Uma leitura errada das coisas

O Leitor” é um ótimo filme. Dirigido por Stephen Daldry, diretor de “As Horas” e Billy Elliot, é uma daquelas poucas boas obras produzidas por Hollywood nos últimos anos — talvez por apresentar qualidades estéticas típicas do cinema europeu, talvez por partir de um roteiro enxuto baseado em um livro que se presta bem à adaptação cinematográfica.

Não há excessos na direção de “O Leitor”: não há longos travellings, cenas propositadamente melodramáticas. Stephen Daldry desempenha a sua função com concisão e economia admiráveis, sem que em nenhum momento isso possa ser confundido com pobreza estética. Kate Winslet, como Hannah Schmitz, a ex-guarda de campos de extermínio que tem um caso amoroso com um garoto 20 anos mais jovem, está esplendorosa. É uma atriz de coragem, essa Winslet. Sua personagem consegue passar a dureza e a pobreza espiritual de sua personagem sem maniqueísmos nem pieguice.

Mesmo assim, nos últimos dias o filme vem sendo alvo de uma pequena polêmica. Ron Rosembaum, em artigo na Slate, pediu que não se dê um Oscar a “O Leitor” e o classificou como o pior filme já feito sobre o Holocausto.

Rosembaum, aparentemente pronto a defender com unhas e dentes a propriedade inalienável da Solução Final, não consegue sequer entender que o filme não é sobre o Holocausto.

“O Leitor” é, antes de tudo, um romance de formação em tempos difíceis, uma espécie de Billy Bathgate sem o lirismo idílico de “Houve Uma Vez Um Verão”. Mas é também, e principalmente — e é isso que lhe confere grandeza –, um filme sobre o desconforto alemão em lidar com o próprio passado nazista.

Esse desconforto está explícito na dificuldade com que Michael Berg, interpretado na idade adulta pelo ótimo Ralph Fiennes, lida com a mulher que foi o seu primeiro amor, a partir do momento em que conhece o seu passado. Aquela relação o marcaria para sempre, e sobre ela pode-se ter várias leituras. Uma delas, no entanto, é a que realmente interessa: o garoto incauto e ingênuo como representação do povo alemão, seduzido por algo maior e incompreensível — Hannah como materialização do nazismo — e os dilemas que enfrenta diante da necessidade de, mais tarde, encarar esse passado.

No entanto, em nenhum momento o filme pretende desculpar os alemães pelo nazismo. Isso não tem desculpa, e a essa altura ninguém espera que tenha. Sob essa ótica, “Operação Valkyria” é um filme muito mais nocivo, ao retratar aristocratas alemães como combatentes valorosos do nazismo (sobre isso já escrevi aqui: minha posição é a de que a esses “super-homens” alemães falta o estofo necessário aos verdadeiros heróis). Mas é preciso entender como o nazismo se desenvolvia em seus muitos níveis. Ninguém é estúpido o suficiente para achar que o que motivava a colaboração de um camponês era o mesmo que motivava Albert Speer — que por sua vez não estava lá pelas mesmas razões de Goebbels.

Ao mostrar uma mulher que não abriu as portas de uma igreja em chamas porque era preferível que os prisioneiros sob sua guarda morressem em vez de ter uma chance de fuga, Daldry não está pedindo que simpatizemos com ela. Pelo contrário: em nenhum momento a personagem de Kate Winslet é mais desprezível e abjeta. Mas nós podemos compreender a lógica simplória do seu raciocínio. E com isso, Daldry apenas retrata a estupidez e a crueldade de uma parte do povo alemão em um momento atroz de sua história.

O equívoco desse pessoal que acusa o filme de leniência em relação ao nazismo é que eles não conseguem compreender que o problema aqui não reside em ela aceitar em levar a culpa isolada pelo crime. Está no fato de que ela participou daquele ato, fez uma escolha aterrorizante, ainda que coletiva, e isso não é desculpável. A decisão de Hannah em assumir a culpa pela morte daqueles prisioneiros para não revelar que é analfabeta é, provavelmente, o momento mais fraco do filme. Mas o analfabetismo de Hannah não entrou em questão quando ela cometeu o seu crime. É irrelevante.

Como a ficcional Hannah Schmitz, milhares de alemães colaboraram em atrocidades de guerra sem muitos questionamentos morais. Em certa medida, isso é parte do próprio caráter germânico; em outra, maior e mais importante, é representativa do anti-semitismo generalizado na sociedade alemã. Eu e milhares de outras pessoas conseguimos compreender isso. Rosembaum não consegue porque sua agenda limita sua capacidade de ver a realidade.

Um dos grandes méritos de “O Leitor” está no fato de abordar o fenômeno do nazismo, do ponto de vista da sociedade alemã, de maneira razoavelmente objetiva, com uma compreensão razoável do caráter germânico e reconhecendo determinadas nuances da sua concretização. Um filme como esse deve incomodar pessoas com a mentalidade que se vê em Rosembaum porque admite a complexidade humana e tenta fugir de raciocínios simplistas.

O mais curioso é que essa linha de pensamento acaba fomentando o obscurantismo, ao evitar a discussão de complexidades daquele momento histórico. Eles não entendem que não basta admitir a maldade intrínseca e a excepcionalidade do fenômeno nazista. É preciso também admitir que o nazismo foi maior que o Holocausto, e tentar compreender os mecanismos que levaram àquela atrocidade. Olhar o nazismo como um fenômeno extemporâneo e isolado é um equívoco.

O Oscar pode ser negado a Kate Winslet e a “O Leitor”, claro. Mas que seja pelos seus defeitos como atriz e filme ou pelo interesse da indústria cinematográfica americana, e não porque alguns bobos acreditam que o filme não é panfletário o suficiente.

Salman Rushdie, 20 anos depois

Tenho a impressão de que esse pessoal mais novo não sabe de verdade quem era o Aiatolá Khomeini.

Na minha época Khomeini estava nos jornais praticamente todos os dias. Era o equivalente ao Osama bin Laden de hoje. Foi o sujeito que derrubou Reza Pahlevi, que humilhou os Estados Unidos na crise diplomática com os reféns na embaixada americana em Teerã (e indiretamente ajudou a eleger Ronald Reagan presidente). Khomeini era o cão chupando manga. Sua imagem era a de um contraponto sombrio e quase diabólico a outro velho: de um lado, o simpático vovô atleta João Paulo II, trazendo um sopro de renovação à imagem da Igreja Católica; do outro, o Khomeini malvado de turbante, pregando a revolução islâmica e levando o Irã, antes tão ocidentalizado, a uma nova era de trevas. Pelo menos era essa a imagem que tínhamos dele.

Mas o mais importante, mesmo, é que ele era o homem que declarou uma fatwa contra Salman Rushdie.

Foi há 20 anos, completados no último sábado. Rushdie tinha acabado de lançar um livro polêmico, The Satanic Verses — que imediatamente ficou conhecido aqui, graças a uma imprensa pouco afeita a pequenos detalhes da língua do bardo, como “Os Versos Satânicos”. O aiatolá Khomeini achou o livro ofensivo à figura de Maomé e decretou uma sentença de morte sobre Rushdie. Essa foi a grande notícia internacional do início de 1989. Não houvesse a queda do muro de Berlim e a implosão dos regimes socialistas no Leste Europeu, no fim daquele ano, e talvez ela tivesse sido a grande notícia de 1989.

(Essa foi a grande sacanagem de Khomeini: lançar a fatwa e morrer logo depois. Fatwas só são revogáveis por quem a decretou. Embora já há mais de 10 anos o governo do Irã venha desencorajando o cumprimento da sentença, em tese Rushdie continua condenado à morte. Felizmente o tempo passa e juras enfraquecem; hoje, e já há algum tempo, o próprio Rushdie vive uma vida bem razoável, embora eu tenha a impressão de que ele ainda acorda com medo à noite.)

