As besteiras que dizem em nome dos Beatles

Ainda não ouvi os discos remasterizados dos Beatles que foram lançados na semana passada. Estão demorando muito para baixar (“desculpe, Paul e Ringo, mas você já são ricos o bastante”, escreveu o moço gentil que disponibilizou essas gravações na internet, e eu faço minhas suas palavras). Mas ouvi uns trechos e posso começar a comparar. Pelo menos uma canção parece pior do que sua última versão, Hey Bulldog, tendo perdido um bocado de sua força — na verdade, a versão mono é melhor. Já o álbum Please Please Me parece recuperar a riqueza sonora do antigo LP estéreo, e isso já é uma grande vantagem. Que ninguém espere uma grande revelação, no entanto: são exatamente as mesmas gravações. Ou seja, isso que está saindo agora é interessante, é legal, mas não é fundamental.

Infelizmente, mesmo sem ouvir as canções alguns efeitos colaterais ruins já se fazem notar. Um dos mais curiosos é causado pela avalanche de mídia espontânea gerada pelo lançamento. Isso obriga fãs bobos como o autor destas maltraçadas a ler algumas críticas e comentários que beiram a idiotice. Nenhuma, no entanto, foi tão ruim quanto a matéria assinada pelo Luís Antônio Giron na revista Época desta semana.

A matéria de Luís Antônio Giron é um amontoado de erros crassos e uma coleção de bobagens. Por exemplo, se refere ao Past Masters como uma coleção de “faixas raras”. She Loves You, I Wanna Hold Your Hand, Let it Be, Get Back, Day Tripper são algumas das canções do disco, que basicamente reuniu, em dois discos, os compactos dos  Beatles; era em compactos, aliás, que eles lançavam suas principais canções. Por isso não são exatamente raridades. O mais curioso é que Giron parece centrar sua atenção no Past Masters, fazendo-o inadvertidamente parecer a grande novidade do pacote, quando ele existe há 21 anos. A única diferença é que agora, em vez de dois volumes separados, é um álbum duplo (como aliás foi a versão em vinil lançada em 1988).

Giron diz que os Beatles gravaram Komm, Gib Mir Deine Hand (versão em alemão para I Want To Hold Your Hand) porque “sentiram a deficiência” das condições de gravação. É uma grande estupidez. Eles gravaram essa canção — e Sie Liebt Dich, versão de She Loves You — pela mesma razão que Nat King Cole gravou aquele bocado de canções em castelhano: para seduzir um mercado específico, mais nada, e por pressão da Electrola Gesellschaft, o braço alemão da EMI. Gravar canções em língua estrangeira era uma prática comum na era anterior à dos Beatles; eles não queriam gravar essas versões.

Mas a coisa ainda fica pior: os Beatles apenas regravaram os vocais para essa canção, sobre o instrumental original de I Want To Hold Your Hand. Ou seja, mudaram nada, apesar de, segundo o Giron, “terem sentido a deficiência”.

O jornalista diz também que You Know My Name (Look Up The Number) “foi a última faixa produzida pelos Beatles, em novembro de 1969”.

A faixa foi gravada em duas sessões em 1967 (com Brian Jones, dos Stones, tocando sax, entre outras curiosidades) e esquecida. Em abril de 1969 John e Paul fizeram alguns overdubs para a canção. Em novembro (26, mais exatamente), John Lennon, sozinho, se juntou a Geoff Emerick (engenheiro de som dos Beatles que, recentemente, deu uma grande entrevista sobre o Abbey Road) para fazer a edição final da canção, sem nenhum outro beatle presente. Sua idéia era lançar a canção assinada pela Plastic Ono Band. Mas isso geraria problemas com McCartney (é fácil imaginá-lo dizendo : “I’m no part of any friggin’ bloody Plastic Ono Band!“). You Know My Name acabaria saindo como o lado B de Let it Be.

A última gravação dos Beatles ocorreria pouco mais de um mês depois. Em 3 e 4 de janeiro de 1970 Paul, George e Ringo (Lennon estava em férias na Dinamarca) se reuniram no estúdio para finalizar I Me Mine, de George, e essa seria a última vez que mais de um Beatle trabalhariam juntos no estúdio. (Só para constar: a última vez em que os quatro estiveram juntos nos estúdios da EMI, hoje Abbey Road Studios, foi no dia 20 de agosto de 1969, finalizando I Want You [She’s So Heavy]).

Outra informação impressionantemente equivocada é a de que a discografia americana foi lançada no Brasil. Isso é uma das maiores mostras de ignorância que eu já vi. Porque as versões americanas dos discos dos Beatles, com grandes diferenças em relação aos originais ingleses, nunca, jamais, em hipótese alguma foram lançadas no Brasil.

Até 1965 o Brasil lançava suas próprias versões dos álbuns dos Beatles, como acontecia nos Estados Unidos. Lá foram lançados os seguintes discos (descontando outros lançados por outras gravadoras como a Swan e a VeeJay): Introducing The Beatles, Meet The Beatles, The Beatles’ Second Album, A Hard Day’s Night, Something New, Beatles’ 65, The Early Beatles (basicamente o Introducing The Beatles com outra ordem de músicas, agora lançado pela gravadora Capitol), Beatles VI, Rubber Soul, Yesterday and Today e Revolver. Todos esses discos trazem diferenças em relação aos originais ingleses. Daí em diante os discos seriam iguais aos ingleses, com exceção do Magical Mystery Tour; a Capitol não gostou do EP duplo original, e transformou-o em um LP, agregando os compactos lançados na época, como Strawberry Fields Forever, All You Need Is Love e Hello, Goodbye. O álbum ficou tão melhor que o lançamento original que os ingleses, ao unificar as discografias em todo o mundo em 1976, substituíram o lançamento original por ele.

No Brasil foi lançada uma série diferente de discos, com nomes, capas e músicas diferentes do orignial inglês: o “Beatlemania” (1963), “Beatles Again” (1964), “Os Reis do Iê, Iê, Iê” (1964; era o único com as mesmas canções do original inglês, o A Hard Day’s Night), “Beatles 65” (1965) e “Help!” (1965); só a partir do Rubber Soul os discos passaram a ser iguais aos originais. São versões diferentes das inglesas e também das americanas. A propósito, algumas das gravações americanas eram levemente diferentes das inglesas. As brasileiras eram iguais.

