A Love Supreme

O Tiagón deve estar dando pulos de felicidade.

A Barracuda lançou “A Love Supreme – A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane”, livro do Ashley Kahn (autor de “Kind of Blue”) que conta a gênese do disco homônimo de John Coltrane.

A Love Supreme é um daqueles discos que se tornaram referenciais absolutos do jazz, obras-primas necessárias para a compreensão do que a música popular teve de superior no século XX — a era em que a música erudita, com umas exceções aqui e ali, virou basicamente trilha sonora de filme. Para muita gente, este blogueiro não incluído, é o melhor disco de toda a história do jazz. O livro de Kahn lhe faz justiça ao explicar a evolução musical de Coltrane de maneira simples e abrangente, detalhar as gravações e explorar a importância histórica do disco. Não possui o impacto do outro livro de Kahn publicado pela Barracuda, “Kind of Blue”, provavelmente por seguir a mesma fórmula estrutural, mas é uma daquelas obras importantes para aqueles que querem entender um pouco mais de jazz.

A minha edição tem um defeito: as indicações das entrevistas que serviram de base para o livro (aqueles numerozinhos ao longo do livro) estão faltando, por um erro de editoração. Isso, no entanto, serve para reforçar uma tese que defendo há muito tempo: a não ser que você esteja precise de uma bibliografia que justifique o que você está escrevendo, 99% das notas de rodapé apresentadas em um livro são completamente dispensáveis. A ausência dos indicadores, embora eles façam falta aqui e ali, acaba tornando a leitura mais fluida, embora continue sendo um defeito.

O maior mérito do livro, no entanto, talvez esteja no fato de finalmente elucidar a razão pela qual tanta gente tem A Love Supreme em tão alta conta.

Ao longo dos anos, criou-se uma espécie de competição informal e inofensiva sobre qual disco era melhor, Kind of Blue ou A Love Supreme. Não é uma discussão importante, porque se trata de dois álbuns fabulosos. Mas é uma bobagenzinha que diz muito sobre a maneira como determinados fatores externos influenciam na percepção da música.

Pessoas como eu, provavelmente mais formalistas, vêm o Kind of Blue como um disco melhor — a grande obra prima do gênero — porque representa uma síntese brilhante de 50 anos de jazz, a começar pelo blues de So What. Em Kind of Blue, Miles Davis conseguiu sintetizar a história evolutiva do jazz ao mesmo tempo em que apontava novos caminhos, com uma elegância que jamais seria alcançada novamente.

Outros, no entanto, preferem A Love Supreme e sua busca espiritual, exemplificada já nos títulos das canções: Acknowledgement, Resolution, Pursuance/Psalm.

Não é nem de longe uma escolha insensata. É um disco fantástico, sob qualquer ângulo. Mas se o disco ganha em inventividade, em ousadia, por outro lado não tem o rigor e a perfeição estética de Kind of Blue; e uma pergunta que muita gente se faz (agora, sim: este blogueiro incluído) é por que tanta gente tem o disco em tão alta conta.

É provavelmente aí que está a maior qualidade do livro: ele permite vislumbrar que o álbum de Coltrane ascendeu à importância que tem — principalmente na esfera do rock e do pop — por questões extra-musicais.

A Love Supreme só poderia ter alcançado o status que alcançou em sua época, os anos 60. Foi a ideologia expressa por Coltrane em seu disco, a sua espiritualidade, que combinou perfeitamente com aqueles tempos. Os títulos, então, são fundamentais para que se aprecie a música, e para que se dê a ela a dimensão que alcançou. Direcionam a compreensão a partir de elementos que não deveriam ser fundamentais. Porque música é mais que isso. Apenas como contraponto, não interessam os títulos de Kind of Blue. Saber quem foi Freddie Freeloader não faz diferença. Interessa pura e simplesmente a música.

