Uma pequena bibliografia dos Beatles

Uns anos atrás publiquei aqui uma pequena bibliografia dos Beatles. Alguns anos e alguns livros depois, chegou a hora de atualizar a lista.

The Complete Beatles Recordings
Mark Lewinsohn
Comissionado pela EMI como parte das comemorações do seu centenário, em 1988, acabou se transformando no livro definitivo sobre os Beatles no estúdio de gravação — e foi ali, no estúdio, que os Beatles se tornaram o que são até hoje. The Complete Beatles Recordings é um diário de todas as sessões da banda, provavelmente o livro mais acurado que já se escreveu sobre ela. Infelizmente fora de catálogo há muitos anos, se tornou a bíblia dos beatlemaníacos, o livro a que se recorre para dirimir dúvidas. Ainda espero a chance de colocar novamente minhas mãos sobre um exemplar, é o único fundamental que falta na minha estante. Os anos passaram e veio a internet, um repositório muito maior de informações. O livro mostrou ter lacunas, e mesmo alguns erros pequenos. Mas continua sendo o livro mais importante já escrito sobre o dia-a-dia dos Beatles, e necessário para que se entenda a dinâmica que fez da banda a maior de todos os tempos. Nunca foi lançado no Brasil.

The Complete Beatles Chronicle
Mark Lewinsohn
Lançado depois do Complete Beatles Recordings, inclui as gravações, descritas de maneira mais resumida, assim como um relato das apresentações ao vivo e gravações de filmes, apresentações em TV, etc. Tem também uns bons resumos históricos e críticos sobre cada ano da banda. Nunca foi lançado no Brasil e passou um bom tempo fora de catálogo, mas vale a pena comprar via Amazon.

The Beatles Anthology
The Beatles
Parte do projeto Anthology — que incluiu também o documentário hoje disponível em DVD e os três CDs duplos (ou álbuns triplos em vinil), é a história dos Beatles contada por eles mesmos. É aceitável, apesar deles, claramente, saberem bem os limites da verdade a que podem chegar. Há pouca coisa realmente nova, mas serve como um resumo definitivo do que cada um deles tem a dizer sobre sua história, a sua versão para a posteridade. Independente disso, é um livro fantástico como objeto.

The Love You Make
Peter Brown
Brown era funcionário da Apple (citado por Lennon em The Ballad of John and Yoko). Portanto este é um relato de insider — cheio de todas as fofocas imagináveis. Foi o primeiro livro a revelar, de forma razoavelmente confiável, o lado negro da banda que dizia que tudo o que você precisa é amor. As chantagens sexuais sofridas por Brian Epstein, os maus negócios feitos por ele em nome da banda, a promiscuidade da banda, os problemas graves de Lennon com heroína, os processos de paternidade sofridos por McCartney, as picuinhas internas. Longe de ser o melhor livro para se ter, se você vai ter um só, é um daqueles livros necessários para que se tenha uma visão mais completa da história da banda.

The Lives of Lennon
Albert Goldman
Lançado em 1988 pelo sujeito que mostrou ao mundo a ruína drogada e inadequada que era Elvis Presley, The Lives of Lennon foi recebido como um exemplar particularmente imaginativo do Notícias Populares. Mas o fato é que esse é um livro excelente. Goldman se mostra, acima de tudo, um excelente pesquisador. Sem demonstrar simpatia ou compaixão por nenhum dos seus personagens, o autor revelou alguns detalhes sujos sobre a banda que, apesar de inicialmente descartados como pura fofoca maldosa, foram mais tarde comprovados. É um grande mergulho sobre a personalidade de Lennon; e Goldman foi o sujeito que deixou claro a todos que Lennon era uma mistura de carisma impressionante e personalidade complexa e detestável. O lado negativo do livro é que, às vezes, Goldman parece excessivamente iconoclasta, o que pode levar a alguns erros de avaliação e algumas presunções equivocadas.

Many Years From Now
Paul McCartney
Oficialmente a autoria é de Barry Miles. Mas isso não ilude ninguém. O livro é, na verdade, a autobiografia de Paul McCartney até o fim dos Beatles; o ghost writer apenas levou um crédito maior, provavelmente para que Macca se sentisse mais livre para falar as bobagens que quisesse e soltar as farpas que bem entendesse. De qualquer forma, é um daqueles livros fundamentais para a compreensão da história dos Fab Four. A versão brasileira é melhor que a minha, porque tem alguns acréscimos feitos depois da morte de Linda McCartney.

The Beatles: The Biography
Bob Spitz
Spitz se beneficiou da passagem do tempo e da abundância de material biográfico a respeito da banda para escrever um livro abrangente e equilibrado, que tenta fugir dos mitos sem explorar em excesso aspectos sensacionalistas. O resultado é a biografia mais completa dos Beatles, com um excelente grau de neutralidade. De modo geral Spitz tenta sempre ver todos os lados de uma questão, e mostra um bom entendimento do que era a dinâmica interna da banda. Consegue ter os fatos em boa perspectiva e evita dourar pílulas. Aqui e ali erros aparecem — alguns gravíssimos, como antecipar em um ano a reunião em que Lennon “pediu o divórcio” ao resto da banda, e outros menores; mas com exceção de Many Years From Now e do Anthology, que não contam, é o único traduzido para o português, que faz dele a melhor biografia dos Beatles disponível no Brasil.

***

Mas o livro definitivo sobre a banda ainda não foi publicado — está sendo escrito neste exato momento. Há alguns anos, Mark Lewisohn anunciou que estava escrevendo uma biografia da banda que deverá se estender por alguns volumes. Se ele mantiver nessa obra o mesmo nível de excelência demonstrado nas outras, o que se pode esperar é, finalmente, a biografia definitiva dos Beatles.