Aqueles eram os tempos de antes da Amazon e, no Brasil, nenhuma editora quis lançar o livro. Talvez por dificuldades na negociação dos direitos autorais; talvez por uma bem justificada cautela. A primeira edição brasileira só seria lançada, pela Companhia das Letras e com o título que já tinha sido consagrado pelo uso popular, aí pela metade dos anos 90, quando a comoção já tinha passado e ninguém mais levava a sério a fatwa de Khomeini — ou, melhor dizendo, ninguém mais achava que corria o risco de ir pelos ares pelo crime de editar um livro.

Mas uma editora portuguesa teve a coragem de lançar o livro no meio de todo esse furacão: a Publicações Dom Quixote lançou o livro no final de 1989, inclusive com uma sobrecapa igual à original inglesa. Sabe-se lá por que vias, essa edição chegou ao Brasil. Comprei a minha no final de 1990. Foi quando passei a ver o livro e Rushdie com outros olhos.

O principal problema do livro estava explícito já nas primeiras páginas: ele era realmente ofensivo. Deliberadamente ofensivo. Basicamente transformava um personagem que era indiscutivelmente inspirado em Maomé em um demônio, com pés de bode e tudo. Era ainda mais ofensivo quando lembramos que a edição portuguesa traduzia corretamente o título do livro: “Os Versículos Satânicos”.

Viver costuma ensinar algumas poucas lições realmente importantes. Uma delas é a de respeitar os valores do próximo, ao menos quando ele está próximo, e nunca cutucar onças com varas curtas. Rushdie sabia o que estava fazendo ao escrever aquele livro narrando a queda de Maomé. Não é como se um sujeito do interior da Paraíba xingasse o marido de Kadidja. Aquela era a sua cultura, ele sabia exatamente do que falava, e sabia ao que estava exposto.

É facil falar em liberdade de expressão e em valores ocidentais, quando se está no Ocidente. Essas garantias são tão inquestionáveis para nós que acabamos pensando que são universais. Eu posso xingar Jesus e o máximo que vou receber em troca serão reclamações e ofensas — no máximo uma excomunhão, que hoje em dia não vale absolutamente nada e poderia até ser ostentada como prêmio por alguns. Mas “Os Versículos Satânicos” não está inserido nesse contexto isolado, e por isso ofender deliberadamente um povo que é, digamos, bastante suscetível a palavras ditas por ocidentais é não ter aprendido a lição da vara curta. Talvez não seja exagero achar que o Alex concordaria comigo: quem sabe da ofensa é o ofendido.

Não é que Rushdie merecesse a fatwa, ou que nós, ocidentais, não tivéssemos o dever de defendê-lo. Mas ele sabia com o que estava brincando, e isso deve ser sempre levado em consideração.

Toda a polêmica, toda a indignação, no entanto, deixaram de lado um detalhe importante: ninguém dizia se o livro era bom ou ruim. Até porque a qualidade do livro não parecia importar àquela altura. E é por isso que eu devo muito a “Os Versículos Satânicos” e a Salman Rushdie.

O livro era ruim.

Até uma bela noite do início de 1991, eu tinha um comportamento um tanto calvinista calvinista em relação à leitura. Se tinha comprado um livro, eu deveria chegar até o final, não importava se fosse bom ou ruim. Nem sempre eu conseguia, claro; mas quando era forçado a abandonar um livro, eu o fazia com uma sensação de culpa e de fracasso.

“Os Versículos Satânicos” foi o primeiro livro que joguei de lado com convicção e com a alma leve. Foi com esforço que superei as primeiras 100 páginas; mas o esforço, depois que desisti do livro, valeu a pena. Aquela seria a primeira vez em que eu disse para mim mesmo “Eu não vou ler esta merda”, e não me senti mal por isso — pelo contrário, me senti aliviado, livre de um peso que, a cada página, se tornava cada vez maior.

De vez em quando penso em retomar “Os Versículos Satânicos”. Ele coleciona tantos elogios por aí que de vez em quando me pego admitindo a possibilidade de que eu é que não consegui ver as qualidades do livro, ou que a tradução portuguesa me causou alguma estranheza. Mais de 18 anos depois, talvez eu conseguisse ver o que tanta gente parece ver no livro: as qualidades de um grande escritor. Mas quando penso nisso, é por pouco tempo: porque o que devo a Rushdie é muito maior que isso: é o desenvolvimento de uma capacidade que até então eu não tinha. E isso vale mais que um livro provocador e mal intencionado.

Novamente o cinema brasileiro

A lista de 10 melhores filmes de Moniz Vianna publicada pelo André Setaro, crítico baiano de cinema, me fez perceber uma coisa: Moniz Vianna, assim como eu e o Bia, também não via lá grandes coisas em “Limite”, de Mário Peixoto Humberto Mauro.

Aproveitei para passar os olhos nos comentários ao post dos 25 melhores filmes por mim e pelo Bia, e uma coisa me impressionou, acima de todas as outras: a seriedade e a bile com que um bocado de gente comentou sobre o cinema brasileiro. Para muitos, o fato de eu ou o Bia não gostarmos de um ou outro filme é considerado uma ofensa grave que merece uma resposta malcriada à altura. Se eu tivesse xingado suas genitoras, aquelas senhoras de libada reputação, provavelmente não teria recebido respostas tão irritadas.

Mas vamos ser francos: o cinema brasileiro é inferior a outras cinematografias, como a americana. Sempre foi. 90% dos filmes incluídos nas listas de filmes brasileiros jamais conseguiriam entrar numa lista universal, que abrangesse cinematografias mais maduras como a americana, a italiana e a francesa. A gente já olha para os filmes brasileiros com um pedido de desculpas e uma mãozinha condescendente na cabeça.

No início do século, quando o cinema iraniano entrou na moda, eu ficava impressionado como as pessoas tomavam o “choque” causado pelo contato com uma cultura diferente por sinônimo de qualidade cinematográfica. O cinema iraniano então adquiriu um status maior que o merecido. Não que fosse ruim; mas os critérios que baseavam esse entusiasmo eram basicamente sociológicos, não cinematográficos.

De certa forma, acontece o mesmo com o cinema brasileiro. O critério que normalmente se usa para julgá-lo é subjetivo e condescendente. Um olhar que se esforce para ser objetivo vai ver um bocado de falhas em absolutamente todos os filmes brasileiros. “O Cangaceiro”, por exemplo, tem diálogos que parecem tirados de um poeta barroco ruim. “Cidade de Deus” tem uma narração em off que beira o amadorismo. A lista pode seguir ad infinitum.

Eu sempre achei que país pobre tem a tendência a estabelecer uma espécie de estética da pobreza. É praticamente uma questão de sobrevivência, e absolutamente louvável. Mas assim que o país sai do barraco e se muda para um dois quartos na Barata Ribeiro esquece isso; basta ver a evolução estética de um Visconti, por exemplo. Isso, no entanto, aconteceu conosco em aparentemente muito menor medida. E continuamos a sobrevalorizar em excesso aspectos que são importantes, mas que não são únicos e que, do ponto de vista da produção em si, não são sequer essenciais.

Sob esse aspecto, a ideologia cinemanovista de “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão” — que não define o Cinema Novo, claro, mas que acabou se tornando a égide sob a qual o movimento se desenvolveu — foi uma das coisas mais deletérias que poderiam ter acontecido ao cinema brasileiro. A idéia de que cinema tecnicamente bem feito era uma coisa burguesa e dispensável era, desde o início, perniciosa. “Terra em Transe” é o melhor filme brasileiro, como acham alguns? Pode até ser. Mas que ninguém venha me dizer que o filme não se beneficiaria de uma produção mais esmerada. Locações. Cenários. Figurinos. Sonoplastia. Nada disso é supérfluo. Uma coisa é fazer Dogville em um cenário inexistente para defender um conceito; outra é enfiar um país inteiro, ainda que metaforicamente, em uma casa porque não se tem dinheiro para recriá-lo.

