Easy Riders, Raging Bulls

Eu tinha acabado de começar a ler American Radical: The Life and Times of I. F. Stone, livro até agora bastante interessante, mas o Bia me encheu tanto o saco que fui comprar

“Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock ‘n’ Roll Salvou Hollywood”, de Peter Biskind, cujo título original é o que encima este post.

O livro, velho de 12 anos mas só recentemente lançado aqui, é uma história de parte da geração dos anos 70, encabeçada por cineastas como Francis Ford Coppola e Martin Scorsese. Conta a ascensão desse grupo e do seu estilo de fazer filmes, e a sua superação pelas mãos dos que Biskind aponta como os mais medíocres dessa geração, George Lucas e Steven Spielberg.

Por convenção, os anos 70 foram os tempos do “cinema autoral” em Hollywood, quando o studio system entrou em colapso criativo e esgotamento de marketing, e cineastas mais ou menos influenciados pelo cinema europeu deram as cartas. Foi um período curto, enterrado quando multidões de idiotas fizeram fila para assistir ao primeiro “Guerra nas Estrelas”.

O assunto poderia dar origem a uma grande investigação sobre a evolução do cinema naqueles tempos. No entanto, “Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock ‘n’ Roll Salvou Hollywood” está mais para um programa sensacionalista da E! Television do que para uma coletânea de artigos de Robert Warshow. Talvez isso se explique pela própria origem de Biskind: ele era editor da finada Premiere americana, que nunca foi exatamente uma Cahiers du Cinèma. Página após página, nos vemos às voltas com escândalos, com sexo, com a megalomania de gente que, embalada por excesso de dinheiro, poder e drogas, se achava genial e se comportava de acordo.

Isso faz do livro leitura instigante, é verdade. É difícil, se você gosta de cinema, conseguir largá-lo. Mas ao mesmo tempo essa abordagem o diminui. Para um livro que pretende afirmar a idéia de que aquele foi um período único na história do cinema americano, ele começa mal, porque é um exemplo claro e acabado do tipo de cultura dominante na indústria cultural de hoje.

Escândalos de qualquer tipo não eram uma novidade em Hollywood. Da garrafa de coca-cola enfiada na vagina de uma figurante numa festa de Chico Bóia ao assassinato de Johnny Stompanato pela filha de sua namorada Lana Turner — passando por Gloria Grahame encontrada na cama com o filho de 13 anos de seu marido, Nicholas Ray —, Hollywood sempre foi pródiga em escândalos, nem sempre controlados pela sua máquina de relações públicas. Um ambiente machista, selvagem, competitivo e canalha. Qualquer mulher em Hollywood sempre soube que o meio mais fácil de subir ali não era lutando e mostrando o seu talento, e sim deitando e abrindo as pernas (a propósito, como bem sabem tantas estrelinhas da TV Globo, não é muito diferente no Brasil). No entanto, Biskind quer fazer parecer que aquela geração dos anos 60/70 inventou tudo isso. Que era mais selvagem, mais louca, mais inventiva.

Biskind fala de um tempo “mágico” em que diretores conquistaram o poder e derrotaram os produtores. É uma ilusão: os produtores sempre estiveram ali, e mesmo entre essa geração que proclama que ia tomar o poder, eles sempre foram parte fundamental e imprescindível do processo de criação no cinema. Cinema é indústria, e indústria requer dinheiro.

O mais importante, no entanto, é que o que Biskind tenta fazer passar por uma explosão criativa sem precedentes é apenas um interregno na história de Hollywood.

Biskind falha em perceber que, em primeiro lugar, o movimento de renovação de Hollywood não começa com “Sem Destino” — filme que, à parte sua importância histórica, tem muito poucos méritos. As mudanças que se processaram em Hollywood foram um processo razoavelmente lento, do qual o próprio Coppola fez parte com seu You’re a Big Boy Now, e do qual se pode ver traços estéticos já em filmes como “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”. Ao longo da segunda metade dos anos 60 — e com o caminho timidamente aberto pelas comédias sexuais da primeira —, o cinema em Hollywood foi se adaptando aos novos tempos, e deixando para trás os faroestes e os grandes dramalhões que foram sua espinha dorsal nos anos 50, como “A Caldeira do Diabo” ou “Tudo o que o Céu Permite”. Pode-se acusar Hollywood de quase tudo, menos de burrice, e ela já tinha reconhecido o surgimento de uma geração de consumidores com novos critérios estéticos e filosóficos. Biskind louva o surgimento da produtora BBS, mas esquece de colocá-la em seu contexto histórico: a BBS surgiu anos depois de proposta semelhante e muito mais radical, a Apple dos Beatles e seu “comunismo ocidental” — iniciativa que àquela época já tinha ido para o buraco por absoluta inviabilidade de sua proposta.

Outro dos problemas do livro está na hipérbole. Biskind escolheu um grupo de cineastas, com alguns laços em comum, e tentou transformá-los na alma de Hollywood, a razão de ser do próprio cinema. Isso ajuda a explicar as trajetórias desses indivíduos, mas não ajuda a explicar a evolução do cinema nesse período. Ao excluir gente como Woody Allen, Stanley Kubrick e Paul Mazursky, por exemplo, Biskind faz parecer que foi o seu pequeno grupo de cineastas que fez todo o cinema realmente importante em Hollywood. Biskind os exclui porque sua mera existência faz cair a sua teoria de um pequeno grupo de desajustados que fizeram uma revolução. Seu herói Bert Schneider, por exemplo: era pouco mais que um arrivista balzaquiano, mas aos olhos de Biskind acaba adquirindo ares de um David O. Selznick.

Talvez por isso Biskind não consiga elaborar uma gênese para sua “Nova Hollywood”. Não entende direito, por exemplo, a dimensão real da influência francesa sobre aqueles realizadores — embora perceba que, quando os americanos tentavam fazer um filme “europeu”. o resultado era quase sempre canhestro. Não consegue entender, realmente, as relações entre aquela geração, o seu tempo, a consolidação da televisão como meio de entretenimento de massa e a influência do cinema europeu, principalmente o francês. Ele sabe que está lá, mas não sabe explicar.

Definitivamente, ele não compreende o papel da televisão na formação de um novo padrão temático e formal em Hollywood. Certo, aponta que em determinado momento Hollywood aprendeu a usar a TV a seu favor, revolucionando o seu esquema de divulgação e possibilitando o surgimento da era dos blockbusters — embora não elabore esse ponto suficientemente. Em algum momento dos anos 70, o cinema americano finalmente descobriu a fórmula para garantir audiência e a sua permanência. Percebeu que havia possibilidade de melhorar a estratégia de distribuição de novos filmes, fazendo lançamentos maciços em vez de construir a distribuição aos poucos — sistema que funcionava quando os estúdios ainda eram donos dos cinemas —, e que a TV poderia funcionar como aliada através de comerciais.