Isso não quer dizer, claro, que o disco valha apenas por essa razão. Nem de longe. A Love Supreme é um clássico absoluto, uma experiência fantástica para quem gosta de jazz. Com esse disco, Coltrane conseguiu dar um passo à frente em relação ao que se fazia então do jazz — e sem as porteiras escancaradas, por exemplo, de Ornette Coleman ou Herbie Hancock. O livro de Ashley Kahn é uma biópsia honesta do disco, e uma boa homenagem.

 

Dos prazeres baratos

Estou longe de ser um bibliófilo. Não posso dizer que conheço os mistérios da coleção de livros como hobby sério, e nunca fiz um ex-libris para mim (mas há algumas semanas uma senhora na Kosmos, um bom sebo no Rio, me deu o endereço de um encadernador sério: Largo de São Francisco de Paula, 01. L.C. Encadernação, e o telefone é [21] 2252-6051. Vi o trabalho do sujeito, que não conheço, e me pareceu decente. A quem interessar possa).

Mas eu tenho um prazer bobo e inconseqüente. Não é o do bibliófilo, é o do alfarrabista, aquele sujeito que compra e vende livros velhos na esperança de achar uma raridade que vai fazer seu trabalho valer a pena.

Como sabe qualquer pessoa que tenha tido o desprazer de andar comigo pelo centro do Rio ou de São Paulo, eu gosto de sebos. Se tenho pena de dar 100 reais numa edição de “Sobrados e Mucambos”, que só consegui ler em 2006 porque ganhei de presente, fico feliz quando consigo comprar uma dezena de livros de uma só vez, até por mais que isso. Ou, de preferência, por quaisquer dez ou vinte reais.

A graça de um sebo não está nos livros raros e corretamente avaliados — e portanto caros, como uma primeira edição dos “Sermões” do Padre Vieira que esteve à venda há alguns anos por 3 mil reais. Está nos livros que se pode comprar por um real, ou três por cinco, e nas pequenas raridades escondidas em estantes empoeiradas e aparentemente desconhecidas dos próprios livreiros.

Em qualquer sebo, a minha preferência é pelos balcões de livros baratos. É onde se pode encontrar bons livros por preços ao alcance de todo mundo. Por isso me irrita quando vejo alguém — principalmente professores — reclamando que livros são caros. Livros novos são caros, sim, mas você pode achar bons exemplares por um real. Quem reclama que livro é caro é porque não quer ler e fica arranjando desculpa. Os balcões de livros baratos atendem perfeitamente ao objetivo primário de qualquer livro: ser lido.

Mas há também o que se poderia chamar de livros normais de sebo.

Posso dar um exemplo simples: há anos procuro uma edição barata de “Ascensão e Queda do III Reich”, de William Shirer. A edição brasileira, em 4 volumes, está esgotada há décadas mas é encontrável nos sebos com alguma facilidade, sempre por volta de 150 reais. Não pago. Li a maior parte do livro no começo da adolescência e queria reler há bastante tempo, mas não pago quase meio salário mínimo por isso. Não vale a pena.

No fim de outubro, na Livraria São José, na Primeiro de Março, achei uma edição comemorativa do livro, no original em inglês. Capa dura, sem sinais de que sequer foi lido. 40 reais. Comprei. E fiz um grande negócio, porque não vou ter que me sujeitar ao tradutor e tenho a garantia de que quaisquer correções históricas já foram feitas. E continuo rindo de todos aqueles que tentaram me arrancar 150 reais por ele.

Essa é a minha mania. É o que me deixa próximo de um alfarrabista e distante de um bibliófilo como o José Mindlin. Mas aos poucos vou me especializando — se é que se pode chamar tal atividade bissexta e normalmente casual de especialização — em um tipo de livro específico que só se encontra em sebos: primeiras edições de livros americanos.

São sempre o melhor negócio a ser feito em um sebo brasileiro. Por exemplo, há muito tempo comprei uma primeira edição de Quiet Days in Clichy, de Henry Miller, por 3 reais, um dólar na época. Já contei o caso aqui. Na minha última visita ao Abebooks.com, o livro chegava a ser cotado por 3714.36 dólares. Mesmo que o meu valha muito menos, ainda acho que fiz um bom negócio. Certamente venderia o livro por ao menos 10 dólares, o que já me daria um bom retorno percentual do investimento. 1000%.

