O dia em que Paul McCartney perdeu seu swing

Um dia, muito tempo atrás, Paul McCartney dialogou com o futuro — e nesse diálogo foi um dos principais artífices da música que se seguiria.

Além disso, sem medo de errar, pode-se dizer que ele foi um dos melhores cantores da era de ouro do rock. Versátil como poucos, capaz de gravar na mesma sessão uma balada como Yesterday e um rock à la Little Richard como I’m Down. Sua voz não tinha a visceralidade de um Lennon, nem conseguia transmitir a emoção e verdade que ele passava; mas ia facilmente a extremos que poucos outros conseguiam.

Os anos passaram, muitos anos, e de uns tempos para cá ele vem se contentando em fazer música — muitas vezes muito boa, por sinal; seus últimos lançamentos não fazem vergonha a um ancião com mais de 40 discos nas costas (comentários sobre eles foram feitos aqui e aqui). Por outro lado, sua voz acabou há muitos anos; McCartney já não é capaz de chegar aos agudos que atingia nos anos 60, até mesmo nos 80; e para contornar esse problema, desenvolveu vícios que o tornam, em alguns momentos, quase brega.

Agora ele resolveu voltar lá para trás. Seu novo disco, Kisses on the Bottom, é uma coletânea de antigos standards americanos — a maioria relativamente desconhecida. Acompanha-o a banda de Diana Krall, responsável também pelo grosso dos arranjos. Pela primeira vez McCartney gravou um disco em que não toca nenhum instrumento (com uma única exceção, violão em The Inch Worm). Talvez isso contribua, em parte, para o fato de que na maioria das canções não há o seu toque, a sua marca. De modo geral, parece um disco de Diana Krall — principal arranjadora do disco e presente em virtualmente todas as faixas — com McCartney nos vocais.

É um erro. Talvez o mais incômodo em Kisses on the Bottom seja justamente isso, os vocais de McCartney.

Ele se aproxima das canções com um tom ao mesmo tempo reverente e autocondescendente; o resultado é apenas pretensioso. A intenção aparente de soar intimista e low key, então, soa caricatural. Sua abordagem das canções é completamente equivocada, deixando evidente sua incapacidade de alcançar as variadas nuances exigidas pelas canções. Isso fica mais claro em canções como Ac-cent-tchu-ate the Positive (duvida? Ouça a versão das Andrews Sisters).

A McCartney faltam tanto a versatilidade vocal e a riqueza tonal dos crooners d’antanho; mas acima de tudo lhe faltam as qualidades de intérprete que essas canções parecem exigir. Ele não tem aquele quê a mais que fazia Sinatra dar uma vida antes inimaginável a uma canção, ou o charme aparentemente preguiçoso de Dean Martin, ou ainda a sensação de casualidade que Bing Crosby imprimia ao que cantava — e, em todos esses casos, uma técnica perfeita. Interpretando velhos standards, McCartney é um mau intérprete, é só mais um cantor. Não é sequer dos melhores: é um cantor sem voz. Além disso, aparentemente o disco pretende ser minimalista; mas não se compara, por exemplo, ao que Fred Astaire fez em The Irving Berlin Songbook. É um minimalismo quase burocrático, o minimalismo batido do jazz aguado à la Diana Krall ou Harry Connick, Jr. que as pessoas ouvem hoje em dia.

Resumindo: o problema desse disco é que Paul McCartney não tem swing.

Em entrevistas ele diz ter evitado durante muito fazer esse disco porque não queria ser comparado a Rod Stewart, que andou perpetrando coisas parecidas nos últimos tempos. Ele devia ter mais medo de ser comparado com Ringo Starr. O que Ringo fez 42 anos atrás em seu primeiro disco solo, Sentimental Journey, McCartney fez agora. A diferença é que Ringo não se levava a sério, até porque não podia, e seu disco tem um tom moderno, ainda que paródico, que quase chega a dar alguma personalidade aos grandes clássicos que o baterista não teve vergonha de regravar.

McCartney, no entanto, está sempre tentando se manter à altura de sua história. Talvez por isso tenha tido o cuidado de evitar ao máximo os grandes clássicos do cancioneiro americano. Foi uma medida acertada. Se se aventurasse a interpretá-los, o resultado seria provavelmente trágico, evidenciando ainda mais suas limitações. Uma pista disso está em Bye Bye Blackbird. Sua interpretação aqui é, em uma palavra, tenebrosa. Cheque a versão de Doris Day — que dificilmente seria incluída entre as mais conhecidas — para ver como se pode cantar essa canção com simplicidade e alcançar resultados excelentes. Em vez disso, McCartney acrescenta floreios desnecessários e uma interpretação arfante a uma canção que deveria ser interpretada apenas com um banjo, um contrabaixo e uma washboard. (Pensando bem, cheque a versão de Ringo em Sentimental Journey. Até essa é melhor.)

Como você vai baixar o disco nas redes P2P da vida (afinal, a quem queremos enganar, não é?), dê preferência à versão deluxe, que inclui duas canções bônus. Entre elas uma regravação de Baby’s Request, a canção que fechava um dos álbuns mais subestimados dos Wings, Back To The Egg.

Baby’s Request simboliza tudo o que há de errado em Kisses on the Bottom. Em sua versão original era uma canção simples, despretensiosa, que pretendia apenas fechar com graça o disco. Era aquilo que sua letra dizia: uma música para tocar antes de empacotar os instrumentos, depois que todo o salão se esvaziou, uma canção boba para um casal apaixonado em fim de noite que reluta em deixar uma noite perfeita acabar. A nova versão, no entanto, tem outras aspirações; a musiquinha simples se tornou pretensiosa, a voz de McCartney, antes sedutora em sua simplicidade, agora tenta se alçar a maneirismos que já não é capaz de conseguir.

Eu sei que tudo isso parece uma condenação absoluta do disco. Não é. Kisses on the Bottom é agradável, os arranjos são de extremo bom gosto, os músicos são de competência ímpar. E se você deixa de se preocupar com a voz de McCartney, ou sua interpretação de cantor de baile, se aceita sem problemas a sensação de dejà vu nas canções, Kisses on the Bottom se torna o tipo de disco que se pode colocar no CD player em uma noite com os amigos. Ou se no seu carro ou em sua casa está uma moça ou um moço que gosta desse tipo de música. É um disco útil. O problema é que utilidade é a última coisa que se deveria dizer de uma obra de arte.

Kisses on the Bottom tem outra grande qualidade, e essa é inquestionável. As duas canções escritas para este disco são surpreendentemente bem construídas, melodicamente sofisticadas, mostrando que McCartney afinal é um compositor em pleno controle de sua técnica. My Valentine é de uma elegância estonteante, sem perder a marca registrada de seu autor; Only Our Hearts é virtualmente indistinguível do que se fez de melhor nos anos 40. São, provavelmente, o melhor do disco.

Daqui a alguns anos, quando McCartney estiver morto e enterrado e vermes carnívoros não respeitarem suas vontades vegetarianas e devorarem suas carnes, Kisses on the Bottom vai ser lembrado dentro do conjunto da obra de Paul McCartney, talvez o maior artista pop da história. Vai ser visto com um acréscimo importante à obra impressionante de um sujeito que foi capaz de ajudar a mudar o mundo, que escreveu de rocks a balés, de oratórios a sinfonias. Mas enquanto isso não acontece, Kisses on the Bottom é só mais um disco feito para tocar em BG.

Literatura, coisa supérflua

Roger Ebert, crítico americano de cinema, escreveu há alguns meses um post no seu blog no Chicago Sun-Times desancando uma adaptação literária de “O Grande Gatsby” para um vocabulário intermediário. Vale a pena ler.

E eu concordo com Ebert.

Essa é provavelmente uma das adaptações menos necessárias de que já tive notícia. Isso não é, claro, uma condenação a todas as adaptações. Li muitas na infância, e não acho que tenham me feito mal, nem me emburreceram. Como “O Conde de Monte Cristo” e “David Copperfield”, versões razoavelmente saneadas de clássicos antigos. No caso de “Copperfield”, por exemplo, é omitido o fato de que Steerforth seduz Emily e indiretamente a leva à prostituição. É por isso que não tenho queixas deles, porque não acho que precisasse saber disso aos oito anos.