A questão é que isso é pouco mais do que Hollywood sempre fez: se adaptar aos novos tempos.

Ainda pior, Biskind não consegue perceber que talvez haja mais por trás desse processo: que ao oferecer ao público médio dramaturgia abundante, barata e de acordo com os padrões hollywoodianos de antigamente, a TV forçou o cinema a buscar novos caminhos. O cinema pretensamente autoral dessa geração foi um primeiro passo, mas o caminho definitivo só seria achado mesmo quando o cinema descobriu a mina de ouro dos blockbusters. E uma nova estética, que ele acertadamente define e lamenta.

Correndo justamente para o outro lado, em um estilo típico da indústria da fofoca, Biskind cria seus próprios deuses para depois tentar destruir seus altares. Tem um prazer quase mórbido em fazer a crônica da decadência de seus heróis e mostrar como os medíocres Spielberg e George Lucas tomaram o posto de grandes estrelas de Hollywood. Mas mesmo nesse momento, mesmo com todos os elementos à mão, ele não consegue fazer uma análise correta e abrangente do significado histórico de tudo aquilo cujas peripécias ele acabou de narrar.

O livro tem alguns heróis, além de Bert Schneider. Warren Beatty — sobre quem Biskind escreveu uma biografia respeitosa há pouco tempo — é um deles, e seu papel na criação dessa “Nova Hollywood” é justamente ressaltado, embora até o ponto do exagero: Biskind baba por Shampoo, dando-lhe uma importância que o filme não merece. Por outro lado, além de apresentar alguns personagens como vilões exagerados, desmistifica mas ridiculariza além do necessário Pauline Kael — uma crítica muito acima da média mas que não estava acima das vaidades típicas do pior jornalismo (e talvez isso explique a sua implicância com Billy Wilder, por exemplo).

Mas é preciso lembrar que a maioria dos protagonistas do livro se perdeu pela vida. Robert Evans é uma massa amorfa e bizarra de cirurgias plásticas que fazem as de Michael Jackson parecerem obras-primas. Coppola faz filmes ruins nos intervalos do gerenciamento de sua vinícola. Scorsese, que até o início dos anos 90 ainda tinha o que dizer, perdeu tudo o que tinha em “Cassino”, foi brutalizado pelas “Gangues de Nova York” e hoje seu trabalho mais significativo é o engajamento na preservação de filmes antigos. Michael Cimino, que faz uma ponta no livro com o seu maravilhoso “O Franco-Atirador” (e com o malfadado “O Portal do Paraíso”), é um hoje um transexual praticamente banido do cinema.

Para quem se pretendia grandes revolucionários criativos, sua chama se queimou rápido demais.

O livro termina sem oferecer respostas suficientes e sem conseguir justificar a sua assertiva. Para quem gosta de fofocas — como saber que Margot Kidder dava para qualquer um, que Coppola não podia ver uma assistente na sua frente, e principalmente a história deprimente do mais medíocre de seus heróis, Peter Bogdanovich —, é um prato cheio. Mas se você quer entender a história do cinema, ou entender melhor o que faz de um filme algo realmente bom, é provavelmente melhor ler uma coletânea de artigos e resenhas do Andrew Sarris.

No fim das contas o livro acaba se tornando um exemplar fiel daquilo que a tal geração rock ‘n’ roll mais odiava: um típico blockbuster, feito para entreter, nem que para isso apele para a baixaria e o sensacionalismo. Talvez não pudesse ser diferente.

Livros, novamente

Sinceramente, não sei onde o André Kenji viu “viés elitista” no clube de “amantes do livro de papel”, aquele de que, para fazer parte, você só precisa comprar um livro num sebo por quaisquer um ou dois reais. Superioridade, ele que me desculpe, tem é quem pode dar não sei quantas centenas de dólares num simples intermediário.

É o seguinte: você compra um negocinho de 259 dólares, lá nos EUA. Não são os livros ainda — esses você vai comprar depois. Isso é só para que você possa se habilitar a comprá-los. É mais ou menos como se, para comprar um livro, eu tivesse antes que comprar o papel, a tinta e a cola.

Com esse dinheiro, na mesma Amazon, eu posso comprar cerca de 30 livros ultrapassados de papel. E nós é que somos “a elite esnobe”? Então tá.

O Kenji poderia ter pelo menos feito as contas antes de dizer que a preferência por livros de papel é preconceito de elite. Na verdade, mania de elite é pular dentro do mais novo gizmo, por caro que seja, e tentar alinhavar argumentos favoráveis à toa, dizendo que é isso o futuro; elite é quem gosta de ser a primeira em tudo. E de ser diferente das gentes comuns. É o senso de pertencer a uma noção de elite que faz as pessoas comprarem os primeiros celulares, os primeiros notebooks, os primeiros blu-ray players, e sair do Orkut quando a favela coloca sua cadeirinha de praia por lá. Foi essa elite que comprou laser discs, e foi enterrada junto com eles. Nada contra: são elas que ajudam a baratear os custos para quem vem depois.

No seu comentário aqui no blog, ele disse que “bibliotecas são um pesadelo para bibliófilos”. É uma pequena contradição em termos, e acredito que ele tenha querido dizer “bibliotecários”, porque falar isso dos pobres bibliófilos é como dizer que descer corredeiras perigosas são um pesadelo para rafters, ou que escalar o Everest é um pesadelo para alpinistas. O Kenji não sabe, mas aqueles a que ele se refere como “bibliófilos de verdade”, como o José Mindlin, são capazes de dar milhares de reais em um livro que, em outra edição, não custa mais de 15, e de alugar apartamentos exclusivamente para isso. Definitivamente, esse não é um mundo que o Kenji entenda. Como eu não entendo aquele em que as pessoas correm feito mariposas em direção à luz normalmente efêmera da mais nova novidade.

Eu, que estou longe do nível de obsessão de um Mindlin mas que gosto de livros e de um certo acúmulo deles, não entendo quando o Kenji diz que “manter uma biblioteca minimamente organizada costuma ser uma tarefa de leão (logo, todo bom leitor vê um livro eletrônico com bons olhos por motivos puramente práticos)”. Organizar uma biblioteca com cerca de 1.500 volumes, que é a capacidade do Kindle, pode até tomar algum tempo, que não passa de um dia; mantê-la organizada, não.

