As vinhas da ira, pisoteadas

Ao que parece, Steven Spielberg pretende refilmar “Vinhas da Ira”, romance de John Steinbeck e filme de John Ford.

Além do fato de ser absolutamente temerário refilmar filmes do cânon cinematográfico, seja por quem for, há algo que faz pensar que essa versão, talvez, seja um tanto diferente da original de Ford. Algo mais adequado aos novos tempos e sua preferência por obviedades rasas, e ao novo diretor ainda mais óbvio e ainda mais raso.

Este blog dá aqui, em primeira mão, a sinopse dessa versão.

Na versão de Spielberg, Tom Joad é um garoto de seus 13 anos, injustamente acusado de um crime que, redundantemente, não cometeu. Seu pai, um homem simples mas forte, o típico trabalhador americano do Oklahoma, e obviamente seu melhor amigo, está disposto a qualquer sacrifício para salvá-lo; e assim coloca a família em um carro — ou, talvez, numa carroça puxada por um cavalo de guerra — e juntos aquela família pobre mas limpinha segue em direção à Califórnia.

É uma longa viagem pela estrada de tijolos amarelos, e durante ela a família passa por várias atribulações. No momento mais emocionante do filme, a doce avó de Joad morre tentando salvar seu neto de um dinossauro. Mais adiante, quando atravessam um belo campo de papoulas — que segundo os críticos significará uma alusão ao Taliban — Tom Joad é abduzido por extraterrestres, que o levam em uma aventura repleta de efeitos especiais até Aldebaran. Lá, Tom Joad inicia um pequeno romance com uma ET charmosa, interpretada pela Scarlett Johansson — porque todas as ETs são louras gostosas.

Mas ao final tudo dá certo. Joad volta à terra, com um carregamento de ouro trazido de Aldebaran, e toda a família (além da ET gostosa) será feliz para sempre.

É, é um roteiro ridículo e eu sei disso. Mas o que me assusta, mesmo, é que provavelmente é ainda melhor do que o filme eventualmente refeito por Spielberg.

Cinema Paradiso

“Cinema Paradiso” é um dos excelentes filmes italianos do final dos anos 80. Não havia muitos no seu nível, naquele final de década. Delicado, forte, o filme parecia ser um epitáfio lírico à era dos cinemas, crônica nostálgica de um tempo passado em que eles ainda estavam no centro da vida nas cidades. Era também um olhar melancólico sobre um presente em que nem mesmo filmes pornográficos conseguiam sustentar as velhas salas, destruídas pela lascívia doméstica dos videocassetes.

(O cinema em que assisti a “Cinema Paradiso” já estava em seus últimos anos. Hoje é uma loja de roupas populares, depois de uns poucos anos como bingo. Seguiu um destino triste, talvez mais triste que o Paradiso, ao qual tiveram a decência de eutanizar.)

Sinopse rápida, para quem inexplicavelmente ainda não viu esse filme: Totó, cineasta famoso mas com uma vida que parece incomodamente vazia, recebe um telefonema de sua mãe avisando que Alfredo morreu. Vem um longo flashback: na Sicília paupérrima do pós-guerra, Totó é um menino apaixonado por cinema que acaba se aproximando do velho Alfredo, projecionista do cinema da cidade, o Paradiso, propriedade da Igreja cujo padre corta todas as cenas mais quentes, até mesmo as de beijo. Totó tanto insiste que consegue se tornar assistente de Alfredo. Já adolescente, se apaixona por Elena. No entanto ela vai embora, e logo depois um Totó de coração partido deixa a cidade, para nunca mais voltar. Corta para os dias atuais. Pela primeira vez em 30 anos ele volta a sua terra natal, a tempo de ver o enterro de Alfredo e a implosão do Paradiso. Ele leva para casa a herança que Alfredo lhe deixou. A descoberta do conteúdo dessa herança é uma das mais belas cenas de encerramento de um filme em toda a história da sétima arte, e uma das maiores declarações de amor que qualquer cineasta já fez ao cinema.

O filme, claro, é muito mais que isso. Além de um fantástico painel de tipos sicilianos — o louco de estimação da cidade, o mafioso local, o comunista, riquinhos e pobres, o ganhador da loteria, a prostituta, quase todos vistos en passant —, ele tem uma delicadeza e uma sensibilidade raras. É claro que “Cinema Paradiso” bebe da fonte inesgotável do melodrama italiano — ninguém poderia jamais compreender o cinema italiano, mesmo o neo-realismo, sem entender a tradição operística da sua cultura latina —, mas consegue evitar, sempre, a pieguice. Consegue aquela boa mistura de humor e emoção que já colocou o cinema italiano entre os melhores do mundo.

No entanto, em algum momento lançaram uma versão do diretor, mais longa, esta que assisto agora. Nela, além de algumas cenas a mais, pouco relevantes, o romance de Totó e Elena ganha mais espaço, mais explicações e, mais importante, altera significativamente a percepção dos personagens.

E isso faz pensar sobre essa onda recente de versões do diretor.

Não dá para fazer um julgamento único. Talvez a versão corrigida de “A Marca da Maldade”, de Orson Welles, seja muito melhor que a que foi originalmente aos cinemas. Eu, que não vi a versão original alterada pelo estúdio, não tenho certeza. Mas acredito que “Soberba” seria infinitamente melhor sem o final colocado a fórceps à revelia de Welles, porque ele é tão destoante do resto do filme que parece uma grande piada de mau gosto.