O Homem-Aranha, ressuscitado

Eu estou rindo muito.

Não. Na verdade eu estou gargalhando.

Ontem, na banca de revistas, eu vi uma “Homem-Aranha” na prateleira e as chamadas de capa me chamaram a atenção: “Nova fase!” “Novos vilões!” “Novas aventuras!” Parecia uma chamada dos meus tempos de pré-adolescente.

“Mais uma ‘nova fase'”, eu pensei. Essas reviravoltas são tão constantes nos quadrinhos que já se tornaram a norma. É por isso que se tornaram tão chatas, tão previsíveis, tão cansativas.

Pior: eu já não agüentava mais. Há muito tempo tinha deixado de comprar essas revistas porque, afinal, elas eram confusas, cheias de falsas novidades; acima de tudo, tinham perdido o que o Homem-Aranha tinha de melhor: uma simplicidade e um frescor que o faziam agradável ao público adolescente. A última revista do Aranha que comprei, sabe Deus por quê, foi uma em que ele morre e depois renasce com mais poderes, essas coisas. Era uma série de quatro histórias; não fiz questão de comprar a última. O Homem Aranha estava morto.

Na verdade, eu já tinha dito isso antes algumas vezes aqui no blog: aqui e aqui, por exemplo.

Mas ontem, talvez por força do hábito, passei os olhos na revista e comecei a rir. Porque finalmente eles ligaram o botão do foda-se e fizeram o que deviam ter feito há muito tempo: jogaram para o alto a tonelada de besteiras que vinham fazendo nos últimos anos e resolveram recomeçar do nada. Pelo visto houve uma série de histórias em que se resolveu isso, chamada “Um Dia a Mais”. Eu não li, não sei como foi, e não me importo em saber se foi boa ou não. O que importa é que tiveram a coragem de fazer o que deveriam ter feito há muito tempo, e isso é fantástico.

Melhor ainda, eles foram além. Em vez de simplesmente tentar consertar as coisas (como eu, em seu lugar, faria), jogaram a toalha e voltaram à estaca zero. Agora Peter Parker nunca foi casado. May Parker nunca soube que ele era o Homem-Aranha. Harry Osborn nunca morreu. Está tudo como d’antes no quartel de Abrantes. Jogaram fora pouco mais de 20 anos de histórias, quase metade do tempo de vida do personagem — e fizeram certo, porque tudo aquilo foi um grande equívoco. Agora, sim, o Homem-Aranha tem a chance de voltar a se conectar com o seu público, e de avançar.

Basicamente, eu sempre achei que os dois grandes erros dos roteiristas do Homem-Aranha foram casar o sujeito e permitir que as suas histórias adquirissem aquela atmosfera apocalíptica das histórias dos X-Men (que na minha opinião são chatíssimos, com aquela coisa de destruir o mundo a cada três dias). Aquilo não era o veklho e bom cabeça de teia. Ao perpetrarem seu casamento, uma das maiores imbecilidades já feitas a um super-herói, fizeram com ele envelhecesse automaticamente — os problemas de um homem casado não são os mesmos de um jovem urbano solteiro e sem dinheiro. Tornaram-no mais chato, apenas mais um super-herói como tantos outros. Pior que isso, limitaram as possibilidades de desenvolvimento de novas histórias, ao mesmo tempo em que paradoxalmente se obrigavam a encontrar situações cada vez mais mirabolantes para garantir um mínimo de interesse em um personagem cada vez mais limitado. Deram uma de Cortez e incendiaram seus navios, mas não souberam dar cabo de Montezuma.

Estava tudo errado. Se alguém quer saber o que fez do Aranha o super-herói mais popular da história, precisa apenas dar uma lida nas revistas Amazing Spider Man dos anos 60, até a morte de Gwen Stacy em 1973. O Homem-Aranha era, principalmente, as desventuras de Peter Parker, adolescente, azarado, sempre levando na cabeça. Suas histórias tinham um tom leve e agradável. Tinham uma empatia natural com o seu público.

Agora eles têm a chance de reconquistar isso, fazer a coisa certa. É uma boa notícia, e eu provavelmente vou comprar a revista do mês que vem.

Mas não é por isso, exatamente, que rio. Rio porque eu (e mais um bocado de gente no mundo, é verdade) cantava a pedra há muito tempo. Aquele ritmo de coisas era insustentável. E essa decisão desesperada da Marvel, para mim, apenas prova que sou mais inteligente que aquele bando de roteiristas da Marvel, que durante anos tentaram fugir das conseqüências das idéias imbecis que tiveram e apenas encalacravam ainda mais o pobre Amigão da Vizinhança.

Nós cagamos para “Limite” — os 25 melhores filmes brasileiros de acordo com Galvão & Biajoni

Eu e o Bia resolvemos fazer uma lista dos melhores filmes brasileiros. Era pra ser os 10 melhores, passou para 20, e finalmente fechamos em 25 para não avacalhar demais.

O primeiro ponto a ser notado sobre é que nós cagamos solenemente para “Limite”, o nosso “Encouraçado Potemkim”. O filme de Humberto Mauro pode ter a importância histórica que tiver; mas é um filme chato e que só interessa a arqueólogos do cinema. (Embora nós dois adoremos o filme do Eisenstein.)