Mas a maior barbaridade escrita pelo Giron nesse artigo absolutamente ignorante diz respeito à versão de Love Me Do presente no Past Masters: “o compacto [a versão incluída no disco, com bateria tocada por Ringo, diferente da versão do LP Please Please Me, que tem bateria tocada por um músico de estúdio chamado Andy White] traz a versão lenta do primeiro sucesso da banda, com um arranjo mais acústico. Bem diferente da gravação percussiva que figura no LP de estréia.”

É uma das idéias mais estúpidas ditas sobre os Beatles ao longo dos anos, quase igual a uma matéria antológica de Ruy Castro sobre a banda na Folha de São Paulo há uns 20 anos, um samba do crioulo doido escrita por alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe onde.

A pergunta que eu faço, nesse caso, é simples: custava pelo menos ouvir a droga da música? Porque as duas versões são virtualmente iguais, e eu duvido que um ouvinte médio consiga distinguir uma da outra. Tudo isso que o Giron falou só existe na cabeça dele. Não seria um grande trabalho se informar um pouquinho sobre as canções antes de falar essas bobagens.

Giron se pergunta ainda se faz sentido lançar esses discos apenas em CD, e não nos sites de música como o iTunes. O volume de vendas devia ser uma boa resposta. Dos dez CDs mais vendidos da Amazon hoje, oito são dos Beatles. A caixa estéreo está no top 100 há 60 dias — quase dois meses antes de ser sequer lançada. Me desculpe, Giron, mas isso faz todo o sentido do mundo. O que os Beatles perceberam foi que, ao não oficializar as canções em downloads, pelo fato de serem ícones da cultura pop, valorizam momentaneamente o produto que estão lançando, que tem alguns diferenciais em relação ao já disponível e que agrega muito mais valor que os downloads. Essa estratégia não deve voltar a funcionar, mas por enquanto tem dado muito certo. Provavelmente, quando a empolgação pela novidade passar, as músicas irão para o download.

Minha sorte é que eu não leio a Veja. Tenho a impressão de que seria ainda pior. Porque essa é a situação atual do jornalismo cultural pátrio: os jornalistas são os mesmos de 20, 30 anos atrás, com os mesmos vícios e a mesma ignorância. Mas agora há a internet, e as pessoas não podem mais escrever esse tipo de besteira (ou cópias como a matéria da Veja sobre o lançamento do Anthology, em 1995; o jornalista Celso Masson basicamente traduziu uma matéria da Newsweek) impunemente.

Beatlemania

Um dos posts que comecei a escrever e que nunca terminei ou publiquei, há uns três anos, comparava a Apple Corps, a empresa dos Beatles, a um elefante. Na época todo mundo batia na dita por não ter aderido ao iTunes, por estar perdendo dinheiro com o P2P, essas coisas.

Eu achava que a Apple estava correta. Que não tinha necessidade de correr atrás da última inovação. Se não me engano, eu tinha um título para o post: quando elefantes se movem. Elefantes são lentos, mas seus movimentos nunca passam despercebidos. Por isso eu achava que na hora em que eles se movessem em direção ao comércio eletrônico, depois de passada a primeira empolgação do mercado e depoois de criada uma certa expectativa quanto a eles, eles ganhariam mais dinheiro. Do ponto de vista de mercado, os Beatles não são exatamente o Bon Jovi. Podem se dar ao luxo de criar suas próprias condições. E podem esperar o momento propício, porque quando isso acontecer nada disso passará em branco.

Eu devia ter terminado e publicado o post porque eu hoje poderia dizer: olha, eu sei ver o futuro. Não exatamente, porque a Apple ainda não anunciou o que vai fazer do comércio eletrônico. Ou mesmo se vai fazer: eles estão ganhando um dinheiro danado apenas reempacotando o que já tinham.

O lançamento dos CDs remasterizados dos Beatles ontem virou a grande notícia do showbiz deste ano. Para que se tenha uma idéia, a New Musical Express está distribuindo uma edição com 13 capas diferentes — uma para cada álbum dos Beatles. Gente insuspeita de beatlemania está desesperada pelas caixas com os CDs. A primeira prensagem das caixas já se esgotou. Respeitadas as proporções, é uma nova pequena beatlemania. Nada mal para uma banda que no próximo dia 20 completará 40 anos de morta, embora a notícia oficial só tenha sido dada meses depois.

A máquina de relações públicas dos Beatles é impressionantemente competente.

Mas apesar disso, e apesar de assumidamente beatlemaníaco, até hoje não comprei os CDs dos Beatles. Porque já tinha tudo em vinil e porque me parece muito mais simples (e justo) copiar os MP3 de qualquer canto da internet. Mas havia um outro motivo para não comprar os CDs: eu não gostava do trabalho porco que foi feito com a remasterização (que eles sempre negaram, mas que foi realmente feita) de algumas canções e álbuns.

Para não ser injusto, algumas canções foram bem realçadas, especificamente os da segunda fase — o Magical Mystery Tour pós-1987 tem uma sonoridade geral muito melhor que as disponíveis até então. Feitas as contas, o resultado foi positivo. Mas algumas canções foram massacradas. Quem nunca ouviu o Rubber Soul em vinil não sabe exatamente quão bom é aquele disco, e que em Drive My Car há pequenos trechos que foram modificados. Quem nunca ouviu I Feel Fine no Oldies But Goldies ou naquele álbum duplo vermelho antes da remasterização sequer sabe que os Beatles ficam latindo no final da música. O som do Please Please Me em CD é ruim, metálico, culpa da má masterização dos CDs e muito inferior aos LPs em fake stereo disponíveis até 1988.

A nova remasterização pode resolver esses problemas de violação de cadáveres, e é o que eu espero. Eu estou curioso para ouvir — embora jamais o suficiente para gastar 1500 reais numa dessas caixas. Porque no fim das contas, muito disso que se discute agora é uma grande bobagem. Não há nenhuma música nova; o que se vai ouvir é a mesma coisa que se ouve há quase meio século, apenas com uma qualidade de som um pouco melhorada. No fim dos anos 90, quando relançaram o desenho animado Yellow Submarine, deu para se ter uma amostra de como a sonoridade das canções ficariam. Muito boas, é verdade. Mas continuam as mesmas canções. E agora, com remasterização ou não, elas continuam as mesmas.