O problema é que esses casos, em que um estúdio violenta um diretor que está dormindo, são muito raros. A maior parte desses filmes são o resultado de conflitos e negociações, de opiniões normalmente ponderadas e discutidas à exaustão. Ninguém tenta fazer um filme ruim deliberadamente. E nenhum diretor aceita mudanças em seu filme sem discutir ou brigar.

No fim das contas, versões do diretor existem essencialmente para fazer as pessoas irem mais uma vez ao cinema, ou comprar novamente o DVD. São um fenômeno recente que só interessa de verdade aos produtores, talvez a um diretor mais vaidoso que acha que o filme como ele o concebeu é melhor do que aquela que milhões de pessoas aclamaram como obra-prima.

Assim como Apocalypse Now Redux não acrescenta nada a um filme que nasceu clássico, a versão do diretor empobreceu “Cinema Paradiso” de forma clamorosa. O que Tornatore não conseguiu entender, ou aceitar, é que foram justamente os cortes feitos que limparam do filme o dramalhão, o romantismo barato; que deram a dimensão de verdade universal à vida de um pobre menino siciliano. Não é a inserção de um reencontro digno de fotonovela italiana que vai fazer melhor um filme originalmente delicado e sutil. O filme que foi originalmente aos cinemas era limpo, verdadeiro. Não tinha gorduras, e em vez de chafurdar no clichê das explicações desnecessárias, tinha uma verdade melancólica e lacônica que o erguia acima da grande maioria dos outros filmes.

“Cinema Paradiso” é tão mais belo sem essas explicações, sem que a gente saiba por que Elena sumiu no mundo sem avisar ao Totó. É tão mais belo sem entender a profundidade do papel de Alfredo como demiurgo; sem reencontrar Elena; sem explicar tudo aquilo que não vimos. A permanência de Elena é tão mais bela, tão mais significativa sem encontros furtivos de duas pessoas de meia-idade dentro de um carro numa praia erma; a lembrança de Alfredo é tão mais verdadeira e imponente sem que precisemos vê-lo como um Mangiafuoco cego.

Eu e tantas pessoas olhamos às vezes para trás e vemos pessoas que desapareceram no mundo, que um dia estiveram próximas e então se afastaram, desapareceram na névoa do tempo. Nós não as reencontramos, nunca, e por isso suas lembranças adquirem uma pátina que as torna mais belas à medida que elas também vão desaparecendo. Foi isso que Tornatore não entendeu. Ele não percebeu que, nesses casos, o reencontro apenas traz tristeza e destruição, aniquilando um passado que, então, jamais será tão belo novamente.

Alvíssaras balzaqueanas

Vi na livraria que a Editora Globo está relançando “A Comédia Humana” de Balzac. Terceira edição, agora.

Portanto, antes de mais nada, se você não a tem vá correndo comprar. São 17 volumes. Compre. O preço é meio salgado, mas vale cada tostão que você der nesses livros. Se não puder comprar todos, compre ao menos o volume IV (que tem “O Pai Goriot” e uma belíssima seleção de contos) e o VII (que traz “Ilusões Perdidas”).

“A Comédia Humana” é uma daquelas obras que todo mundo deveria ler, assim como “Dom Quixote”, “Crime e Castigo”, “Os Irmãos Karamázov”, “Ana Karênina”, “Em Busca do Tempo Perdido”, umas quatro peças de Shakespeare e o “Dom Casmurro”. Compre. Leia. Você não vai se arrepender.

Acho que quase tudo o que eu podia dizer de Balzac já disse aqui, anos atrás. E desde aquela época eu já implorava a quem quisesse ouvir pela reedição dessa obra magnífica.

No entanto, essa é de todas a pior. O design da capa é modernoso mas não diz nada; o papel mais vagabundo faz com que o volume seja mais grosso — o texto em tipos e espaçamentos maiores, no entanto, facilitam a leitura e são uma qualidade; além disso, a decisão óbvia de colocar o “Prefácio” de Balzac no primeiro volume é uma correção a uma grande bobagem na edição anterior. Comparada à segunda edição, com sua capa em courino e sobrecapa razoavelmente elegante, contida, a nova edição não é verdadeiramente moderna nem é bonita. É mais pobre, na verdade, como uma velha maquiada para parecer mais jovem mas que acaba sendo apenas patética.

Mas é “A Comédia Humana” de volta às livrarias, afinal. A capa, o papel, tudo isso deixa de importar assim eu você passa pelas primeiras quatro, cinco páginas de cada romance de Balzac.

O mais curioso é que, por uma razão que tentam justificar numa nova introdução à obra mas que continuo achando inexplicável, não corrigiram aquele que é, na minha opinião, o único equívoco nas traduções supervisionadas pelo Paulo Rónai: o aportuguesamento de nomes próprios, que nos obriga a conviver com Luciano de Rubempré e Eugênio de Rastignac, por exemplo. A esta altura da história humana, em que a globalização faz com que idiomas sejam irremediavelmente permeados por elementos estrangeiros e a internet contribui para a formação de uma babel eletrônica, é inacreditável nós ainda tenhamos que conviver com essa mania portuguesa. Esta edição perdeu a chance de corrigir esse erro. Mas isso não é grave.

Grave é perder a chance de mergulhar em Balzac.