Também seria importante lembrar a decadência técnica do cinema brasileiro a partir dos anos 60. O Cinema Novo foi conseqüência e, de certa forma e em menor grau, causa dessa decadência. Mas cinema não é literatura e não é teatro. Precisa, sim, de certas condições de produção. O Cinema Novo e outros subverteram esse preceito por necessidade, porque ignorá-lo era a única maneira de se fazer cinema nas condições impostas. Mas ao teorizar sobre isso, numa tentativa talvez necessária de legitimação, criou uma certa escola de pensamento que é, definitivamente, um passo atrás. O cinema tradicional americano sempre deu o valor devido a esses critérios de produção (e em temos de indigência criativa tenta transformá-lo no único valor válido, uma espécie de inversão dos valores do Cinema Novo e igualmente nociva), e a indústria que criou, apesar dos bichos-grilos que ficam procurando um filme obscuro da Chechênia para aclamar como a nova obra-prima da sétima arte, continua fazendo na média o melhor cinema do planeta.

***

E tem os comentários sobre a lista propriamente ditos.

Acima de tudo, eu e o Bia tentamos ficar o mais longe possível daquelas “listas cabeça” que sempre foram o mainstream do cinema brasileiro. A razão é simples: essa mentalidade, conjugada à ação da Embrafilme, arruinou o nosso cinema. Tornaram-no coisa de certa elite cultural dirigida a si mesma, utilizando seus próprios códigos e conceitos, e cinema não pode existir dessa forma; acima de tudo, precisa ser popular. Porque é indústria e precisa de dinheiro para ser feito, e esse dinheiro só aparece se houver público. Os fãs do Cinema Novo que me perdoem, mas “Central do Brasil”, “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite” fizeram mais pela indústria cinematográfica brasileira do que dois Glaubers, sete Sganzerlas e quatro Reichenbachs juntos.

Muita gente lembrou de bons filmes que não entraram na lista, por uma ou outra razão. “Eles Não Usam Black-Tie”, “O Homem da Capa Preta”, os filmes do Person, etc. Tem o Andrea Tonacci de quem tanta gente lembra e sobre quem confesso a minha total ignorância. Uma lista não pode contemplar todos os filmes, claro, e tenta buscar uma média aceitável. Elas são feitas para isso mesmo, para excluir.

Mas entre os bons filmes brasileiros não estão incluídos, por exemplo, “Carlota Joaquina”. Me desculpem, mas “Carlota Joaquina” é um filme horrível, muito inferior ao seu roteiro — que já não é exatamente genial. Seu valor é meramente histórico; e ainda assim pode-se argumentar que vale menos que o chatíssimo “O Quatrilho”, que ao concorrer ao Oscar representou para o cinema brasileiro o que a Copa de 1938 foi para o nosso futebol.

“Auto da Compadecida” não é um grande filme. É acima de tudo uma grande peça de teatro, que deu origem a uma grande minissérie de TV. O filme é pouco mais que uma versão resumida, sem toda a força do que foi ao ar na TV. Já “Olga” é apenas TV filmada, nada mais que isso — o que vale para praticamente todos os filmes feitos por diretores egressos da TV. Cinema e televisão têm linguagens diferentes, e aquela não era uma lista de ficção para TV — se fosse, eu incluiria “Hoje é Dia de Maria”, mais inventiva que esses dois exemplos aí.

E tem também o pessoal que sentiu falta da pornochanchada.

Pessoalmente, tenho um grande apego à pornochanchada. É um apego quase tão grande quanto o do Ina. A pornochanchada é, para mim, o melhor retrato dos anos 70. Eu consigo me enxergar nesses filmes — é o único momento em que consigo ver imagens em movimento de uma época que, afinal de contas, eu vivi. Em “Essa Gostosa Brincadeira a Dois”, por exemplo, eu não apenas revejo uma Bahia e um tempo que não existem mais; eu sei também a quem pertencia um dos carros usados ali.

Além disso, a pornochanchada atingia o que deveria ser o objetivo básico de qualquer filme: ser visto. A dicotomia que se criou na época entre “cinema de qualidade” e “cinema comercial” foi ruim e desnecessária. Mas acima de tudo acho que a pornochanchada é a melhor herdeira do espírito das chanchadas, que foram tão esculhambadas em seu tempo e posteriormente adquiriram status de quase arte — o enfoque em um aspecto fundamental da alma brasileira, a brejeirice, a cordialidade mal-entendida de Sérgio Buarque de Holanda. Sob esse ponto de vista, é um cinema mais brasileiro do que muita coisa que se fez por aí — “O Quatrilho”, por exemplo, poderia ser ambientado em absolutamente qualquer lugar do mundo sem nenhum prejuízo de sua estrutura narrativa.

Mas infelizmente não há uma única pornochanchada que possa ser considerada bom cinema, se formos avaliar todos os critérios necessários. Talvez alguns deles, se refilmados hoje, dessem filmes razoáveis. Mas dificilmente resultariam em obras primas.

O Jurandir lembrou de “Oh! Rebuceteio”. É uma grande lembrança. Eu já tinha escrito sobre o filme, mas acima de tudo, não o considero um filme pornô. No máximo, é uma “meta-pornochanchada”, se esse termo existe. Eu gosto. Mas eu, como o Bia, gosto de umas coisinhas bem esquisitas. E nem por isso tento convencer as pessoas de que elas são grande sobras de arte.

Benjamin Button, Despereaux e o estranho estado das coisas cinematográficas

Há algo de estranho na crítica cinematográfica, e essa estranheza pode ser percebida quando alguém se debruça sobre a recepção dada a dois filmes diferentes que ainda estão em cartaz, “O Estranho Caso de Benjamin Buttom” e “O Corajoso Ratinho Despereaux”.

“O Estranho Caso de Benjamin Button” é um filme medíocre e sem imaginação. É “Grandes Esperanças” estrelada por Forrest Gump. Não Tom Hanks; Forrest Gump, mesmo, o personagem idiota.

Inspirado em um conto mediano de Fitzgerald com cerca de 20 páginas, o filme dirigido por David Fincher (bom diretor de alguns excelentes filmes, como Se7en e “Clube da Luta”) só traz do original a idéia de um homem que nasce velho e morre criança, e mais nada. O resto é uma coletânea frouxamente amarrada da experiência de 100 anos de clichês cinematográficos em filmes para pessoas que choram fácil no cinema. Mesmo isso talvez já seja demais: em nenhum momento há um mínimo de possibilidade de identificação com a situação do personagem vivido inexpressivamente por Brad Pitt; nem sequer um olhar surpreso pelas situações que a a inversão da ordem das coisas pode causar.

O conto original não é um dos melhores de Fitzgerald. Na introdução a ele em The Short Stories of F. Scott Fitzgerald, Albert Bruccoli lembra que Fitzgerald encontrou dificuldades para vendê-lo. Inspirado por Mark Twain, Fitzgerald não conseguiu ir além do óbvio, e o conto acaba sendo simplista em excesso. Mas ainda assim é uma obra superior ao filme que inspirou — e, o que é melhor, bem mais curta. Enquanto Fitzgerald usava a parábola do “homem ao contrário” para fazer algumas observações sobre a sociedade americana e suas expectativas acerca de seus membros, e não atingia seu intento, Fincher consegue fracassar de maneira muito mais retumbante, e gasta quase três horas falando sobre nada. Não se aprofunda nas perguntas sobre a sociedade que o tema levanta; mas tampouco consegue mostrar quem é Benjamim Button, intepretado de maneira particularmente ruim por Brad Pitt. Benjamin Button passa pela vida como Forrest Gump, com a diferença de não ter alterações no QI ou comportamento aos 70 ou aos 15 anos. Fincher não tem imaginação, e não parece ter percebido as possibilidades que tinha em sua mão. O resultado é um filme vazio cujos melhores momentos são propiciados por um velho que conta, ao longo do filme, que foi atingido sete vezes por raios — provavelmente porque essas cenas têm tão pouco a ver com o filme que nos oferece um merecido alívio daquela modorra sub-dickensiana que são os encontros e desencontros de Brad Pitt e Cate Blanchett.