Mas “O Conde de Monte Cristo” e “David Copperfield” são acima de tudo grandes histórias, que valem a pena conhecer. Depois de ver o comentário de Ebert passei os olhos na minha edição adaptada do livro de Dickens. Ainda é fascinante. A adaptação de Oswaldo Waddington mantém um bocado da ironia e do humor dickensianos. E, acima de tudo, mantém o espírito dos grandes tipos como Micawber e o meu preferido, Uriah Heep. Desde os oito anos de idade, quando vejo um hipócrita fingindo humildade, é a imagem untuosa, reptiliana de Heep que me vem à cabeça. E quantos Micawbers conheci na vida, gente que apesar de tudo admirei sinceramente.

Infelizmente esse não é o caso de “O Grande Gatsby”. O que Ebert acha é simples e corretíssimo: “O que importa no romance de Fitzgerald não é a história em si. É como a história é contada.” Ele tem razão ao lembrar que é a maneira como o velho cachaceiro conta um pequeno retrato da saga americana que faz o valor do livro, algo que acontece com basicamente toda a literatura moderna. Já faz tempo que o “grande romance” deixou de fazer sentido; de certa forma, ele foi esgotado no século XIX — “Em Busca do Tempo Perdido”, por exemplo, já é outra coisa, já não é Balzac. O que Ebert diz de “Gatsby” se aplica, quase sem exceções, a toda a literatura que veio depois dos modernistas.

Ou seja, a história de “O Grande Gatsby”, em si, não é tão importante que valha a pena ser resumida e reescrita em inglês medíocre para estrangeiros. Ao destruir a prosa de Fitzgerald, eles resumiram a obra a pouco mais que nada e tiram a sua razão de ser. Contada dessa forma simplória, “O Grande Gatsby” é pouco mais que a sinopse de um melodrama oitocentista. Reescrito, perde seu valor literário, e os estrangeiros fariam melhor lendo a tradução em sua língua; para o simples aprendizado da língua do bardo o Google oferece milhões de alternativas mais adequadas. Tampouco é adaptação necessária para crianças: Gatsby não conta uma história para elas, se não estão preparadas para ler o livro original. Elas ganhariam mais lendo “Harry Potter” ou “Crônicas de Nárnia”. (Li o livro pela primeira vez aos 13 anos. E o que me marcou mesmo foi a lista de atividades do jovem Gatsby que Carraway descobre no final. Aquilo me inspirou a fazer listas semelhantes pelos dois anos seguintes. Foi preciso reler o livro alguns anos mais tarde para entendê-lo de verdade e entrever o seu gênio; e, finalmente, castigar o original para ver a beleza da prosa de Fitzgerald, escritor de quem gosto muito mais que Hemingway, por exemplo.)

Mas isso lembra outra coisa, mais incômoda que uma adaptação que as pessoas podem simplesmente ignorar: o valor desproporcional que se parece dar à literatura e à ficção.

Isso vai além da mitificação da leitura em si. A impressão que tenho é que leitura é sobrevalorizada como poucas coisas na sociedade moderna. E o pior é que ler não é nada. A escrita é só o jeito que a humanidade encontrou de preservar e compartilhar conhecimento. Só isso. Mais nada. Uma mosca faz isso imprimindo informações no seu código genético. A gente faz isso nascendo com menos sinapses e utilizando meios externos de preservação do conhecimento.

A partir do momento em que a tecnologia possibilita outras formas de transmissão de conhecimento, a escrita se torna apenas mais um deles. Só isso. Nada que justifique esse fetichismo.

A coisa se torna mais grave quando se fala de literatura. Literatura — mais especificamente ficção — não é necessária, e isso é algo que as pessoas parecem entender cada vez menos. O fato é que, para todo e qualquer efeito prático, ninguém precisa ler ficção, de qualquer tipo. Se você é advogado, do que precisa é de livros de doutrina escritos em português embolorado e da última versão do código de qualquer coisa. Se você é engenheiro, “O Velho e o Mar” dificilmente vai lhe ajudar a fazer o cálculo estrutural de um edifício de 20 andares. Literatura é produto supérfluo de uma civilização cujas elites descobriram há uns cinco mil anos que a escrita era o melhor meio de fixar e transmitir conhecimento e acumular poder. Literatura é coca-cola.

Mas milênios de existência e associação ao poder continuam a mitificá-la. O ato de ler se tornou um valor desejável há tanto tempo que passou a ser um daqueles valores presumidos, inquestionáveis. Ou seja: se eu leio, eu sou melhor que você. Não importa o que eu leio; importa o ato em si. E essa espécie de fetiche parece tanto maior quanto menos lê o fetichista. Ou seja, se eu disser que li 50 “Júlias”, “Sabrinas” ou “Biancas” ano passado, para muita gente vai parecer que li muito mais do que se disser que li apenas um, um tal de “A Montanha Mágica” de um alemão meio viado.

O que faz a ficção importante não é o ato de ler, em si. É o que você lê, e como isso enriquece sua vida. Assim como a literatura moderna diz respeito menos à trama do que à maneira como ela é contada. E ler por ler não quer dizer absolutamente nada. As pessoas dizem que estão lendo um cocozinho qualquer como se estivessem fazendo a hermenêutica de Finnnegan’s Wake; para quê? Isso não tem valor real. Não acrescenta nada. Não é melhor do que ver um bom filme ou ouvir um bom disco.

A melhor evidência da superfluidade da literatura é o fato de que desde o século passado não é sequer preciso ler um livro para saber com bom nível de detalhes o que ele conta. Muita gente que jamais leu “Moby Dick” sabe do que ele trata, sabe que sua primeira frase é “Call me Ishmael”, sabe quem é Ahab, sabe qual o caso que inspirou o livro, sabe como ele termina e sabe que pode ser visto como uma batalha do bem contra o mal, entre tantas outras coisas; sabe até quem fez o caixão que salva a vida de Ismael. Para muita gente isso é suficiente; e talvez seja assim que deve ser. Se a questão aqui é saber o básico da história, em vez de ler uma versão adaptada para “1600 palavras ou menos” é melhor ver o filme com Gregory Peck.

As pessoas, em seu apego a valores antigos, esquecem que o século XX inventou vários outros meios de transmissão do conhecimento, como o gramofone e o cinema. Obviamente eles não podem ter, por sua natureza, a riqueza que a literatura pode alcançar; mas quando se tiram os elementos que fazem essa riqueza, como fizeram com “O Grande Gatsby”, o que sobra é só a história, muitas vezes menor, e para isso esses novos meios são perfeitamente adequados.

Eu, pessoalmente, não levo muito em consideração sequer a idéia de que a gente começa a ler com coisas bobas e vai evoluindo aos poucos. A experiência mostra que muita gente que começa com coisas bobas para por aí, nas coisas bobas, e são muito felizes assim, obrigado. Assim como maconha não leva necessariamente a drogas mais pesadas, Harry Potter não leva necessariamente a James Joyce. É o hábito, o estímulo que fazem uma criança ler. E certamente, em idade adequada, a capacidade de discernir entre o que vale a pena e o que não vale. Por exemplo, minha filha lê e escreve em um nível superior à média das crianças de sua idade. Mas tenho minhas dúvidas de que isso se deva aos livros de Harry Potter que devorou aos oito anos; é mais provável que o fato de se ver às voltas com centenas de livros em casa, livros que ela via o pai lendo, assim como eu via o meu, tenha exercido o mesmo efeito, ou maior.

A essa altura da vida, essa conversa de literatura como um valor absoluto não me empolga mais.

Au revoir, les photogrammes

O André Setaro fez um post falando da experiência moribunda de ir ao cinema.

O saudosismo do Setaro é o meu (e o tal senhor que vendia fotogramas de filmes na Piedade — acho que lembro dele também; se não, lembro de um bem semelhante). Embora mais novo, e certamente menos hostil à televisão, sou outro que sinto essa decadência da experiência coletiva, e lamento por isso.

Um dos poucos filmes a que assisti no cinema durante o ano passado foi “Meia Noite em Paris”. Não é sempre que o Cinemark, esse grande carrinho de pipoca, exibe um Woody Allen assim, na lata; e os meses longos sem ir ao cinema cobravam sua tarifa à minha consciência.

O cinema cheirava a mofo, um cheiro mais forte do que o habitual. E o filme seria exibido com a imagem levemente desfocada.