Achamos que a mitologia em torno de “Limite” prejudicou o cinema brasileiro. Às vezes a gente tem a impressão de que todo cineasta sério tinha que fazer filmes densos, esquisitos. Foi por isso que Glauber fez tanta coisa ruim e é incensado até hoje. O resultado foi um cinema que se distanciou do seu público, ao se contentar em ser elogiado pelos seus pares.

É bom lembrar também que esta é uma lista de melhores filmes brasileiros. Isso quer dizer que os critérios de escolha levaram em consideração outros fatores: históricos, comerciais, afetivos.

São critérios estéticos razoavelmente claros. Quando se fala em filme brasileiro de “catiguria” as pessoas pensam naqueles filmes confusos, metafóricos, cheios de mensagens subliminares e diálogos pseudo-intelectuais. Mas nós preferimos, decididamente, o Nelson Pereira dos Santos inteligível de “Vidas Secas” e “Rio 40 Graus” ao Nelson hermético e alegórico de “Fome de Amor”, cuja única qualidade real são os peitos e rosto bonitos da Leila Diniz e que hoje é algo tão longínquo quanto a ditadura.

É por isso que “A Menina do Lado”, um filme que sob critérios puramente objetivos seria considerado no máximo mediano, está na lista. O filme de Alberto Salvá é um dos melhores da década de 1980, com uma leveza e sensibilidade que faltava então ao cinema brasileiro, no que foi a sua pior fase.

Além disso, uma lista desse tipo implica negociação e concessão. O Bia não gosta de “Eu Te Amo”, eu não gosto de “Alma Corsária”. Para incluir “Todas as Mulheres do Mundo”, de que o Bia não gosta e eu acho um dos melhores exemplos do cinema novo, eu tive que concordar com “Redentor”, para ele dos melhores filmes dessa fase recente do cinema nacional. O Bia sugeriu “O Cheiro do Ralo”, mas eu o considero apenas um filme razoável engrandecido por um grande tipo, vivido por Selton Mello. “Auto da Compadecida” foi vetado porque tem uma linguagem excessivamente televisiva e porque, afinal de contas, a minissérie de TV original é bem melhor que o filme. Finalmente, quando um insistiu muito em um filme que o outro não tinha visto, decidiu-se dar um voto de confiança. Assim eu incluí “Mineirinho Vivo ou Morto”, enquanto o Bia emplacou “A Dama do Cine Shanghai”. O Bia tentou incluir “Não por Acaso”, mas não conseguiu. Eu tentei empurrar alguns títulos da pornochanchada, mas o Bia foi firme.

Eu consegui emplacar uma chanchada, pelo menos, mas o Bia vetou completamente Mazzaropi, cujo “Candinho” é bom.

Havia dois problemas a serem resolvidos. O primeiro é Walter Hugo Khoury. Nem eu nem o Bia duvidamos que ele seja um dos mais importantes cineastas brasileiros; mas não conseguimos achar um filme, especificamente, suficientemente bom. O melhorzinho de todos nos parecia “Amor Estanho Amor”, mas ele simplesmente não parecia ser filme suficiente para uma lista dessas. A não ser que se considere o “conjunto da obra” do Khoury.

O segundo é Nelson Rodrigues. Nenhum autor brasileiro foi tão castigado por cineastas quanto o anjo pornográfico. O tratamento dado a Nelson por cineastas como Neville d’Almeida prejudicou um dos maiores dramaturgos brasileiros da história. E no entanto, a filmografia baseada nele é extensa e importante. O melhor filme feito sobre uma obra de Nelson é “Toda Nudez Será Castigada”, mas aí era Jabor demais em uma lista só. Pelo Bia, não entrava nem mesmo “Eu Te Amo”.

Eu vejo na pornochanchada qualidades reais, um cinema que mesmo comercial era verdadeiro e representava uma evolução natural da chanchada; o Bia acho que a pornochanchada é mais uma curiosidade, não revelou algo de cinematograficamente grande. O gênero não entrou.

Há um terceiro problema, ainda: o da ignorância pura e simples. Tanto eu quanto o Bia conhecemos melhor o cinema estrangeiro que o brasileiro — que sempre enfrentou sérios problemas de distribuição. E nem sempre dá para ver tudo, porque afinal de contas alguém tem que garantir o leite das crianças. É por isso que alguns filmes não entram porque, em primeiro lugar, não vimos: “Edifício Master”, por exemplo. Além disso, certas coisas, cá entre nós, é melhor mesmo não ver.

É isso. A lista está aí. Que sirva de roteiro para que as pessoas passem a gostar mais do cinema brasileiro.

Update: Por favor, parem de deixar comentários lembrando que “Limite” é do Mário Peixoto. Ninguém parece ter entendido a piada. Como não viram que o Barreto que fez “Dona Flor” não foi o Fabio.

Todas as Mulheres do Mundo

  1. Alma Corsária — Carlos Reichenbach
  2. Assalto ao Trem Pagador — Roberto Farias
  3. O Bandido da Luz Vermelha — Rogerio Sganzerla
  4. Bye Bye Brasil — Cacá Diegues
  5. O Cangaceiro — Lima Barreto
  6. Carnaval Atlântida — José Carlos Burle
  7. Central do Brasil — Walter Salles Jr.
  8. Cidade de Deus — Fernando Meirelles
  9. A Dama do Cine Shanghai — Guilherme de Almeida Prado
  10. Deus e o Diabo na Terra do Sol — Glauber Rocha
  11. Dona Flor e Seus Dois Maridos — Fabio Barreto
  12. Eu Te Amo — Arnaldo Jabor
  13. Lucio Flávio, o Passageiro da Agonia — Hector Babenco
  14. Macunaíma — Joaquim Pedro de Andrade
  15. A Marvada Carne — André Klotzel
  16. A Menina do Lado — Alberto Salvá
  17. Mineirinho Vivo ou Morto — Aurélio Teixeira
  18. O Pagador de Promessas — Anselmo Duarte
  19. Pixote — Hector Babenco
  20. Redentor — Cláudio Torres
  21. Rio 40 Graus — Nelson Pereira dos Santos
  22. Terra em Transe — Glauber Rocha
  23. Todas as Mulheres do Mundo — Domingos de Oliveira
  24. Tropa de Elite — José Padilha
  25. Vidas Secas — Nelson Pereira dos Santos

As nature intended

Jojo was a man, etc.