Mais que isso, é um prazer: pergunte à minha mulher como fiquei ao receber em casa uma edição especial de crônicas do Rubem Braga ilustradas pelo Millôr, dia desses. O problema de bibliotecas é o espaço que ocupam. Só esse.

No fim das contas, a falha do argumento do Kenji é que ele transporta a discussão para a comparação entre os suportes e faz excessivos juízos de valor sobre isso. E nisso, o Sergio Leo e o Millôr, no link do Marcus, já me parecem ter dado a palavra final.

O fm disse que jogou um livro na piscina e ele se desintegrou, empatando o jogo. Mas ele poderia ter feito diferente: jogado um balde d’água no livro e um no Kindle, e visto qual se recuperava melhor. 3×2. Ou melhor, 4×2, se ele resolver jogá-los do sétimo andar, como lembrou o Joãogi. Eu já tive computador e vários livros molhados. Os livros ainda estão aqui. (A propósito, também tive muitos discos molhados, uma vez. Perdi as capas, que grudaram umas nas outras, e isso me dói até hoje; mas o vinil continua. Se fosse o HD onde guardo minhas MP3, eu perderia absolutamente tudo.)

Dentro dos argumentos pró-livro, tem um que as pessoas esqueceram. Em casa eu tenho disquetes de 5 1/4”, mini-discs, Zip Disks, fitas VHS, Betacam e MiniDV. São todas mídias com menos de 15 anos. Dessas, só consigo abrir com facilidade as fitas MiniDV — mas está cada vez mais difícil achar onde tocá-las: elas estão caminhando para a extinção, o mesmo caminho que será trilhado por aqueles discos das XDCam que as estão substituindo.

Mas esses argumentos falam do suporte. O problema na verdade é mais grave. Tente abrir um arquivo do Word de 1992 — isso se você tinha a sorte de usar o Word naquela época, e não outro programa como o Carta Certa ou o Write do Windows. Meu computador está cheio de formatos superados, e o ritmo de obsolescência de formatos às vezes até dominantes chega a parecer absurdo. Formatos de vídeo, de áudio, tudo isso aparece e some com rapidez excessiva.

Um livro publicado em 1789 é lido da mesma forma hoje.

A principal vantagem do Kindle é a portabilidade, mas mesmo isso é razoavelmente ilusório. A idéia de que com um negocinho que pesa umas poucas centenas de gramas você pode levar milhares de livros para cima e para baixo é uma bobagem, pouco mais que argumento básico de equipe de vendas. Por ninguém sai carregando 20 livros para cima e para baixo, pela simples razão de que não vai ler tudo isso. Quando carregam, levam apenas o que estão lendo. É como o sujeito que compra um iPhone porque ele manda e-mail, tem GPS, câmera e filmadora, acessa internet e tem joguinho de cerveja, e termina usando só para falar, mesmo. (Alguns casos são piores: meu Blackberry não tem e-mail habilitado porque tenho medo de terminar como um amigo, de férias em Natal e respondendo e-mail de trabalho.)

E portabilidade para quê, mesmo? No dia a dia, você carrega um livro, e olhe lá (e alguém aí pretende abrir o seu Kindle brilhando de novo no metrô enquanto vai de casa para o trabalho? Pretende mesmo? Tem medo não?). Se você está viajando, a última coisa que pretende levar são livros; no máximo alguns guias de viagem. Ainda estou esperando conhecer quem vá para Paris levando as edições completas da “Comédia Humana” na mala — sei lá por que razão, talvez para descobrir onde fica a pensão de Mamãe Vauquer. Se você conhece alguém que tenha feito algo parecido, eu posso indicar alguns endereços de Centros de Assistência Psicossocial. São do SUS, são gratuitos e funcionam bem.

Em outras situações a portabilidade é uma vantagem real do Kindle, mas apenas em condições específicas. Se você está acampando, por exemplo, seu Kindle durará umas poucas horas até a bateria acabar. Provavelmente não vai dar para ler “O Homem Sem Qualidades”. Já a edição de papel dura enquanto houver luz e você tiver paciência.

No fim das contas, o Kindle será útil mesmo para quem lê o seu livro em casa, como qualquer pessoa, e não quer gastar espaço com estantes. É um argumento válido, mas que está bem longe dessas maravilhas apregoadas, e acaba reduzindo bastante a aplicação real dessa pequena maravilha.

Eu, como sou um velhinho com cabelos mais brancos a cada dia, ainda prefiro meus livrinhos: velhos, baratos, ultrapassados — mas confiáveis, resistentes e, além de tudo, uma delícia para os olhos.

De livros novos e livros velhos

Li com atenção o post do Alex sobre o Kindle. Cheguei à conclusão de que até que poderia me adaptar àquele trequinho com cara de lousa mágica sem problemas. Me orgulho de mim mesmo por estar tão moderno, por conseguir ver nele todas as vantagens que apregoam, como a portabilidade, a praticidade, isso e aquilo. Cáspite. Quem diria.

Mas eu gosto mesmo é de livro, essa coisa anacrônica e superada de papel e tinta e papelão.

É talvez um problema de geração; eu faço parte da última que cresceu sem alternativas consistentes ao livro. Esses eram os objetos em que se adquiria conhecimento sólido, de verdade, uma coisa superior à informação efêmera e circunstancial de revistas, TV ou rádio; talvez essa veneração do livro se devesse em pequena parte ao fato de eu viver em um país de analfabetos, não sei. O que eu sei é que mesmo algumas décadas antes, quando os grandes romances eram publicados primeiro como folhetins em jornais — por gente boa como Machado de Assis e Balzac –, era no livro que a obra alcançava sua realização plena. O objeto tem um simbolismo muito maior que o conhecimento que ele encerra.

A aquisição de informação não é o único prazer que um livro oferece. Há um completamente diferente e independente: o prazer de tocar, de sentir e de ter.

Como eu já disse aqui antes, gosto de saber que tenho uma primeira edição disso e daquilo. Valor objetivo? Quase nenhum. Na verdade, absolutamente nenhum: não é algo que esteja à venda. É algo meio intangível, na verdade, porque são coisas que compro barato e que são retiradas de mercado. A graça nesses livros é justamente o fato eu tê-los; isso não é exatamente bom capitalismo. Gosto também de ter uma edição bem cuidada de algum livro; e para quem quer entender um pouco dessa relação que se cria com um amontoado de folhas de papel eu recomendaria um livrinho bobo, um policial de John Dunning chamado “Impressões e Provas” que explica direito a loucura a que se pode chegar por causa desses gostos estranhos. Meu caso, felizmente, é muito menos grave.

