Um dia, muito tempo atrás, Paul McCartney dialogou com o futuro — e nesse diálogo foi um dos principais artífices da música que se seguiria.
Além disso, sem medo de errar, pode-se dizer que ele foi um dos melhores cantores da era de ouro do rock. Versátil como poucos, capaz de gravar na mesma sessão uma balada como Yesterday e um rock à la Little Richard como I’m Down. Sua voz não tinha a visceralidade de um Lennon, nem conseguia transmitir a emoção e verdade que ele passava; mas ia facilmente a extremos que poucos outros conseguiam.
Os anos passaram, muitos anos, e de uns tempos para cá ele vem se contentando em fazer música — muitas vezes muito boa, por sinal; seus últimos lançamentos não fazem vergonha a um ancião com mais de 40 discos nas costas (comentários sobre eles foram feitos aqui e aqui). Por outro lado, sua voz acabou há muitos anos; McCartney já não é capaz de chegar aos agudos que atingia nos anos 60, até mesmo nos 80; e para contornar esse problema, desenvolveu vícios que o tornam, em alguns momentos, quase brega.
Agora ele resolveu voltar lá para trás. Seu novo disco, Kisses on the Bottom, é uma coletânea de antigos standards americanos — a maioria relativamente desconhecida. Acompanha-o a banda de Diana Krall, responsável também pelo grosso dos arranjos. Pela primeira vez McCartney gravou um disco em que não toca nenhum instrumento (com uma única exceção, violão em The Inch Worm). Talvez isso contribua, em parte, para o fato de que na maioria das canções não há o seu toque, a sua marca. De modo geral, parece um disco de Diana Krall — principal arranjadora do disco e presente em virtualmente todas as faixas — com McCartney nos vocais.
É um erro. Talvez o mais incômodo em Kisses on the Bottom seja justamente isso, os vocais de McCartney.
Ele se aproxima das canções com um tom ao mesmo tempo reverente e autocondescendente; o resultado é apenas pretensioso. A intenção aparente de soar intimista e low key, então, soa caricatural. Sua abordagem das canções é completamente equivocada, deixando evidente sua incapacidade de alcançar as variadas nuances exigidas pelas canções. Isso fica mais claro em canções como Ac-cent-tchu-ate the Positive (duvida? Ouça a versão das Andrews Sisters).
A McCartney faltam tanto a versatilidade vocal e a riqueza tonal dos crooners d’antanho; mas acima de tudo lhe faltam as qualidades de intérprete que essas canções parecem exigir. Ele não tem aquele quê a mais que fazia Sinatra dar uma vida antes inimaginável a uma canção, ou o charme aparentemente preguiçoso de Dean Martin, ou ainda a sensação de casualidade que Bing Crosby imprimia ao que cantava — e, em todos esses casos, uma técnica perfeita. Interpretando velhos standards, McCartney é um mau intérprete, é só mais um cantor. Não é sequer dos melhores: é um cantor sem voz. Além disso, aparentemente o disco pretende ser minimalista; mas não se compara, por exemplo, ao que Fred Astaire fez em The Irving Berlin Songbook. É um minimalismo quase burocrático, o minimalismo batido do jazz aguado à la Diana Krall ou Harry Connick, Jr. que as pessoas ouvem hoje em dia.
Resumindo: o problema desse disco é que Paul McCartney não tem swing.
Em entrevistas ele diz ter evitado durante muito fazer esse disco porque não queria ser comparado a Rod Stewart, que andou perpetrando coisas parecidas nos últimos tempos. Ele devia ter mais medo de ser comparado com Ringo Starr. O que Ringo fez 42 anos atrás em seu primeiro disco solo, Sentimental Journey, McCartney fez agora. A diferença é que Ringo não se levava a sério, até porque não podia, e seu disco tem um tom moderno, ainda que paródico, que quase chega a dar alguma personalidade aos grandes clássicos que o baterista não teve vergonha de regravar.
McCartney, no entanto, está sempre tentando se manter à altura de sua história. Talvez por isso tenha tido o cuidado de evitar ao máximo os grandes clássicos do cancioneiro americano. Foi uma medida acertada. Se se aventurasse a interpretá-los, o resultado seria provavelmente trágico, evidenciando ainda mais suas limitações. Uma pista disso está em Bye Bye Blackbird. Sua interpretação aqui é, em uma palavra, tenebrosa. Cheque a versão de Doris Day — que dificilmente seria incluída entre as mais conhecidas — para ver como se pode cantar essa canção com simplicidade e alcançar resultados excelentes. Em vez disso, McCartney acrescenta floreios desnecessários e uma interpretação arfante a uma canção que deveria ser interpretada apenas com um banjo, um contrabaixo e uma washboard. (Pensando bem, cheque a versão de Ringo em Sentimental Journey. Até essa é melhor.)
Como você vai baixar o disco nas redes P2P da vida (afinal, a quem queremos enganar, não é?), dê preferência à versão deluxe, que inclui duas canções bônus. Entre elas uma regravação de Baby’s Request, a canção que fechava um dos álbuns mais subestimados dos Wings, Back To The Egg.
Baby’s Request simboliza tudo o que há de errado em Kisses on the Bottom. Em sua versão original era uma canção simples, despretensiosa, que pretendia apenas fechar com graça o disco. Era aquilo que sua letra dizia: uma música para tocar antes de empacotar os instrumentos, depois que todo o salão se esvaziou, uma canção boba para um casal apaixonado em fim de noite que reluta em deixar uma noite perfeita acabar. A nova versão, no entanto, tem outras aspirações; a musiquinha simples se tornou pretensiosa, a voz de McCartney, antes sedutora em sua simplicidade, agora tenta se alçar a maneirismos que já não é capaz de conseguir.
Eu sei que tudo isso parece uma condenação absoluta do disco. Não é. Kisses on the Bottom é agradável, os arranjos são de extremo bom gosto, os músicos são de competência ímpar. E se você deixa de se preocupar com a voz de McCartney, ou sua interpretação de cantor de baile, se aceita sem problemas a sensação de dejà vu nas canções, Kisses on the Bottom se torna o tipo de disco que se pode colocar no CD player em uma noite com os amigos. Ou se no seu carro ou em sua casa está uma moça ou um moço que gosta desse tipo de música. É um disco útil. O problema é que utilidade é a última coisa que se deveria dizer de uma obra de arte.
Kisses on the Bottom tem outra grande qualidade, e essa é inquestionável. As duas canções escritas para este disco são surpreendentemente bem construídas, melodicamente sofisticadas, mostrando que McCartney afinal é um compositor em pleno controle de sua técnica. My Valentine é de uma elegância estonteante, sem perder a marca registrada de seu autor; Only Our Hearts é virtualmente indistinguível do que se fez de melhor nos anos 40. São, provavelmente, o melhor do disco.
Daqui a alguns anos, quando McCartney estiver morto e enterrado e vermes carnívoros não respeitarem suas vontades vegetarianas e devorarem suas carnes, Kisses on the Bottom vai ser lembrado dentro do conjunto da obra de Paul McCartney, talvez o maior artista pop da história. Vai ser visto com um acréscimo importante à obra impressionante de um sujeito que foi capaz de ajudar a mudar o mundo, que escreveu de rocks a balés, de oratórios a sinfonias. Mas enquanto isso não acontece, Kisses on the Bottom é só mais um disco feito para tocar em BG.