Eu tinha acabado de começar a ler American Radical: The Life and Times of I. F. Stone, livro até agora bastante interessante, mas o Bia me encheu tanto o saco que fui comprar
“Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock ‘n’ Roll Salvou Hollywood”, de Peter Biskind, cujo título original é o que encima este post.
O livro, velho de 12 anos mas só recentemente lançado aqui, é uma história de parte da geração dos anos 70, encabeçada por cineastas como Francis Ford Coppola e Martin Scorsese. Conta a ascensão desse grupo e do seu estilo de fazer filmes, e a sua superação pelas mãos dos que Biskind aponta como os mais medíocres dessa geração, George Lucas e Steven Spielberg.
Por convenção, os anos 70 foram os tempos do “cinema autoral” em Hollywood, quando o studio system entrou em colapso criativo e esgotamento de marketing, e cineastas mais ou menos influenciados pelo cinema europeu deram as cartas. Foi um período curto, enterrado quando multidões de idiotas fizeram fila para assistir ao primeiro “Guerra nas Estrelas”.
O assunto poderia dar origem a uma grande investigação sobre a evolução do cinema naqueles tempos. No entanto, “Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock ‘n’ Roll Salvou Hollywood” está mais para um programa sensacionalista da E! Television do que para uma coletânea de artigos de Robert Warshow. Talvez isso se explique pela própria origem de Biskind: ele era editor da finada Premiere americana, que nunca foi exatamente uma Cahiers du Cinèma. Página após página, nos vemos às voltas com escândalos, com sexo, com a megalomania de gente que, embalada por excesso de dinheiro, poder e drogas, se achava genial e se comportava de acordo.
Isso faz do livro leitura instigante, é verdade. É difícil, se você gosta de cinema, conseguir largá-lo. Mas ao mesmo tempo essa abordagem o diminui. Para um livro que pretende afirmar a idéia de que aquele foi um período único na história do cinema americano, ele começa mal, porque é um exemplo claro e acabado do tipo de cultura dominante na indústria cultural de hoje.
Escândalos de qualquer tipo não eram uma novidade em Hollywood. Da garrafa de coca-cola enfiada na vagina de uma figurante numa festa de Chico Bóia ao assassinato de Johnny Stompanato pela filha de sua namorada Lana Turner — passando por Gloria Grahame encontrada na cama com o filho de 13 anos de seu marido, Nicholas Ray —, Hollywood sempre foi pródiga em escândalos, nem sempre controlados pela sua máquina de relações públicas. Um ambiente machista, selvagem, competitivo e canalha. Qualquer mulher em Hollywood sempre soube que o meio mais fácil de subir ali não era lutando e mostrando o seu talento, e sim deitando e abrindo as pernas (a propósito, como bem sabem tantas estrelinhas da TV Globo, não é muito diferente no Brasil). No entanto, Biskind quer fazer parecer que aquela geração dos anos 60/70 inventou tudo isso. Que era mais selvagem, mais louca, mais inventiva.
Biskind fala de um tempo “mágico” em que diretores conquistaram o poder e derrotaram os produtores. É uma ilusão: os produtores sempre estiveram ali, e mesmo entre essa geração que proclama que ia tomar o poder, eles sempre foram parte fundamental e imprescindível do processo de criação no cinema. Cinema é indústria, e indústria requer dinheiro.
O mais importante, no entanto, é que o que Biskind tenta fazer passar por uma explosão criativa sem precedentes é apenas um interregno na história de Hollywood.
Biskind falha em perceber que, em primeiro lugar, o movimento de renovação de Hollywood não começa com “Sem Destino” — filme que, à parte sua importância histórica, tem muito poucos méritos. As mudanças que se processaram em Hollywood foram um processo razoavelmente lento, do qual o próprio Coppola fez parte com seu You’re a Big Boy Now, e do qual se pode ver traços estéticos já em filmes como “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”. Ao longo da segunda metade dos anos 60 — e com o caminho timidamente aberto pelas comédias sexuais da primeira —, o cinema em Hollywood foi se adaptando aos novos tempos, e deixando para trás os faroestes e os grandes dramalhões que foram sua espinha dorsal nos anos 50, como “A Caldeira do Diabo” ou “Tudo o que o Céu Permite”. Pode-se acusar Hollywood de quase tudo, menos de burrice, e ela já tinha reconhecido o surgimento de uma geração de consumidores com novos critérios estéticos e filosóficos. Biskind louva o surgimento da produtora BBS, mas esquece de colocá-la em seu contexto histórico: a BBS surgiu anos depois de proposta semelhante e muito mais radical, a Apple dos Beatles e seu “comunismo ocidental” — iniciativa que àquela época já tinha ido para o buraco por absoluta inviabilidade de sua proposta.