Um cinema em cada cidade

O texto abaixo é um e-mail enviado por mim para uma amiga há algum tempo, que tinha me mandado um e-mail descendo a lenha em mim por causa desse post. Lembrei dele e, embora já não saiba a quantas anda esse projeto de cinemas em cidades com 100 mil habitantes, continua sendo o meu ponto de vista.

Acho que você saiu do ponto principal — a garantia de acesso do povo a cultura, e mesmo à produção cinematográfica — para apenas repetir um discurso velho, que confunde o meio e a mensagem.

Pior, desconsiderou a discussão sobre o que realmente importa. Partiu apenas para a defesa e repetição do projeto e seu discurso, esquecendo, inclusive, que o ponto aqui não é negar o acesso do povo à informação cultural; é ver se há formas mais eficientes de realizar esse direito.

Em primeiro lugar, os dados que você cita são pouquíssimos e limitados, e não justificam sua urgência para que eu pesquise por aí. Você podia citar um mais interessante: sabe quantos cinemas existem na Índia? 12 mil, o que dá uma relação per capita ainda menor que a do Brasil. No entanto, no mesmo 2009 em que o Brasil produziu 75 filmes, a Índia produziu 1288 longas, de um total de algo menos de 3 mil peças em celuloide. Os dados que você cita tampouco mencionam que os pouco menos de 6 mil cinemas (e cerca de 40 mil telas) existentes nos EUA em 2001 (número que começou a decair depois do boom dos multiplexes nos anos 90) são um número proporcionalmente muito menor do que o que havia em 1930, quando 65% dos americanos iam ao cinema semanalmente. Hoje são apenas 9,7%.

Esses números, que são a realidade que elitistas como eu deveriam conhecer, deveriam servir para ao menos fazer vocês questionarem essa obsessão pervertida por salas de cinema. Quanto ao resto da sua argumentação, é apenas justificativa de uma ideia. É algo válido, mas apenas a partir do momento em que se concorda com sua premissa. E eu não concordo.

Dados jogados assim, sem levar em conta o seu contexto, funcionam como palavra de ordem. Mas não se sustentam com tanta graça sozinhas porque desconsideram a realidade em redor e a evolução histórica. O mesmo texto da Ancine de onde você tirou a palavra de ordem de que “O Brasil é o 60º país na relação salas de cinema/habitantes” lembra que o número de salas no país duplicou com os multiplexes (processo que, aliás, se repetiu no mundo inteiro); aí lembra que 80% das salas de exibição ficavam no interior (dado insuficiente porque não distingue o interior desenvolvido de São Paulo, como Santo André ou Osasco, de cusdemundo como Cabrobó, Cumbe ou Uauá).

Ainda o texto da Ancine:

O Brasil já teve um parque exibidor vigoroso e descentralizado: quase 3.300 salas em 1975, uma para cada 30.000 habitantes, 80% em cidades do interior. Desde então, o país mudou. Quase cento e vinte milhões de pessoas a mais passaram a viver nas cidades. A urbanização acelerada, a falta de investimentos em infraestrutura urbana, a baixa capitalização das empresas exibidoras, as mudanças tecnológicas, entre outros fatores, alteraram a geografia do cinema. Em 1997, chegamos a pouco mais de 1.000 salas.

A impressão que tenho ao ver esse parágrafo é a de que, mesmo quando os dados estão na sua frente, você pode escolher não vê-los. É óbvio que se as salas de cinema foram desaparecendo havia uma razão muito objetiva. Isso está claro nesse texto. Mas essa simples recapitulação cronológica não diz o mais importante: que o elemento mais importante nessa transformação foi a TV.

A TV acabou com muitas das funções dos cinemas. Extinguiu os cinejornais. Garantiu dramaturgia gratuita com mais conforto para milhões de pessoas. Foi por isso que primeiro os cinemas de bairro e depois os dos centros das cidades fecharam: não podiam mais atrair público suficiente, porque já não eram a única forma de ver um filme. Durante muito tempo eles ainda se sustentaram com filmes B e pornôs; depois nem isso, porque o videocassete destruiu a pornografia cinematográfica. (Na verdade, a consolidação da TV mudou o próprio cinema em ciclos constantes, a partir dos anos 50, mas essa é outra discussão.)

Aí está o problema. O culto à sala da exibição é anacrônico e elitista, mais elitista do que você me julga — é um conceito antigo, que parte da visão edulcorada de que ir ao cinema é algo que todo mundo quer.

E não é. O que as pessoas querem é ver filmes.

É aí que deve entrar o Estado: garantindo que as pessoas tenham acesso ao cinema nacional, seja onde for, seja como for. Por isso o anacronismo dessa discussão: nego confunde o meio com a mensagem, em detrimento desta última. Ao propor levar um cinema para cada cidade de algum porte, o Estado tenta recriar artificialmente uma situação que a evolução cultural e econômica tornou insustentável e que, pior, desconsidera todo o avanço tecnológico dos últimos 60 anos. Quer algo mais anacrônico que isso?

Entendo até que se tente preservar cinemas antigos, como o Odeon (e como deveriam fazer com o São Luiz de Fortaleza, que da última vez que vi estava fechado e já foi um dos cinemas mais luxuosos do Brasil, joia da coroa de Severiano Ribeiro, e o Jandaia em Salvador, o mais belo de todos, monumento perfeito aos barões do cacau). Trata-se, neste caso, de preservar ao menos um desses lieux de mémoires que as cidades vêm perdendo. Mas criar cinema no século XXI onde não existe nenhum é uma grande bobagem.