Tenho outros pequenos orgulhos do tipo. Entre outras, uma primeira edição de Billy Bathgate, de E. L. Doctorow, e outra de The Information, de Martin Amis, compradas uns dois anos atrás por dez reais, cada, no antigo Imperial, sebo que funcionava no Paço Imperial e que hoje deu lugar a um desses ambientes que misturam livros caros, CDs e bar (um dia ainda entendo por que alguém em sã consciência inventa de vender CDs nos dias de hoje), esses sambas do crioulo doido que viraram mania porque dão a a impressão de ser algo sofisticado.

Gosto de saber que esses livros valem muito mais do que paguei por eles. É bobo, eu sei, mas isso me dá uma sensação de esperteza que me falta em praticamente todas as outras áreas da vida cotidiana.

Comentando os comentários

Malavolta,
A narração em off de “Cidade de Deus” (um vício comum no kinemanacional e que normalmente indica insuficiência do roteiro) me incomoda, pelo amadorismo. Mas é realmente muito bom. E é também o filme brasileiro mais influente em termos internacionais nos últimos tempos. É só ver os filmes de Tony Scott.

André,
Comecei a ver “Era Uma Vez no México” semana passada; desliguei para assistir à primeira temporada de “Roma”. Minah primeira impressão foi a de que era uma tentativa de transpor o western spaghetti para o terceiro mundo atual, sem muito sucesso. Uns diriam que isso é o trabalho de um “autor”. Tem algumas similaridades com Sin City, mas este é um trabalho bem concebido e acabado, enquanto o outro é só lixo, mesmo.

Emanuelle,
Eu me sinto realmente feliz ao contribuir para o aumento da produtividade nacional. 🙂

Bia,
É verdade, você já tinha me falado de “O Labirinto do Fauno”. E não é moda dizer que você é exagerado. É uma constatação básica e antiga…

Bruno,
Talvez essa futilidade que você aponta em Almodóvar seja provavelmente a sua grande qualidade. A forma como trabalha isso, esse jogo de aparências, é brilhante. Mudando de assunto, você disse algo de que eu não tinha me tocado até agora: “Fale Com Ela” é realmente o trabalho mais masculino de Almodóvar. Perfeito. E só uma correção: “Magnólia” é de 99, século passado.

Madson,
Spielberg para mim tem um grande filme, “Tubarão”, que eu incluo entre os 100 melhores da história. E tem um filme brilhante, que poderia ser a sua grande obra-prima, mas cujo final ele estraga: “A Lista de Schindler“. Mas normalmente, no minha opinião, falta substância a ele, que tem uma tendência à emoção fácil, mesmo à pieguice. Por exemplo, aí pelo final dos anos 80 dois filmes foram lançados na mesma época.

Victor,
Eu acho que o problema do Shyamalan é mais grave. Diz respeito ao esgotamento da temática que ele escolheu e à falta de capacidade de escrever um bom roteiro dentro dessas amarras que ele criou para si, essa necessidade da reviravolta final, da grande surpresa, dentro de um clima narrativo de fantasia. Porque o grande trunfo de “O Sexto Sentido” é justamente isso, um roteiro brilhante; “A Vila” é um filme que, embora eu tenha achado muito fraco, merece ser revisto dentro da ótica do Bia e do Ina. Mas o resto é ruim com toda a certeza do mundo. “Sinais” é muito fraco, “A Dama na Água” é simplesmente medíocre. No final das contas, talvez Shyamalan fosse apenas um diretor limitado que acertou de primeira e nunca mais conseguiu repetir o seu sucesso.

Os melhores filmes do século

O Bia fez um post com os oito melhores filmes do século. Na verdade a conversa original era sobre cinco, mas o Bia é um exagerado. O curioso é que ele fica dizendo que eu defendo “A Noviça Rebelde” (o que é apenas uma meia verdade: acho o filme brilhante, só que é daqueles dos quais não se precisa falar muito), mas é ele quem elogia qualquer porcaria transposta para celulóide.