Phil Spector, o produtor legendário que estragou os Ramones e, segundo Paul McCartney, o último disco dos Beatles, deu o ar da graça. Ele não andava falando muito, a não ser em depoimentos na polícia para se defender da acusação de assassinato de uma moça.

Agora ele resolveu falar sobre o Let it Be. Também aqui Spector se defende, basicamente: diz que salvou o disco, esculhamba a versão recente patrocinada por McCartney, o Let it Be… Naked, e outras pequenas coisas.

A história resumida: no final de 1968, os Beatles tiveram a idéia de fazer um documentário sobre o processo de preparação de um novo show e um novo disco, que se chamaria Get Back. Tudo deveria ser ao vivo — “sem truques”, exigiu Lennon. As gravações e filmagens começaram no segundo dia de 1969 e duraram um mês. Foram um inferno, de acordo com todos os envolvidos. A banda estava indo para o buraco, e não fazia questão de manter a elegância.

George Martin cansou de tanta baixaria no estúdio e abandonou o projeto. O engenheiro de som Glyn Johns, transformado em produtor, apresentou uma primeira mixagem do álbum, depois uma segunda. Esta versão chegou a ser distribuída para algumas rádios (e foi resenhada pela Rolling Stone), mas recolhida logo depois. A situação era tão feia que até mesmo a banda, envolvida com o fim iminente, abandonou o projeto. McCartney ainda conseguiria fazê-los voltar para gravar o Abbey Road, com várias canções ensaiadas durante aquelas sessões no inverno londrino, e que se tornaria seu canto de cisne. Lennon e Harrison então chamariam Phil Spector — provavelmente o produtor mais famoso da história do pop, idolatrado por gente boa como Brian Wilson — para ver o que ele podia fazer daquele material disponível. Spector se trancou com as fitas e emergiu com o Let it Be — um disco esquisito, para dizer o mínimo.

Eu fazia parte daquele grupo que achava que Spector tinha salvo o disco. Concordava com a versão de Lennon porque o que se via no filme Let it Be era uma mixórdia confusa, e achava difícil que se conseguisse tirar algo dali. Mas Lennon estava errado, e eu também. Spector não salvou o Let it Be.

O fato é que nenhum dos dois produtos — a versão de Glyn Johns ou a de Phil Spector — era grande coisa. Nenhum produtor, por melhor que fosse, poderia fazer uma obra-prima a partir do material que os Beatles deixaram em suas mãos. Aquilo era inferior a praticamente tudo o que os Beatles já tinham feito em sua carreira. Claro que se podia fazer um grande disco com aquelas canções; bastava colocar a banda em estúdio e gravar do modo tradicional, como fizeram mais tarde com o Abbey Road. Mas àquela altura isso era impossível. Johns e Spector tiveram que trabalhar com o que tinham.

Mas a versão de Johns era mais orgânica. Com boa vontade, assim como os ouvintes acreditaram que o Sgt. Pepper’s era um disco conceitual, Get Back tinha a cara de um disco ao vivo, ou ao menos a representação de um processo de criação. A abordagem de Johns estava correta. Aquele era um disco mal acabado, confuso, cheio de erros — mas era essa a proposta original de Lennon e de todo o grupo. Havia, afinal de contas, um conceito por trás daquilo tudo, e Johns conseguiu traduzi-lo adequadamente — algo que Michael Lindsay-Hogg, diretor do filme, não conseguiu, a propósito. Get Back, como concebido por Johns, é um exercício de iconoclastia que faz todo o sentido no mundo fragmentado de 1969. De certo modo, chega a ser avant garde — “french for shit“, segundo o Harrison de alguns anos antes.

A versão de Johns tinha defeitos, obviamente. Ele nem sempre escolheu as melhores versões disponíveis. Algumas canções não precisavam estar lá, como Teddy Boy, que nunca chegou a um ponto aceitável de entrosamento, tosca até pelos padrões do disco. Não havia nenhuma necessidade de colocar Rocker e Save The Last Dance For Me — entre as musiquinhas que os Beatles improvisavam no estúdio pode-se citar umas cinco, pelo menos, que tinham melhor qualidade.

Ainda assim, o disco produzido por Glyn Johns tirava o melhor de uma situação extremamente adversa. Assumia que aquilo era uma gravação desleixada e e a transformava em um retrato sobre a intimidade de uma banda. A versão de Johns aparentava um sentido; a de Spector é apenas a tentativa desastrada de transformar um material ruim em algo comercial. A abordagem de Johns é mais inteligente, porque não tenta tirar leite de pedra, e os resultados são mais satisfatórios.