Mas ainda assim é um caso razoavelmente sério. Dia desses, depois de ler o último livro de Rubem Fonseca, “O Seminarista” — um dos pontos baixos em sua carreira, ruim como poucos outros, pior até que “O Doente Molière” e sobre o qual me abstenho de fazer comentário, em nome de um certo pudor e uma gratidão e admiração profundas aos bons livros de Rubem Fonseca –, parei para olhar a capa e a tipologia usada. Ele mudou de editora, foi para a Agir depois de mais de 20 anos na Companhia das Letras. Pelo que pude ver, está reeditando todos os seus livros, como fez na editora antiga.

As novas capas são feias, são medíocres e uniformes. Me fizeram ter saudade das capas de Helio de Almeida na editora anterior, um artista brilhante capaz de belezuras como as de “Lucia McCartney”, “A Coleira do Cão” e “Romance Negro”.

E tem a tipologia. Se a Garamond Light dos livros de Fonseca na Companhia das Letras já estava cansando, e os tempos e o computador estão dando oportunidade a uma espécie de renascimento tipográfico, ainda é um tipo de elegância suprema e imbatível. O novo tipo usado em “O Seminarista”, Minion Pro, é adequado e eficiente, mas é apenas mais um, como as Fairfield e Electra que estão na moda; não tem a graça leve da antiga.

É esse tipo de coisa isso que e-books e e-readers como o Kindle não me oferecem, essas dimensões a mais, ainda que supérfluas. Não é nada fundamental ou imprescindível. Mas eu sempre acreditei que a medida do humano é o supérfluo, que é o desnecessário que faz a cereja no bolo da vida.

Um bom livro lhe dá o prazer da leitura, e satisfaz o seu tato, o seu olfato — e-books não envelhecem, não é? Você não vai sentindo o cheiro mudar com o tempo, não sente o e-book adquirindo aos poucos o cheiro do resto de seus livros. E é uma maravilha, uma dessas dignas de aparecer nos programas da Discovery ou da National Geographic, que eles ainda por cima sirvam para transmitir conhecimento.

Pequena introdução à discografia de John Lennon

Já fiz uma pequena discografia de McCartney — que um dia reescrevo, melhorando e aprofundando; agora é a vez de Lennon.

Não é segredo para ninguém que considero McCartney um músico mais capaz. E apesar de altamente irregular, alternando bons e maus momentos, sempre achei que tem uma discografia mais consistente que a de Lennon. As personas públicas dos dois interferem de maneira excessiva na percepção de seus talentos como músicos: e isso beneficia Lennon enquanto prejudica McCartney — talvez até mais do que os seus piores álbuns.

Mas independente de qualquer coisa, John Lennon foi uma das personalidades que ajudaram a definir a história a partir de 1970. Como artista, de um ponto de vista geral, mas principalmente como músico, Lennon deixou uma marca indelével na história da cultura pop.

Essa imagem, infelizmente, costuma ser dissociada de sua música. Para milhões de pessoas, John Lennon é Imagine; e essa é apenas uma das suas tantas canções, uma de que, a propósito, ele não gostava particularmente. Ela foi fundamental na definição da imagem de John Lennon, mas ao mesmo tempo tornou essa imagem, além de unidimensional, falsa. Porque Lennon era muito mais que isso.

Abaixo segue uma pequena análise, disco a disco, deixando-se de lado bisonhices como Two Virgins e os discos ao vivo.

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Bastardos Inglórios

“Bastardos Inglórios” é um filme cheio de defeitos. Há falhas gritantes no roteiro, como o fato de Hans Landa deixar Shosanna fugir, ou, mais tarde, estrangular uma personagem quando isso não seria lógico nem recomendável dentro dos seus planos, que conheceremos logo a seguir.

Há também uma série de cenas desnecessárias — a chacina dentro da taverna, por exemplo, só se explica a partir da necessidade de Tarantino encaixar uma de suas marcas registradas, a carnificina generalizada — ou excessivamente longas. O filme, que dura pouco mais de duas horas e meia, poderia perder essa meia hora adicional em seu próprio benefício, e deixaria de se arrastar em sua metade. Mas o diretor, nesses momentos, parece ter idéias demais sem dispor da habilidade necessária para realizá-las.

O caráter referencial, pastiche — na melhor acepção da palavra — de gêneros cinematográficos em “Bastardos Inglórios” está claro já nos créditos de abertura, onde se misturam tipologias e cores diferentes. Essa é a personificação gráfica do cinema de Tarantino: um grande caldeirão em que gêneros diversos se misturam e se reciclam, reutilizadas com alguma classe e um estilo bem próprio.

As cenas iniciais, tomando suas referências do grande western spaghetti italiano, dão o tom do filme. Mas Tarantino não é sujeito de ficar restrito a um gênero apenas. A partir daí vários gêneros servem de referência, mas um em especial: o grande cinema de guerra dos anos 50/60, no estilo “resta-um” de “Os Doze Condenados” e “Fugindo do Inferno. “A Grande Ilusão” de Renoir, também, quando menos no reconhecimento, através da linguagem, do caráter transacional de qualquer guerra. As referências no entanto não se limitam ao cinema: vão até Chuck Berry (Nadine, em LaLousianne), Yvette Mimieux, e tantas outras espalhadas pelo filme. É sempre um jogo interessante tentar descobrir onde estão todas as referências citadas por Tarantino em seus filmes.

Taratino apresenta uma série de personagens dos quais nos lembraremos por muito tempo. Mélanie Laurent — a mais bela atriz com um perfil feio que o cinema já revelou –, Eli Roth e Diane Kruger desempenham seus papéis de maneira correta, mas sem brilho; Mike Myers e Rod Taylor fazem aparições surpreendentes e perfeitamente esquecíveis. Caricatura de uma mistura de Don Corleone, John Wayne e o americano tabaréu médio, além de um nome que homenageia o bom e velho Aldo Ray, Brad Pitt é mais um tipo que um personagem, resvalando conscientemente na caricatura.