Agora é a minha vez.

Dogville
De longe, é o melhor, mais consistente e mais profundo filme deste século. E aqui tenho que dar o crédito que o Bia merece. Em um comentário bem antigo, ele anteviu perfeitamente a importância do filme, enquanto eu me recusava a assisti-lo por achar, imbecilmente, que era teatro filmado:

escuta: viste DOGVILLE? rapas, vi ontem e estou INACREDITÁVEL até agora! um dos mais importantes filmes da nossa ERA.

Era a época em que o Bia ainda tinha o Tiro e Queda e escrevia como o Cardoso. Isso foi há muito tempo, antes que o blog domasse o rapaz. Antes que ele casasse e antes que a Lia nascesse e antes que ele voltasse para a televisão.

Hoje o Bia elogia o Shyamalan.

Medos Privados em Lugares Públicos
Alain Resnais é o último dos grandes cineastas franceses, levando-se em consideração que Godard morreu há décadas e apenas esqueceu de deitar. O sujeito foi capaz de fazer Hiroshima, Mon Amour, e ainda hoje mostra que sabe o que faz. “Medos Privados em Lugares Públicos” é tudo o que Closer gostaria de ser.

O Labirinto do Fauno
Na verdade o filme que deu origem a esse conversa toda. É um filme brilhante, de uma sensibilidade e delicadeza asssustadores.

Sin City
Embora saudado como o grande filme derivado dos quadrinhos, ele é muito mais que isso. É a melhor releitura do film noir feita desde Blade Runner, e ainda mais radical.

Sobre Meninos e Lobos e Fale Com Ela
Não há nada demais em “Sobre Meninos e Lobos”, do ponto de vista formal. Mas é um exemplo perfeito de domínio da arte narrativa. Eastwood é hoje um dos principais diretores americanos.

Já Almodóvar tem uma carreira que, mesmo nos piores momentos, é brilhante. “Fale Com Ela” é o seu filme mais equilibrado, o mais delicado, em que os exageros que se vê, por exemplo, em “Ata-me” (certamente um de seus melhores filmes) estão maduros e totalmente sob controle.

Anatomia do comportamento de manés na internet – o caso do professor Anselmo

Um rapaz chamado Anselmo deixou um comentário neste post, sobre Lampião.

rafael qualé a suaformação? eu sou formado em historia pela ufs. Fiz minha monografia sobre lampião,ou seja sei um pouquinho sobre ele.

Aqui o professor Anselmo apresenta suas credenciais. Ficamos sabendo que ele se formou em História pela Universidade Federal de Sergipe, a mesma em que cursei Direito. Isso deveria nos aproximar, não fosse um pequeno detalhe: ele parece ter muito orgulho por ter estudado na UFS, enquanto eu a tomo pelo que realmente é: uma universidade periférica, sem recursos e sem nenhuma tradição em produção de conhecimento. Não é exatamente uma UFRJ.

Um sujeito que dá carteirada de UFS pode muito bem envenenar um Celta e sair por aí achando que tem uma Ferrari.

Por alguma razão, professores de história gostam de dar carteiradas neste blog. Uma delas foi uma professora que insistiu em negar os jornais dizendo que determinadas leis anti-palestinas não tinham sido promulgadas em 2003 em Israel, e defendeu a tese esquisita de que um casamento entre judeus e alemães na Alemanha nazista prejudicava o alemão em vez de proteger o judeu, tese que não encontra respaldo em historiadores como, por exemplo, Shirer ou Bryan Mark Rigg.

Não estou reclamando — pelo menos não muito. Antes isso que o bando de malucos que vem aqui atrás de “pinto pequeno”.

acho q vc tem que estudar mais sobre lampião,seu modo de vida e as condições do sertão naquela época. comece estudando frederico pernambucano de mello, em seu livro guerreiros do sol vc encontrará muitos argumentos para escrever de forma coerente e convicente.