A versão de Phil Spector tirou boa parte da espontaneidade que se podia perceber no Get Back. Não apenas ao colocar cordas e corais em canções como The Long and Winding Road, mas ao picotar o disco e tirar a organicidade que, bem ou mal, a versão de Glyn Johns tinha. Por exemplo, é só ver o que ele fez com Dig It. Essa canção era um problema, por ser longa demais. A versão de Johns é basicamente a que aparece no filme Let it Be — que não é uma versão completa. Spector mutilou a música ainda mais, transformando-a em apenas uma vinheta perdida em meio a duas canções. Seria melhor tirá-la, ou colocar a versão de Johns (do meio para o final) para abrir o disco — “can you dig it?”

Spector está errado. Só está certo ao falar mal do Let it Be… Naked, um lixo sem razão.

***

Falando em Dig It, a canção é uma mostra de como as coisas são confusas quando se trata dos Beatles. Ela nasceu de uma jam session, com Billy Preston nos teclados e George Martin nas maracas. Por isso, está registrada como composta por todos os quatro Beatles. Mas é John quem improvisa a maior parte das letras. Talvez por isso, sempre que alguém se refere à canção, diz que é dos quatro, mas principalmente de John.

A gravação incluída no Get Back, com mais de 4 minutos e musicalmente mais interessante, mostra uma participação muito maior dos outros — principalmente de McCartney — na definição da canção. Só isso já deveria bastar para colocar em dúvida essa presunção de que Dig It é de Lennon.

Mas há uma outra canção que me intriga. No More Rhine Tapes, um dos melhores discos piratas tirados das sessões do Let it Be, ela tem o nome de Get Off e dura cinco minutos. É basicamente um bluesinho de 12 compassos. Paul canta: “White power!” e John responde: “Get off!” Aí começa uma brincadeira de perguntas e respostas entre Paul e John — Paul citando nomes e John gritando “Get off!“, quanto Ringo segura a base e George sola e arpeja durante a música. Entre os nomes desprezados por Lennon estão Judy Garland, Wilson Pickett e uma porção de outros, gente boa e ruim.

A música pára. Eles voltam. E Paul solta a frase: “Can you dig it?“, uma evolução da brincadeira do “get off“. “Winston Churchill; can you dig it?” A música continua evoluindo a partir daí.

A canção não tem maracas nem teclados, o que quer dizer que provavelmente foi gravada nos estúdios Twickenham, antes de George sair e antes dele convidar Billy Preston para amenizar o clima no estúdio. A Dig It como se tornou conhecida é quase certamente uma evolução dessa Get Off.

Não seria justo creditar a canção a qualquer um dos Beatles. É uma obra coletiva, uma brincadeira de estúdio. Mas a insistência de “beatleólogos” em definir um autor específico para cada canção acaba levando a distorções como essa.

Novos factóides sobre Lennon

Livro novo sobre Lennon na praça: John Lennon — The Life, de Philip Norman.

Ao que tudo indica, parece ser um bom livro, razoavelmente honesto. Vem sendo elogiado, até porque Norman é autor de um bom livro sobre os Beatles, Shout!. A capa lembra a de The Beatles – A Biography, de Bob Spitz (livro traduzido no Brasil, a propósito), parecendo quase um desdobramento lógico dele.

A essa altura, há pouco o que se dizer de Lennon ou dos Beatles. É um assunto praticamente esgotado. Não resta muito o que dizer. A solução é apostar em pequenos factóides. A crítica fala de informações novas no livro: ensina que Eight Days a Week nasceu de uma frase dita a Paul McCartney por um taxista, e que Lennon teve um “lance” com Alma Cogan. Nada disso é novidade. As duas informações estão em Many Years Ago, a autobiografia de McCartney escrita por Barry Miles. Norman também fala da mitificação negativa sofrida por Freddie Lennon, pai de John — mas isso foi investigado a fundo em The Lives of John Lennon, de Albert Goldman, o primeiro a questionar a imagem santificada de Lennon. Norman diz que o livro de Goldman é “malevolente, risivelmente ignorante”, e certamente tem alguma razão em suas alegações — principalmente sobre a maldade de Goldman; o que, no entanto, não parece ter impedido que bebesse de sua fonte de dados.

Essas são informações pequenas e pouco interessantes, no entanto. Para chamar a atenção do mercado, o livro fala sobre duas pretensas fantasias sexuais de Lennon: com a mãe, Julia, e com Paul McCartney. Incesto e homossexualismo: nada melhor para atrair atenção para um livro que, no final das contas, não traz muita coisa nova.

Só que nada disso é realmente novidade, tampouco. E não significa nada. Para uma pessoa conturbada (ou complexa, se preferir) como Lennon — e com uma sexualidade maleável, como o pretenso caso com Brian Epstein demonstra — os dois aspectos são até de se esperar. Vulnerável, sensível, carente e agressivo, Lennon tinha dificuldade em lidar com suas emoções, ou em entender a sua natureza.

No caso da sua mãe, a relação absolutamente edipiana já tinha sido explorada pelo próprio Lennon em suas próprias canções, como My Mummy’s Dead, Mother (“I wanted you, you didn’t want me“) e, de maneira mais reveladora, em Julia — em que as figuras de Julia Lennon e Yoko Ono são confundidas e assemelhadas. Além disso, declarações a esse respeito do próprio Lennon são facilmente encontradas por aí, como o trecho em seu áudio-diário explorado por Norman, de 5 de setembro de 1979:

Lembrei da vez em que estava com a mão no peito de minha mãe, em 1 Blomfield Road. Eu tinha cerca de 14 anos. Faltei à escola, eu sempre fazia isso e ia para a casa dela. Nós estávamos deitados na cama e eu pensava, “Será que eu deveria fazer algo mais?” Foi um momento estranho, porque na verdade eu estava a fim de uma moça de classe baixa que morava do outro lado da rua. Eu sempre penso que deveria ter ido em frente — presumindo que ela tivesse deixado.