A menina na poltrona ao meu lado mandava mensagens de texto para alguém. Enquanto ela ria retardadamente durante os trailers, tudo bem; mas fazer isso durante o filme é sinônimo não apenas de má educação, mas de falta de respeito absoluta e grau elevando de cretinice fisiológica. Eu me mostrava desconfortável, olhava feio, encarava, e a idiotinha não percebia. Tive que falar, com toda a doçura que mamãe me deu, que aquilo estava incomodando para que ela se controlasse.

Eu não entendo. Se é para prestar atenção a uma conversa qualquer em vez de ao que se desenrola na tela, por que ir ao cinema? Por que não ficar em casa? Por que não se jogar da ponte?

Mas essas são as novas gerações, e é com elas que temos que dividir as salas de exibição.

Eu me recuso a passar por isso, não tenho mais idade para essas coisas. Nem idade nem paciência. Antigamente, com TVs de 20 polegadas em formato 4:3, a gente tinha que se submeter a esses vexames para conseguir assistir à obra cinematográfica em sua plenitude — tem coisa mais bizarra que assistir a filmes originalmente em Cinemascope ou Vistavision numa tela pequena, quadradinha? Mas nada isso é necessário, agora. As novas TVs têm formato, tamanho e resolução suficientes para apresentar um filme como ele foi concebido, ou quase. E assim oferecem uma experiência melhor do que o cinema tem oferecido para mim; sem falar na possibilidade parar o filme e desmoralizar para sempre o velho e bom Hitchcock, que dizia que um filme deveria ter a duração da resistência da bexiga humana.

A decisão de evitar ir ao cinema vai me poupar de coisas tão ruins. As gentes ao meu lado fazendo barulhos desagradáveis. Projecionistas incompetentes. Os ruídos de pipoca sendo mastigada. Os risos de boca cheia. Os barulhos de sacos de plástico — jujubas, as inevitáveis jujubas — sendo rasgados. As conversinhas bobas de gente sem noção. Adeus. Adeus. Nada disso vai fazer falta.

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Mas isso implica a deterioração da experiência coletiva. É um sinal ruim de um mundo novo normalmente admirável: o isolamento, a ausência de uma sensação difusa mas reconfortante de pertencimento.

Fico imaginando como era viver 30 e 70 anos atrás, pelo menos no que diz respeito ao cinema.

Há 70 anos ver um filme era experiência relativamente incomum — uma, duas vezes por semana, no máximo. Os filmes ficavam em cartaz durante meses, às vezes anos. Havia circuitos inteiros de primeira e de segunda exibições. Cada grande estúdio produzia uns 50 filmes por ano, e havia espaço para tudo isso. E havia os pequenos, que faziam outro tipo de filme.

Talvez as gerações mais novas não consigam entender o que isso significava. Mas a relação com a obra cinematográfica era diferente. Muitas vezes, se você não via um filme que, por alguma razão, não alcançava muito sucesso de bilheteria, nunca mais teria uma chance de vê-lo. Não havia TV, TV a cabo, DVD. E por isso os grandes sucessos eram reprisados periodicamente. Os filmes da Disney cumpriam um ciclo de cerca de 7 anos. Cheguei a ver “…E o Vento Levou” em cartaz em 1982, um ano antes de estrear na TV.

30 anos atrás — e essa época eu peguei — já havia filmes na TV. Você podia assistir a uns dois longas por dia, talvez três; e ainda tinha acesso a novidades como telenovelas e seriados. Mas o espaço para filmes novos ainda era restrito, eles demoravam a chegar às TVs, e fora delas não havia alternativas. Por isso os filmes ainda ficavam meses em cartaz — alguém lembra dos anúncios nos jornais?, miniaturas dos cartazes em preto e branco e os dizeres: “9a semana de sucesso!” Eu lembro. Lembro de muita coisa.

Ir ao cinema era bom, e era uma experiência rica. Meninos debilóides mastigando de boca aberta e teclando mensagens em seus celulares acabaram com isso.

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Também lembro que faço parte da geração que descobriu o cinema na televisão. Antes do DVD, antes mesmo do videocassete, o que existia era a TV. Foi nela que assisti a dezenas dos filmes que hoje considero entre os melhores da história. E vem daí a minha devoção a um certo crítico de cinema.

Costumamos falar de grandes críticos como Moniz Viana, Paulo Emilio Sales Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles. Mas há um que nem sempre é lembrado: Paulo Perdigão.

O problema é que, de todos eles, para mim Perdigão foi certamente o mais influente. Não pelo que escreveu — acho que nunca li nada dele, e sei basicamente que fez parte da geração brilhante do Correio da Manhã e é o autor de um livro sobre “Os Brutos Também Amam” –, mas pelo que nos fez assistir.

Perdigão era o responsável pela programação cinematográfica da TV Globo. Era ele quem decidia que filmes seriam exibidos. E por isso a Globo sempre tinha um horário na semana para os grandes clássicos.

Nos anos 70 era talvez mais fácil, porque os filmes demoravam muitos anos para chegar à TV, até esgotar o circuito cinematográfico, e então se trabalhava com o estoque das décadas anteriores. E nos anos 80 ainda havia uma lei curiosa, que obrigava as TVs a exibirem pelo menos um filme legendado por semana, para atender aos deficientes auditivos. O SBT exibia lixo, claro (foi assim que assisti a boa parte de “El Neurosurgeano Loco“, um filme mais que trash, piorado ainda mais pelas circunstâncias: era americano, dublado em espanhol e com legendas em português. Juro por Deus.) Mas o Perdigão aproveitava esse horário para exibir clássicos de altíssima qualidade. Era a sessão Cineclube. E onde mais você veria “Em Cada Coração Um Pecado” num domingo à noite, com a melhor atuação da carreira de Ronald Reagan (“Where’s the rest of me?!“)? Ou “Paixão dos Fortes”?

Perdigão ensinou, a mim e à minha geração, a ver cinema. E isso faz dele um dos maiores, se não o maior, crítico do país, pelo menos em sua função social.

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Tudo isso para lembrar a mim mesmo, e talvez me convencer, de que cinema não é tão necessário assim.

De como deixei de lado as preocupações e aprendi a amar a opinião das massas

Como quase todo mundo, nunca gostei muito de consensos, de unanimidades; mas gostava menos ainda das opiniões da maioria; elas costumam ter a burrice das unanimidades e a falta de perspicácia da opinião minoritária, e aliam a isso uma arrogância bastante sentida por qualquer um que discorda.

Sempre achei, por exemplo, que um camelo é um cavalo criado por um comitê — é o tipo de coisa que ainda se diz em departamentos de criação de agências de publicidade, por exemplo. Mas deixei de me preocupar e aprendi a amar a bomba, e é por isso que, ao ler este artigo no Wall Street Journal argumentando que críticos profissionais de literatura ainda são fundamentais, eu torci o nariz.

Há um ou dois anos comprei Empire of the Summer Moon: Quanah Parker and the Rise and Fall of the Comanches; atendia a um fascínio antigo pela formação do Velho Oeste americano, uma curiosidade também antiga sobre os comanches — povo transformado como nenhum outro pela chegada de uma nova tecnologia, o cavalo — e a uma recomendação entusiasmada do New York Times ou do Wall Street Journal, não sei bem. Fui na Amazon e comprei, ponto. Nunca olhava aquelas críticas de leitores. Confiava mais na opinião de críticos profissionais.

Em alguns momentos da leitura deu vontade de jogar o livro na parede. Uns erros bobos — o autor diz que os comanches foram os únicos a desenvolver a criação de cavalos, esquecendo, por exemplo, dos Nez Perce que criaram o appaloosa, e os navajos e apaches eram grande cavaleiros, também –, uso excessivo de hipérboles, eventual falta de contextualização (ele se refere à baixa taxa de natalidade dos comanches, mas populações nômades obrigatoriamente têm taxas de natalidade muito baixas). Mas o que realmente irritava era uma linguagem que até para gente que, como eu, tem pavor ao politicamente correto, eventualmente soava incômoda. As referências aos “selvagens”; e, principalmente, trechos que eventualmente pareciam ser uma tomada de posição ostensiva demais ao lado dos colonos brancos.

Não me arrependi de ter comprado o livro. Acho inclusive que a linguagem utilizada ajuda a ter uma idéia clara do que o choque de civilizações representou, e provavelmente foi utilizada para se apropriar do espírito da época. Mas isso me despertou uma certa curiosidade e fui ler as resenhas na Amazon. E percebi que se as tivesse lido antes, poderia ter uma idéia melhor do que me esperava; poderia inclusive julgar se esse era o melhor livro para os meus propósitos.

