tolstói que dizia para falar de sua aldeia? Pois a aldeia de Balzac não era sequer Paris, apesar das aparências; era todo o gênero humano. E se o homem não mudou muito em alguns milhões de anos, mudou ainda menos nesse século e meio. Balzac continua, hoje, mais atual que virtualmente todos os escritores contemporâneos. É mais atual que os futuramente esquecidos Don DeLillo e Paul Auster, para citar apenas dois de uma galeria quase infinita.

Provavelmente, aliás, mais atual que em seu próprio tempo. A crítica da época nunca gostou muito de Balzac, que considerava apenas um escritor de best sellers populares. A crítica da época era retardada. Em 1843, a Academia Francesa (que nunca aceitou Balzac entre seus membros) poderia ter premiado “O Médico Rural” com o prêmio Montyon, dedicado a ações virtuosas na literatura. Em vez disso premiou esse dois clássicos da literatura universal, “O Pequeno Corcunda” e “A Família do Tamanqueiro”, da mundialmente conhecida Mlle. Ulliac-Trémadeure, cuja estátua Rodin não esculpiu e que teria feito arranjo melhor com o mundo se tivesse simplesmente procurado um marido. Certo, “O Médico Rural” não é uma obra-prima; mas certamente é bem melhor que esses dois livros com títulos infantis.

A edição brasileira da “Comédia Humana”, organizada por Paulo Rónai, é uma das melhores do mundo. É um trabalho brilhante, responsável, um guia perfeito para quem ainda não conhece Balzac, e mesmo para quem conhece. Suas notas de rodapé são essenciais; suas introduções a cada peça são um referencial crítico fundamental para a compreensão do universo balzaquiano. Suas falhas, relativas, são a não inclusão de algumas obras que não fazem parte da Comédia Humana, mas que outras edições como a Pleiade da Gallimard incluem, como os Contes Drôlatiques, e o aportuguesamento de nomes próprios. Nada disso, no entanto, mancha a grandeza da edição. O que mancha, mesmo, é o fato de ela estar atualmente fora de catálogo.

Se eu fosse recomendar um roteiro para a leitura da “Comédia Humana”, seria fácil: primeiro a biografia de Balzac escrita pelo Paulo Rónai no volume I. Daí para o Prefácio de Balzac à obra, no último volume. Voltaria para o IV volume, que tem “O Pai Goriot”, “O Coronel Chabert”, “A Missa do Ateu” e “O Contrato de Casamento”, um volume tão genial que o meu perdeu a sobrecapa, de tanto uso. E então o curso normal, a partir do volume I.

Alguns anos sem tocar na Comédia Humana fizeram bem. De repente não consigo lembrar, exatamente, dos detalhes de “Uma Filha de Eva”. Isso quer dizer que chegou a hora de ler tudo novamente. São mais de 10 anos de separação. Mas ainda lembro da sensação de deslumbramento ao ler cada novo livro. Naquela época, e quem leu Balzac nessa idade entenderá facilmente, era fácil querer ser Rastignac tendo um amoral como De Marsay como exemplo, embora no fundo houvesse a desconfiança triste de que se era mesmo um pobre Rubempré. E à medida que o tempo vai passando mais e mais nos parecemos com aquele grupo de que fazem parte Blondet e Lousteau, Bixiou e Finot, cínicos cujos sonhos de grandeza jamais se concretizarão, e talvez não possamos desejar nada melhor que a honestidade simples de César Birotteau. Os tijolos podem ser os mesmos, mas o reboco muda, e muito.

Só quem conhece Balzac sabe o prazer absurdo que essa releitura será.

Originalmente publicado em 16 de março de 2006

Clássicos do cinema nacional: "Oh! Rebuceteio"

Primeiro foi “O Diabo no Corpo”. Marco Bellocchio pegou o livrinho maravilhoso de Raymond Radiguet e o transformou em um filme chato e pretensioso, em 1986. Mas não foi o enredo do filme que causou escândalo: foi uma cena em que Maruschka Detmers se esbalda (em termos) em sexo oral, apregoada na época (provavelmente de maneira equivocada) como a primeira explícita em um filme que se pretende sério.

Depois — há pouco tempo, 2003 — foi a vez de The Brown Bunny, filme de Vincent Gallo que, num arroubo de “audacidade artística” (sic), se propôs a derrubar os muros que separam o cinema sério da pornografia pura. Conseguiu seu objetivo: causou polêmica e conquistou algumas páginas de jornal.

(Na verdade houve outro antes desses: “Império dos Sentidos”, de Nagisa Oshima. Mas é um bom filme japonês e, pela polêmica que filmes bobos causam sempre que arranjam um truque de marketing, não parece mais ser reconhecido como um precursor melhor.)

O fato é que “Oh! Rebuceteio” é melhor que todos esses filmes que se pretendem polêmicos.

Dirigido em 1984 por Cláudio Cunha, “Oh! Rebuceteio” é o nosso Oh! Calcutta e o nosso A Chorus Line, com uma pitada de “Garganta Profunda”. O filme mostra os ensaios de uma peça de teatro experimental — tendência muito em voga nos anos 70 e início dos 80 e, graças a Deus, esquecida. A peça é uma criação coletiva e bastante sexo, bastante explícito, é inserido no filme como instrumento de criação e de desenvolvimento para os atores.

A pergunta a ser feita é: o que distingue “Oh! Rebuceteio” de bobagens como The Brown Bunny, pelo menos no que diz respeito à “decência” como cinema? Na minha opinião, nada. Em “Oh! Rebuceteio” o sexo está inserido em um contexto específico. É apresentado como parte necessária da trama. É limitado aos ensaios, e na estréia da peça não há mais sexo explícito. Ele só pode ser compreendido, portanto, como parte do processo de criação da peça.

O aspecto intelectualmente secundário do sexo no filme é ilustrado na seqüência em que, diante de uma cena no palco que faz os outros atores se masturbarem incontrolavelmente, o diretor da peça, interpretado pelo próprio Cláudio Cunha, manda os espectadores do filme se masturbarem também. Deve ser um tanto difícil alguém conseguir tal feito olhando para a bela face hirsuta de Cunha. Ele não se leva demasiadamente a sério, nem pretende fazer do seu filme uma tese de pós-doutorado, e o resultado é relativamente surpreendente.

O filme acaba apresentando algumas questões até razoáveis sobre o conceito de teatro e sobre o processo de criação por parte dos atores. Não é bem o que Stanilavsky esperaria, mas é válido mesmo assim. Certo, a abordagem é paródica, debochada e um adepto do teatro experimental poderia até chamá-lo de preconceituoso. Mas essas são características que sempre fizeram parte do cinema brasileiro, por representarem uma parte significativa do nosso caráter nacional, embora os cineastas da retomada tenham resolvido colocá-las para escanteio porque não lhes parecem suficientemente dignas — ou suficientemente européias –, algo típico de uma elite cultural que prefere se imaginar em Manchester do que em Ipanema. O fato de ser uma paródia escrachada não o torna pior que “O Diabo na Carne”. No mínimo o torna melhor que um filme ruim como A Chorus Line.

Que se defina “Oh! Rebuceteio” como filme de sacanagem. Mas, nesse caso, que se inclua os outros também. E, finalmente, o que realmente interessa: as atrizes de “Oh! Rebuceteio” são muito melhores no babado do que as gringas. E só isso já deveria ser um grande mérito.

Originalmente publicado em 3 de março de 2006