Fãs hardcore de Lennon já conheciam essas gravações, disponíveis em uma série de discos piratas chamada The Lost Lennon Tapes e já comentadas aqui e ali em listas de fãs, como o rec.music.beatles da Usenet. E dão a elas a importância adequada: uma mostra de confusão existencial de Lennon e incapacidade de entender seus próprios sentimentos ou resolver o seu complexo de Édipo.

No que se refere a Paul McCartney (segundo Norman, Lennon só foi barrado pela “heterossexualidade inamovível” de Mccartney), é muito mais simples. Não é nada realmente novo, pelo menos não do ponto de vista de Lennon; já se especulou muito sobre a natureza da afeição de Lennon por Stuart Sutcliffe, por exemplo — especulação que chegou a filmes como “Os Cinco Rapazes de Liverpool”. Não quer dizer nada. De qualquer forma, algo que nunca passou de uma fantasia na cabeça do sujeito, provavelmente pouco elaborada, não é exatamente algo importante.

De modo geral, essas revelações não acrescentam muita coisa à história de Lennon. E em termos de impacto, não chegam perto do estrago feito pelo livro de Goldman, o primeiro grande exercício de iconoclastia sobre Lennon.

Agora, resta apenas esperar dois eventos. O primeiro é a biografia monumental que Mark Lewinsohn está escrevendo — Lewinsohn é provavelmente o maior historiador dos Beatles, autor de um dos livros fundamentais sobre a banda, The Complete Beatles Recording. Talvez não traga grandes revelações, mas é provável que venha a ser a biografia definitiva sobre os Beatles, o único livro que alguém precisará ter para conhecer sua história. Pelo histórico de Lewinsohn, pode-se esperar acurácia histórica e abrangência factual, os mais importantes elementos desse tipo de biografia.

O segundo será a morte de Paul McCartney. Até agora, quem escreve uma biografia sobre McCartney tem que escolher entre o máximo de cuidado possível ou o acesso a fontes razoáveis. Além disso, ele é um homem poderoso, o que certamente intimida aqueles que querem explorar eventuais escândalos em sua vida, e dono de uma forte camada de teflon, que impede que a má fama grude a ele. No entanto, é possível imaginar a avalanche de livros escandalosos que surgirão a partir de sua morte, explorando fatos como ele ser extremamente mulherrengo, de não ter reconhecido alguns filhos, de ter sacaneado amigos e colaboradores.

Escritores sensacionalistas devem estar torcendo para que o velho e bom Macca morra logo.

O Lobo do Arrocha

A Época desta semana publicou uma matéria sobre o processo de recriação de peças em campanhas eleitorais. Ou seja, tentou explicar por que slogans como “Deixe o homem trabalhar” são reutilizados por várias campanhas diferentes.

Os marqueteiros entrevistados deram a única resposta possível: porque funcionam. É simples assim. Isso aqui não é o festival de Cannes e o voto não admite comerciais fantasmas. O que interessa é ganhar a eleição. Mais nada. E numa guerra é imbecilidade se recusar a usar um tipo de canhão porque outro exército já o utilizou.

A matéria não quer dizer muita coisa para quem acompanha programas eleitorais. Mas me fez lembrar da sina do Paulo Lobo.

Paulinho, para quem não sabe, é um dos grandes músicos sergipanos. É também um grande redator publicitário, um grande cronista e o maior jinglista que esta cidade já viu. Pode ser encontrado, violão a tiracolo, em seu escritório no Mineiro, um bar e restaurante agradabilíssimo defronte ao rio, na Coroa do Meio, ao lado de ícones e ídolos como o Cleomar Brandi e sua garrafa de conhaque.

A matéria me fez lembrar do Paulinho porque aqui também a gente fez uma música com o “deixa o homem trabalhar”. O Paulinho fez a música rapidinho. Só que em vez do forró tradicional, elegante e sofisticado imaginado pelo Paulinho, o Cauê deu a idéia de transformá-la num arrocha, o que foi feito num arranjo brilhante do Alegria com a voz do Tiago.

Você pode ouvir o arrocha do Paulinho no site de Edvaldo. Procura pelo “Jingle Arrocha”. (Aliás, todos os jingles nessa página são do Paulinho, com exceção do Jingle Forró, que é do Zinho.)

É esse Paulo Lobo, artista cônscio de sua responsabilidade na perpetuação da boa cultura brasileira, homem que fez uma das mais belas e intensas campanhas internas (com direito a cartaz e jingle) já vistas apenas para conseguir ir ao show de João Gilberto, que de repente se vê em meio a um sucesso absoluto de uma música sua que ele diz não gostar.

A música está tomando conta da cidade. Outro candidato, o Almeida Lima, gravou um jingle com Dominguinhos, em que o refrão diz “A, A, A…” Essa é a nossa resposta. É o nosso “A, A, A”. Aracaju inteira requebra ao som do arrocha e faz troça do pobre Almeidinha, que não pára de cair nas pesquisas, coitado.

Mas o Paulinho se sente incomodado por tanto sucesso. 30 anos de uma bela carreira, um sujeito respeitado e sério, e de repente é um arrocha que toma a cidade de assalto, um filho bastardo, safado, gigolô, vagabundo e maconheiro, e com um jeito meio esquisito.

Resta a mim dar um conselho ao Paulinho.