“Benjamin Button” é um filme ruim, falso, em que não shá verdade. Poderia ter sido uma boa comédia besteirol, dessas dirigidas pelos irmãos Farrelly; e Fitzgerald percebeu esse potencial, dando-lhe um tom de farsa que está ausente no filme. Fincher não percebeu que o único caminho para o absurdo seria a comédia, ainda que narrada seriamente, e realizou uma bomba de um sentimentalismo manufaturado e artificial.

Mas mesmo sendo um filme tão ruim, “Benjamin Button” vem colecionando críticas elogiosas por onde quer que passe. Um bocado de indicações ao Oscar, que é no mínimo um bom termômetro da indústria cinematográfica americana. Elogios de muita gente.

Então tá.

Do outro lado, há “O Corajoso Ratinho Despereaux”, desenho animado da Universal que está sendo exibido sob uma acolhida morna da crítica. Morna porque ela está mais preocupada em louvar as qualidades de outros dois desenhos deste último ano: “WALL-E“, da Pixar, e “Bolt”, da Disney.

“WALL-E” foi aclamado ano passado como uma obra-prima. É um excelente desenho, é verdade; mas jamais uma obra-prima. É apenas mais um, como os tantos que saem a cada temporada de férias. A Pixar, assim como sua co-irmã Apple de Steve Jobs, parece trabalhar sob um signo de infalibilidade presumida. Não há um novo lançamento seu, por medíocre que seja, que não seja objeto de elogios hiperbólicos da crítica. No entanto, se formos olhar para os desenhos que fizeram realmente diferença nesta década, veremos que não saíram de seus computadores, como “Shrek” — com a exceção provável de “Os Incríveis”, que na época chamei de “o melhor desenho infantil feito para adultos da história”.

Já “Bolt” só pode ser elogiado a partir da admissão de que a máquina de publicidade da Disney ainda funciona. Não é tão ruim quanto um “Bee Movie” ou um “Encantada”, mas está longe de ser realmente brilhante. É apenas mais um desenho animado que absorve alguns dos novos clichês do gênero — e aí, sim, pode-se dar à Pixar o seu merecido crédito por definir o novo padrão: “Bolt” deve muito a “Os Incríveis”. No entanto a crítica já viu nele o “renascimento da Disney”. Viu demais. Bolt se enquadra na mesma categoria de “Irmão Urso” ou “Nem que a Vaca Tussa”: filmes com um bom padrão de qualidade mas que acrescentam pouco ou nada.

Enquanto isso relegam “O Corajoso Ratinho Despereaux” a a um papel menor e injusto. É um crime. “Despereaux” é o primeiro desenho animado em quase 15 anos a conseguir resgatar a magia que um dia foi o playground dos desenhos animados da Disney. Há uma veracidade de conto de fadas, uma pureza narrativa, um respeito a valores universais que esão ausentes de virtualmente todos os desenhos dos últimos tempos. “Despereaux” tem elementos plásticos eventualmente brilhantes, como o estilo medieval de desenho utilizado em vários personagens, mesclados de maneira sutil com traços que remetem aos bons tempos dos Estúdios Walt Disney.

Walt Disney, o homem que criou todo um gênero — o longa metragem infantil de animação –, teria orgulho de um filme como “Despereaux”.

As reações distintas a “Benjamin Button” e a “Despereaux” mostram o estado pífio a que a nossa crítica chegou. Hoje parece pouco mais que a compilação dos releases dos estúdios. Não deve ser à toa que, na semana passada, morreu o último grande crítico brasileiro de cinema. Moniz Vianna morreu porque deve ter percebido que, dentro do estado caótico da crítica de cinema, já não fazia mais sentido.

Beatlegs

Decca Tapes, o pirata primordialA minha primeira bíblia sobre os Beatles foi a revista Beatles Documento (ou Documento Beatles), uma edição especial da revista Somtrês escrita pelo Marco Antonio Mallagoli, do fã clube Revolution. Era 1985, uma época em que informação era difícil de achar. Minha primeira cópia se desfez de tanto uso, e comprei outra. Depois eu veria que tem muita informação errada ali. Muita, mesmo, além de opiniões bastante descartáveis. Mas independente disso, foi a revista responsável por eu querer entender um pouco mais sobre a banda. A Beatles Documento foi inestimável.

Ela foi também minha introdução na pirataria. Uma seção da revista fazia uma boa lista de discos piratas. De repente, eu ficava sabendo que além das músicas que eu já sabia que existiam — eu ainda não tinha ouvido todas — havia também uma infinidade de outras que não estavam facilmente disponíveis. Foi lá que fiquei sabendo do The Decca Tapes, o primeiro álbum pirata que comprei na minha vida, ainda naquele ano, e de tantos outros. As imagens que acompanham este post são de discos mencionados naquela revista.

Pirataria dos Beatles é coisa de fã, mesmo. A maior parte é simplesmente ruim. Não é algo que interesse realmente a ninguém, porque são geralmente canções descartadas ou incompletas. Mas mesmo levando isso em consideração, pirataria já foi mais interessante. Até há 15 anos, uma boa porção de material inédito bastante interessante era encontrado apenas em discos piratas. A Apple contornou esse problema lançando o Live at the BBC em 1994, e nos anos seguintes a série Anthology, com um montão de sobras de estúdio e algumas gravações ao vivo. Com isso, eliminaram boa parte dos atrativos desses discos. Pirataria é para completistas que se dão ao trabalho de tentar escutar tudo que a banda fez. Ou seja: para bobos.

O conselho que dou para qualquer pessoa que queira escutar isso é: não perca seu tempo. O que fez dos Beatles uma grande banda não foi o material que descartaram por considerarem ruim; é o que está nos discos lançados entre 1962 e 1970. Mas o mundo também tem lugar para malucos como eu. Então aqui vai uma breve introdução para aqueles que querem conhecer um pouco mais sobre pirataria.

Durante muito tempo, esses discos foram lançados por “selos” tão verdadeiros quanto uma nota de 3 reais. Alguns, como a Yellow Dog, Audifön, Vigotone e Great Dane se notabilizaram pela alta qualidade dos seus lançamentos. Mas até há alguns anos era extremamente difícil achar discos piratas — e quando se achava, eles eram caríssimos. A coisa melhorou muito com o surgimento do CD. Mas a grande virada, mesmo, foi a consolidação da internet como canal de distribuição. Foi quando surgiu a Purple Chick.

A Purple Chick é, provavelmente, um grupo de fãs (ou um louco só) que está realizando compilações quase perfeitas e abrangentes de todo esse material disponível e distribuindo-as gratuitamente na internet. Hoje, Purple Chick é, se me permite o paradoxo, garantia de qualidade em gravações de má qualidade.

Basicamente, os discos piratas dos Beatles vêm de seis fontes distintas: gravações caseiras, gravações de programas de rádio na BBC, shows ao vivo, outtakes das sessões de estúdio, e as sessões de gravações do Get Back/Let it Be, como o show no telhado da Apple, que na última sexta completou 40 anos.

Decca Tapes
É o meu preferido, e o único que tenho em vinil. É a gravação da audição dos Beatles na Decca, aquela que fez o diretor da gravadora, Dick Rowe, dispensá-los e dizer que “bandas de guitarra estão fora de moda”, para seu eterno arrependimento. É um bom disco. As gravações são encontradas em vários outros, hoje em dia, mas esse é o original. É um clássico absoluto.