O autor que o professor Anselmo cita é realmente bom. O livro também, um entre vários. Pernambucano de Mello é um dos grandes pesquisadores nacionais sobre o ciclo do cangaço, e mais especificamente sobre Lampião, de quem tem boas relíquias. Era muito próximo de Vera Ferreira, neta de Lampião, mas os dois brigaram. Dizem que Vera não suportou ver o sujeito ganhando dinheiro com a memória do seu avô, algo mais ou menos na linha do que aconteceu com o livro “Estrela Solitária”, de Ruy Castro sobre Garrincha. Eu não sei. Eu não estava lá.

Mesmo assim o professor precisa aprender a dar carteiradas com mais aplomb. Citar apenas um autor não indica a erudição desejada, e sim pobreza de recursos. Não é que o professor Anselmo só tenha lido isso, claro; mas soa mal. Uma carteirada, para ser realmente efetiva, precisa de um pouquinho mais de elaboração.

No lugar dele eu teria citado também outros autores que gostam do assunto. Para fazer uma média demagógica, citaria os sergipanos José Anderson Nascimento e o folclórico Alcino Costa, nem que fosse para contestá-los e dizer que estão errados e que não são sérios. Ou então autores reconhecidos nacionalmente, para mostrar que informações de um e outro se complementam. Citar um autor só é carteirada de segunda.

Viu, Anselmo? Carteirada se dá assim. Aprenda.

(Sobre Alcino, sujeito simpaticíssimo: ex-prefeito de um município do alto sertão sergipano, é um apaixonado pelo cangaço. Vi pelo menos um de seus livros, ainda em manuscrito. Pode-se discordar de suas conclusões, de muitas coisas. Mas não fazer o que o professor Anselmo provavelmente faria: dizer que ele não conhece o assunto porque não escreveu uma monografia.)

também acho que lampião foi um bandido, mas não podemos dizer simplesmente que ele foi um bandido e pronto, devemos argumentar através de evidencias, e é isso que falta em vc e o torna um tremendo amador no assunto.

E aí as coisas complicam. O que o professor diz é basicamente o seguinte: “você está certo, mas é um amador e não pode falar do assunto”. Eu não sei o que leva uma pessoa a brigar com um texto com o qual ele basicamente concorda. Deve ser excesso de tempo livre. Não é possível que ele seja tão burro a ponto de esperar, em um blog de variedades em que a principal diversão do autor é liberar comentários bobos para ter assunto no dia seguinte, uma tese de mestrado.

Acho que é isso: o digno lente sentiu falta da bibliografia no final do post.

O pior é que o professor Anselmo, que se quer especialista no assunto, tampouco dá evidências. Não cita nada. Não diz o que está errado; não diz nada além do fato de que escreveu uma monografia que nós não lemos — e que dificilmente vamos ler. E esse tipo de discussão é desprezada até em blogs, superficiais por natureza. No fim das contas, o professor Anselmo é despreparado até para discutir com amadores em um blog. Isso faz do catedrático um mané típico de internet, e eu não queria vê-lo enfrentando um debate realmente sério na “academia”. Ao dileto docente faltariam fôlego e talento.

O mais engraçado é que há evidências neste blog, sim, dentro dos limites que textos em blogs podem ter. Aliás, o texto que motivou o comentário do Anselmo começa com a narrativa de um deles, acontecido com membros da minha família.

vc deve aprender sobre o assunto para depois expor sua própria opinião. Deve aprender sobre a colonização do sertão que foi diferente da do litoral, saber que a violência no sertão foi utilizada desde colonização, que o uso da violência era um pre-requisito para a sobrevivência sobrevivência, enfim.

Então foi para isso que o professor Anselmo gastou o dinheiro dos contribuintes? Para escrever obviedades em blogs alheios? O arroz cheio de bicarbonato de sódio do restaurante universitário deve ter-lhe feito mal. Porque quando alguém acha que só ele e sua monografia sabem da gênese da violência no sertão, esse alguém tem problemas sérios. O Anselmo fala platitudes como quem faz uma revelação, como quem anuncia o Apocalipse à patuléia ignara. E no entanto não diz mais que o óbvio, o comum, conhecimento rasteiro.