Mas depois disso, fica-se imaginando o que restará para ser lançado e chamar a atenção de novos compradores.

Eu apostaria no Let it Be restaurado e com horas de cenas extras. Por pior que seja o filme — e acredite, é um filme realmente ruim –, seria a última coisa realmente interessante que a Apple Corps poderia oferecer aos fãs.

Mulher de um homem só

Eu tinha esquecido que “Mulher De Um Homem Só” era tão bom.

Li o livro há alguns anos. Uns cinco, acho. Foi logo que conheci o Alex, e na época “Mulher de um Homem Só” circulava pela internet livremente. Li, gostei acho que comentei sobre o livro com o Alex.e o livro passou para a galeria daqueles livros que você leu. Talvez o fato de me tornar amigo do Alex tenha contribuído para isso, esse excesso de familiaridade intelectual.

Reli agora, impresso, e fiquei impressionado com o tanto que tinha esquecido. E com o quanto o livro é bom.

“Mulher De Um Homem Só” é um livro maduro, bem pensado. Dentro dos limites da obra, esgota com propriedade as suas possibilidades narrativas.

O livro conta a história da relação entre Carla, a narradora, e a melhor amiga do seu marido, Julia. É um livro carioca sobre o ciúme, narrado do ponto de vista feminino. E é nessa narração que está um dos grandes trunfos do livro. Em Carla, Alex cria uma personagem crível, rica, e explora bem suas possibilidades. É aqui que o Alex demonstra ser um excelente escritor: ele tem perfeito domínio da voz feminina da Carla. É esse o grande segredo do livro. Durante anos o Alex vem insistindo na questão da onisciência de sua narradora. É a chave para a compreensão de “Mulher de um Homem Só”. Estritamente, essa é uma história que só existe na cabeça de Carla. Alex faz um grande trabalho ao assumir a voz de Carla. Todas as incongruências, todas as incompatibilidades desse discurso são expressos admiravelmente pelo texto do Alex.

Eu gosto de imaginar a Carla como uma mulher de seus 30 anos internada numa clínica de repouso, contando entre um surto e outro de esquizofrenia uma história que mistura realidade e ficção e que não respeita limites de tempo e de espaço.

É também um livro carioca ao extremo, um detalhe de uma classe média alta espremida entre os morros. É outro grande trunfo do livro: embora carioca, está longe daquela “literatura urbana” que deriva imediatamente de Rubem Fonseca e que, nos últimos anos, se tornou praticamente sinônimo de literatura feita naquelas plagas.

Umas poucas coisas me incomodam no livro. Uma delas é um trecho em que Julia dá a entender que décadas se passaram entre os acontecimentos narrados e a narração em si — e então a Carla se mostra como uma mulher que não aprendeu absolutamente nada depois de tanto tempo, algo razoavelmente improvável. Além disso, mesmo admitindo-se que o objeto do fixação de Carla é a Julia, e mesmo entendendo que o personagem é definitivamente filtrado pelo seu olhar — o que é um dos trunfos do livro –, ainda assim Murilo poderia ser construído de maneira mais elaborada. Finalmente, o último parágrafo não apenas me parece abrupto, mas também desnecessário dentro do contexto do livro.

São poucos defeitos para um livro inteiro. O que “Mulher de um Homem Só” prova é que o Alex é exatamente aquilo que ele vem dizendo ser há tanto: um escritor. E um bom escritor.

O circo dos horrores de Michael Jackson

Eu nunca vi nada tão bizarro, tão decadente, tão podre quanto esse velório de Michael Jackson transmitido ao vivo hoje.

Chego em casa para o almoço e Lionel Ritchie está cantando uma música na TV. Logo depois se sucedem outros artistas, outras canções — algo semelhante a uma premiação da AFI, ou mesmo ao Oscar. Apenas uma leve lembrança de que aquilo era um “memorial service“. Leve, não: entre os artistas e a platéia, o caixão vistoso de Michael Jackson era sólido, pesado, brilhante como um terno de lamê.

As mesmas pessoas que reclamam que brasileiro tem a mania horrorosa de bater palmas em enterros deveriam se horrorizar com as palmas e os assobios ouvidos. Ou com o preço dos ingressos para o evento, com as pessoas vendendo por preços altos demais os ingressos sorteados. O velório de Michael Jackson se transformou em pouco mais que um show de música pop, nada mais que isso. Passa a impressão de ser a última fronteira do desmonte da individualidade humana. Ou, no mínimo, um fim adequado a um sujeito que, vivendo praticamente toda a sua vida sob os holofotes, já há muito tempo não sabia diferenciar o público do privado.

Talvez as pessoas não vejam nada demais nessa espetacularização levada às últimas conseqüências. Eu vejo.

Eu já tinha visto outros funerais-espetáculo: o de Tancredo Neves, o de Ayrton Senna. Mas embora tenham atraído a atenção da mídia, ali rapinando a imagem pública de um ídolo até o último momento, nenhum deles foi concebido e planejado como um evento totalmente midiático, como aconteceu agora. O velório de Michael Jackson ultrapassou todos os limites de decência e do respeito ao ser humano. Não que o próprio defunto ali embalsamado provavelmente reclamasse: Jackson morreu como viveu, um objeto peculiar diante do escrutínio público, um exemplo vívido de uma nova sociedade que se define através da exposição excessiva e da destruição da própria intimidade.

A morte costuma se tornar também um processo de canonização de ídolos. Um sujeito complexo e muitas vezes detestável como John Lennon se tornou um símbolo da paz mundial. Elvis Presley se tornou um ícone absoluto apenas depois que morreu, depois de um processo de decadência de mais de 15 anos apenas interrompido em 1968 e retomado pouco depois em Las Vegas. George Harrison foi alçado à posição de alma dos Beatles — justo ele, um guitarrista apenas bom, um cantor sofrível e um compositor mediano que deu sorte duas ou três vezes –, e em novembro de 2001 tinha-se a impressão de que Lennon e McCartney não passavam de coadjuvantes diante daquele gênio.