Pára com essa viadagem de ser músico sério, Paulinho. Coloca uma blusinha baby look, uma calça apertada e rasgada em lugares estratégicos, e arranja duas putas daquele tipo que se equilibra mal e mal entre o “gorda” e o “gostosa” para dançar ao seu lado no palco. Bota uma tiara no cabelo e deixa para trás essa vida sofisticada e boêmia, porque a voz do povo é a voz de Deus, e depois de ouvir esse arrocha o povo quer que você se transforme no Lobo do Arrocha.

Você vai ganhar um dinheiro danado, Paulinho. E me deixa ser seu empresário, por favor.

Um post sobre Jerry Lewis que provavelmente não será escrito

O pior de tudo é que o tempo vai passar e Jerry Lewis vai morrer e eu não vou ter escrito um post adequado ao seu gênio.

Jerry Lewis foi o maior comediante americano da segunda metade do século XX. Eu não tenho dúvidas. Acho que tinha mesmo todos os defeitos que apontam nele — e eu tenho dificuldade em achar que fez grandes filmes por serem episódicos demais, caminhando numa linha tênue entre a narrativa e o encadeamento puro e simples de gags — mas ao mesmo tempo tinha também todas as qualidades possíveis, uma inventidade absurda e um faro excelente para a grande gag

Jerry passou por um processo semelhante ao de Hitchcock. Foi preciso que os franceses da Cahiers du Cinéma dissessem que ele era um grande comediante para que as pessoas, com aquela cara de bunda que é peculiar a quem não consegue ver adiante do nariz, dissessem “é mesmo”. Os críticos então admitiram o que milhões de pessoas já sabiam: que Jerry Lewis cumpria como ninguém o seu ofício de fazer rir.

Infelizmente, disseram isso quado Jerry já era um comediante decadente. A obra de Jerry foi perdendo qualidade ao longo da segunda metade dos anos 60. Seus filmes foram ficando repetitivos, as piadas foram ficando sem graça, seu tipo físico foi se tornando inadequado ao personagem que continuava interpretando. Jerry protagonizou grandes fiascos nessa época. Mas a sua obra nos anos 50 é indelével — sua parceria com Dean Martin foi antológica, tão grande quanto outras duplas, como Laurel & Hardy e os Três Patetas — assim como a do começo dos 60. Jerry construiu um personagem anárquico, inadequado ao sistema, que encontrava respaldo e ematia em praticamente todo mundo. Há um tanto de subversão quase ingênua em Jerry Lewis; talvez o melhor exemplo seja a cena do grupo de ginástica em “O Meninão” (refilmagem de “The Major and the Minor, de Billy Wilder). A sua incapacidade de seguir o conjunto desarruma tudo, leva à bagunça total, à desordem — e foi isso que os franceses viram nele e mostraram para o resto do mundo, essa selvageria e anarquia ingênuas, mas não tanto.

Ele deve estar fazendo 81 ou 82 anos agora, e essa idade o aproxima da morte. Escreveu um livro há pouco tempo falando de sua parceria com Dean Martin, e ao contrário do que poderiam esperar, foi um livro carinhoso. Lembro do dia em que Dean Martin morreu, e foi uma das duas ou três vezes, em toda a minha vida, em que fiquei triste porque alguém que eu não conhecia tinha morrido.

Mas acima de tudo, Jerry Lewis é um companheiro de infância e um dos meus últimos heróis. Eu e todo mundo que cresceu nos anos 70 assistíamos aos filmes de Jerry Lewis na Sessão Tarde — era um tempo em que a Sessão da Tarde exibia bons filmes, com Errol Flynn e Charlie Chaplin e Johnny Weissmuler e John Wayne mais uns tantos por aí. O primeiro a que assisti foi “O Rei do Laço”, um dos últimos de sua parceria com Dean Martin. Em seguida vi praticamente todos os filmes que importavam. “Errado Pra Cachorro”, “O Bagunceiro Arrumadinho”,”O Otário”, The Caddy, Artists and Models, Hollywood or Bust, Rock-a-Bye Baby — a lista é grande demais para caber aqui. Jerry Lewis tem uma filmografia que não é apenas extensa — tem momentos absolutamente geniais, como a gag final de “O Otário” e tantas outras. Eu tive a honra de ver um de seus últimos filmes no cinema — Hardly Working; era um filme ruim, mas eu vou poder dizer um dia que pude assistir a um filme de Jerry Lewis no cinema.

No fim das contas, acho que poderia escrever um post longo e bom sobre um dos meus heróis, mas não tenho tempo. Depois eu escrevo sobre ele. Um dia. Só espero que esse dia chegue.

Um adeus a Easy Rawlins

Meu escritor policial favorito da atualidade é Walter Mosley — mais precisamente a série com as desventuras de Easy Rawlins, como atestam alguns posts antigos neste blog. Seus outros personagens, Fearless Jones e Socrates Fortlow, nunca chamaram minha atenção e eu não sei dizer se são bons ou ruins.

Mosley não é um sujeito conhecido no Brasil como deveria. Dele foi publicado aqui, até onde sei, “O Diabo Veste Azul”, “Uma Morte em Vermelho” e “Quem Matou Nola Payne?”, título idiota para o original Little Scarlet: acredite, o que menos importa em Little Scarlet é quem matou a pobre Nola. Uma pesquisa rápida no Google mostra, pelo menos a princípio, que as únicas pessoas que falaram de Mosley em português, além de resenhas de lançamentos e de referências ao filme “O Diabo Veste Azul”, foram Filthy McNasty e eu.