Demos
Demos é como são chamadas as gravações caseiras feitas para não esquecer uma música que acabaram de compor ou para mostrar aos outros membros da banda. Antigamente elas estavam espalhadas por vários discos diferentes, em coletâneas como a série Artifacts, mas hoje há uma série chamada The Complete Home Recordings, que abrange desde as primeiras gravações, ainda com Stuart Sutcliffe, até o final. A maior parte é chata de doer, mas aqui e ali uma ou outra canção se sobressai. Serve também para entender que, na época do “Álbum Branco”, as canções já eram apresentadas ao resto da banda praticamente em sua forma final.

BBC
Foi uma das grandes fontes de pirataria dos Beatles durante muito tempo. Nos seus shows na BBC, eles tocavam músicas inéditas — são dezenas delas –, brincavam, etc. Durante muito tempo a melhor compilação desses shows foi o The Complete BBC Sessions; hoje, se alguém quer a mais completa, deve procurar pela edição com mesmo nome da Purple Chick. Está tudo ali. É a melhor de todas. Mas o fato é que mesmo para fãs o disco oficial Live at the BBC é mais que suficiente. Com algumas poucas exceções, praticamente tudo o que os Beatles gravaram de interessante na BBC está lá. O resto é redundante.

Shows
Os dois únicos discos ao vivo oficiais dos Beatles foram lançados 7 anos depois do fim da banda. O Live at Hollywood Bowl, uma mixagem de pedaços dos shows de 1964 e 1965, ainda não foi lançado em CD, e o The Beatles Live! At Star Club, Hamburg 1962 sempre enfrentou problemas legais, já que nunca foi autorizado pela banda. (Em 1998 eles finalmente venceram um processo judicial para tirá-lo de catálogo, e hoje é um disco pirata. Mas é brilhante. Serve, quando menos, para mostrar que os Beatles eram uma grande banda de rock and roll e que eram extremamente empolgantes ao vivo, antes da rotina dos shows da beatlemania.) A maioria dos discos de shows têm qualidade de som muito ruim, servindo principalmente como registro histórico. Mas há exceções. O Shea Stadium é o maior show da história dos Beatles (embora tenha sido “aperfeiçoado” em estúdio algumas semanas depois), e o primeiro mega-show da história. No Live in Atlanta, 1965, você pode ouvir Lennon esnobando a sua audiência, que obviamente não podia ouvir nada por causa dos seus próprios gritos. O Five Nights at a Judo Arena, dos shows japoneses da última turnê dos Beatles, tem som excelente mas mostra uma banda que já não faz o mínimo esforço em tocar sequer afinada. E finalmente há o Candlestick Park, o último show ao vivo dos Beatles, em São Francisco (e melhor que os outros shows dessa turnê).

Out-takes
Ah, qualquer um. Tem um monte por aí. A maior parte é deprimente — mixagens da sala de controle, essas coisas. Com raras exceções, são todas inferiores ao que foi liberado. Não valem a pena. Há uma série chamada “The Alternate…” (The Alternate Help, The Alternate Rubber Soul, etc.) que faz um bom resumo do que foram as sessões de gravação de cada um desses discos, e se você quer se aventurar por esse pântano, são os mais recomendáveis. Costumam ser os discos com melhor qualidade de som — afinal, foram tirados diretamente do estúdio. E sempre se pode achar uma ou outra coisa realmente interessante nelas, uma versão esquisita de alguma canção, coisas desse tipo.

Let it Be
Essa é a outra grande fonte da pirataria. Afinal, foram mais de 90 horas de gravações. Há coisas inacreditáveis ali. Acho que chegam a centenas de canções diferentes. A série Thirty Days é clássica, e foi durante muito tempo a mais completa. Mas recentemente a Purple Chick lançou a série A-B Road, baseada nas fitas do filme — um “álbum” para para cada dia, com mais de 90 faixas em cada. Nos dois casos, a verdade é que qualquer ouvinte ficaria perdido entre tantas gravações dispensáveis, redundantes ou ruins. Diálogos, afinação, falsos começos, gravações sem absolutamente nenhum interesse — é uma infinidade de bobagens que não interessa a ninguém, além de colecionadores hardcore. É por isso que eu recomendaria os 3 discos de The River Rhine Tapes. Uma excelente seleção do que saiu de melhor daquelas sessões — John cantando Get Back, Maxwell’s Silver Hammer, Something e I’ve Got a Feeling, por exemplo, as melhores versões de Two of Us, e muito mais — com qualidade de som muito boa. É definitivamente melhor que o Anthology III.

Um adeus a John Updike

E o John Updike morreu.

Os jornais americanos estão repletos de elogios ao finado. “O escritor do sexo e do subúrbio”, diz um deles, e talvez seja essa a imagem que vai ficar do sujeito enquanto se lembrarem dele. Talvez não seja muito tempo.

Para mim Updike não significava muita coisa. Não gostava dele como ficcionista, e não conheço sua poesia. Eu o considerava uma espécie de John Cheever com menos talento, um escritor um tanto limitado com suas historinhas sobre a classe média alta do nordeste dos Estados Unidos. No entanto, os obituários o colocam no nível de um Norman Mailer e de outro cujo nome agora me escapa. Talvez ele fosse realmente tudo isso, e talvez eu esteja errado. Não me importo. Curiosamente, não falam do resenhista, e essa era a única qualidade que eu admirava dele. Sempre achei suas resenhas brilhantes, e sempre achei que esse era o seu maior talento: escrever com graça e elegância sobre as obras dos outros — às vezes com mais graça que o autor original.

Me bati com o sujeito uma vez, em Veneza, coisa de 10 anos atrás. Para mim, na verdade, não interessa se ele era um escritor bom ou ruim, porque é a lembrança desse dia que vai ficar dele em mim. Já escrevi sobre isso neste blog, mas agora escrevo de novo, porque um escritor com tamanho reconhecimento público como John Updike merece um obituário à sua altura.

Eu tinha perdido o avião em Roma. Embarquei algumas horas depois, mas o pessoal que deveria me receber, obviamente, já tinha ido embora. E foi então que cometi a minha grande estupidez.

Ao sair do aeroporto, eu poderia ter olhado em duas direções. Se olhasse para a esquerda, veria atracadas ali perto as lanchas que me levariam diretamente à porta dos fundos do hotel em que eu ficaria. Mas não, olhei para a direita, e vi um ponto de táxi. Claro que não sei por que não me perguntei como um automóvel iria me levar até Veneza. E não aceito que me façam essa pergunta, porque ela me envergonha ainda mais.

Lá fomos nós. Entramos no táxi e depois de um longo caminho pelo que pareceram ser todos os grotões da Itália ele nos deixou em um ponto de vaporetto. Ainda tivemos que fazer uma baldeação em uma estação no Grande Canal, e outro vaporetto nos deixaria diante de um longo beco pelo qual se chegava ao Campo Santa Maria del Giglio, onde fica o hotel onde nos hospedaríamos.

Foi naquela baldeação. Eu estava em pé, carregando uma porção de malas. Aquele brejo infindável, um frio de cortar os ossos — era abril e Veneza é mais fria aí pelos fins de março, talvez por causa das águas —, e eu carregando uma porção de malas. Minhas mãos estavam vermelhas, porque elas nasceram para fazer carinhos e digitar em um teclado de computador ou de máquinas de escrever, no máximo para ser erguido, dedo médio em riste, em direção a alguém de quem eu não goste. Eu não sou do tipo que nasceu para carregar malas. Não é que tal empreitada esteja acima ou abaixo de mim; é que essas coisas simplesmente não deveriam fazer parte do meu mundo. Na verdade, não sou sequer do tipo que deva ser incomodado com o destino delas; malas, para mim, deveriam ser coisas autônomas que se encaminhariam diretamente ao seu destino, bem-adestradas como os yorkshires das madames de Copacabana.