Uma parte dos leitores reclamava que o livro não era suficientemente politicamente correto, não mostrava os índios como heróis impolutos. O que para eles era defeito para mim é qualidade. Não me sinto à vontade com a maior parte das queixas modernas sobre o tratamento aos índios americanos entre os séculos XVI e XVIII. Me incomodam muito os tratados não cumpridos pelos EUA, porque têm outro nível de complexidade política; mas as guerras de conquista para mim são compreensíveis no contexto do século XVI, por exemplo. Não justificáveis; mas compreensíveis. Os mesmos índios que perderam as guerras contra os brancos ganharam de outros índios; e ninguém reclama dos visigodos que destruíram Roma, por exemplo (sobre esse período recomendo um livro chamado Empires and Barbarians, de Peter Heather.). A visão do índio como inerentemente bom e superior ao europeu mercantilista — visão que parece ter se consolidado nos últimos 60 anos, pelo menos — me incomoda.

Outra parte elogiava profusamente, fazendo parecer que o livro era o que de melhor se fez sobre o assunto. Isso não deveria ser um defeito, mas era: significava que incomodou pouco algumas pessoas, que manteve intactos seus preconceitos e pressuposições. Além disso, por já conhecer o livro, eu sabia que ele estava longe de ser perfeito. Bom, especialmente para quem conhecia pouco a história dos comanches, mas não perfeito. Além disso, quem gosta muito de qualquer coisa normalmente não consegue fazer boas críticas. Paixão cega.

Mas uma grande parte elogiava o livro com ressalvas. E essas eram as críticas realmente úteis, e as que me fizeram entender que a opinião coletiva nem sempre é ruim. O conjunto de análises, os pontos individuais que várias delas levantam, acabam formando um panorama acurado do livro. Você pode tirar dali o que irá te incomodar ou não no livro; pode descobrir se ele tem o que você procura, ou não.

É por isso que eu, que já escrevi post descendo a lenha em coisas como o rottentomatoes, me rendi à opinião das massas. Aprendi como utilizá-las, na verdade, e meus preconceitos foram embora.

É muito simples: vejo primeiro o número de resenhas positivas e negativas. Se um livro tiver mais críticas negativas que positivas, ele certamente não presta, e procuro outra coisa para ler. Desconsidero também a maioria das críticas que dão cinco estrelas, são bobos deslumbrados; e evito as que dão uma, porque esses normalmente são idiotas confessos. Essas opiniões extremadas, no entanto, não são de todo inúteis, e vale a pena lê-las para ter uma idéia do que mais chama a atenção nas pessoas; No entanto, são as críticas de duas a quatro estrelas que fornecem uma compreensão maior e mais equilibrada do livro.

Isso não vale, claro, para obras de ficção. Casablanca não é genial porque, digamos, 80% dos usuários do rottentomatoes acha isso, mas porque eu acho. A obra de arte não pode e não deve se submeter a critérios de massa. Mas hoje em dia eu leio principalmente não-ficção, história e assemelhados em particular, e para isso o repositório de experiências individuais de sites como a Amazon ajuda a dar um bom norte.

E isso traz um novo problema: a decadência da imprensa cultural deste país. Não sei se por falta de preparo ou por interesses comerciais, ou se a própria forma da crítica na imprensa diária se diminuiu e vulgarizou em excesso; mas o fato é que está ficando cada vez mais difícil respeitar a opinião da imprensa, não só a do Brasil, mas a de todo o mundo. Não dá mais para saber o que é crítica incompetente ou desinteressada.

Por causa disso demorei alguns meses para comprar uma nova biografia de McCartney chamada Fab, de Howard Sounes. Havia ainda poucas críticas quando fiquei sabendo dele. Controlei o ímpeto inicial e esperei que as resenhas atingissem um número suficiente para dar um panorama mais completo do livro. Foi apenas quando vi os resenhistas darem uma estrela ao livro porque ele não era suficientemente respeitoso com um homem genial e maravilhoso e lindo e cheiroso como McCartney que me decidi a comprá-lo. Não me arrependi.

Os anos perdidos de Elvis

Um artigo falando de um livro recente sobre Elvis Presley me chamou a atenção porque o livro parece uma grande bobagem. A sua premissa é a seguinte:

Elvis became a rock-n-roll icon in 1958, but his service in the Army put his career on hold. Upon his return, he got sidelined back into the musical-movie business with less than awesome accolades. His music was still popular, (he was still considered “The King”,) but the move took him in a direction that castrated his creativity; and this kept him isolated from the true impact of the changes going on in popular music, i.e., the British invasion–headlined by the Beatles.

Há aí um erro factual: Elvis se tornou um ícone pop dois anos antes, com o lançamento de Heartbreak Hotel. Mas o problema é que a premissa do livro é incompleta, quase falsa. Não parece compreender os movimentos de Elvis, nem inseri-los em seu contexto. Por isso define os anos 60 como uma espécie de gap na carreira de Elvis, que aparentemente era boa antes e voltou a ser boa depois. E isso não é verdade.

Ao contrário de outros nomes do rock, cujas ações muitas vezes criaram modelos a serem seguidos pelos que viriam depois, Elvis só pode ser entendido em seu próprio tempo. É um equívoco tentar julgá-lo pelos padrões que a cultura pop estabeleceu nos anos 60 e que, com mudanças aqui e ali, continuam válidos até hoje. A explosão de criatividade e experiências musicais que caracterizaram a música pop nos anos 60 em todo mundo — a Tropicália, por exemplo, não faria sentido em outros tempos, e não seria possível sem Chuck Berry ou o próprio Elvis 10 anos antes — mudaram o papel do artista dentro da indústria musical. Deram autonomia criativa aos músicos e estabeleceram o padrão a ser seguido: o de Bob Dylan e Lennon/McCartney, artistas autônomos, compositores e intérpretes, sempre com algum tipo de posicionamento político em relação ao mundo, e desempenhando melhor ou pior o papel de catalisadores das aspirações de uma geração.

Mas Elvis é de uma geração anterior. Era basicamente um tabaréu do Tennessee, um caipira cujas referências estavam no que havia de mais conservador na sociedade americana.

A partir do momento em que se leva isso em consideração, é fácil perceber que suas ações faziam todo o sentido e sua carreira, afinal, foi razoavelmente bem administrada. Tudo o que ele fez depois que estourou como ídolo adolescente — servir o Exército, migrar para o cinema, voltar à música como uma espécie de mela-calcinhas para velhotas dispostas a assistir aos shows em Las Vegas — foi parte de uma estratégia simples, consciente e, dentro dos seus horizontes limitados, sensata de posicionamento comercial.

Nos anos 50 a adolescência ainda estava sendo inventada. E do ponto de vista comercial fazia todo o sentido para Elvis se posicionar como um bom moço de família, um all-american boy com um verniz muito fino de rebeldia, o suficiente apenas para realçar o sabor. Artistas populares costumavam — ainda costumam — vir com prazo de validade; e mais que isso, em 1959 todos viam o rock and roll definhar aceleradamente. Segundo as regras do showbiz, essas mudanças em sua imagem ampliariam seu alcance e o fariam alcançar novos públicos. Principalmente, evitariam que se tornasse mais um entre tantos ídolos adolescentes que apareciam e sumiam na semana seguinte. Elvis queria a permanência. E sem os compromissos estéticos que a geração seguinte assumiria, esse era o caminho natural. Ele certamente nunca teve nenhuma aspiração a ser um John Lennon ou um Jim Morrison: seu modelo certamente estava mais para Bing Crosby — e, se não me engano, Mario Lanza era um dos seus ídolos. Em um tempo em que ele, o maior nome da música jovem, se apresentava em tablados de feiras agropecuárias estaduais, disputando espaço com a melhor torta de maçã ou a maior abóbora ou o porco mais gordo, buscar estabilidade no establishment da indústria de entretenimento americana era algo lógico. Por isso, de volta aos Estados Unidos, Elvis redefiniu prioridades e investiu em sua carreira cinematográfica.

Se o livro realmente se refere a esse momento como um ponto baixo, simplesmente não entende sua carreira nem a construção do seu mito. Porque foi no cinema que Elvis solidificou todas as condições para ser um ícone americano, acima de quaisquer considerações artísticas ou musicais.