O que vocês estão fazendo tem pontos de contato com a tentativa desesperada das gravadoras de garantir o seu mercado, embora seus objetivos e motivações sejam diferentes. Sala de cinema, como CD, é simplesmente meio de distribuição. Fez sentido quando era a única forma de assistir a um filme qualquer; hoje, não deveria ser o que importa para quem produz nem é o que o público acha fundamental. E por isso é preciso levar em consideração os novos meios de distribuição.

A questão é: vocês querem que o povo veja filmes brasileiros ou vá ao cinema ver filmes brasileiros? Porque apesar do que vocês parecem achar, isso não é a mesma coisa. Vocês parecem partir do princípio de que salas de cinema cumprem uma função cultural e socialmente efetiva e insubstituível. E isso já não é verdade no Brasil desde 18 de setembro de 1950.

Acho também que não custa olhar em volta, entender a realidade como ela se apresenta. Os cinemas desapareceram, ponto, leve uma guirlanda de flores para eles. E no caminho veja que um mercado imenso de DVDs piratas floresce assustadoramente; é cada vez mais difícil passar por uma calçada onde eles não estejam expostos, ir a algum bar onde um vendedor não os tente vender a você. Os seja: em vez de se manter no passado cor-de-rosa (bem, como é cinema deve ser sépia, né? Aquele amarelado de “O Pecado de Todos Nós” cairia bem) do MiNC, as pessoas evoluíram, mudaram a sua forma de consumir cinema.

Na boa? Se com esse dinheiro que se pretende gastar para construir, manter e garantir programação nesses cinemas o Estado simplesmente gravasse DVDs e os distribuísse de graça, vocês conseguiriam muito mais, e ampliariam ainda mais o mercado para esse pessoal que vive de audiovisual. Eu pessoalmente duvido que esse povo que você invoca para me chamar de elitista aturasse metade dos filmes que você reclama que não chegaram às salas de exibição; mas novamente, não é essa a discussão (me desculpe, mas quando vejo alguém falando nesse “resto da cinematografia do mundo que nunca chegará a essa mesma parcela que tem seu dvd e compra o pirata” eu invoco São Stanislau, porque pressupõe um interesse que, sinceramente, não existe).

De qualquer forma, esse é só um aspecto menor dessa discussão. Acho também que o MinC faria mais pelo segmento do audiovisual, que é o que está em discussão aqui, se apoiasse mais eficientemente as TVs públicas. Você melhor do que ninguém sabe disso. Ofereça motivos para que o povo em geral assista à TV pública, tirando-a do traço em audiência, que vai prestar um serviço muito melhor à sociedade.

E tem também as diretrizes da Ancine que você mandou para mim:

DIRETRIZ (1): Ampliar a oferta de serviços de exibição e facilitar o acesso da população ao cinema
DIRETRIZ (2): Desenvolver e qualificar os serviços de TV por assinatura e ampliar a participação das programadoras nacionais e do conteúdo brasileiro nesse segmento de mercado
DIRETRIZ (3): Fortalecer as empresas distribuidoras brasileiras e a distribuição de filmes brasileiros
DIRETRIZ (4): Dinamizar e diversificar a produção independente em todo o país, integrar os segmentos do mercado audiovisual e ampliar a circulação das obras brasileiras em todas as plataformas
DIRETRIZ (5): Capacitar os agentes do setor audiovisual para a qualificação de métodos, serviços, produtos e tecnologias
DIRETRIZ (6): Construir um ambiente regulatório caracterizado pela garantia da liberdade de expressão, a defesa da competição, a proteção às minorias e aos direitos individuais, o fortalecimento das empresas brasileiras, a promoção das obras brasileiras, em especial as independentes, a garantia de livre circulação das obras e a promoção da diversidade cultural
DIRETRIZ (7): Aprimorar os mecanismos de financiamento da atividade audiovisual e incentivar o investimento privado
DIRETRIZ(8):Aumentar a competitividade e a inserção brasileira no mercado internacional de obras e serviços audiovisuais
DIRETRIZ (9): Promover a preservação, difusão, reconhecimento e cultura crítica do audiovisual brasileiro
DIRETRIZ (10): Estimular a inovação da linguagem, dos formatos, da organização e dos modelos comerciais do audiovisual

O mais fantástico é que essas diretrizes falam em TV por assinatura quando deveriam estar falando em TVs públicas. Depois eu que sou elitista. Fora isso, nada disso contradiz o que eu venho dizendo aqui.

Eu não deixo de ter em mente que esse tipo de discussão diz muito mais respeito aos interesses de um segmento específico, como bancários brigando com caixas eletrônicos. Mas o pior, mesmo, é que para mim essa é uma posição burra. Essas diretrizes que você brandiu em nenhum momento falam em construir salas de cinema. Prestem atenção às diretrizes 3 e 4 e pensem fora da caixa. Ou fora da sala.

A propósito: é bom lembrar que das 600 salas projetadas, só foram construídas 6 até agora.

Beijo e beliscão na barriga,
Rafael

9 de dezembro de 1980

O dia seguinte ao assassinato de Lennon foi diferente dos tantos outros domingos do verão de 1980/1981. 32 anos depois e ainda lembro dele como um dia escuro, o que quer dizer que deve ter chovido em Salvador; ao menos nublado. A TV exibiu o Let it Be — acho que a única vez em que esse filme chatíssimo foi exibido na TV brasileira. Alguém foi lá para casa, e lembro de entreouvir sem nenhum interesse conversas estupefatas e tristes sobre Lennon. É essa a sensação que ficou desse dia: não era a morte de um parente, de um amigo próximo, mas era a morte de alguém que de alguma forma tinha sido importante e querido. Era tudo tão inesperado, todo mundo estava realmente chocado com aquilo.