É o ator austríaco Christoph Waltz, desconhecido até agora, que rouba o filme em um desempenho inesquecível — seu Hans Landa é uma metáfora curiosamente acurada do que representou o nazismo. Waltz está brilhante: seu personagem consegue transmitir a loucura e o sadismo inerentes ao regime. A partir do momento em que Tarantino resolve inverter os papéis de nazistas e judeus, se permite também criar um vilão mais rico e mais atraente que o nazista tradicional — embora como seja costume nos seus filmes, essa riqueza nunca seja completa: Tarantino é um criador de tipos, não de personagens.

Até aí, o filme seria mais um — um Tarantino normal, cheio de referências, bombástico e histriônico, quase caricatural; personagens improváveis (uma judia francesa namorando um negro? Então tá) e diálogos em que pequenas teorias pop acéfalas (desta vez sbre a diferença entre um rato e um esquilo) ganham força extra por serem expressadas em diálogos extremamente bem escritos; e de um modo geral a mise en scène substituindo o que deveria ser a força do roteiro.

Mas “Bastardos Inglórios” não é só mais um filme de Tarantino, é também o melhor filme de 2009, um ano particularmente inglório para o cinema, e o melhor do diretor desde Pulp Fiction.

Em “Bastardos Inglórios” Tarantino dá um passo à frente no seu estilo de fazer cinema. Pela primeira vez, o uso de referências cinematográficas que define o seu estilo se transforma verdadeiramente em metalinguagem. O resultado é uma das maiores declarações de amor ao cinema desde “Cinema Paradiso”. Ao fazer o que filmes não costumam fazer por timidez — afinal de contas, por que tanto pudor em matar Hitler, se são obras de ficção? –, Tarantino encontra um dos mais fantásticos ovos de Colombo do cinema em toda a sua história.

O que Tarantino diz ao espectador é que é apenas no cinema que a realidade pode ser transformada. No cinema os judeus perseguidos por Hitler passam de vítimas a bons predadores (o adjetivo é necessário porque na Palestina esse caráter predatório está evidente há muito tempo, mas essa é outra conversa). E se isso pode acontecer, a história também pode ser recriada.

George Harrison

Um comentário antigo do Luiz a um post sobre Michael Jackson me chamou a atenção: ele não concorda totalmente com o que eu disse sobre George Harrison aqui. O Bruno também é um dos fãs de George Harrison.

Então vamos lá.

Quando George Harrison morreu, em 29 de novembro de 2001, nasceu um santo. De repente, George conquistou tudo o que não conseguiu durante sua vida: reconhecimento absoluto como guitarrista, louvor como compositor, consolidação do papel de parte fundamental dos Beatles. Como eu já disse aqui, em alguns momentos se podia ter a impressão de que Lennon e McCartney eram apenas coadjuvantes de um gênio absoluto.

A morte faz isso com algumas pessoas. Cria um mito injusto e exagerado que não sobrevive a uma simples recapitulação dos fatos.

Harrison era um excelente guitarrista, e ninguém diz o contrário. Esforçado, diligente, capaz de repetir o mesmo solo indefinidamente — algo que Jimmy Page, por exemplo, não consegue. Mas ele viveu numa era em que guitarristas excepcionais tomavam conta do cenário pop: Jimi Hendrix, Eric Clapton, Page, Jeff Beck. Harrison não estava à altura deles. Nunca esteve. Aliás, se alguém esquece, alguns dos melhores riffs dos Beatles não são sequer de sua autoria (os de I Feel Fine e Day Tripper, por exemplo, são de Lennon).

Isso não quer dizer que Harrison era dispensável. Sem ele, os Beatles dificilmente seriam a mesma banda. Ao contrário dos Stones, que sobreviveram à saída de Brian Jones com mudanças apenas sutis em seu som, os Beatles perderiam muito de sua própria identidade se Harrison sumisse — nesse caso, seria mais acertado compará-lo a Ron Wood. Os Beatles não seriam uma banda melhor por ter um guitarrista superior como Hendrix — e esse é um dos aspectos mais interessantes do grupo, o fato de que sua importância e permanência não dependia de super-instrumentistas, mas sim da interação única entre eles. Harrison era, sim, fundamental. Mas não única, ou mesmo principalmente, por seus méritos como guitarrista.

Tampouco pelos seus méritos como compositor. Ninguém discute que a primeira grande canção de Harrison tenha sido While My Guitar Gently Weeps — e eu desconfio que sua importância venha principalmente do solo antológico de Eric Clapton. Seus dois outros clássicos são Something e Here Comes the Sun. Essas três canções são de 1968 e 1969; até lá — ou seja, durante praticamente toda a existência dos Beatles –, Harrison não tinha sido capaz de compor nenhum grande clássico, ao contrário dos seus colegas. McCartney e Lennon estavam certos no seu julgamento sobre Harrison: como compositor, ele simplesmente não estava no mesmo nível que eles.

Apesar da colaboração importantíssima de George Harrison e Ringo Starr, os Beatles tinham um núcleo duro bem claro, e esse era composto por Lennon e McCartney. (John Lennon: “Os Beatles eram Paul e eu.”) A relação entre os dois era especial, e todos sabiam disso. Além disso, eram os principais compositores e, digamos assim, os diretores musicais. Mas quando Harrison morreu — e cito especificamente a cobertura d’O Globo — ele foi chamado, literalmente, de “a alma dos Beatles”.

Pelo amor de Deus. Harrison não era suficientemente respeitado sequer pelos seus colegas. Quando Lennon saiu, McCartney e Allen Klein (que morreu há alguns meses) imploraram para que ele não contasse a ninguém, porque a banda acabaria e eles deixariam de renegociar um contrato importante. Quando McCartney passou a perna em Lennon e avisou ao mundo que tinha saído também, a banda acabou. Mas quando Harrison saiu da banda, em meio às gravações do que viria a ser o Let it Be, Lennon simplesmente comentou que poderiam chamar Eric Clapton para o seu lugar. Era uma brincadeira nervosa no meio de um turbilhão, mas com enorme fundo de verdade. Mais tarde, as opiniões de Lennon sobre Harrison não seriam das mais elogiosas — basta ver o que ele diz a respeito do ex-amigo em sua última entrevista à Playboy.

Seu papel na dissolução da banda é também subestimado. Normalmente, as análises mais primárias oscilam entre a culpa de Lennon e a de McCartney. O processo, claro, foi mais complexo, e envolvia uma série de outros elementos. Mas a atitude de George Harrison costuma ser subestimada em excesso.