O problema, mesmo, é que eu e a torcida do Flamengo sabemos de tudo isso. A diferença é que não precisei passar quatro anos na universidade para chegar à conclusão de que Lampião era um bandido.

O ilustre catedrático Anselmo parece ser jovem, pela atitude e pelo péssimo estilo. Tem aquela arrogância típica de quem aprendeu as primeiras letras na universidade e, de repente, se acha o grande conhecedor do assunto sobre o qual escreveu uma monografia. É essa coisa de juventude que o faz perpetrar bobagens como essa.

Fico por aqui, porque não estou aqui para te ensinar nada.

E eu tenho sérias dúvidas de que conseguiria.

É só uma crítica construtiva.

A minha também, professor Anselmo. A minha também.

Estude exaustivamente sobre o assunto, beba em vários autores de opiniões contrárias e depois forme sua própria opinião, só assim você estará capacitado pra falar sobre um assunto tão complexo sobre “Lampião: bandido ou herói? ok.

Por que diabos um sujeito acha que eu iria “estudar exaustivamente” Lampião, quando tenho mais o que fazer, é um mistério. Ele não entende que isto aqui é um blog, só um blog, nada mais que um blog? Prefiro me espantar com as palavras do rapaz, com a sua arrogância cega. O professor não sabe o que li ou deixei de ler, com quem conversei ou deixei de conversar. Mas sabe que escreveu uma monografia de conclusão de curso, e isso o credencia. Então faz questão de mitificar a matéria sobre a qual aprendeu alguma coisa, falando do “assunto complexo” que é — mesmo quando se trata de um dos temas que ajudaram a definir a auto-imagem de toda uma região. Ele tem que se valorizar, afinal. E se isso não é possível no meio acadêmico, que seja num blog.

Apenas um idiota espera de um blog a profundidade de uma tese de mestrado; mas é preciso ser mais que isso para discutir de maneira tão boba, baseado apenas em um argumento de autoridade pífio e fácil. É preciso ser um autêntico mané.

Republicado em 21 de setembro de 2010

It's a man's world

Mônica me pergunta:

— Rafael, a Nova ainda existe?

— Existe. E vai existir enquanto existir mulher mal comida neste mundo.

Um dia eu descubro por que este país não tem sequer uma revista feminina decente. A Marie Claire começou bem, mas descambou rapidinho para matérias do tipo “Fiz uma suruba com o meu neto e minha nora”. A Cláudia, que se segurou bem durante décadas, desceu o nível e hoje é uma vendedora de alface na feira. E a Nova, que sempre foi isso mesmo, consolo intelectual para mulheres mal comidas e mal empregadas, deve continuar a mesma coisa, com artigos traduzidos da Cosmopolitan onde americanas neuróticas e semi-histéricas ante o “tic-tac do relógio biológico” tentam ensinar as bobas a segurar o seu homem com 1.375 posições sexuais.

De repente dá até saudade daquelas fotonovelas italianas da Gande Hotel, Sétimo Céu e Capricho.

E por tudo isso eu tenho a impressão, cada vez mais forte, de que revista boa era a Mini Fiesta, com suas fotonovelas de putaria e seus relatos “verídicos” de casos eróticos.

A Mini Fiesta, pelo menos, era honesta.

Meu beatle preferido

Agora é minha vez de dizer qual o meu beatle preferido.

Todos.

As razões basicamente são as mesmas alegadas pelo Allan. Os Beatles são um caso raro em que a banda só funciona com seus quatro elementos, em que o resultado final é muito maior que a soma dos quatro. Os Stones são os Stones sem Brian Jones ou Bill Wyman; os Beatles não seriam os mesmos sem George Harrison ou Ringo Starr, mesmo descontando-se o domínio claro de Lennon/McCartney. O melhor exemplo está nos discos solo de John e de Ringo: em alguns deles os ex-beatles tocaram, mas o som não era igual ao que faziam na banda. Era o som de Lennon ou de Ringo. Por outro lado, mesmo quase 40 anos depois do fim, quando fizeram aqueles caça-níqueis chamados Free as a Bird e Real Love, o som era inegavelmente beatle. Isso é mágica, e não dá para explicar.