Obviamente nada disso importava naquele momento. Minhas mãos doíam por causa das malas. Ao meu lado, minha então mulher, visivelmente grávida e cansada. Olhamos em volta para ver se havia um lugar em que ela pudesse se sentar enquanto o vaporetto não chegava. Os lugares estavam ocupados. E em um deles, sentado com aquele ar fleumático de quem está muito à vontade em seu lugar, estava o tal John Updike. À vontade como maganão de historinha de Joaquim Manuel de Macedo, alheio ao drama de dois pobres brasileiros e às mais básicas regras da etiqueta. Ao seu lado, também sentada, estava uma mulher. Ela também era feia. Não tão feia quanto ele, porque isso era uma tarefa difícil, mas ainda assim muito feia.

De qualquer forma, mesmo feios eles estavam sentados, enquanto eu em pé carregava uma porção de malas e ao meu lado estava uma mulher grávida.

Há um mínimo de regras de educação que as pessoas devem seguir em público, não importa que em casa arrotem e peidem e comam com as mãos. Uma delas diz respeito ao hábito saudável e gentil de ceder o seu lugar a uma mulher grávida. Porque isso é até mais que etiqueta, é um símbolo de respeito à vida e à preservação da espécie. John Updike não era um homem educado, no entanto. Continuou sentado, rindo com o bacurau ao seu lado.

E nessas horas você começa a nutrir e cultivar um sentimento pouco nobre de indignação e revolta, cuida dele com carinho e zelo como se cuida de um bebê. Mesmo que ele fosse o escritor que eu nunca achei que fosse, ainda assim teria a obrigação moral de ceder seu lugar a uma mulher grávida — e ela sentaria ali, bela ao lado da trupizomba de meia-idade que o acompanhava; e se ele fosse mesmo bom escritor poderia refletir sobre como são as coisas neste mundo: por exemplo, que ele estivera confortavelmente sentado até então, mas estivera sentado ao lado de uma espanta-mosquitos, enquanto o pobre paraíba aqui podia até estar com as mãos esfoladas pelas malas que carregava, mas naquela noite iria dormir ao lado de uma mulher bonita enquanto ele, com aquele jeito de quem estava tão mais à vontade do que eu, ciente de ocupar o seu lugar justo no mundo, teria que se contentar com aquela coisinha do Cão vadiar. Seria uma reflexão importante e luminosa sobre a natureza vã das coisas neste mundo. Mas como eu disse, Updike não era um escritor tão bom assim.

O vaporetto chegou e fomos embora — em pé, novamente; eu só sentaria no meu quarto de hotel. Mas aquele escritor mal-educado não saía de minha mente.

Mais tarde eu teria uma vingança solitária que é um retrato mais que acurado da pequenez de minh’alma, ao lembrar que ele tinha psoríase e eu não, e não importava o quão mais à vontade ele parecesse estar naquela estação do Grande Canal. Um pensamento mesquinho, eu sei bem, mas mesmo tantos anos depois — o tempo passou, Veneza passou, a mulher passou — ainda acho um pensamento menos mofino que a recusa do sujeito em ceder o seu lugar a uma mulher grávida.

Isso foi há mais de dez anos. Agora Updike está morto. Que descanse em paz. E escrevo isso com sinceridade e com profunda paz de espírito. Porque agora tenho mais um motivo para olhar de cima para ele e reconhecer que o destino me compensou aquela pequena provação — ele está morto e eu estou vivo, e não existe consolo melhor que esse neste mundo tão grande de meu Deus.

Ainda sobre o faroeste e sobre a ficção científica

Nos comentários à lista dos melhores westerns, o Roberto Procópio fez um comentário curioso:

acho que o espírito por detrás do western acabou quando começou a conquista do espaço, a nova fronteira, já que, comparativamente, não tinha mais sentido de valor a conquista de territórios na terra vis-à-vis a conquista espacial ou mesmo a inquitação com o futuro. Quem trocaria uma pela outra? Provavelmente o sentido de busca por alguma coisa desconhecida que o western propiciava deve ter sido descarregada em filmes como Aliens, ET, Jornada nas Estrelas, O Exterminador do Futuro, Planeta dos Macacos,etc. Ou seja, a conquista espacial e o próprio futuro forneceram material para a imaginação da indústria cinematográfica.

Um pouco depois, o André Egg fez outro bom comentário em alguns aspectos semelhante. Embora sob ângulos diferentes, os dois relacionavam o fim do faroeste à corrida espacial.

A princípio fiquei encantado com o argumento do Roberto, porque ele tem uma poesia que me fascina: a idéia da sucessão de tempos e de gêneros, do faroeste passando o cetro para a ficção científica. Mas pensando mais sobre o assunto, passei a achar que talvez não seja isso, por algumas razões.

Em que pese H. G. Wells, ou eventos como a transmissão da versão de Orson Welles de “A Guerra dos Mundos”, eu sempre tive a impressão de que os principais responsáveis pela introdução da ficção científica no mainstream da produção cinematográfica americana foram a Feira Mundial de 1939 e a explosão da bomba atômica.

É difícil hoje aquilatar a importância da Feira Mundial em sua época. Seu impacto no cotidiano de Nova York está bem representada num bom livro de E. L. Doctorow, “A Grande Feira”. Mas muito mais importante que isso foi o seu papel na definição de uma imagem clara de futuro para toda a nação. Alguém já disse que aquele foi o último momento de fé absoluta da humanidade na tecnologia. As visões de futuro apresentadas ali (pode-se ver um dos seus últimos vestígios no primeiro “Homens de Preto”), devidamente popularizadas pela comunicação de massas, foram fundamentais na formatação do imaginário americano — e conseqüentemente mundial — acerca do que deveria ser o futuro, de robôs a espaçonaves. O mundo saía da Grande Depressão, Hitler ainda não havia invadido a Polônia e o futuro se apresentava maravilhoso.

Seis anos depois, o futuro e a tecnologia apresentariam outra face, menos agradável: o surgimento das bombas voadoras V-2 e da bomba atômica mostrou que nem sempre a tecnologia vem para melhorar a vida das pessoas. Além disso, em 1947 começou a febre dos objetos voadores não-identificados — e embora mundos extraterrenos e misturas insalubres de urânio e plutônio não pareçam, a princípio, complementares, são algo intimamente ligado à percepção de um mundo gigantesco de possibilidades abertas pela fissão do átomo. Essa sensação é definida com perfeição em “O Incrível Homem que Encolheu”, de 1957: a de que confrontado com esses novos desafios, o homem se tornava cada vez menor.

Mais do que a idéia de conquista de uma nova fronteira, essa dualidade entre bom e mau tornou, para aquela época, o espaço algo fascinante. Finalmente, a era espantosa de prosperidade vivida pelos Estados Unidos nos anos 50, a sensação de que a maior potência do mundo capitalista tudo podia e estava destinada a definir o futuro, tornavam mais próxima a noção do espaço. Além disso, os anos 50 pareciam estar a caminho de materializar as visões de futuro que tinham se cristalizado nas crianças dos anos 30. Era quase uma certeza, para muita gente, que era daquele jeito prateado, espacial, nuclear que seria a nossa vida no ano 2000. Tudo isso junto fez com que o espaço e viagens planetárias se tornassem algo em que as pessoas pensavam, e esse novo nicho foi devidamente aproveitado por Hollywood. Isso deu coisas boas e ruins — basta lembrar de bisonhices como Plan 9 From Outer Space, de 1959.

(Vale a pena olhar esta galeria de telas de aberturas de filmes B. Os títulos são deliciosos — Devil Girl From Mars e Fire Maidens of Outer Space são apenas alguns deles. Além disso, mostram que foi nos anos 50 que o gênero desbundou totalmente.)

Tudo isso enquanto John Wayne enchia índios de bala. O auge comercial dos dois gêneros foi justamente os anos 50, simultaneamente. Naquela década, e no começo dos anos 60, meninos brincavam com pistolas espaciais de raios laser tanto quanto brincavam revólveres de espoleta.

Mas além dessa simultaneidade, há outra razão para que eu não concorde com essa idéia de “sucessão”. Não existiu, em nenhum momento, um antagonismo entre eles. Não são fronteiras que se sobrepõem. O faroeste reinventa um passado conhecido, enquanto a ficção científica olha para o futuro imaginado, e essas percepções podem conviver sem problemas.