Seu descontentamento era ainda mais consistente que o de Lennon. Ainda que inconscientemente, Harrison sabotou todas as tentativas de união de grupo em sua fase final — era uma das principais vozes de oposição a McCartney, às vezes mais vocal do que o próprio Lennon. Eu não teria medo em afirmar que ele queria sair da banda muito mais do que Lennon, sempre bastante explícito em relação a isso. E tenho uma idéia do por quê. Lá fora, George Harrison era “O Venerável Beatle George Harrison”, merecedor de um respeito e uma deferência que ele jamais conseguiria dentro da banda e que infelizmente se devia, em grande parte, às qualidades de Lennon e McCartney. Lennon achava que os Beatles o limitavam, e em certo aspecto estava certo, embora essas limitações também o protegessem de micos federais. Harrison não percebia que, ao contrário, era o que mais se beneficiava do fato de ser um beatle: além do seu próprio grande talento, era também caudatário da genialidade absurda dos outros.

Ele tampouco conseguiu avaliar corretamente o seu papel dentro da dinâmica da banda. Em 1992, numa entrevista a uma rádio inglesa, disse que McCartney o tinha destruído como guitarrista. Se isso foi tudo o que ele conseguiu após 15 anos de convivência com um dos mais talentosos músicos da história da música pop, o problema é com ele, e é grave. A relação entre Lennon e McCartney apenas fez com eles dessem o melhor de si, misturando competição e colaboração em doses semelhantes — mas competir com esses dois, e especialmente com McCartney, fez com que Harrison achasse que era um eterno injustiçado e que isso o prejudicou.

O ego de Harrison, definitivamente, o atrapalhou. Não era maior que os de Lennon e McCartney, mas durante algum tempo, pelo menos, foi maior que o seu próprio talento. Em algum momento, Harrison achou que era capaz de sustentar uma carreira solo brilhante e consistente, mesmo quando tomava decisões equivocadas como a Dark Horse Tour, alienando seus fãs ao forçá-los a ouvir horas de música indiana. Quando saiu dos Beatles, resolveu mostrar para o mundo que o peso da entidade Lennon/McCartney estava sufocando um grande talento e lançou um álbum triplo, o excelente All Things Must Pass.

Mais que um álbum, era uma egotrip. Porque embora brilhante, All Things Must Pass poderia ter sido um álbum duplo excepcional, e certamente um disco simples absolutamente perfeito — tão bom ou melhor quanto o John Lennon/Plastic Ono Band. Há gordura demais em All Things Must Pass, um número excessivo de faixas desnecessárias, e essa gordura pode ser creditada a nada mais, nada menos que um ego inchado e sem noção de suas limitações. Em última análise, e independente de sua qualidade, All Things Must Pass é George Harrison gritando “Eu sou tão bom quanto John e Paul!”.

(E é aí que mora a diferença entre Harrison e Lennon. Quando Lennon dizia que os Beatles o limitavam, se referia ao fato de não encontrar na banda um canal para um disco como o Plastic Ono Band e canções como Cold Turkey. Aquilo, realmente, não tinha “cara de Beatles” — como também, por outro lado, bobagens como o Two Virgins; a competição entre ele e McCartney o protegia disso, além de garantir aos dois que suas piores canções continuassem inéditas. Isso não se aplica à obra de Harrison. Todas as suas canções solo poderiam, sem problemas, ser gravadas pelos Beatles. Afinal, eles gravaram Love You To e The Inner Light, não gravaram?)

Noves fora, a carreira solo de Harrison foi medíocre, superior apenas à de Ringo — o que não quer dizer absolutamente nada. Se as de McCartney e de Lennon têm altos e baixos, a de Harrison foi uma trajetória descendente — do brilhante All Things Must Pass ao deprimente Gone Troppo, de 1982. Não foi à toa que, em seus últimos 20 anos de vida, ele lançou apenas dois álbuns solo — sem contar os dois discos do Travelling Wilburys, a excelente banda à la Sgt. Pepper’s que formou com Bob Dylan, Roy Orbison, Jeff Lynne e Tom Petty.

Não é insensato arrsicar a opinião de que Harrison simplesmente não tinha mais o que dizer — por isso preferia se dedicar a aperfeiçoar os jardins de Friar Park, sua mansão que aparece na capa do All Things Must Pass, e a produzir filmes brilhantes como “A Vida de Brian”, do Monty Phyton.

E embora seja algo menos importante, uma das coisas que me impressionam são as referências constantes ao santo espiritualizado e superior ao mundo material que ele era. Porque definitivamente Harrison não era isso — ou, para ser mais exato, era muito mais complexo que isso. Sua generosidade e humanidade imensas são legendárias; mas elas também ajudam a ofuscar o outro lado de uma personalidade fascinantemente complexa. Sua sensação de inferioridade diante de Lennon e McCartney — mais velhos e mais talentosos — era compensada, por exemplo, em sua relação com Eric Clapton. Inseguro, Clapton permitia que sua relação com Harrison seguisse uma hierarquia rígida, na qual o beatle era o ente superior. George reproduzia, ali, a relação que tinha com Lennon, apenas invertendo os papéis. Em cima de alguém ele tinha que descontar, afinal.

Além disso, mulherengo em excesso, George ofereceu a mulher para Eric Clapton para tentar pegar a irmã dela; teve um caso com a mulher de Ringo, seu melhor amigo (e depois, quando perguntaram por quê, ele respondeu simplesmente: “incesto”). E mesmo Olivia Harrison, com quem George teve um casamento bem mais sólido e maduro que o anterior, teve que agüentar a vergonha de ver uma prostituta de Los Angeles (parece que os Beatles tinham uma queda por putas angelenas, a julgar por experiências semelhantes de McCartney) contar publicamente que, enquanto prestava um serviço sexual a Harrison, ele tocava o seu ukulele e cantava uma canção de George Formby.

(A propósito, Harrison ganhou pontos comigo quando fiquei sabendo disso. Não há dúvida: George Harrison, definitivamente, era um grande artista.)

Mas é preciso fazer uma ressalva. Depois de ler tudo isso acima é fácil ficar com a impressão de que George Harrison era um nada, e isso seria uma injustiça. Era um grande músico, capaz de compor canções extraordinárias como Something e All Things Must Pass, e autor de dois ou três discos solo indispensáveis em qualquer discoteca. Não era um grande cantor, mas não fazia vergonha. O problema é que é impossível deixar de compará-lo aos seus parceiros de banda. Harrison não fazia vergonha cantando? Certo, mas não era versátil como McCartney nem visceral como Lennon. É nesse contexto que George Harrison é diminuído: a sombra de dois gigantes como Lennon e McCartney dava a sua exata dimensão. Porque, bem ou mal, ele é o autor de algumas das mais belas canções da música pop, um guitarrista superior a 98% de todos os outros, e um homem cujo nome está na história. Seu único problema é que seus companheiros de banda eram muito melhores que ele. E essa foi a dor que George Harrison carregou até o fim de sua vida.