Com Jackson não podia ser diferente. Agora ele está se transformando no maior gênio da história da música, e vai continuar assim até virem os próximos grandes mortos, Bob Dylan, Mick Jagger ou Paul McCartney. Eu ainda estou procurando essa genialidade. Dançarino fantástico, excelente cantor e eventualmente um ótimo compositor, Michael Jackson era um artista competente, sem dúvida. Entre o final dos anos 70 e começo dos 80 teve um momento de absoluto brilho, com dois discos antológicos. Mas até agora ninguém conseguiu entender e separar o que, no fim das contas, era resultado do seu talento como músico, o que era produto de sua máquina de relações públicas, e o que era decorrência de uma felicíssima e única circunstância histórica: Jackson foi o primeiro superstar da era do vídeo, em que a imagem era tão ou — principalmente no seu caso — mais importante que a música propriamente dita, e lhe dava uma dimensão maior da que ele era efetivamente capaz de ter.

Sua importância na evolução da música pop é muito menor do que agora querem me fazer crer. Berry Gordy, que deu uma canja com um discurso no velório de Michael Jackson, é sozinho muito mais influente que o defunto à sua frente, porque foi ele quem definiu o som de Detroit, o que incluía o Jackson 5, Supremes e tantos outros. O que Jackson realmente fez de importante foi ajudar a projetar aspectos da cultura negra americana para o resto do mundo. Milhares de pessoas em tantos países diferentes, que dançam inspirados nele, podem testemunhar isso. No entanto, musicalmente é um ultraje compará-lo aos Beatles e mesmo a Elvis; Michael Jackson estava no nível de uma Madonna, não mais que isso — sendo que volta e meia Madonna consegue se revalorizar, e até lança grandes álbuns como o Confessions on a Dance Floor, de 2005, algo que Jackson não fazia há um quarto de século.

Antes de mais nada, Michael Jackson era um artista decadente. Uma decadência longa, extremamente pública e agonizante: quase 30 anos de uns poucos discos medíocres, de factóides em vez de arte, décadas em que um novo passo de dança mascarava o fato de que ele não conseguia criar boa música. (Sobre o Michael Jackson artista, assino embaixo de tudo o que o Daniel Piza escreveu aqui.)

É talvez por levar em conta o seu status menor que o que lhe é concedido agora, e ter em mente a sua decadência abjeta como poucas antes — mesmo acostumado à genialidade póstuma, à comoção pela morte de um ídolo –, que o seu velório me espanta e me horroriza. Eu ainda não tinha visto nada como isso. O Doni acha que é um momento de fim de era, e Jackson seria o primeiro grande ídolo a morrer nessa época de comunicação total. O Nelson, que está esperando a turnê 2009 do velório de Michael Jackson (brilhante, Nelson), vê nisso a carnavalização da culpa — uma sociedade que expiava ali o incômodo pela pouca importância dada ao astro nos últimos 20, quase 30 anos.

Tanto o Doni quanto o Nelson têm razão, mas algo me sugere que é ainda mais que isso, embora eu não consiga entender nem descrever exatamente o que é. O mundo que vinha se delineando e parece tomar forma definitiva nesse velório é assustador, doente, irreconhecível. O mundo sempre foi um circo, se você soubesse para onde olhar, mas agora é um circo dos horrores. Ainda pior, é onipresente. E isso assusta mais que o rosto deformado de um pedófilo decadente auto-intitulado gênio pairando fantasmagoricamente sobre o seu caixão, enquanto pessoas que pagaram milhares de dólares para ver o seu funeral deliram como numa arena qualquer, diante de uma banda pop vagabunda.

Robin Hood

Fiquei sabendo por acaso que estão fazendo uma nova versão de “Robin Hood”, agora com Russell Crowe no papel de Robin.

Sou de um tempo anterior a videogames, em que livros, televisão e brincadeiras na rua constituíam a base da nossa educação real. Ler e reler as aventuras de Robin Hood eram parte disso. Mesmo sem ser um exemplo clássico, Robin Hood é, ainda que residualmente, um dos poucos exemplos do espírito medieval que se encontra nos romances de cavalaria. Nós já não líamos Amadis de Gaula, que isso ficava para um certo Alonso Quijano; mas ainda líamos e víamos Robin Hood. Não sei se esse pessoal mais novo ainda gosta da lenda. Acho improvável. Devem preferir algo menos rico como Jaspion ou Transformers, mas mais atual e inserido no novo zeitgeist.

É por isso que sempre que surge uma nova adaptação cinematográfica, aqueles que conhecem a lenda ficam esperando mais uma pequena tragédia — ou pelo menos eu fico. (O fato de o novo filme ser dirigido por Ridley Scott, diretor de longa trajetória medíocre e apenas três excelentes acidentes de percurso, Alien, Blade Runner e “Os Duelistas”, não ajuda a elevar as expectativas.)

Minhas expectativas não foram frustradas pela versão de Kevin Costner no início dos anos 90, que incluiu um Morgan Freeman num papel de sarraceno apenas para colocar um negro na história; nem pelo seriado atualmente exibido pela BBC de Londres (no Brasil pelo Hallmark) que coloca no bando uma mulher — a Idade Média, como se sabe, foi uma época de florescimento do feminismo — hindu, reflexo da Inglaterra multicultural destes tempos, além de um Robin Hood excessivamente imaturo e absolutamente implausível para conquistar a confiança de um bando de marginais. Desconto aqui as situações dramáticas irritantes, mas necessárias à duração da série — embora a transformação do xerife de Nottingham em um vilão louco de filme de super-herói seja um pouco demais para os meus gostos já velhos.

Na verdade ainda não vi nenhuma adaptação de Robin Hood melhor que a de Michael Curtiz, estrelada por Errol Flynn e seguramente um dos 100 melhores filmes da história do cinema (além de um dos primeiros em cores). Assim como não há “Os Três Mosqueteiros” melhor que o dirigido por George Sidney em 1948, com Gene Kelly, Van Heflin e Lana Turner. Acontece que os padrões estéticos atuais fazem um mal danado a histórias clássicas como essas. Dia desses assisti a um tal de “A Vingança do Mosqueteiro”, adaptação bisonha da obra de Alexandre Dumas, que quase deu vontade de vomitar. Não é apenas o desrespeito à história. É a mania de deixar tudo espetacularizado demais, rápido demais.