O importante, aqui, talvez não seja tanto a conquista da fronteira, a verdadeira essência do faroeste. É, de um lado, a sedimentação da história americana, contada sob um prisma que mistura heroísmo, violência e um bocado de mentira. Do outro, sim — “o sentido de busca por alguma coisa desconhecida”, como disse perfeitamente o Roberto. Quando o cinema apareceu a grande marcha para o oeste já tinha acabado. A fronteira estava conquistada — e a cidade que se especializou naquela nova indústria estava justamente à beira do Pacífico.

O faroeste caiu em desuso, digamos assim, não porque a Apollo XI chegou à lua ou porque os russos lançaram o Sputnik. Acabou porque foi ordenhado até a exaustão. Porque nos anos 50 as pessoas cansaram de tantos westerns, sempre com a mesma estrutura narrativa e, principalmente, moral; as pessoas simplesmente cansaram — quem ainda agüentava ver Glenn Ford fazendo sempre o mesmo papel, ou mesmo Audie Murphy? No fim das contas, foram feitos tantos westerns, bons e medíocres, que o gênero simplesmente saturou o público e foi obrigado a migrar para a televisão, encontrando uma sobrevida em seriados como “Bonanza”, “O Homem de Virgínia” e “Chaparral” nos anos 60. Novas idéias (sem contar Sam Peckimpah, que é mais estilo do que realmente um novo olhar) teriam que vir de outro lugar. Vieram da Itália.

Basicamente, o faroeste não morreu porque um novo rei tomou o seu lugar. Ele morreu sozinho no seu canto, velho e esclerosado, lembrando de glórias passadas. Assim como a ficção científica acabou perdendo vapor porque, afinal de contas, aquele futuro demorava muito a chegar.

Estamos bem mesmo sem você

Ultimamente, ir ao cinema tem sido basicamente uma boa experiência de lazer. Filmes no máximo razoáveis se sucedem, precedidos por elogios hiperbólicos da crítica que parecem emergir de um grande lago de baixos padrões. Oferecem hora e meia, duas horas de suspensão da descrença, como produtos eficientes da indústria cultural que são — e quase todos eles vão se diluindo na memória a partir do momento em que saímos do cinema.

Uns poucos nos últimos tempos, nos últimos dois anos, por exemplo, conseguiram o contrário, crescer à medida em que se pensa neles. Coloque-se aí nessa pequena lista “A Professora de Piano”, uma tour de force de Isabelle Huppert dirigida por Peter Haneke, e “Medos Públicos em Lugares Privados”, de Alain Resnais; talvez mais um ou dois. O resto é esquecível — e aqui incluo mesmo filmes elogiadíssimos como WALL-E e The Dark Knight.

Mas quanto mais penso em “Estamos Bem Mesmo Sem Você” (Anche Libero Va Bene, 2006), mais ele revolve na minha cabeça.

O filme, estréia do ator Kim Rossi Stuart na direção, conta a história de Renato (o próprio Stuart) e seus filhos, Viola (Marta Nobili) e Tommaso (Alessandro Morace). A mãe das crianças, Stefania (Barbara Bobulova), os abandonou. Mais tarde ficaremos sabendo que esse é um comportamento recorrente dela, sempre abandonando a família quando conhece um homem rico — e sempre voltando arrependida para eles, depois do término de sua aventura.

Sem a figura materna, aquela pequena família se ajustou perfeitamente. É uma família moderna comum, como tantas outras, longe do ideal clássico familiar mas, de certa forma, perfeita em suas imperfeições.

Então Stefania volta, no que é uma das cenas mais competentes do filme: a surpresa de Renato ao encontrá-la em casa com os filhos não é mostrada imediatamente. Um diretor menos competente mostraria o susto no rosto do marido abandonado. No entanto, Stuart mostra apenas a ansiedade de Stefania e dos filhos, angustiados diante da expectativa sobre a reação de Reanato.

A decisão de aceitá-la de volta é conturbada, mas pertence a toda a família. Aceitar Stefania de volta é um peso que Renato não quer carregar sozinho. Viola a aceita sem reservas, feliz por ter a mãe novamente ao seu lado, algo perfeitamente compreensível em uma pré-adolescente. Mas Tommaso se retrai. Ele sabe o que vai acontecer: “Ela vai embora de novo”, diz para o pai, e no fundo todos sabem disso.

Agora estamos diante de uma pequena tragédia anunciada, mas em função do bem-estar da família, e da sua adequação ao modelo que eles julgam ideal, a esperança daquela pequena família precisa vencer a certeza da derrocada certa; e esse comportamento é mais claro em Viola. Há aí uma pequena inversão do modelo familiar tradicional: é a presença materna que se transforma em um elemento de desagregação familiar. Mas, ao mesmo tempo, essa nova situação deixa perceber que aquela tranqüilidade do início talvez não fosse tão tranqüila, que no quebra-cabeças que parecia harmonioso havia uma peça faltando, ainda que não se notassse claramente.

Mais tarde, Tommaso vê a mãe conversando com um homem numa festa, e o espectador percebe sua angústia crescente. Tommaso sabe o que vai acontecer, sabe que ela vai embora novamente. E isso acontece quando pai e filhos estão voltando para casa. Da rua, Tommaso vê as luzes do apartamento apagadas. Já no elevador ele fala para o pai e a irmã: “As luzes estão apagadas”. A pergunta a ser feita não é dita. Sobra apenas agonia, medo. E ali estão eles, na porta de um apartamento escuro, com medo de entrar para descobrir o que já sabem. É uma das mais belas cenas do filme.

O diretor Stuart não cai no erro de condenar explicitamente Barbara por seu comportamento. Mostra o seu esforço sincero em se adaptar à vida familiar. Seu amor por seus filhos é legítimo, e talvez também seja legítimo o seu amor por Renato. Stuart se revela um diretor competente e sensível, embora sem muitos arroubos estilísticos. Talvez por isso, por deixar que a história se conte por si mesma, ele permita que o grande trunfo do filme acabe sendo o desempenho fantástico de Alessandro Morace no papel de Tommaso. Morace consegue transmitir as emoções de Tommaso com facilidade e economia, e acima de tudo com uma verdade e naturalidade raras em atores infantis.

Um dos poucos críticos a reclamar do filme classificou-o como melodrama. Como se melodrama fosse algo ruim — alguém pode classificar, por exemplo, “Rocco e Seus Irmãos” como mais que isso, com suas mulheres se jogando aos pés de filhos mortos, com amantes se matando? A tradição operística italiana não pode prescindir do melodrama. Mas mesmo essa crítica é injusta com o filme. Dono de uma sensibilidade rara nos dias de hoje, em que o bombardeio dos sentidos se tornou a norma no cinema — mesmo em filmes inteligentes como “Onde os Fracos Não Têm Vez” –, “Estamos Bem Mesmo Sem Você” consegue ser delicado sem ser afetado, e tirar de momentos grosseiros a poesia necessária. Isso o ergue acima do melodrama comum.

É essa relação entre o menino e o seu universo que faz o filme. O esforço em contemporizar, em agradar o pai ao mesmo tempo em que tenta levar adiante a sua vida da maneira mais normal possível — um dilema expresso pelo título original do filme — acaba se tornando o cerne do filme. “Estamos Bem Mesmo Sem Você” é uma história de compromissos: consigo e com a família.

***

E é isso. Feliz Natal e um grande Ano Novo para todos.

The Beatles Virtual Museum

Durante muito tempo, imaginei escrever uma série de posts sobre cada álbum dos Beatles.

Teria um texto sobre cada um, incluindo seu contexto histórico, a descrição de cada canção com datas de gravação e mixagem, autor, lista de músicos, letras e cifras, e eventualmente um link para um arquivo qualquer — no caso dos covers, para as gravações orginais, apenas para mostrar como os Beatles conseguiam, na maior parte dos casos, recriar de maneira surpreendente cada canção; no caso das composições próprias, links para versões piratas diferentes, essas coisas.