Entre 1956 e 1969 Elvis Presley estrelou 31 filmes, e durante os anos 60 foi o ator mais bem pago de Hollywood. Eram dois, três filmes por ano. Do ponto de vista artístico ele tem pelo menos um ponto em comum com Pasolini: seus filmes em preto e branco, como King Creole e Love Me Tender, são os únicos que prestam. Se nenhum deles era exatamente um clássico, eram ao menos cinema. Utilizavam de maneira apropriada a imagem de Elvis e construíam uma narrativa a partir daí.

O que se seguiu era muito pior. Elvis era um ator abaixo do medíocre, e seus filmes — com algumas poucas exceções, como Flaming Star, dirigido por Don Siegel — estavam no seu nível. Eram simples e esquemáticos, servindo apenas como veículos para sua imagem já domesticada. Iam longe os tempo de The Pelvis: em cada filme ele usualmente cantava duas ou três músicas horrorosas, enquanto se via às voltas com moças do século retrasado (sempre brancas e preferencialmente louras, mesmo nos seus filmes no Havaí) e se distanciava cada vez mais da cultura que tinha ajudado a criar.

Essa distância está clara em um filme de 1967, Easy Come, Easy Go, onde Elvis se depara com um grupo de hipsters praticando ioga e debocha deles. É irônico, porque tudo aquilo, em parte, é cria sua, e deriva do seu papel na consolidação de uma nova cultura, na ponte entre a música branca e a negra que ele criou. No entanto Elvis foi um pai desnaturado: isso nunca lhe interessou, essa geração não lhe dizia nada. Elvis mirou no público que considerava mais lucrativo e sólido: o americano médio do interior, o tabaréu reacionário do corn belt. Daí tantos filmes em que ele é um caipira, ou soldado, ou qualquer coisa que apele a esse segmento. De certa forma, era a coisa mais honesta que ele podia fazer.

Em 1968/1969, no entanto, ele abandonou o cinema e voltou à música. Não foi à toa. Sua carreira no cinema estava desgastada, ele já não tinha o mesmo apelo de público. Elvis tinha envelhecido; o mundo tinha corrido muito mais rápido do que ele era capaz. Por isso o especial de TV Elvis, mais conhecido como ‘68 Comeback Special.

É engraçado que críticos se refiram ao programa dizendo que “aqui ele volta às raízes”, “aqui ele volta a tocar com Scotty Moore”, quando nada disso importa. O especial não é uma volta nostálgica ao passado: ao contrário, nesse programa um Elvis completamente vestido de branco, com direito a sapato tipo Jacinto Figueira Júnior e jaquetão tipo José Sarney (iam longe os tempos do paletó de lamê dourado) aponta para o futuro. É ao cantar If I Can Dream, com toda a canastrice de um crooner da mais reles banda de baile, que Elvis redefine sua carreira e se reposiciona como cantor, brigando por público não com os Doors ou Jimi Hendrix, mas com Frank Sinatra, Paul Anka e Neil Sedaka. O especial representou para Elvis o que o Festival de San Remo representou para Roberto Carlos: a guinada na carreira rumo ao romantismo mais deslavado. E aquela foi, também, a última vez que ele tocou com Scotty.

Fãs de Elvis apontam para o fato de ele ter conseguido se reinventar ali. Estão certos, mas esquecem um detalhe: em sua reinvenção, Elvis abandonou qualquer aspiração a alguma importância musical real. Paradoxalmente, agiu com uma humildade impressionante, porque àquela altura, já um ícone da cultura pop americana, ele poderia insistir em voltar ao caminho que o consagrou, se contentando, como Chuck Berry, Jerry Lee ou Little Richard, em reprisar seus sucessos nos palcos e ganhar a vida dessa forma (eu, pelo menos, não consideraria justo esperar outra alternativa: que Elvis, em uma das épocas mais criativas da música popular em toda a história, tentasse ir além no rock and roll). Mas ele era um matuto do interior, não entendia e não queria entender essa história de contracultura. Seu coração apontava para Nixon e para as platéias patéticas de Las Vegas. E, do seu ponto de vista, ele estava certo.

It’s Alright, Ma (I’m Only Sighing)

E aí vem alguém e tenta me explicar que uma bandinha nova com uns meninos remelentos enchendo o rabo de dinheiro mas fingindo desespero é a nova sensação do rock? Rock eu aprendi ouvindo Beatles e Stones (até o Exile, pelo menos) e Who e Chuck Berry.

Uns anos atrás o Bia veio babando por um tal de Vic Chesnutt, e aí eu fui ouvir e peraí, e botei o Bringing it All Back Home ou o Blonde on Blonde para tocar, e o fanho continuou me parecendo mais forte e mais moderno que o entrevadinho agora defunto.

Olha como tal bandinha é pesada. Ah, cumpadi, vai ouvir os primeiros do Led Zeppelin. Ou os primeiros do Black Sabbath. Em um tempo em que as pessoas elogiam o Aerosmith, isso deve soar como heresia.

E num tempo em que chamam aquela música horrorosa que toca nas Jovem Pans da vida de rhythm ‘n’ blues, me pergunto o que é que eu faço com Otis Redding. E ainda não sei por que ouvir Camera Obscura se tenho tanta coisa das Supremes na cabeça ainda. Como não sei por que ouvir Vanessa da Matta se a Gal dos anos 70 era tão brilhante.

O fato é que nada, nada mais chama a minha atenção. Nada do que eu ouça deixa de parecer derivado, repetido, requentado. Vivo em uma época em que a música pode até soar nova para quem não tem 60 anos de memória musical na cabeça, mas eu tenho uma memória boa e um HD maior ainda. Eu desisti de ouvir música.

Uma pequena bibliografia dos Beatles

Uns anos atrás publiquei aqui uma pequena bibliografia dos Beatles. Alguns anos e alguns livros depois, é hora de atualizar a lista.

The Complete Beatles Recordings
Mark Lewisohn
Comissionado pela EMI como parte das comemorações do seu centenário, em 1988, acabou se transformando no livro definitivo sobre os Beatles no estúdio de gravação — e foi ali, no estúdio, que os Beatles se tornaram o que são. The Complete Beatles Recordings é um diário de todas as sessões da banda, provavelmente o livro mais acurado que já se escreveu sobre ela. Infelizmente fora de catálogo há muitos anos, se tornou uma bíblia de beatlemaníacos, o livro a que se recorre para dirimir dúvidas. Ainda espero a chance de colocar novamente minhas mãos sobre um exemplar, é o único fundamental que falta na minha estante. Mas essa espera já foi pior: os anos passaram e veio a internet, um repositório muito maior de informações. O livro mostrou ter lacunas e erros. Mas continua sendo o livro mais importante já escrito sobre o dia-a-dia dos Beatles, e necessário para que se entenda a dinâmica que fez da banda a maior de todos os tempos.

The Complete Beatles Chronicle
Mark Lewinsohn
Lançado depois do Complete Beatles Recordings, é basicamente um roteiro das atividades dos Beatles ao longo de sua existência. Inclui as gravações, descritas de maneira mais resumida, assim como um relato das apresentações ao vivo e gravações de filmes, apresentações em TV, etc. Tem também uns bons resumos históricos e críticos sobre cada ano da banda, com excelente critério de julgamento. Foi relançado há alguns anos e vale muito a pena.

The Beatles Anthology
The Beatles
Parte do projeto Anthology — que incluiu também o documentário hoje disponível em DVD e os três CDs duplos (ou álbuns triplos em vinil) –, é a história dos Beatles contada por eles mesmos. É aceitável, e certamente uma fonte inestimável, apesar deles, claramente, saberem bem os limites da verdade a que podem chegar e evitem tocar em temas polêmicos. Há pouca coisa realmente nova, mas serve como um resumo definitivo do que cada um deles tem a dizer sobre sua história, a sua versão edulcorada para a posteridade. Independente disso, é um livro fantástico como objeto, com um projeto gráfico de fazer cair o queixo. Alguém já disse que, antes que uma biografia, é uma celebração dos Beatles; e como perguntaria McCartney, o que há de errado nisso?