Já em termos de carreira solo, acho a de McCartney mais consistente, mais ousada, ainda que com resultados variáveis. Mesmo que seja encarado como o conservador da banda, McCartney é quem historicamente mais se aventurou musicalmente — rock, baladas, music hall, música erudita, standards. Dentro e fora dos Beatles.

Isso não quer dizer sempre melhor, necessariamente. McCartney tem discos deprimentes como o Wings at the Speed of Sound e o Off The Ground. Mas quem fala da superioridade de Lennon deveria lembrar que boa parte de sua produção solo foi medíocre, que depois de dois discos geniais, John Lennon/Plastic Ono Band e Imagine, ele gravou uma sucessão de discos ruins como o Mind Games e o Walls and Bridges. Já George Harrison, em que pese um início maravilhoso, viu sua produção decair consistentemente a cada novo disco e ficar cada vez mais rarefeita, lançando apenas dois discos solo inéditos nos seus últimos 20 anos — um deles póstumo, a propósito.

O Victor está errado ao dizer que Harrison era quem tinha mais vontade de refazer a banda. Na verdade, era exatamente o contrário. Até Lennon, quando se acalmou aí perto da metade dos anos 70, admitia a hipótese remota da banda voltar. Harrison, nunca: quando Lennon morreu ainda estava brigado com ele (dizem que saiu até tapa, foi uma baixaria, rapaz), e até o fim da vida manteve uma relação tensa com McCartney (ele dizia “cármica”), muito semelhante à de um irmão caçula em relação ao mais velho. Foi Harrison quem disse que tudo o que os Beatles lhe deram foi “um sistema nervoso em frangalhos”. E só aceitou participar do projeto Anthology porque estava quebrado, graças à sua Handmade Films.

Já o Bruno justificou a sua preferência por George Harrison de maneira engraçada. Harrison não era hippie — nenhum deles era. E o seu relato de sua única visita a Haight-Ashbury (que Hunter Thompson chamava, brilhantemente, de Hashbury), no Verão do Amor, é interessantíssima pelo horror que aquilo tudo lhe causou. É verdade que era o menos pedante, provavelmente o mais generoso; ao mesmo tempo, era o sujeito que cantava a mulher de Ringo na frente dele e que ofereceu a própria esposa a Eric Clapton para poder comer a cunhada. E que me desculpe o Bruno, mas dos quatros beatles acho o pior instrumentista. Melhorou muito depois do fim da banda, quando praticamente migrou para o slide guitar, mas ainda assim fica atrás de gente boa como Duane Allman. Por outro lado Ringo, um baterista forte, econômico, é relegado a quase nada pelos críticos.

Mas o mais curioso nessa pequena enquete é o número de pessoas que preferem McCartney. Alguém devia dizer isso a ele, porque o velhinho tem um problema sério em relação à afirmação do seu passado. McCartney é um gênio musical, um dos poucos que ainda restam. É um homem capaz de, aos 65 anos, lançar um disco cheio de frescor e ao mesmo tempo pungente como Memory Almost Full, e que em 2 anos lançou dois grandes discos pop, um de música clássica e vai lançar agora mais um de música lounge, dance, ambiente, sei lá. Não conheço muita gente com sua idade capaz de fazer isso. E dos mitos dos anos 60, é (junto com Dylan) o único que ainda lança grandes discos, e o único que ainda explora frentes novas.

O diabo é que o melhor disco de McCartney não pode ser, por convenção, melhor que o pior dos Beatles. Se a convenção está certa ou não — e eu acho que não está; Band on the Run é muito melhor que o Beatles For Sale —, não interessa. Quando o Chaos and Creation foi lançado, o produtor Nigel Godrich declarou que não queria McCartney soando como os Beatles. Basicamente, repetiu o que todo crítico diz sobre o ex-marido de Heather Mills. E aí está o seu drama, coitado. Para qualquer banda, dizer que lembram os Beatles é um elogio. Para McCartney, que mais que qualquer outra pessoa no mundo tem o direito a esse título, é um crime.