Menos eu. Eu estava de saco cheio. Eu queria era ver desenho.

George Martin

Sir George Martin é objeto de um documentário, exibido ano passado pela BBC, que sai agora em DVD.

Martin foi o produtor de quase todos os discos dos Beatles (não produziu o Let It Be, perpetrado por Phil Spector, e parte do “Álbum Branco”). É uma lenda do rock, um entre os muito poucos produtores que conquistaram esse status.

Não conheço o teor do documentário e não sei se ele insiste em um mito muito difundido: o de que George Martin foi o grande responsável pelo avanço dos Beatles no estúdio, que sem ele a banda não teria avançado musicalmente da maneira como avançou.

É o tipo de bobagem que as pessoas escrevem e repetem sem pensar muito no assunto; pelo menos essa é a única explicação que encontro para que algo desse tipo ainda mereça espaço. Porque a prova dos nove desse mito frágil pode ser feita de uma maneira muito simples. Basta fazer uma pergunta: o que foi mesmo que Martin fez sem os Beatles?

Ninguém tem essa resposta. Não porque Martin não tenha produzido muita coisa — sua carreira pós-Beatles foi bastante movimentada, principalmente em seu estúdio em Montserrat, aquela ilhota destruída por um vulcão há uns 15 anos. Mas porque o que ele produziu é simplesmente desimportante. Do outro lado do aquário dos Beatles, George Martin participou de uma das maiores revoluções musicais da história. Sem a banda, foi só mais um entre tantos excelentes produtores, cuja função é fazer o melhor disco possível a partir da obra de um artista.

Isso não é um demérito. Martin foi um produtor brilhante, de bom gosto e sensibilidade impressionantes e uma enorme capacidade de ouvir. Mas é só isso. Objetivamente Phil Spector, o inventor do famigerado Wall of Sound, exerceu uma influência maior que a de Martin. Não se trata de diminuir o seu papel, mas de reconhecer exatamente qual foi ele.

De certa forma, aconteceu com Martin o que aconteceu com Ringo e, em menor medida, Goerge Harrison: caudatário da obra impressionante de dois gênios em um tempo especial, Martin acabou adquirindo uma aura muito superior à sua verdadeira capacidade. Talvez por isso, alguns anos atrás, McCartney — o único amigo de Martin entre os Beatles; Lennon chegou a ter uma briga pelos jornais com ele, em 1972 — tenha se mostrado ressentido ao ver que pareciam dar mais crédito a Martin pelo álbum Sgt. Pepper’s do que ele achava que o produtor merecia.

Mas tudo isso são apenas palavras. Há um jeito muito fácil de entender o papel real de George Martin no estúdio, e me impressiona que as pessoas não façam isso com mais frequência. Porque é tão fácil: pegue uma canção de Lennon/McCartney que ele tenha produzido tanto com os Beatles como com outra banda. Por exemplo, I Call Your Name. Lennon originalmente deu a canção a Billy J. Kramer, mas logo depois também a gravou. As duas versões foram produzidas por Martin.

Esta é a versão de Kramer:

E esta é a versão dos Beatles:

A versão de Kramer envelheceu mais que a dos Beatles — e é uma canção que não está entre os grandes clássicos da banda —, é muito mais pop e traz aqueles “vícios” típicos de sua época. A versão dos Beatles traz inclusive alguns compassos de ska, novidade então e que dá uma pista da inventidade musical e sonora da banda. O que faz a diferença, nessa e em tantas outras canções, é justamente a criatividade e o talento da banda. Não é o produtor. É simples assim.

Magnatas

Um post antigo do Inácio Araújo sobre o cinema canta, incidentalmente, loas aos bons tempos em que os estúdios eram dirigidos por gente que amava o cinema, ao contrário dos tempos de hoje quando é tudo pelo dinheiro:

Que os produtores atuais são, em geral, nefastos, nenhuma novidade. São negociantes. Não entendem de cinema como os velhos magnatas e nem estão aí para o desgaste que causam. Mas a proporção absurda de gastos é novidade. O dinheiro não está na tela (de fato, eu vivo me perguntando onde estão os alegados não sei quantos milhões gastos).

O Inácio Araújo é um dos melhores críticos de cinema brasileiros, e seu blog é leitura cotidiana. Mas eu não faço idéia de que tempos foram esses em que os velhos magnatas entendiam tanto assim de cinema. A mim parece outra lenda, como aquela de que na Depressão os estúdios cresceram, quando na verdade, além de precisarem desesperadamente do auxílio do Governo, sofreram muito no início da crise e apenas acompanharam a retomada econômica pós-New Deal.

Se se falar de gente como Irving Thalberg, cujo talento e capacidade de trabalho viabilizaram o surgimento do studio system, na Universal e posteriormente na MGM, tudo bem. Mas Thalberg não era exatamente um magnata — era basicamente um produtor muito bem pago, e perdeu bastante poder pouco antes de morrer.

Magnatas de verdade eram os donos dos estúdios, que aliás ficavam em Nova York. Ou, ao menos, os executivos como Jack Warner ou Louis B. Mayer.