The Love You Make
Peter Brown
Brown era funcionário da Apple (citado por Lennon em The Ballad of John and Yoko), e este é um relato de insider. Foi o primeiro livro a revelar, de forma confiável, o lado menos aceitável da banda que dizia que tudo o que você precisa é amor. As chantagens sexuais sofridas por Brian Epstein, os maus negócios feitos por ele em nome da banda, a promiscuidade generalizada, os problemas graves de Lennon com heroína, os processos de paternidade sofridos por McCartney, as picuinhas internas e brigas por dinheiro que levaram ao fim. Longe de ser o melhor livro para se ter, se você vai ter um só, é um daqueles livros necessários para que se tenha uma visão mais completa da história da banda.

Shout
Phillip Norman
Foi a primeira biografia realmente decente dos Beatles. Lançada no começo dos anos 80, apresentava um panorama abrangente sobre a banda. Infelizmente tem muitas falhas factuais, e até mesmo investe numa teoria conspiracionista absurda sobre a morte de Brian Epstein. Além disso, como Norman tem aparentemente ligações mais próximas com Yoko Ono, tenta passar uma visão excessivamente deletéria de McCartney. No início dos anos 2000 o livro sofreu uma revisão geral, mas sua essência continuou. Mais recentemente Norman escreveu uma biografia insípida sobre John Lennon, lançada no Brasil.

The Lives of Lennon
Albert Goldman
O livro de Albert Goldman foi recebido como um exemplar particularmente imaginativo do Notícias Populares, e o paradoxo que o cerca é curioso. Parece ser universalmente desprezado, mas é utilizado como fonte por todos os biógrafos posteriores dos Beatles. Goldman é malévolo, perverso, publica muitos erros factuais e de avaliação, muitas suposições absurdas que tenta passar como fatos, e dá ouvidos demais a fofocas e mentiras puras e simples; mas sua capacidade como pesquisador é reconhecida, e ele fez um livro importante para a compreensão do maior mito dos Beatles. O livro é achincalhado por todos, mas no que diz respeito à maior parte dos fatos nunca foi desmentido — Yoko Ono, por exemplo, nunca ousou processar o autor, e processos na época eram o café da manhã dos ex-beatles. Sem demonstrar simpatia ou compaixão por nenhum dos seus personagens, o autor revelou alguns detalhes sujos sobre a banda e sobre Lennon e Yoko que, apesar de inicialmente descartados como pura fofoca maldosa, por não se adequarem à imagem idealizada de Johnandyoko que eles tentaram passar, foram mais tarde comprovados. É também um bom mergulho sobre a personalidade de Lennon; e Goldman foi o sujeito que deixou claro a todos que o ídolo que ele tenta destruir aqui era uma mistura única e fascinante de carisma e talento gigantescos e uma personalidade complexa e muitas vezes detestável.

Here, There and Everywhere
Geoff Emerick
Emerick foi o engenheiro de som da maioria das gravações dos Beatles a partir de Revolver, e peça importante na evolução sonora da banda. É o relato de um sujeito que não apenas os conheceu, mas trabalhou com eles onde realmente importava, o estúdio. É um livro fundamental para entender a dinâmica e os processos das gravações, assim como a evolução da sua visão musical e, incidentalmente, de suas relações pessoais. Por outro lado, Emerick é ligado a McCartney até hoje, o que o leva a proteger em demasia a imagem do seu amigo. Isso faz com sua visão seja deturpada em vários aspectos, e o livro acaba se encaixando muito facilmente no esforço de revisionismo de McCartney. Emerick está na lista, e George Martin não, por uma razão: ele parece compreender melhor o seu papel real na história do que Martin, embora aqui e ali dê a impressão de tentar diminuir o papel do ex-patrão.

Beatles Gear
Andy Babiuk
É o livro mais específico dessa lista: uma história dos instrumentos e equipamentos de som utilizados pela banda desde a sua formação — indo do Zenith de McCartney e o violão “garantido contra rachaduras” de Lennon ao Fender VI usado nas últimas sessões. É um acessório importante para quem tenta entender o que havia na música dos Beatles. Incidentalmente, é o livro que melhor explica, em termos cronológicos, o processo de desligamento de Stuart Sutcliffe da banda.

Many Years From Now
Paul McCartney
Oficialmente a autoria é de Barry Miles, mas isso é apenas um disfarce para a autobiografia de Paul McCartney até o fim dos Beatles; o ghost writer apenas levou um crédito maior, provavelmente para que Macca pudesse agregar credibilidade a algumas de suas opiniões, se sentir mais livre para falar as bobagens que quisesse e soltar as farpas que bem entendesse. Isso quer dizer que é um relato parcial em que omissões e distorções dos fatos formatam melhor a versão de McCartney. De qualquer forma, abrangente e bem detalhado, é importante para a compreensão da história dos Fab Four.

You Never Give Me Your Money
Pete Doggett
Livro recente, dedicado às relações comerciais entre os Beatles a partir do começo do fim e os 25 anos de processos e contraprocessos posteriores. Cobre uma lacuna existente nas outras obras a respeito da banda, que tratam do período de maneira normalmente mais superficial e se apoiam nos estereótipos do Allen Klein ladrão, do Brian Epstein incompetente mas devotado e dos meninos que só queriam fazer música. Apesar de alguns erros crassos, o livro tem um bom senso de história dos Beatles, um bom nível de imparcialidade e boa apreciação musical; mas falha em não voltar atrás e detalhar a maneira como os contratos de Brian Epstein foram firmados. É um livro importante para entender o processo de separação da banda.

The Beatles: The Biography
Bob Spitz
Spitz se beneficiou da passagem do tempo e da abundância de material biográfico para escrever um livro abrangente e bem equilibrado, que tenta fugir dos mitos sem explorar em excesso aspectos sensacionalistas. O resultado é a biografia mais completa dos Beatles, com um excelente grau de neutralidade. De modo geral Spitz tenta sempre ver todos os lados de uma questão, e mostra um bom entendimento do que era a dinâmica interna da banda. Consegue ter os fatos em boa perspectiva e evita dourar pílulas. Tem um número talvez excessivo de erros factuais — alguns graves, como errar a data da reunião em que Lennon “pediu o divórcio” ao resto da banda, e muitos outros menores; mas com exceção de Many Years From Now, Anthology e Can’t Buy Me Love (de Jonathan Gould, e recomendado de modo geral), é o único traduzido para o português, o que faz dele a melhor biografia dos Beatles disponível no Brasil.

***

O livro definitivo sobre a banda ainda não foi publicado — está sendo escrito neste exato momento. Todas as biografias dos Beatles, sem exceção, contêm erros, e muitas têm defeitos de interpretação e compreensão; mas há alguns anos, Mark Lewisohn anunciou que estava escrevendo uma biografia que deveria se estender por três volumes. Lewisohn é o sujeito que mais entende de Beatles no mundo, é próximo de todos os ex-beatles e é um bom historiador. O primeiro volume deveria ter sido publicado em 2008 e o último em 2016; a Amazon inglesa agora promete o livro para setembro deste ano, e o título será The Beatles — The Biography: Tune In, Vol. 1 (o que me leva a crer que o segundo se chamará Turn On e o terceiro, Drop Out; títulos adequados, a propósito). Quando finalmente for publicado, vai dispensar virtualmente todas as biografias dos Beatles, o que inclui a maioria dos livros recomendados aqui.

Um cinema em cada esquina

Eu devia ter comentado na época, mas achei tão insano que era melhor não falar nada. Durante a campanha eleitoral, no entanto, o tema voltou à baila. Dilma tocou no assunto e a candidata do PSOL ao governo de Sergipe, Avilete Cruz, também defendeu a proposta de implantar uma sala de cinema em cada cidade do interior que tenha entre 20 e 100 mil habitantes (e outras mais importantes que fizeram o PSOL pedir desculpas à sociedade sergipana pela sua candidatura e tornaram a senhora, professora bem intencionada mas absolutamente despreparada, motivo de piada entre seus conterrâneos). O assunto ainda é válido. Apesar de insignificante, porque é o tipo de proposta que nunca, nunca sai do discurso.

O caso é simples: eles podiam muito bem anunciar que vão criar uma escola de datilografia em cada município, um realejo com um macaquinho dançante em cada esquina ou uma fábrica de escarradeiras para atender o pujante mercado nacional. Daria no mesmo.

Não é apenas que essa ideia seja absolutamente impraticável, como comentou o Inácio Araújo. O problema é que a defesa desse tipo de coisa representa uma visão atrasada do valor do cinema, como arte e como equipamento urbano, e principalmente do papel das políticas públicas de cultura.