É uma pena que tão pouca gente pareça conhecer o sujeito. Ainda mais quando damos uma olhada no panorama desse segmento do mercado editorial. A cada ano as editoras jogam para cima dos leitores uma infinidade de livros policiais fracos, apenas porque são novos. Relegam os clássicos a nada; o melhorzinho deles a ser publicado com razoável constância é Rex Stout — mas apesar dos tantos elogios, aquele gordo viado e seboso do Nero Wolfe não é tudo isso que dizem dele; não passa de Agatha Christie depois de duas semanas de férias no Brooklyn. Fariam melhor se apenas publicassem e republicassem a Santíssima Trindade: o Pai Dashiell Hammett, o Filho Raymond Chandler e o Espírito Santo Ross MacDonald.

(Durante anos achei que tinha inventado esse negócio de “Santíssima Trindade” do roman noir. Me achava genial por isso. Mas há algum tempo descobri que o conceito foi cunhado há décadas por um escritor chamado Michael Avallone, exatamente nessa ordem. É tão triste chegar às portas dos 40 anos e descobrir que não se é gênio coisa nenhuma, nem mesmo um gênio de segunda.)

(A propósito, Dashiell Hammet vem tendo alguns de seus romances — que um dia pertenceram à Brasiliense — republicados pela Companhia das Letras; infelizmente deixam de lado os contos do Continental Op, justamente aqueles que definiram, de uma vez por todas, o noir.)

A inspiração óbvia de Mosley é Chester Himes — o mais bem-sucedido autor a misturar a questão racial a romances policiais. Mas enquanto os policiais strictu sensu de Himes com Coffin Ed e Grave Digger Jones tendem ao caricato, uma espécie de Mickey Spillane com mais melanina e protesto social, a série de Easy Rawlins é um pequeno clássico moderno, porque além de razoável qualidade literária dentro dos limites possíveis da literatura policial, atende perfeitamente aos requisitos convencionais do melhor noir, algo que muitas vezes falta a Himes.

A diferença básica entre o roman noir e a tradição inglesa é a ambigüidade moral, a idéia de que o crime é um produto orgânico da sociedade e não uma anomalia dela, como nos quebra-cabeças de Agatha Christie; alia-se a isso uma percepção acurada dessa mesma sociedade, e então temos os elementos que fazem do noir um gênero superior ao modelo inglês tradicional. Mas a qualidade literária é outro grande diferencial. Da extrema limpeza estilística de Hammett à razoável profundidade psicológica de MacDonald, do ponto de vista literário se vai mais além do que nos romances de, por exemplo, Edgar Wallace. Obviamente, o simples fato de ser literatura policial implica uma série de convenções; mas isso não exclui observações mais profundas acerca da sociedade.

(Outro parêntesis em um texto preguiçoso já cheio deles: literatura policial é clichê e convenção, mas nem sempre fáceis. Bukowski, por exemplo, se deu mal com seu Pulp; Luís Fernando Veríssimo também, com seu “Jardim do Diabo”. Boa literatura policial não é tão fácil como parece.)

Como acontece com qualquer série, a produção é irregular. Obras excelentes como “O Diabo Veste Azul”, Little Scarlet e Cinammon Kiss convivem com livros bons como A Red Death e A Little Yellow Dog, e fracos como White Butterfly, Black Betty, Gone Fishin’ e Bad Boy Brawly Brown. Mas essa divisão entre obras boas e ruins importa pouco, porque no final das contas o que vemos neles é a evolução do personagem e também da questão racial americana. A série acaba oferecendo um painel interessante sobre a evolução das relações raciais nos Estados Unidos, do racismo claro e declarado dos anos 40 às mudanças acontecidas nos anos 60. Nos primeiros livros da série, ambientados no pós-guerra, Easy Rawlins é um homem cheio de ódio e raiva, atento a pequenas e grandes demonstrações de racismo e preconceito; mas à medida que o tempo vai passando e a sociedade americana vai se moldando ao fato de ser uma sociedade multirracial de classes, essas relações vão se tornando menos conflituosas. O quebra-quebra de Watts é um momento decisivo; mas a ascensão do movimento hippie também. É o acompanhamento dessa evolução que coloca Mosley um pouco acima da média dos escritores policiais. E, claro, o excelente personagem que criou: Easy Rawlins é vivo, conturbado, um herói torturado e trágico que ao mesmo tempo em que resolve mistérios policiais, tem que lidar com uma sociedade conflituosa e com os seus próprios problemas.

Mas este não é um post para falar de Easy Rawlins, porque já falei antes. Este é um texto para carpir a sua morte. Uma espécie de eulogia meio sem graça.

Há algumas semanas li Blonde Faith, publicado ano passado, o décimo primeiro da série de Rawlins. No final do livro há um acidente de carro e Rawlins, sentindo que vai morrer, desmaia, “and then the world turned black“. Mosley já tinha avisado que aquele seria o último livro da série. Pelo visto está cansado de Easy Rawlins, como Conan Doyle cansou de Sherlock Holmes. Dono de uma carreira razoavelmente diversificada e bem-sucedida, Easy Rawlins pode parecer a Mosley restritiva — como os Beatles pareceram restritivos a John Lennon.

Mas Mosley sabe como funciona o mercado, e não teve coragem de matar de maneira irrevogável o seu personagem. Além disso, anunciar um livro como o último de uma série bem sucedida é um truque de marketing já velho, desde que se deixe o final em aberto para a possibilidade de eventualmente retomar a série. Assim como Doyle retomou o viciado em ópio, não seria surpresa se daqui a alguns anos Easy Rawlins voltasse, tendo sido resgatado do acidente feio e mancando da perna esquerda.

Para quem gosta de boa literatura policial, como eu, essa é uma última esperança.