O fato é que, mesmo no auge do studio system, os estúdios eram comandados basicamente por administradores. Era um pessoal que estava no negócio de teatros e cinemas e fugiu para Hollywood para não pagar royalties a Thomas Edison. O negócio de Hollywood, no fundo, sempre foi fazer dinheiro, muito mais do que filmes.

Os Laemmle, pai e filho, quebraram a Universal quando tentaram ir além dos filmes formulaicos, mais apropriados à TV do que ao cinema como o entendemos hoje, e que eram o material com que a Universal trabalhava. Jack Warner? Pouco mais que um açougueiro — e isso se refletia nos produtos da Warner, normalmente de qualidade inferior em valores de produção (o acabou dando no cinema noir). Louis B. Mayer era tão incompetente que após a saída de David Selznick da MGM criou uma tal de “gerência por comitê”, em que diluía responsabilidades, diminuía riscos e limitava criativamente a MGM, passando a depender de uns poucos produtores de talento como Arthur Freed. Mais tarde, esse modelo levaria à derrocada da MGM, que se notabilizaria por custos elevadíssimos mas produção pouco acima do medíocre.

Além disso, Hollywood sempre gastou muito. Sempre, e isso não deveria ser surpresa. Sonhos custam caro — e está aí o Jaguar que eu quero que não me deixa mentir. Filmes classe A sempre tiveram orçamentos milionários, mesmo na era do cinema mudo. Os padrões orçamentários de Hollywood sempre foram desproporcionais. “…E o Vento Levou” custou cerca de 3,9 milhões de dólares em um ano em que uma casa custava cerca de 3.800 dólares e um carro novo, 700. E ainda assim custou menos que a primeira versão de “Ben-Hur” (3,9 milhões em 1925).

Nem sempre se vê o resultado nas telas, é verdade. Mas isso é tão verdadeiro hoje quanto ontem. Os custos de Hollywood são necessariamente altos porque precisam sustentar um grande ecossistema. E porque qualquer atividade criativa precisa de um grande investimento para resultados incertos.

Por tudo isso, esse mito de que antigamente é que era bom é só isso: mito. Hollywood sempre foi uma grande indústria, é que o dizem. Nesse caso, a presidência ficava em Nova York e a Califórnia era, basicamente, o chão de fábrica. O que fazia a diferença, mesmo, eram as circunstâncias. A indústria cinematográfica obedecia a uma lógica diferente nos anos 30 e 40. A ausência de televisão fazia com que se exigisse não apenas os filmes “de prestígio”, como “Grande Hotel”, mas filmes B em proporção muitas vezes maior. Centenas de filmes eram produzidos anualmente porque as pessoas precisavam assistir a um, dois filmes por semana, e os cinemas eram os únicos lugares onde isso era possível. Essa enxurrada de filmes era necessária para sustentar as redes de cinemas e atender a uma população cada vez mais ávida por entretenimento.

Claro que, havia, sim, alguns poucos magnatas do tipo que as pessoas mencionam com saudades desses tempos dourados que nunca existiram, os grandes independentes: Selznick, Sam Goldwin, mais tarde Darryl Zanuck — gente que trabalhava mais ou menos à margem do sistema, se concentrando em filmes de alta qualidade e alta rentabilidade. Mas não eram eles que definiam a indústria, até porque dependiam do studio system; afinal, esse era um sistema sofisticado — ainda que canalha e monopolista — de financiamento, produção e distribuição.

Mesmo hoje é só olhar a lista de produtores de boa parte dos filmes de Hollywood para ver que, no final das contas, o pessoal que gosta de cinema está lá, como sempre esteve. Scorsese, por exemplo, é um cineasta acabado, mas ninguém jamais poderá negar seu amor obsessivo pelo cinema. Spielberg, Lucas, Jack Rollins, Johnny Depp que produziu “A Invenção de Hugo Cabret”, todos esses estão aí. A indústria cinematográfica continua dando espaço para seus amantes, para gente que gosta de cinema como redatores publicitários em início de carreira amam a publicidade. Mas eles são, como sempre foram, a minoria. O resto são aqueles cujo negócio, ontem como hoje, é fazer dinheiro.

House of Dolls

Uns anos atrás fiz este post dizendo que o House, aquele doutor do seriado, era entre outras coisas gay.

O resultado foi uma enxurrada de gente argumentando, reclamando ou simplesmente me xingando. Não, não, seu burro, House não é gay. O amor óbvio entre ele e Wilson é só amizade. Como pode alguém que eu admiro tanto ser gay? Não, Rafael, você entendeu tudo errado, você é um idiota que fica denegrindo as pessoas, viado é a mãe.

Em tantos anos de história deste blog juro que nunca vi tanta gente tão zelosa quanto às pregas dos outros. Pior: pregas fictícias.

Então o seriado acabou esta semana. Leio no jornal que, nele, House forja sua própria morte para poder passar os últimos meses de vida de um Wilson com câncer terminal ao seu lado.

Por isso retiro o que mais eu disse sobre House. Ele era um bom homem, no fim das contas, capaz de se sacrificar pela felicidade do seu grande amor. Não é todo mundo que é capaz de algo assim, de tamanho altruísmo. Só o amor verdadeiro é capaz de um gesto tão nobre, de se dar dessa forma.

E as pessoas que vieram aqui me contradizer e me xingar e negar a homossexualidade de House e o seu amor verdadeiro e feérico por Wilson deviam se envergonhar do que fizeram.