Já faz algum tempo que os cinemas perderam sua função original, por mais que isso doa em saudosistas como eu. Os cinemas de rua estão acabando porque as pessoas simplesmente não vão mais a eles, na maioria dos casos. Se os multiplexes de shopping sobrevivem, não é porque são o único lugar onde se pode ver um filme, ou mesmo o lugar onde se pode vê-lo numa tela grande; mas pela experiência social que oferecem. Ir ao cinema hoje é um passatempo caro, que vale não pela apreciação da arte cinematográfica, mas por equivaler, de certa forma, à ida a um restaurante mais sofisticado ou uma viagem a uma cidade vizinha.

A importância dada ao cinema, ao edifício em si, acaba sendo supervalorizada e deturpada, quando se faz a equação entre o mundo desejável e o possível. E mascara uma incompreensão absoluta do papel da sétima arte, da política nacional de cultura e do mundo em que vivemos. Ao Ministério da Cultura e à intelligentsia nacional o que deveria importar não é se vai haver ou não cinemas em cada grotão deste país, mas se as pessoas terão ou não acesso à informação cultural.

Porque não é o suporte físico que faz o valor de uma obra: é o que ela conta e como ela conta. Mais nada. Telas cada vez maiores com resoluções que aos poucos vão se aproximando do ideal já fazem dos aparelhos de TV um suporte tecnológico melhor que os projetores de que, por exemplo, Charles Chaplin ou D. W. Griffitth dispunham para exibir seus filmes. Oferecem uma experiência suficientemente adequada para a apreciação de uma obra cinematográfica — pensando bem, ainda têm a vantagem adicional de não trazer como brinde idiotas falando alto atrás de você, ou o barulho onipresente de pipoca sendo mastigada ou sacos plásticos sendo abertos. É uma situação melhor do que a vivida pela a maior parte dos cinéfilos de hoje, que viram os grandes filmes que precisavam ver em telas pequenas — na TV aberta ou por assinatura, em videocassetes ou DVDs. Não precisaram — e nem podiam, na verdade — ir a um cinema para ter acesso ao conteúdo de que precisavam.

Se o governo quer levar o cinema ao povo, antes de anunciar a ideia mirabolante de construir um cinema em cada município — o que não aconteceu sequer quando o cinema era o único lugar onde se poderia ver filmes, e o preço dos ingressos era muito mais acessível –, deveria em primeiro lugar fortalecer as TVs públicas e torná-las mais atrativas aos telespectadores. Devia levar banda larga de internet para mais pessoas. Deveria lembrar que, já que paga para que brasileiros façam filmes, poderia facilitar a distribuição e o compartilhamento desse conteúdo pela rede — ou seja, poderia definir e exigir as contrapartidas sociais que cineastas como Cacá Diegues denunciaram com horror que julgo genuíno. O futuro está aqui, é inexorável, e acontece independente de políticas culturais de governo equivocadas.

A valorização do cinema como experiência social compartilhada também deveria estar fora da alçada do Estado. Porque há outras maneiras, mais baratas e também necessárias, de valorizar a cultura e oferecer lazer ao povo. Outras formas de arte mais baratas e também relevantes podem ser incentivadas, e deveriam ser objeto de mais atenção do governo, mesmo que demagógica.

O exemplo mais óbvio é o teatro. Em vez de criar um cinema em cada cidade, mensagem que em sua utopia enche de alegria os corações de Luiz Carlos Barreto e da Globo Filmes, o governo poderia tentar criar um teatro em cada município, e descobrir formas de incentivar a formação de grupos locais. É até mais justificável: além de muito mais barato, o teatro é uma experiência artística irrepetível fora do palco, e justifica esse ardor estatizante. Tudo bem, a maior parte da produção será intragável — mas isso também vale para o cinema. Além disso, por mais importante que seja o cinema como elemento da formação cultural do povo, há um limite de bom senso a que se deve chegar. Por exemplo, por que é tão importante que alguém em Serra Talhada, Pernambuco, veja um filme sobre o submundo carioca ou as angústias existenciais de um morador do Morumbi? Por que não seria mais importante que ela pudesse criar seus próprios espetáculos de teatro, em que a sua sociedade se enxergasse e que pudessem ser compartilhados com outras regiões do país?

A ênfase no fomento ao cinema, quando chega a esse ponto, reflete muito mais as aspirações de determinado segmento social do que as necessidades culturais do povo brasileiro. A função do Estado não deve ser, intrinsecamente, garantir a produção de cinema. É garantir que o povo tenha acesso à produção brasileira de cinema. O financiamento da produção, nos termos e circunstâncias atuais, acaba sendo uma consequência necessária. É preciso ter isso em vista. Porque quando a razão das coisas é invertida o risco é que se chegue ao absurdo e ao total desvirtuamento da função de um Ministério da Cultura.

Momentos antológicos do kinemanacional

Não levo o kinemanacional mais a sério do que deveria. Uma cinematografia que começa a se afirmar, muitos filmes sobrevalorizados, uns poucos subestimados (como “Cidade Baixa”, de Sergio Machado com roteiro dele e do Karim Aïnouz, autor de “O Céu de Suely”), e uma indústria que se autoalimenta e autoelogia.

Mas reconheço que há alguns momentos magníficos na cinedramaturgia nacional, que não foram e provavelmente jamais serão superados, e que ninguém me venha com um sueco aqui ou um francês ali, que nenhum deles conseguiu entender a esse ponto a verdadeira essência das coisas — acho que os italianos chegaram mais perto, mas isso não é grande coisa. É nessas horas que o kinemanacional se faz digno do seu nome.

Dona Flor e seus Dois Maridos (Bruno Barreto, 1976)
Vadinho você conhece, é o sujeito que todo baiano gostaria de ser.

Infelizmente santo de casa não faz milagre e quando ele pede a Dona Flor dinheiro para cair na gandaia sua mui devota esposa não entende a sua natureza, e se nega, não vai dar ao marido o dinheiro que reservou para a Santa Madre.

Mas Vadinho sabe das coisas, e sabe que não é justo que coisa tão material como o dinheiro seja destinada àquela que deveria se limitar a cuidar só das almas, quando poderia ser muito mais bem aproveitada num puteiro qualquer da Ladeira da Montanha — naquela época ainda havia puteiros na Ladeira da Montanha — ou num boteco do Taboão.

“Me dá o dinheiro, porra!”, e dona Flor, coitada, não entende a ameaça contida aí, e se nega mais uma vez, porque Flor não compreende que o medo ao Senhor não deveria ser maior que o respeito a Vadinho. E então ele dá uns tapas em Flor e toma o seu dinheiro e vai para a esbórnia — palavra bonita, essa: esbórnia. Mais bonita e mais elegante que “putaria”.

Não é por bater em dona Flor, que em mulher não se bate nem com uma rosa, a não ser que ela peça com jeitinho; não é por bater em Flor que Vadinho alcança a sublimidade. Mas por estar disposto a transgredir qualquer senso de limite quando se trata de satisfazer os próprios desejos, e por tirar o dinheiro a um padre ladrão, e por impor as necessidades da carne às vontades do espírito. Vadinho ali se torna o herói de tantos e tantos moços, e se tornou o meu também, pelo menos nos poucos anos em que a triste realidade da minha própria inapetência não me fez abandonar os sonhos de ser um Vadinho e me conformar em ser no máximo um Teodoro — é Teodoro o nome do desgraçado?

O Cheiro do Ralo (Heitor Dhalia, 2006)
“O Cheiro do Ralo” é daquelas obras que fazem as pessoas saírem do cinema achando que assistiram a um grande filme quando na verdade viram apenas um grande tipo, aquele interpretado por Selton Mello.

Mas há nele um instante absolutamente maravilhoso, uma cena que, pela primeira vez em muito tempo, me fez derramar uma lágrima compungido em um cinema lotado, na abertura de um festival quando eu ainda ia para essas coisas.

É quando Selton Mello, diante da bunda da Paula Braun, se ajoelha, se abraça a ela e, com o rosto afundado naquela protuberância calipígia, derrama um pranto emocionado.

Não são necessárias palavras para explicar o que essa cena tem de sublime. O moço ajoelhado prestando a justa reverência ao belo absoluto não é apenas um centurião romano espalmando a mão e gritando “Ave, César!”. Ali, Dhalia conseguiu resumir ema cena apenas toda a verdade da vida, e por essa cena o filme se tornou imortal.