Um pouco disso, eu sei, é má vontade minha. Robin Hood é uma lenda que variou ao longo de séculos — na verdade, por ser uma lenda, permite a princípio toda e qualquer modificação. Se os produtores hoje resolvem que vão colocar heróis vestindo roupas de couro à la rockstar em vez de o “bom pano verde de Lincoln”, como os originais, é uma concessão boba que se pode aceitar em nome da passagem dos tempos e dos gostos de massas cada vez mais ignorantes. Mas a maioria dessas versões cometem também um erro grave, porque dizem respeito ao espírito da lenda de Robin Hood.

Assim como a lenda do rei Arthur — cá entre nós, pouco mais que um chefe tribal corno que acreditava em um charlatão chamado Merlin—, Robin Hood — cá entre nós, pouco mais que um ladrão — é um dos mitos fundadores da Inglaterra. Issso é algo que aqueles que costumam cantar a superioridade cultural inglesa deviam sempre levar em conta, quando reclamam dos nossos: os mitos fundadores da grande Inglaterr são um corno e um ladrão).

Robin Hood reflete bem o caráter do povo inglês. Se algum Robin jamais existiu, provavelmente não era mais que um ladrão com boas relações com a vizinhança, uma espécie de Escadinha; coube ao povo idealizá-lo e romantizá-lo como uma válvula de escape, um retrato de suas aspirações, e uma ferramenta de definição de sua própria identidade. Daí a subversão e a rebeldia presentes em sua lenda, a resistência à opressão que se tornou sua marca registrada — e que Walter Scott cristalizou bem em “Ivanhoé”. E daí, principalmente, o humor.

O riso sempre foi fundamental na lenda de Robin Hood. Mistificação e engano são provavelmente as suas maiores armas, mais que sua habilidade no arco e flecha ou as façanhas do Frei Tuck ou de João Pequeno. Não é porque roubava que Robin Hood se tornou herói, porque ladrões sempre houve muitos por aquelas bandas. Mas de acordo com a imagem que o povo criou, ele não perdia uma chance sequer de ridicularizar o xerife de Nottingham ou o bispo de Hereford, símbolos das duas grandes instituições de seu tempo, a Igreja e algo que se assemelha ao Estado. Não era à toa que o seu bando foi cantado ao longo dos séculos como “Robin Hood and his merry men”. A irreverência e o deboche que fazem parte do espírito inglês encontraram em Robin Hood o seu refúgio perfeito — enquanto a seriedade e superioridade moral da Távola Redonda atendiam a outra necessidade desse processo de formação cultural. Em vários dos episódios da lenda, Robin Hood leva a pior: alguém lhe prega uma peça, um João Pequeno lhe enche de porrada, e essa falibilidade do personagem lhe enriquece profundamente.

No entanto, parece que só há Robins tristes por aí. Kevin Costner, com sua cara de Gary Cooper de segunda, certamente não tem aquele ar flamboyant de um Errol Flynn. Mas Russell Crowe deve ser ainda pior. Diretor e ator fizeram juntos “Gladiador” — e algo me diz que eu posso esperar um Robin Hood feroz e macho, incontáveis cenas de sangue, algumas batalhas grandiosas e violentas e cenografia megalomaníaca.

É por isso que, até hoje, a versão de Michael Curtiz continua insuperada. Os filmes recentes sobre Robin Hood não trazem nada disso, perdem sua essência ao tentar atualizar algo que não pode ser atualizado; ou, talvez, em uma tentativa de acrescentar alguma novidade a algo que não pode e não deve ser atualizado. É difícil imaginar um Kevin Costner, com sua cara de Gary Cooper, pregando uma peça no xerife de Nottingham. E Russell Crowe está mais para Gladiador do que para um ladrão boa praça como Robin Hood.

É ruim ficar velho e ter lembranças de tempos melhores.

House, MD

De vez em quando vejo “House”, seriado exibido pela Universal.

House, para quem não assiste à TV a cabo, é uma espécie de “ER” com um personagem central grosso e malvado. É um médico pretensamente genial, aparentemente capaz de diagnósticos brilhantes enquanto faz algo totalmente diverso da atividade médica, geralmente no final de cada episódio. Por exemplo, alguém fala sobre a barriga do Ronaldinho e ele descobre a cura para a Aids, coisas assim.

As pessoas assistem a House e se empolgam com os termos técnicos que ele usa. “Faça um HDGDSF agora!” “Faça uma rinostomia, uma histerectomia e uma tomografia!” — desculpe se os termos são confusos ou inexistentes: o que sei de medicina se resume às palavras “Novalgina” e, agora que tem genérico para tudo, “Dipirona”. Mas se não entendo nada de medicina, tenho certeza de que a maioria das pessoas que vêem aquele seriado também não entendem que diabo é aquilo. Elas assistem assim mesmo, como assistiam ao mais chato dos seriados, “ER”. Assim como eu, essas pessoas não sabem dizer o que há de verdade ali, não sabem quantas daquelas doenças com nomes esquisitos e sintomas idem são reais ou não. Nesse aspecto, os tantos fãs de House que existem por aí agem igualzinho aos seguidores de Jim Jones. Não importa o que o sujeito diz: é verdade, tem que ser verdade.

Talvez seja por isso que elas não conseguem perceber que House não é tudo isso que dizem dele.

Primeiro: House é um pé-frio. É provavelmente o maior pé-frio que eu já vi. É garantido. Você está com uma dor de cabeça, ou uma virose, ou uma indisposição qualquer — digamos que você está constipado — e tem a falta de sorte de cair nas suas mãos: é o seu fim, e eu choro por você e aviso à sua família para comprar o caixão e alugar um espaço na capela e contratar as carpideiras. Porque o seu destino é negro: em pouco tempo você vai desenvolver uma porção de sintomas que no mundo normal são incomuns e vai acabar com uma doença de nome impronunciável, algo como Síndrome de Hathaway-Nguyen-Hodges, ou Doença de Bangor-Sminörezk. Você vai começar a sangrar, ter convusões, seu xixi vai ficar verde, você vai ficar com a cara da Linda Blair em “O Exorcista”. Como um Walt Disney da morbidez, ele poderia dizer ao olhar o cadáver mutilado e irreconhecível de um dos seus pacientes: “E tudo isso começou com uma simples dor de cabeça”.