Os Três Mosqueteiros, assassinados mais uma vez

E daí que eu jurei que não ia ver, mas assisti a “Os Três Mosqueteiros” dia desses.

Eu tinha jurado que não assistiria ao filme porque há alguns anos perdi umas duas horas de minha vida, horas que não voltam mais, assistindo a uma coisa bizarra chamada “A Vingança do Mosqueteiro”, que deixo de descrever por falta de palavras suficientemente baixas. Certo, sou um velho cada vez mais velho e um chato cada vez mais chato, e paciência é artigo cada vez mais escasso; mas aquele era um filme tão ruim que mesmo minha ranhetice se viu sem palavras diante de tamanha barbaridade.

Esse novo filme é talvez ainda pior. E isso é assustador porque “Os Três Mosqueteiros”, o livro original, é literatura juvenil no que ela tem de melhor, tão bom que adultos podem ler com prazer. Ainda hoje passo de vez em quando os olhos por ele; e um dia ainda leio suas continuações inteiras.

Em princípio, um livro como o de Dumas deveria ser um roteiro pronto para o cinema. O trabalho necessário seria apenas o de enxugar a trama para fazer com que tudo caiba em hora e meia, duas horas de filme. Por alguma razão, no entanto, não é o que acontece. Assim como tem gente que acha que pode melhorar o que já está bom, ninguém parece conseguir deixar de tentar deixar sua marca em “Os Três Mosqueteiros”.

A esta altura do campeonato, já não tenho muito contra adaptações e licenças poéticas exageradas no cinema. Não é apenas questão de rendição; mas por entender, finalmente, que um meio diferente e sensibilidades diferentes às vezes demandam uma certa flexibilidade. Mudanças aqui e ali, alterações no roteiro para fazer com que fique tudo mais espetacular, a criação de razões para o uso de efeitos especiais, já fazem parte do cotidiano da gente. Reclamar contra isso é bobagem. Até mesmo quando se trata de personagens e tramas com quase 200 anos.

É isso o que me faria aceitar uma Constance Bonacieux que não morre, ou uma Milady que parece uma mistura de Aeon Flux e Viúva Negra, por exemplo. Essa nova Milady é muito pobre diante da intrigante original, certo, mas fazer o quê se os tempos são outros?

Mas “Os Três Mosqueteiros” tem tantos problemas que é difícil não desligar a TV sem xingar o idiota que o criou de nomes que deixariam São Cipriano ruborizado.

O primeiro problema do filme é o nível altíssimo de infantilização de seus personagens. O rei, para começar: que rei é aquele? D’Artagnan mata Rochefort no filme — para quê, se no livro eles terminam amigos, e isso reflete um pouco a compreensão da política real em Paris? Richelieu, mesmo interpretado por um grande ator como Christoph Waltz, não tem a sutileza dos grandes, resvala na caricatura e se torna óbvio; além disso, quem fez as legendas sequer sabe onde fica a Gasconha e o que é um gascão.

O excessivo nível de espetacularização é medonho. Uma esquadrilha de dirigíveis é provavelmente a idéia mais ridícula que alguém já teve desde que Ed Wood pendurou discos voadores em cordões, e não apenas porque é um impropério físico. Mas são as mudanças morais que incomodam e entristecem no filme.

É deprimente, e provavelmente a pior evidência contra a nossa sociedade, que uma obra do século XIX precise ser moralmente sanitizada em pleno século XXI. Constance (que na nova versão não tem sobrenome nem dorme com o homem que lho deu, o velho e frouxo Bonacieux) não passa de uma menina, em vez da senhora casada e mal amada que se apaixona por D’Artagnan. Milady não é a mulher promíscua e amoral que foi casada com Athos; e a rainha Ana não fez saliência com o Duque de Buckingham, porque rainhas nesses tempos novos devem ser moralmente inatacáveis, Pompéias modernas virtualmente castas e ascéticas (não só no cinema, porque até a princesa Diana virou moça decente depois que morreu). A Hollywood do início do século XXI tem vergonha e pudor do que era visto naturalmente há quase dois séculos; e agora ela não precisa mais de código Hays, basta tentar agradar seu público, e oferecer a ele aquilo que ela acha que ele pede.

O que fez “Os Três Mosqueteiros” sobreviverem por mais de século e meio foi justamente a qualidade de sua história. A trama rocambolesca mas fácil, a ação quase ininterrupta, os personagens bem definidos, a dubiedade moral inerente a praticamente todos os seus personagens, com exceção de D’Artagnan. É um livro que serve perfeitamente de argumento para um filme; e eu recomendaria a versão de 1948, dirigida por George Sidney, com Gene Kelly e Lana Turner. Nas Americanas ela pode ser encontrada em DVD por 13 reais. É mais barato que uma entrada de cinema, e certamente mais recompensador.

Versão brasileira

O André Setaro é um dos melhores críticos cinematográficos brasileiros, e leitura obrigatória de todo dia. Seu blog é uma verdadeira aula de cinema.

Mas ele ontem fez um post com o qual eu não concordo. Nele, detona a idéia de dublagem.

Eu até entendo o Setaro. Como qualquer pessoa que se arvore dona de algum nível de sofisticação intelectual, eu também prefiro filmes na voz original. Assino embaixo de todos os exemplos dados por ele. Mas daí a odiar toda e qualquer dublagem vai um longo caminho.