Outro dos problemas do livro está na hipérbole. Biskind escolheu um grupo de cineastas, com alguns laços em comum, e tentou transformá-los na alma de Hollywood, a razão de ser do próprio cinema. Isso ajuda a explicar as trajetórias desses indivíduos, mas não ajuda a explicar a evolução do cinema nesse período. Ao excluir gente como Woody Allen, Stanley Kubrick e Paul Mazursky, por exemplo, Biskind faz parecer que foi o seu pequeno grupo de cineastas que fez todo o cinema realmente importante em Hollywood. Biskind os exclui porque sua mera existência faz cair a sua teoria de um pequeno grupo de desajustados que fizeram uma revolução. Seu herói Bert Schneider, por exemplo: era pouco mais que um arrivista balzaquiano, mas aos olhos de Biskind acaba adquirindo ares de um David O. Selznick.
Talvez por isso Biskind não consiga elaborar uma gênese para sua “Nova Hollywood”. Não entende direito, por exemplo, a dimensão real da influência francesa sobre aqueles realizadores — embora perceba que, quando os americanos tentavam fazer um filme “europeu”. o resultado era quase sempre canhestro. Não consegue entender, realmente, as relações entre aquela geração, o seu tempo, a consolidação da televisão como meio de entretenimento de massa e a influência do cinema europeu, principalmente o francês. Ele sabe que está lá, mas não sabe explicar.
Definitivamente, ele não compreende o papel da televisão na formação de um novo padrão temático e formal em Hollywood. Certo, aponta que em determinado momento Hollywood aprendeu a usar a TV a seu favor, revolucionando o seu esquema de divulgação e possibilitando o surgimento da era dos blockbusters — embora não elabore esse ponto suficientemente. Em algum momento dos anos 70, o cinema americano finalmente descobriu a fórmula para garantir audiência e a sua permanência. Percebeu que havia possibilidade de melhorar a estratégia de distribuição de novos filmes, fazendo lançamentos maciços em vez de construir a distribuição aos poucos — sistema que funcionava quando os estúdios ainda eram donos dos cinemas —, e que a TV poderia funcionar como aliada através de comerciais.
A questão é que isso é pouco mais do que Hollywood sempre fez: se adaptar aos novos tempos.
Ainda pior, Biskind não consegue perceber que talvez haja mais por trás desse processo: que ao oferecer ao público médio dramaturgia abundante, barata e de acordo com os padrões hollywoodianos de antigamente, a TV forçou o cinema a buscar novos caminhos. O cinema pretensamente autoral dessa geração foi um primeiro passo, mas o caminho definitivo só seria achado mesmo quando o cinema descobriu a mina de ouro dos blockbusters. E uma nova estética, que ele acertadamente define e lamenta.
Correndo justamente para o outro lado, em um estilo típico da indústria da fofoca, Biskind cria seus próprios deuses para depois tentar destruir seus altares. Tem um prazer quase mórbido em fazer a crônica da decadência de seus heróis e mostrar como os medíocres Spielberg e George Lucas tomaram o posto de grandes estrelas de Hollywood. Mas mesmo nesse momento, mesmo com todos os elementos à mão, ele não consegue fazer uma análise correta e abrangente do significado histórico de tudo aquilo cujas peripécias ele acabou de narrar.
O livro tem alguns heróis, além de Bert Schneider. Warren Beatty — sobre quem Biskind escreveu uma biografia respeitosa há pouco tempo — é um deles, e seu papel na criação dessa “Nova Hollywood” é justamente ressaltado, embora até o ponto do exagero: Biskind baba por Shampoo, dando-lhe uma importância que o filme não merece. Por outro lado, além de apresentar alguns personagens como vilões exagerados, desmistifica mas ridiculariza além do necessário Pauline Kael — uma crítica muito acima da média mas que não estava acima das vaidades típicas do pior jornalismo (e talvez isso explique a sua implicância com Billy Wilder, por exemplo).
Mas é preciso lembrar que a maioria dos protagonistas do livro se perdeu pela vida. Robert Evans é uma massa amorfa e bizarra de cirurgias plásticas que fazem as de Michael Jackson parecerem obras-primas. Coppola faz filmes ruins nos intervalos do gerenciamento de sua vinícola. Scorsese, que até o início dos anos 90 ainda tinha o que dizer, perdeu tudo o que tinha em “Cassino”, foi brutalizado pelas “Gangues de Nova York” e hoje seu trabalho mais significativo é o engajamento na preservação de filmes antigos. Michael Cimino, que faz uma ponta no livro com o seu maravilhoso “O Franco-Atirador” (e com o malfadado “O Portal do Paraíso”), é um hoje um transexual praticamente banido do cinema.
Para quem se pretendia grandes revolucionários criativos, sua chama se queimou rápido demais.
O livro termina sem oferecer respostas suficientes e sem conseguir justificar a sua assertiva. Para quem gosta de fofocas — como saber que Margot Kidder dava para qualquer um, que Coppola não podia ver uma assistente na sua frente, e principalmente a história deprimente do mais medíocre de seus heróis, Peter Bogdanovich —, é um prato cheio. Mas se você quer entender a história do cinema, ou entender melhor o que faz de um filme algo realmente bom, é provavelmente melhor ler uma coletânea de artigos e resenhas do Andrew Sarris.
No fim das contas o livro acaba se tornando um exemplar fiel daquilo que a tal geração rock ‘n’ roll mais odiava: um típico blockbuster, feito para entreter, nem que para isso apele para a baixaria e o sensacionalismo. Talvez não pudesse ser diferente.