Se House não é pé-frio, é o maior olho gordo que eu já vi. Pior que o sujeito que matou uma vaca do meu avô só de olhar para ela. O sujeito vai para as mãos de House e então começa a definhar, a definhar e quando vê já está na UTI.

Se algum dia eu ficar doente, por favor não me levem para House. Eu gosto da vida.

House é uma grande, uma enorme fraude. Sejamos francos: o que há de genial em fazer um bocado de exames computadorizados para descobrir o que o sujeito não tem? House corta um pedaço do cérebro de um sujeito e fica feliz: “Ele não tem o Mal de Robson-Clark!” Arranca dois terços do intestino de uma moça, e “Que bom, ela não tem a Doença de Lescaut-Donnerville!” A gente tem que admitir que mais cedo ou mais tarde House vai chegar a um resultado, provavelmente quando não restarem mais alternativas nem maneiras de tirar pedaços do corpo de alguém.

A única dúvida é saber se vai sobrar também algo do paciente.

Se alguém conseguir me explicar o que há de genial nisso, eu agradeço. Até porque duvido que House fosse capaz de descobrir que um sujeito tem esquistossomose apenas apalpando a sua barriga. Não gosto muito de médicos, acho uma classe canalha, mas vamos ser justos: os médicos aqui do Nordeste, acostumados a tratar gente que padece de uma fome atávica e secular, são muito melhores que o doutor capenga.

Aainda assim as pessoas assistem ao seriado, e compram seus DVDs nas Americanas, e não é só aqui. É triste que House faça mais sucesso que Francisco Cuoco em “Obrigado Doutor”, mas não estamos sozinhos: na França, House se tornou sinônimo de sedutor. Em Paris, um romance policial de Hugh Laurie, o ator que faz o papel do médico escroto, foi lançado com estardalhaço. As mulheres suspiram por ele.

No entanto suspiram à toa, porque House é gay.

House não gosta de mulheres, trata-as com arrogância, desprezo, até as raias do inconcebível. No mundo real House já teria levado tanto tapa que até hoje estaria procurando onde foi parar o seu nariz.

Tem uma mulher lá, uma doutora que parece ser a chefe de House no hospital e que segundo ele tem uma bunda de respeito. A mulher é louca para dar para o sujeito — mas ele não come. Incapaz de dar amor, ou coisa mais básica, ele dá apenas o seu sarcasmo. Cada um dá o que tem. Uma das doutorazinhas quis dar para ele — mas ele não comeu. É um padrão que se repete em excesso.

É uma coisa lógica: se House é assim genial, se todo mundo acha ele brilhante, em um hospital cheio de médicas gostosinhas e enfermeiras bonitinhas, se fosse homem macho do sexo masculino já tinha passado o rodo. “Vamos discutir o linfoma de Kotler lá em casa”, e as moças o seguiriam com um sorriso beatífico. Mas ele prefere soltar piadas agressivas, humilhar as moças sem razão. Tem uma doutora lá com cara de russa que é linda e promíscua — mas, imagine, ele não come. Ah, por favor.

A homossexualidade de House é tão evidente. Olha o caso daquela doutora, a sua chefe. O sujeito vive fazendo alusões à sua bunda. Mas não são um elogio, não são um galanteio, não são sequer a frustração de um desejo. São apenas agressão, são sem sentido, não têm aquela coisa verdadeira e sentida de peão de obra que olha uma moça feia e sem graça — mas com os atributos mínimos toleráveis, dois peitos e uma bunda — e diz com olhos apertados “Você é a nora que mamãe pediu a Deus”. Não. House diria que ela é burra — e isso é triste, porque qualquer homem neste mundo sabe que não existe mulher burra, pelo menos não enquanto ele ainda não comeu.

Misoginia tem limites, mas a de House é tão grande que deveria soar o sinal de alarme em qualquer mulher com o mínimo de senso. Isso não acontece, entretanto. Cheguei à conclusão de que o seriado trabalha com um sentimento que as mulheres não admitem em público porque têm vergonha e que Nelson Rodrigues, em uma das frases mais profundas e mais mal interpretadas da história da literatura brasileira, resumiu ao dizer que “toda mulher gosta de apanhar, só as neuróticas reagem”. É por isso que elas não percebem o que é óbvio, gritantemente óbvio: House é apaixonado por Wilson, o oncologista bonzinho e recalcado que o trata com excessiva condescendência e delicadeza (o que mostra, desde logo, quem é que tem ascendência na relação) e que é interpretado por aquele moço que fez o rapaz sensível em “Sociedade dos Poetas Mortos”.

Wilson é tão obviamente gay que é impressionante que as pessoas não comentem isso. É também é o grande amor da vida de House. E retribui esse amor em igual medida. Mas talvez para evitar que as milhares de mulheres que suspiram pelo sujeito (e erroneamente o chamam de cafajeste, quando ele é um homem que apenas reprime os seus desejos e transforma essa repressão em agressividade) desistam do seriado, tentam passar a imagem de um médico heterossexual que no entanto se recusa a comer alguém. House prefere passar seu tempo livre assistindo a shows de destruição de caminhões, o que, definitivamente, é coisa de quem quer afetar uma masculinidade inexistente. Em um episódio Wilson não quis assistir o tal show com ele — e então House se transformou em uma bicha vingativa e maldosa, e perseguiu os outros amigos de Wilson. O moço é possessivo.

Eu tenho uma sugestão para o seriado. Deveriam fazer House assumir sua paixão por Wilson. Ele se tornaria uma pessoa melhor. Trataria as pessoas com mais civilidade, porque falta de sexo deixa as pessoas nervosas e irritadas. Se isso acontecesse, House deixaria de ser um apenas médico com algum acordo com os donos do hospital onde trabalha e que rouba o Estado pedindo exames e mais exames; e o mundo seria mais feliz.