Há algum tempo, alguém fez um libelo anti-dublagem num blog por aí. Infelizmente não lembro quem — e não faço questão de lembrar. Li na época e fiquei fascinado pela capacidade que as pessoas têm de ser esnobes e pedantes. Vi também um reflexo do que achei ser um certo sentimento de colonizado, a noção de que tudo em língua de gringo é melhor, não interessa o quê — e é a isso que leva a idéia de que toda e qualquer dublagem é ruim e deletéria.

Mas além do ângulo sociológico, do fato de que se se investe cada vez mais em dublagem é porque há um mercado ávido por isso, que deve ser respeitado, há questões estéticas interessantes.

É até compreensível que cinéfilos não gostem muito de dublagem. O trabalho do ator não pode ser apreciado completamente com ela. Mas além da questão de princípios, há um certo exagero. Porque para um Marlon Brado a dublagem é realmente prejudicial, represents a morte da genialidade de sua atuação. Mas alguém tem certeza de que no caso dos atores de “Hannah Montana” ou da série “Crepúsculo” — se a dublagem for boa, ao menos — isso faria muita diferença? A maioria dos atores de qualquer filme é fraca, fraca, e isso vale até para astros: para mim, pelo menos, a dublagem brasileira da abertura de “Jornada nas Estrelas” (da grande, excelsa, maravilhosa AIC São Paulo) é infinitamente melhor que a vozinha furreca de William Shatner, no original, ao fugir do naturalismo americano e adotar a impostação de voz típica do rádio e TV dos anos 60.

Alguém prefere, de verdade, um documentário daqueles do Discovery cheio de imagens belíssimas em câmera lenta com as legendinhas embaixo? Se você prefere você é um tolo, porque não apenas não ganha nada em termos de “atuação”, como ainda perde boa parte da ação do documentário porque está ocupado lendo as letrinhas.

Resumindo: demonizar a dublagem como algo intrinsecamente ruim é bobagem.

A dublagem possibilitou a milhões de pessoas conhecer e se apaixonar pelo cinema desde muito cedo. E embora seja realmente uma alteração na idéia do filme como obra de arte, o fato é que a dublagem não atrapalha em excesso a compreensão do filme. Sem ela, por exemplo, mesmo esses esnobes (que estão num limbo curioso: não são sofisticados o suficiente a ponto de ver os filmes sem a legenda, mas tampouco admitem a idéia da última vagaba do Lácio nas oiças) não poderiam assistir a desenhos ou filmes quando eram crianças.

Qualquer pessoa que prefira um desenho animado em sua língua original às versões brasileiras tem problemas sérios, na minha opinião. Porque nenhum desenho animado fica melhor no original. Mesmo a versão brasileira do “Rei Leão”, cujo Scar original foi dublado por Jeremy Irons, está à altura do original. Até hoje, quando vejo desenhos animados em inglês, sinto falta das inflexões linguísticas que só um brasileiro pode dar. Eu não me reconheço naquelas vozes, nem acho que isso seja necessário, como seria com um filme em live action.

É por isso, por causa de coisas simples como essas, que não consigo condenar a idéia de dublagem. E talvez minha tolerância venha do fato de que, como quase todo mundo da minha idade, eu seja filho dela.

No início, a dublagem era feita nos próprios estúdios em Hollywood (que além disso eventualmente refilmavam filmes inteiros com atores de um mercado específico, como o México). Era o início da consolidação do studio system e as coisas eram feitas em casa. Mas eles perceberam logo que podiam alcançar melhores resultados se deixassem que a dublagem fosse feita nos países de destino — além de ser mais barato, claro.

E assim surgiram os estúdios de dublagem, como a Herbert Richers e a AIC de São Paulo. Dubladores eram geralmente atores, dos bons. E por causa deles, em algum momento — principalmente entre o fim dos anos 60 e começo dos 70 — a dublagem brasileira alcançou um nível de qualidade invejável. Eu não duvido que em muitos filmes os dubladores fossem melhores que alguns dos atores originais.

Por causa deles a ligação emocional que eu e certamente muita gente temos com a dublagem é enorme. Virtualmente todos os filmes a que eu assistia na TV quando criança eram dublados. Cresci ouvindo dubladores incríveis. Para mim, pelo menos, “Disneylândia” só é “Disneylândia” com a narração do Márcio Seixas. A voz de Isaac Bardavid. Newton da Matta. Helena Samara, a Endora de “A Feiticeira”. E um dos mais fantásticos de todos, o Carlos Vaccari. Todo mundo conhece o Vaccari; pelo menos todo mundo com mais de 30 anos. Vaccari era aquele que anunciava: “Versão brasileira: AIC, São Paulo”. Ou “A Fox Film do Brasil apresenta…”

Aquela foi a era de ouro da dublagem. Obviamente, já faz algumas décadas — e os últimos resquícios dela estão, hoje em dia, no canal pago TCM. Hoje a dublagem é ruim. Muito, muito ruim. Os novos estúdios são de uma mediocridade estonteante. O curioso é que nunca foi tão fácil dublar: hoje cada dublador pode fazer seu trabalho sozinho, de maneira não-linear; antigamente tudo tinha que ser feito ao mesmo tempo. Um erro e todo o trabalho (medido por anéis de filme) era perdido; e não apenas o de uma pessoa.

Há vários sites dedicados à dublagem. E um site específico, o Vídeo Séries, vende seriados antigos com a dublagem original.

15 anos depois e eu ainda me maravilho com essa diversidade da internet. É o que me salva no esnobismo.