Jerry Lewis

Tive a chance de rever um filme de Jerry Lewis e Dean Martin visto há muito tempo e do qual eu praticamente não lembrava: “Malucos no Ar”, uma comédia ambientada nas Forças Armadas. É um filme da metade da carreira cinematográfica da dupla, que se separaria depois de Hollywood or Bust. Àquela altura, a dupla Martin & Lewis era um fenômeno de popularidade nos Estados Unidos.

Curiosamente, é um dos poucos filmes a dar papel pouco relevante a Dean Martin, centrando sua atenção no histrionismo de Lewis. É uma pena. Martin era o par ideal para Jerry Lewis. Provavelmente seria para qualquer outro. Generoso, despreocupado, Martin estava à vontade em seu papel — mais ou menos o de Dedé Santana em relação a Renato Aragão, com mais categoria, mais presença e elegância e um ar de cinismo absolutamente verdadeiro e cafajeste. Dean Martin dava a Jerry Lewis todas as condições necessárias para que ele, um talento cômico como poucos outros, pudesse brilhar. E fazia isso sem nenhum problema. Dean Martin era autêntico, coisa rara em Hollywood, e um sujeito que sentia não dever nada a ninguém, nem estava preocupado com isso. Mais tarde, seria o único membro do Rat Pack a não ter medo de Frank Sinatra. Sua morte em 1995 foi uma das poucas de celebridades a me deixar triste.

Assistindo ao filme pude lembrar o que faz de Jerry Lewis o maior humorista americano da segunda metade do século XX. Lewis era anárquico, subversivo, incontrolável. Mas não é a anarquia dos Irmãos Marx. Se estes são intencionalmente anárquicos e deletérios, a subversão de Lewis vem da incapacidade de adequação ao mundo. Não há má vontade em Jerry Lewis: ele é um ingênuo que tenta fazer as coisas da maneira certa, mas que simplesmente não consegue porque não pode evitar fazê-las do seu próprio jeito.

A subversão presente em Jerry Lewis não era politicamente óbvia — ele jamais faria um filme como If, por exemplo. Em vez disso, o seu era o tipo mais perigoso: subversão social e de costumes. Tudo em Lewis é insolência, rebeldia e incapacidade de se adaptar ao mundo, ainda que de forma inconsciente e involuntária. Seus personagens não são como os de Charlie Chaplin, em que há, ainda que de maneira sutil e graciosa, uma atitude clara de confronto com o mundo. Tudo o que os personagens de Jerry Lewis querem é se encaixar uma sociedade com padrões claros e perfeitamente compreensíveis — e no entanto, inadvertidamente, são eles que acabam ameaçando sua estrutura.

Em “O Meninão”, refilmagem de um filme de Billy Wilder, esse aspecto subversivo de Lewis está bem claro em uma única cena, que pode servir de ilustração para toda a sua obra: ele interfere em um treino de educação física e, enquanto tenta dar o melhor de si, leva o grupo de garotas ao caos absoluto, destruindo qualquer possibilidade de ordem. O mundo não pode funcionar direito se Jerry Lewis está nele.

É possível lembrar um pouco dos irmãos Marx a partir capacidade de gerar o caos, embora a comparação com Chaplin fosse mais adequada. Mas Lewis tem atrás de si outras tradições, principalmente a de Bob Hope e Bing Crosby, e uma delicadeza que os Marx, definitivamente, não tinham.

Foi essa capacidade subversiva que os franceses da Cahiers du Cinema perceberam imediatamente. Deram a Lewis um reconhecimento que lhe faltou em seu próprio país. Se nos Estados Unidos ele era visto como pouco mais que um careteiro, na França esses aspectos foram percebidos e valorizados. Os franceses foram os primeiros a apontar a genialidade de Lewis; a isso acrescentaram, claro, a bobajada da teoria do autor, para justificar as eventuais explosões de genialidade que se vê ao longo de vários filmes de Lewis. Com isso acabam relevando defeitos na obra de Lewis que tornam a apreciação de seus filmes uma tarefa mais complexa do que o usual: Lewis tem problemas em costurar uma sucessão de gags muitas vezes geniais em uma narrativa coesa e fluida, ao ponto de parte deles simplesmente abrir mão dessa premissa para ser nada mais que coleções de cenas, como The Delicate Delinquent e The Bellboy. Por outro lado, seu uso da metalinguagem sugere um autor consciente e com domínio da idéia de narrativa cinematográfica.

Mais tarde, a persona cinematográfica de Lewis se desgastaria e acomodaria. Ele desenvolveria seus próprios tiques cinematográficos, combinaria isso a um ego desproporcional e que lhe levou a equívocos como “A Família Fuleira”, e na segunda metade dos anos 60 seus filmes perderiam o vigor e o frescor que apresentaram até então.

Mas nada disso apaga um fato simples: Jerry Lewis foi o maior humorista americano da segunda metade do século XX. Jerry Lewis era um gênio.

***

Escrever sobre Jerry Lewis é sempre um prazer para mim. É algo que eu devo a mim mesmo.

Em uma noite do primeiro semestre de 1979, a TV exibiu uma chamada para o filme da Sessão da Tarde do dia seguinte: “O Rei do Laço”. Minha mãe comentou que assistia aos filmes dele no cinema, nos anos 60, e que gostava muito dele. Isso bastou para que eu quisesse assistir ao filme.

O resultado foi paixão à primeira vista. De repente, Jerry Lewis era o meu novo ídolo. Não só meu, na verdade: meus amigos paravam o que estavam fazendo para assistir aos seus filmes na TV. Não foram poucas as vezes em que estávamos na rua e de repente todos debandávamos porque ia começar um filme de “Djeury Líus”, como eu pronunciava na época e como, por respeito à criança que fui, continuando pronunciando.

Naquele ano e nos dois seguintes, eu vi todos os filmes de Jerry Lewis exibidos na TV, com exceção de “De Caniço e Samburá”. Mais tarde, assistiria a praticamente todos. Mais tarde ainda, revendo boa parte daqueles filmes, eu identificaria os muitos defeitos, aqueles que fazem com que os americanos torçam o nariz para ele.