Bobagem em temperatura de fervura

“Presságio” é um dos piores filmes feitos por Hollywood nos últimos tempos.

Perto de “Presságio” “O Dia Depois de Amanhã” é um grande filme, “Eu Sou a Lenda” é um clássico e M. Night Shyamalan é Ingmar Bergman em “O Sétimo Selo”. “Presságio”, estrelado por Nicholas Cage, é uma grande bobagem criacionista, provavelmente escrita por alguém que cresceu assistindo aos programas de Jimmy Swaggart e Rex Hubbard nas manhãs de sábado e que tentou pegar uma caroninha nos filmes tipo The Mist ou aquele último do Shyamalan.

Oficialmente a sinopse do filme é a seguinte: astrofísico que perdeu a mulher há pouco tempo e cria sozinho o filho encontra um papel, escrito 50 anos atrás por uma menina que ouve vozes e colocado numa cápsula do tempo, em que estão previstas boa parte das grandes tragédias sofridas pelo mundo no último meio século. Ele decifra o código e tenta evitar que as últimas tragédias antecipadas ali aconteçam.

Essa é a versão que pessoas mal intencionadas passariam. Gente que não quer o seu bem e que, inconformada por terem caído nessa pegadinha, quer que você caia também. Mas o filme pode ser descrito de outra forma, mais verdadeira e mais caridosa com as pobres almas que porventura tenham a infelicidade de pensar em assisti-lo.

“Presságio” conta a história de um pé-frio que aonde vai leva destruição e morte. A desculpa para isso são as tais profecias — mas é mentira, o sujeito é que é agourento, mesmo. Depois que ele acha o papel, uns sujeitos com caras de fantasmas passam a seguir seu filho — um monte de tarados pedófilos que andam com umas pedrinhas pretas, talvez símbolo fálico disfarçado, eu não sei. Mas mesmo o medo do que possa vir a acontecer ao seu filho não o impede de causar acidentes onde passa: derruba um avião, descarrilha o metrô de Nova York — e o pior é que o desgraçado nunca morre. Em busca da verdade, ele vai atrás da filha da doidinha que escreveu as profecias meio século atrás, outra grande pé-frio que, pelo menos, tem a decência de morrer antes que todo mundo — mas que como praga se reproduz exponencialmente, deixa uma filha que também ouve vozes.

Nesse meio tempo Nicholas Cage faz o que faz melhor: aproveita cada chance disponível para ficar parado com as pernas abertas e com cara de sofredor meio atarantado.

Finalmente ele descobre que a última profecia se refere ao fim do mundo: uma explosão solar vai destruir o planeta e não há nada que se possa fazer para evitar isso. Então o mistério dos sujeitos com caras de fantasmas é revelado: eles são ETs que acompanham os escolhidos para serem salvos do fim do mundo. O filho de Cage e a filha da maluca são levados em uma nave espacial com seres de luz que parecem anjos para outro planeta, onde poderão recomeçar a humanidade. Levam consigo dois coelhinhos, símbolos pascais de fertilidade e indicativos do que aqueles dois meninos farão a partir dali. (Só por isso os autores do filme deveriam ser processados por pornografia infantil.)

Depois de entregar o filho aos ETs com jeito de anjos high-tech, Nicholas Cage vai para a casa dos pais, com quem não falava há anos, e enquanto grandes labaredas engolem Nova York eles se abraçam e morrem felizes e conformados, na melhor metáfora do churrasquinho familiar do fim de semana que o cinema já produziu.

A última cena, bastante onírica, mostra os dois meninos correndo em direção a uma grande árvore, a Árvore da Vida ou do Conhecimento, como preferir. Os coelhinhos já devem ter ficado cruzando em algum lugar, que coelho você sabe como é, né? Só não se sabe onde está o diabo da Serpente.

E aí o filme acaba e você vai correndo para a bilheteria, bater na moça que lhe vendeu o ingresso e exigir que aquela cachorra lhe devolva o dinheiro que você gastou.

Isso é tudo. Se você ficou com raiva por eu ter contado o final do filme, não fique. Eu prestei um serviço de utilidade pública, e um grande favor a você. Conhecendo o final, você pode se poupar o desprazer de assistir a uma imbecilidade confusa como essa. Em vez de gastar seu dinheiro nesse filme, vá às Lojas Americanas e compre um DVD qualquer de 12,99. Porque depois de ver tamanho amontoado de bobagens, a única lição que fica você provavelmente já sabia: use protetor solar.

Sobre livros

Há algumas coleções de livros que deveriam ser reeditadas imediatamente. Simples assim.

Uma delas é a “Brasiliana”, da Companhia Editora Nacional, hoje controlada pelo IBEP. A Nacional foi fundada por Monteiro Lobato. Foi provavelmente a editora mais importante do século XX, noves fora, pela sua importância no cenário literário nacional. Tem muita coisa boa ainda em seu catálogo, mas é apenas uma sombra pálida do portento que foi um dia.

Na sua “Brasiliana” foram publicadas, pela primeira vez, algumas das mais importantes obras do pensamento brasileiro. “Sobrados e Mucambos” de Gilberto Freyre, por exemplo, ou ainda “Brancos e Pretos na Bahia”, de Donald Pierson, que um sebo de Salvador vende por 180 reais (na Estante Virtual achei por 40, e esse vai ser um favor que deverei para sempre ao Bia).

Essa coleção é um dos maiores repositórios do pensamento brasileiro no século XX, e não pode ser esquecida.

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A coleção “Clássicos da Literatura Juvenil” foi publicada pela Editora Abril no início da década de 1970, e já foi mencionada neste blog umas duas vezes — uma delas em comparação com a Coleção Vagalume.

A coleção é do tempo em que a Abril, que hoje tenta fazer pouco de qualquer revista ou jornal que lance fascículos, se consolidava justamente com eles — como as coleções de clássicos, bíblias ou enciclopédias como a Conhecer. A “Clássicos da Literatura Juvenil” é encontrada com relativa facilidade em sebos, por preços de vão de 1 a 7 reais, cada. Vale a pena, e é provavelmente a coleção que eu recomendaria a qualquer pessoa, em qualquer tempo.