E a culpa é dele mesmo. Dele, de John, de George e de Ringo.

Um livro que o vento vai levar

Nunca li “…E O Vento Levou”, de Margaret Mitchell, embora tenha visto o filme algumas vezes. Tampouco li as seqüências — ou melhor, seqüelas: “Scarlett”, segundo todos os relatos uma espécie de posfácio da Guerra Civil escrito por Barbara Cartland, e agora Rhett Butler’s People, de um sujeito chamado Donald McCraig.

A resenha da obra pelo New York Times começa com uma pequena comparação entre versões do mesmo fato dadas nos dois livros. No original, ficamos sabendo que Rhett Butler foi preso por matar um negro que havia insultado uma mulher branca. “O que mais poderia um cavalheiro sulista fazer?”, ele pergunta depois a Scarlett O’Hara. Mas em Rhett Butler’s People nos deparamos com uma versão sutilmente diferente: ele mata o negro a pedido do próprio sujeito, que implora que Rhett atire nele antes que a turba invada a prisão e o linche. O que era originalmente um ato de vingança e opressão de classe e de raça passa a ser um gesto de misericórdia.

Só por isso o novo livro é lixo e merece ser evitado por qualquer pessoa com juízo.

“Um típico cavalheiro sulista” é a melhor definição para Rhett Butler, segundo todos que leram o livro. Como eu só vi o filme, só posso usar uma de suas últimas frases, em que ele anuncia que vai abandonar Scarlett em busca de um mundo mais parecido com aquele que os canhões de Sherman tinham destruído: “I want peace. I want to see if somewhere there isn’t something left in life of charm and grace“.

Tirando a poesia fácil da frase (fácil, mas brilhante em se tratando de cinema), na prática isso quer dizer um sujeito com possíveis ligações com a Ku Klux Klan; que “densonrou” uma moça em Charleston; que talvez tenha um filho ilegítimo em New Orleans; e que supostamente roubou o lendário tesouro Confederado.

O filme de David O. Selznick já tinha suavizado Butler em relação ao livro de Mitchell; cinema é entretenimento de massa e deve respeitar suscetibilidades maiores, ainda mais em 1939. Mas ainda assim respeitava seu contexto histórico; omitia, apenas. “Rhett Butler’s People“, no entanto, se esforça em passar creolina, ácido muriático e esmeril na reputação de Butler. Adoça o cavalheiro sulista para que ele fique mais palatável ao mundo atual.

Fazer isso com um personagem é destruir tudo o que ele tem: a sua verossimilhança. O Rhett Butler de McCraig não tem nada a ver com o cavalheiro do século XIX. O que fazia de Butler um personagem literário interessante — e certamente um dos melhores da história do cinema — era justamente o seu anti-heroísmo, o fato de ser completo em suas qualidades e defeitos. Rhett Butler era de verdade.

Matar um negro que havia insultado uma moça branca era uma prova de cavalheirismo no contexto do livro e do filme, porque é algo real, que aconteceu centenas de vezes no tempo e no espaço retratados por Margaret Mitchell; tentar alterar esse passado em função de sensibilidades modernas, de novos padrões éticos, é um crime. Não é porque hoje algo é intolerável que se tem o direito de negar a sua existência. É mais ou menos como fazer um western em que brancos não matam índios, porque hoje isso é feio.

De qualquer forma, nada disso é importante. O livro de McCraig parece ser apenas mais um livro que tenta explorar os últimos veios de um filão esgotado. Está pronto a ser ignorado por quem quer que, como eu, veja em “…E o Vento Levou” uma das dez maiores obras primas cinematográficas, o exemplo perfeito das possibilidades dramáticas do cinema e do modo hollywoodiano de produção. Destruir esse personagem é como fazer de Scarlett O’Hara uma pobre moça desamparada, é derrotar mais uma vez o exército de Jackson. E por isso, se “Rhett Butler’s People” vai ter sucesso ou não, se vai virar filme ou minissérie ou não, frankly, my dear, I don’t give a damn.