Mas depois eu faria as pazes com Jerry Lewis. Porque no seu caso não se trata de entender seus filmes. Se trata apenas de reconhecer a sua genialidade, maior que o que se pode ver se analisamos apenas seus filmes em vez do conjunto de sua cinematografia. Principalmente, se trata de reconhecer e gostar do fato de que, durante a minha infância, Jerry Lewis foi um dos meus grandes ídolos.

As revoluções dos Beatles

Pergunte às pessoas que gostam um pouco que seja dos Beatles e a grande maioria dirá que boa mesmo é a segunda fase da banda, aquela que por uma convenção meio claudicante se inicia com o Revolver. Dirão que a primeira fase é bobinha, e em parte isso vai se dever ao respeito a outra convenção simples e já consolidada: a chamada segunda fase, melódica e harmonicamente mais ambiciosa e mais sofisticada, é a fase universalmente considerada “revolucionária” dos Beatles.

E elas estarão erradas. Porque em termos de “revolução” nada se compara àqueles quatro meninos cabeludos de Liverpool que cantavam ié ié ié. Esses são os verdadeiros revolucionários. O resto é só conseqüência.

É engraçado que se tenha perdido a perspectiva histórica do que representou a chegada dos Beatles ao cenário musical. Foi o som de uma única canção, Please Please Me, que criou o que hoje se chama de rock inglês e que, por tabela, revitalizou o então moribundo rock americano, além de abrir caminho para que dezenas de outras bandas e artistas aparecessem e trouxessem elementos novos, alguns dos quais fundamentais, para a evolução da música.

As pessoas esquecem que no início da década de 60 o rock and roll estava morto. Buddy Holly e Eddie Cochran haviam morrido em acidentes (respectivamente de avião e de táxi), Chuck Berry tinha ido para a cadeia, Little Richard tinha entrado numa grave crise existencial e se convertido à religião, Jerry Lee tinha caído em desgraça porque comeu a prima — mas casou —, e Elvis, bem, Elvis tinha morrido também. Outros grandes artistas da primeira onda do rock tinham se esgotado em termos de inovação criativa — e aí se inclua Carl Perkins, Everly Brothers, Gene Vincent e tantos outros. O que se ouvia então era twist. Twist não é música que se dê ao respeito.

Dentro desse cenário, o que os Beatles representaram em termos de renovação da música pop em 1963 é virtualmente impossível de ser quantificado. Há uma série de teorias sobre as razões pelas quais os Beatles tomaram os Estados Unidos de assalto em 1964, que vão da necessidade de uma válvula de escape para o trauma do assassinato de John Kennedy à combinação de irreverência e seriedade ilustrada nos terninhos eduardianos que eles usavam sob seus cabelos compridos. Mas nada disso é tão importante quanto a sua música.

I Want To Hold Your Hand não se parece com nada feito antes dela. A energia, a coesão harmônica e a inventidade melódica que faziam parte da música dos Beatles representaram uma mudança de padrão muito mais importante, por exemplo, que a que eles fariam anos mais tarde com o Sgt. Pepper’s, considerado por muita gente o disco mais importante da história do pop.

Era aqui que estava o novo.

Havia mais coisas acontecendo simultaneamente — ou melhor, sendo gestadas. Na California os Beach Boys apareciam com um pastiche meio bobo de CHuck Berry e Everly Brothers; quem quer que ouça seus primeiros discos vai ver como o som parecia comportado e bem enquadrado. Em 1965 eles partiriam para uma grande aventura sonora, em canções mais elaboradas como Good Vibrations, mas em 1963 apenas repetiam a fórmula da surf music com letras debilóides como as de Be True To Your School. Enquanto isso, a Inglaterra se preparava para regurgitar o rhythm and blues americano, mais ou menos como a França tinha absorvido e transformado o cinema americano em sua nouvelle vague uns poucos anos antes; e lançava, ali, uma abordagem diferente e renovadora da música pop que estouraria em 1965 — da qual Satisfaction, dos Rolling Stones, talvez seja o seu maior símbolo.

Mas foram os Beatles que mostraram o que era realmente o novo. Satisfaction é caudatária direta desse caminho aberto por Please Please Me, inclusive na sonoridade. Com aqueles seus primeiros compactos — Please Please Me, She Loves You, I Want To Hold Your Hand — os Beatles definiram um padrão novo para a música pop. O que hoje pode até parecer bobinho para quem não consegue ver a história da evolução da música pop porque não consegue colocar a música em seu contexto, era revolucionário em 1964.

Bob Dylan percebeu isso imediatamente: ele lembra de estar na estrada quando ouviu pela primeira vez I Want to Hold Your Hand, e entendeu imediatamente que era dali que vinha o futuro; e abandonou o folk para entrar de cabeça no rock and roll (o que talvez não tenha sido uma boa idéia, mas essa é uma opinião bem pessoal). O poeta Phillip Larkin também:

Sexual intercourse began
In nineteen sixty-three
(which was rather late for me) –
Between the end of the
Chatterley ban
And the Beatles’ first LP.

Up to then there’d only been
A sort of bargaining,
A wrangle for the ring,
A shame that started at sixteen
And spread to everything.

Then all at once the quarrel sank:
Everyone felt the same,
And every life became
A brilliant breaking of the bank,
A quite unlosable game.

So life was never better than
In nineteen sixty-three
(Though just too late for me) –
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles’ first LP.

O impacto da chegada dos Beatles também é sentido em outras áreas do show business. Foram eles, por exemplo, que criaram o que hoje se entende por cena rock. Foi a beatlemania que possibilitou os shows em grandes estádios. Para que se tenha uma idéia do que isso representa é só lembrar que Elvis, o maior de todos antes de JPG&R, costumava se apresentar sobre tablados em feiras estaduais.

Nada disso significa que se deva subestimar a sua importância a partir do Revolver, o momento em que eles viraram os queridinhos de um público pretensamente sofisticado que finalmente se rendia incondicionalmente à força musical e social do rock, mas queria manter ainda uma certa dignidade intelectual; no entanto é bom lembrar que em 1967, ano do Sgt. Pepper’s, também surgiram coisas como os primeiros do Velvet Underground e dos Doors.

No Verão do Amor os Beatles não estavam mais sozinhos. Mas em 1964 estavam. Um sujeito com o cabelo na cintura podia ser transgressor em 1967, mas havia muitos outros como ele ao seu lado. Em 1963, os cabelos nos ombros dos Beatles eram absolutamente únicos. Quase tão únicos quanto a música que faziam. E por mais ingênuos que eles hoje pareçam, assim como a irreverência e até mesmo suas canções, a verdade é que foi naquele momento que eles pariram um mundo novo.