Nunca fiz isso porque nunca tive muito tempo vago, nem paciência para compilar esses dados ou para escrever algo decente.

Só que agora eu não preciso mais. O The Beatles Virtual Museum é um belo site sobre os Beatles. Dados, imagens e, acima de tudo, links para muitos discos piratas.

Os 10 melhores westerns

O western é o mais puro gênero cinematográfico. Todos os outros tinham tradições anteriores respeitáveis na literatura ou até mesmo no teatro: drama, comédia, épico, aventura, romance, ficção científica. O faroeste, por sua vez, só tinha as dime novels do fim do século XIX, puro lixo literário; quando muito, teve o show de Buffalo Bill. Foi apenas no cinema que o gênero pôde se realizar completamente; provavelmente porque, nele, o lugar é personagem fundamental da trama. Só ali, naquele momento histórico e naquele ambiente amplo, o faroeste tem sua razão de ser; e isso só poderia ser mostrado adequadamente no cinema.

O western cumpriu um papel importante na formação americana. Ajudou o país a mitificar sua própria história, emprestando a ela a tradição e respeitabilidade que sua trajetória ainda curta lhe negava. Mais de uma pessoa já falou em como os EUA recriaram, na saga da conquista do oeste, as histórias medievais européias de cavaleiros galantes e nobres. Em vez de escudo, um chapéu; em vez de espada, um Colt Peacemaker.

Por isso resolvi fazer uma listinha dos 10 melhores faroestes da história, por ordem cronológica:

No Tempo das Diligências (Stagecoach, John Ford, 1939)
É o início de tudo. Em um momento em que o western primitivo de Tom Mix e Roy Rogers tinha entrado em decadência, Stagecoach marca a estréia, em sua forma definitiva, de praticamente todos os elementos constitutivos do faroeste moderno: o primeiro grande filme de John Wayne e de John Ford, o primeiro filmado em Monument Valley, e todos os recursos dramáticos que mais tarde seriam usados à exaustão no gênero que chegou a ser o mais popular no mundo inteiro. Stagecoach é o marco inicial do faroeste, e isso não é pouco.

Rio Vermelho (Red River, Howard Hawks, 1948)
Talvez o maior faroeste de um diretor que os fez em quantidade e com qualidade, Red River é um retrato de um fenômeno efêmero da história do oeste: os verdadeiros cowboys originais, tropeiros que levavam gado de um canto a outro nos primórdios das ferrovias e que, na verdade, tiveram vida bastante curta. É esse o cenário que emoldura uma disputa ao mesmo tempo grosseira e sutil entre pai e filho, vividos por John Wayne e Montgomery Clift, perfeitamente conduzida por Hawks.

Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952)
Embora tenha sido concebido como metáfora e denúncia do mccarthismo, o que realmente interessa em High Noon é a parábola densa sobre coragem e sobre o valor do indivíduo diante daquilo que a vida lhe cobra. É um faroeste um tanto atípico, mas que acaba reforçando os valores intrínsecos do gênero, como o heroísmo diante da adversidade. É também cheio de detalhes sobre o perfil psicológico dos protagonistas, bem ao gosto de Zinnemann. Talvez um dos faroestes mais inteligentes — do tipo novaiorquino de inteligência.

Os Brutos Também Amam (Shane, George Stevens, 1953)
Tem gente que acha esse o maior western de todos os tempos, como o Paulo Perdigão, que antes de morrer até escreveu um livro inteiro sobre ele. Tem gente que não, como o Bia. Independente disso é um filme brilhante, inquestionável. Shane é propositadamente arquetípico e esquemático, narrado através dos olhos de uma criança. É um faroeste definitivo, que consolida as convenções do gênero de maneira singularmente bela.

Rastros de Ódio (The Searchers, John Ford, 1956)
Quanto mais vejo este filme, mais deslumbrado fico com a maestria absoluta de John Ford. Da seqüência inicial, com Dorothy Jordan abrindo a porta — a porta pela qual John Wayne está condenado a jamais entrar, metaforicamente —, à última cena, em que outra porta se fecha, o que John Ford entrega é provavelmente um dos mais perfeitos westerns de todos os tempos, em que tudo se casa à perfeição: roteiro, fotografia, atuações — é, provavelmente, a melhor atuação de John Wayne em toda a sua carreira. Uma obra prima absoluta.

Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959)
Concebido como uma resposta direitista a High Noon, “Onde Começa o Inferno” é provavelmente o último grande filme de Howard Hawks. Tão bom que ele meio que o refilmaria alguns anos mais tarde em Eldorado, com Robert Mitchum no lugar de Dean Martin e James Caan no lugar de Ricky Nelson. Um faroeste clássico, com a divisão entre bons e maus extremamente clara, e uma performance inesquecível de Dean Martin.

Sete Homens e um Destino (The Magnificent Seven, John Sturges, 1960)
Refilmagem de um filme de Akira Kurosawa, “Sete Homens e um Destino” incidentalmente definiu um padrão que vários filmes de ação dos anos 60 seguiriam: uma espécie de versão em celulóide do jogo de tabuleiro “resta um”: depois de uma longa preparação, boa parte dos protagonistas morre um a um, no clímax do filme. O modelo foi seguido por filmes como “Os Doze Condenados”, de Robert Aldrich, e “Fugindo do Inferno”, do mesmo Sturges.

O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962)
É filme que marca o fim do ciclo americano do western. Uma visão mais madura de sua lenda, em retrospecto, que poderia ser resumida por uma das frases finais do filme: “Entre o fato e a lenda, imprima-se a lenda” (ou algo parecido). É a redenção tranqüila da formação da mitologia americana, em um filme absolutamente brilhante e sensível.

Três Homens em Conflito (Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo, Sergio Leone, 1966)
Depois do esgotamento total no início dos anos 60, quando praticamente todas as possibilidades criativas do western tradicional foram exploradas, coube ao italiano Sergio Leone renovar o gênero com a “Trilogia do Dólar” que este filme encerra. (Os outros filmes são “Por Um Punhado de Dólares” e “O Dólar Furado” “Por Uns Dólares a Mais”). Transportando a ação da grandiosidade de Monument Valley para a aridez da região de Almería, na Espanha, o spaghetti western transformou o gênero definitivamente e o levou um pouco mais além, dando-lhe uma sobrevida que seria impossível nos Estados Unidos. De versão americana dos contos de cavaleiros andantes na recriação de sua história, o faroeste passou a ser a visão européia da moral dúbia da vida na fronteira. Leone acrescentou a tudo isso um certo tom operístico, que levou o western ao seu último estágio.

Era Uma Vez no Oeste (C’era Una Volta Il West, Sergio Leone, 1968)
Mas é em “Era Uma Vez no Oeste” que Leone eleva ao ápice sua visão da conquista do oeste como pedra fundamental da civilização americana — uma visão amorosa, reverente, mas ainda assim extremamente crítica. É um dos poucos faroestes a ter como personagem central uma mulher, e é ainda melhor que Johnny Guitar, por exemplo. E a música de Ennio Morricone sedimenta, de maneira inigualável, esta grande “ópera da morte”, como já definiram este filme.

Os Imperdoáveis (Unforgiven, Clint Eastwood, 1992)
Foi Eastwood quem retirou o western de sua tumba e conseguiu dar-lhe um último grande filme, sobre velhos pistoleiros cumprindo uma última missão. O tom amargo e niilista do filme não se refere apenas a velhos pistoleiros imperdoados em seus finais de vida; mas a todo um gênero. “Os Imperdoáveis” é um epitáfio adequado a um gênero que nasceu com o cinema e, de certa forma, se tornou maior do que ele.

(É, eu sei que tem 11 filmes aí. Acontece. Eu nunca fui bom em matemática.)