A coleção é brilhante, perfeita para quem está começando a ler. Não apenas pelos excelentes títulos. Mas porque, com sua capa dura, ilustrações e bom trabalho de edição, ensina as crianças a gostarem do objeto livro. Talvez isso seja meio antiquado numa época em que se tenta vender o conceito de e-book readers, mas à medida que o tempo passa tenho mais e mais certeza de que ainda não inventaram nada melhor que ler um bom livro, numa edição bem cuidada, deitado em um sofá, uma cama ou uma rede, com a perna apoiada sobre uma bunda redonda e quente, enquanto a brisa da praia passa devagarinho por você.

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Outra coleção que deveria ser posta na rua novamente não é propriamente uma reedição.

A editora mineira Itatiaia tem uma das melhores coleções sobre história do Brasil, a “Reconquista do Brasil“. São textos fundamentais da história brasileira. Rugendas, Mawe, Burton, Saint-Hillaire, Ewbank: esses livros são peças fundamentais para quem quer entender a evolução histórica do Brasil. Porque são as fontes originais, utilizadas por praticamente todos os historiadores decentes do país. É comum as pessoas, por exemplo, se posicionarem contra ou a favor de Gilberto Freyre — mas a maior parte dessas pessoas nunca chegou perto do material que ele utilizou para chegar às suas conclusões. Esses livros são o antídoto definitivo contra a epigonia.

Estão todos ali, mas esses livros são vendidos por preços altíssimos, bem acima da média. E os preços altos condicionam também os preços dos mesmos livros nos sebos. Não há justificativa real para isso: a maior parte dos textos originais, inclusive, já entrou em domínio público há tempos. Só são caros assim porque são raros. E só são raros porque, mesmo sendo fundamentais para a formação do pensamento nacional, não encontram competição. Não são livros que vendam muito, não sustentariam a livre concorrência,

Universidades brasileiras, em vez de gastarem tempo e dinheiro financiando pesquisas e teses ruins ou incoerentes, bem que poderiam gastar um pouco de esforço e dinheiro para traduzir e transcrever esses livros, colocando-os em domínio público sob uma licença Creative Commons. Se esquecessem um pouco seus interesses corporativos, estariam prestando um favor maior à cultura nacional do que incentivando seus alunos a publicarem monografias bobas e mal escritas.

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A edição brasileira da “Comédia Humana”, de Balzac, era uma das melhores do mundo.

O responsável por ela foi o Paulo Rónai, que publicou uma edição quase perfeita: excelentes traduções, em português acima da média, com introduções críticas e uma abundância de notas de rodapé explicando o contexto histórico do livro e também as relações com outros livros da “Comédia”. A Editora Globo reeditou esses livros entre o fim dos anos 80 e começo dos 90, mas essa edição está fora de catálogo já há muito tempo.

Eu ainda não faço idéia da razão pela qual a “Comédia Humana” está fora de catálogo. É impressionante que um dos maiores autores da história da literatura mundial esteja relegado à reimpressão de alguns dos seus piores livros, como “A Mulher de Trinta Anos”.

Balzac faz falta.

Sobre o Oscar 2009

Depois de anos assisti a uma cerimônia do Oscar. Eu estou ficando velho ou ele está mesmo menos brega? Eu não sei. Mas me pareceu uma cerimônia mais agradável, mais rápida, e mais elegante do que aquelas a que eu estava acostumado.

Foi engraçado ver Anthony Hopkins cochilando. Ou ver que a Sophia Loren está a cara da Elza Soares, tão esticada que seu umbigo já deve estar se aproximado do pescoço.

Talvez a melhor surpresa da noite — para mim, pelo menos, que não vinha acompanhando absolutamente nada sobre o assunto — tenha sido o prêmio honorário dado a Jerry Lewis. Lewis merece todo e qualquer prêmio que queiram lhe oferecer. Na verdade, este que lhe foi concedido hoje é pequeno diante de sua grandeza. Lewis é um dos grandes comediantes da história do cinema, e é um tanto triste vê-lo aos 82 anos, torto por causa dos seus problemas de coluna, e sabendo que tem um problema grave de pulmão, resultado dos anos fumando talvez até mais que eu. Ver os americanos, que sempre o acharam pouco mais que um careteiro, finalmente lhe dar um prêmio, por menor que seja, já é um pequeno consolo.

Por outro lado eu não sabia que Jules Dassin tinha morrido, e isso me deixou triste.

Não posso comentar a maior parte dos Oscars concedidos, porque não vi boa parte dos filmes e, principalmente, não vi Slumdog Millionaire, o grande campeão da noite. Mas posso dizer que houve alguns pequenos equívocos. Eu teria dado o Oscar de Edição de Som a “WALL-E”, pela delicadeza com que o som é tratado naquele filme, que não tem diálogos até quase a sua metade; The Dark Knight poderia ficar com o de Melhor Som.

Não tenho certeza de que Sean Penn merecia o Oscar por Milk; Frank Langella é um ator fantástico, apesar de subestimado, e poderia ter ganho, assim como Mickey Rourke. Mas Sean Penn é provavelmente o nome mais palatável entre todos eles — com exceção de Brad Pitt, que mesmo com toda a simpatia e verba de publicidade investida tem um desempenho tão ruim como Benjamin Button que simlesmente ter sido indicado é uma grande vitória do seu estúdio.

Cerimônia encerrada e, no fim das contas, é tão bom ver que nem todo mundo é idiota e “Benjamin Button”, aquela pequena celebração incompetente da mediocridade, ganhou apenas três Oscars menores — e dois eles questionáveis, porque The Dark Knight merecia o de Efeitos Visuais, e o de Maquiagem poderia ter ido para Hellboy II sem problemas.

10 anos atrás eu fiquei irritado ao ver um filme mediano como “Shakespeare Apaixonado” ganhar o Oscar de melhor filme, uma atriz medíocre como Gwyneth Paltrow derrotar uma atriz soberba como Fernanda Montenegro, um palhaço como Roberto Benigni ganhar o Oscar de melhor ator e uma baba puxa-saco como “A Vida é Bela” vencer “Central do Brasil”. Mas hoje, ao deixar “Benjamin Button” no lugar que lhe é de direito, o Oscar me deixou com uma sensação de justiça feita.