Mulheres, Mulheres (Carlos Imperial, 1981)
Só por ser do Carlos Imperial a gente já fica achando que “Mulheres, Mulheres” é avacalhação. E é, não dá para negar. Pelo menos é avacalhação com pedigree razoável, porque o filme se diz inspirado em Pasolini. É a sina triste de certo kinemanacional, almejar coisas tão grandes mas se esborrachar no chão da má realização.

A referência italiana não esconde, no entanto, que esse é um filme tipicamente brasileiro: um homem em luto pela perda da esposa começa a delirar, e o resultado são cenas e mais cenas de putaria e sacanagem, às vezes evocando um Busby Berkeley, às vezes parecendo coisa de puta ruim de cabaré do interior.

Eu tenho a impressão de que o Imperial fez o seu casting nas termas do centro do Rio. Algumas são muito boas no seu mister; a maioria, no entanto, além das caras de piranha de fim de noite na finada Help, estão tão à vontade diante das câmeras como estariam diante do seu primeiro cliente.

O filme pretensioso e ruim tem uma pequena epifania, no entanto, quando Imperial em seu delírio enraba sua anja da guarda.

Não há cena mais bela e metafísica do que essa em toda a história do kinemanacional; pode até haver igual, mas superior não há, não pode haver: Carlos Imperial e sua barriga imensa e flácida, montado sobre uma anja da guarda com cara de puta do baixo meretrício de Cabrobó. As pessoas dificilmente entendem o que há de redentor nisso, não entendem o grande debate metafísico por baixo da barriga de Carlos Imperial, não entendem, e então a elas é negada a verdadeira sabedoria.

Robin Hood, de Ridley Scott

Tudo bem, Robin Hood é uma lenda, e com uma lenda pode-se tomar as liberdades que quiser.

Mas não é uma lenda qualquer. E não apenas por ter quase mil anos. Junto à do rei Arthur, é uma das lendas fundadoras da identidade inglesa. Enquanto aquela diz respeito aos nobilíssimos ideais nacionais, a lenda de Robin Hood é, de certa forma, a visão que o povo inglês tem de si mesmo: rebelde, bravo, debochado, justo. Na Wikipedia se pode achar um bom resumo da confusão que se faz em tentar definir uma origem clara para a lend, mas isso importa pouco. A existência histórica de Robin Hood chega a ser desnecessária: o que importa realmente é que nele o povo inglês pintou um retrato excelente de si mesmo, ou ao menos do que gostaria de ser.

A idéia do sujeito ousado que rouba dos ricos para dar aos pobres é a sua verdadeira razão de ser. Sua versão consolidada, a que chegou até os dias de hoje (recontada, entre outros, por Monteiro Lobato), reza que o jovem Robert Fitzhood, tendo seus direitos usurpados pelo xerife de Nottingham durante a regência do príncipe que mais tarde seria o rei João Sem Terra, junta-se a um grupo de foras da lei na floresta de Sherwood, torna-se seu líder incontestável e se dedica a caçar cervos que são propriedade do rei, roubar dos ricos que passam por ali para distribuir entre os pobres oprimidos, e desafiar e insultar seus grandes inimigos, o xerife e o bispo de Nottingham — ou seja, o Estado e a Igreja —, com bom humor, ousadia e inconsequência. Se apaixona por uma jovem dama chamada Marian, e quando o rei Ricardo Coração de Leão volta das cruzadas, o perdoa. Mais tarde irá morrer nas mãos de uma freira, filha do próprio xerife, mas isso é praticamente outra história.

Essa é uma lenda que demorou mais de 500 anos para ser criada. “Robin Hood”, o novo filme de Ridley Scott com Russell Crowe, Cate Blanchett e John Hurt, joga tudo isso no lixo, e o resultado é uma mixórdia medíocre e confusa. Em duas horas, Ridley Scott consegue destruir uma lenda secular por pura e simples incompetência.

Do ponto de vista cinematográfico não há muito que se falar de “Robin Hood”. Não há nada nele que o distinga da super-produção média de Hollywood. É mais do mesmo, filme igual a tantos outros pseudo-épicos que vieram às telas nos últimos anos. Alguns críticos o compararam a “Gladiador”, do mesmo diretor e com o mesmo ator principal; mas as referências mais sólidas do filme estão estão em filmes mais recentes e que abordam a mesma Idade Média, como “Cruzada”, também de Scott, e “Rei Arthur”. Esteticamente, são praticamente o mesmo filme. É quase como se fossem feitos pela mesma equipe: diretor, roteirista, diretor de fotografia e diretor de arte.

A confusão histórica criada pelo enredo desafia qualquer tentativa de compreensão, a começar pela representação simplista, esquemática e falsa das relações entre França e Inglaterra. Que ninguém tente entender a história da Velha Albion naqueles anos dos Plantageneta através deste “Robin Hood”, porque tudo o que se vê ali é, virtualmente, imaginação do roteirista. Essa barafunda tem reflexos também na construção dramática do filme. Uma das cenas mais comentadas, a tentativa de invasão francesa, é alegadamente uma referência à invasão da Normandia como retratada em “O Resgate do Soldado Ryan”, de Spielberg. Mas mas ao ver aquelas barcaças movidas a remo, e sem o brilho de edição e sonoplastia que fizeram da cena dirigida por Spielberg uma das mais impactantes da história do cinema, a imagem que vem à lembrança é a dos Flintstones e suas paródias da tecnologia moderna. (E um detalhe bobo: qual almirante tentaria a invasão de um país por uma praia cercada de falésias e com uma única saída, como a do filme? É praticamente suicídio, mas em nome do visual grandioso Ridley Scott é capaz de qualquer coisa.)

A atuação de Russel Crowe é catastrófica. Se a versão de Michael Curtiz, de 1938, trazia um Errol Flynn elegante, irônico e alegre, Crowe faz um Robin Hood tão chato quanto Kevin Costner quase vinte anos atrás; mas enquanto Costner tinha também uma cara inamovível de banana, Crowe agrega ao seu uma ferocidade trazida diretamente dos seus tempos como gladiador no Coliseu romano. Se a lenda fosse respeitada, em vez de encarnar o protagonista Crowe poderia fazer Guy de Gisborne, um de seus antagonistas. Seria mais adequado. Porque Robin Hood é, acima de tudo, um boa-vida. E seu grupo, “vestido no verde pano de Lincoln”, era conhecido como “Robin Hood and his Merry Men”.

Mas o trabalho canastríssimo de Crowe não é o principal problema de “Robin Hood”. O que assusta, mesmo, é a capacidade impressionante de Ridley Scott para destruir a essência de uma lenda fantástica.

Agora Robin Hood é Robin Longstride, arqueiro de Ricardo Coração de Leão que deserta depois de castigado. A demagogia populista contemporânea tira do homem que um dia foi Robert de Locksley a sua nobreza hereditária — o que em tese o aproxima mais de suas eventuais raízes reais: historicamente, o mais provável é que a sua origem seja algum Robert que não passaria de um yeoman. Em algum momento deu-se a ele um título de nobreza que lhe teria sido usurpado; e disso nunca se conseguiu passar.

Mas a tradição de nobilitação de Robin Hood é antiga demais para que se consiga sair dela. E mais uma vez tenta-se dar uma origem nobre, de alguma forma, ao personagem. Ridley Scott vai mais longe do que alguém já sonhou, e agora, além de guerreiro experimentado no Oriente com um certo de tipo de ligação real, Robin Hood é filho do homem que, nem mais nem menos, escreveu a Carta Magna de João Sem Terra, o documento precursor da democracia moderna.

Se era para esculhambar dessa forma, poderiam ter dito que Robin Hood era Artur da Bretanha, o sobrinho em que o Rei João deu um sumiço jamais explicado. Seria mais decente, mais nobre e historicamente mais acurado.

Como se não bastasse, a própria razão de ser de Robin Hood — o homem que tomava a justiça em suas mãos, roubava dos ricos e dava aos pobres — é virtualmente eliminada. De acordo com Scott, Robin Hood é um sujeito que ajuda os barões em sua busca de consolidação do feudalismo, em vez de roubá-los. O único roubo de Robin Longstride (sem contar o saque de alguns mortos, algo perdoável porque o Inferno não cobra entrada) é para beneficiar a sua amada da pequena nobreza rural.

Scott conseguiu criar um Robin Hood que trabalha dignamente para a os ricos, e não é fácil imaginar um destino mais indigno para o pobre sujeito.