Caos e criação no quintal

Em setembro Paul McCartney lança seu novo disco, Chaos and Creation in the Back Yard (seis dias depois do lançamento do novo dos Stones, que o Brigatti, fingindo que coisas medonhas como Undercover, Dirty Work, Steel Wheels, Voodoo Lounge e Bridges to Babylon não existiram, ainda espera com ansiedade. Vida de fã é triste. Sei bem como é).

Para um sujeito que durante muito tempo chegou a lançar dois discos por ano, além de vários compactos, já há algum tempo a produção de McCartney é bem mais esparsa. Nas últimas duas décadas McCartney lançou apenas 5 álbuns (sem contar uma infinidade de discos ao vivo, umas coletâneas, uns discos de experiências sonoras, duas incursões medíocres pela música clássica e dois bons discos de covers de clássicos do rock and roll).

Algo estranho e engraçado acontece quando McCartney lança um novo álbum. A recepção é normalmente boa. Elogiam o disco e dizem que o disco anterior era uma droga. No lançamento seguinte tudo se repete: este é um grande álbum e o último foi um lixo. É sempre assim. Nesse vaivém, nem sempre a crítica está certa — nos elogios imediatos ou no desprezo posterior. Por alguma razão que não sei explicar, McCartney acabou sendo um artista ao mesmo tempo paparicado e perseguido, o que prejudica um julgamento imparcial da sua obra. Um exemplo disso é todo mundo lembra daquela parceria infame com Michael Jackson. Mas todos esqueceram que Mick Jagger também gravou com o Comunista de Neverland.

Na verdade, os resultados dessas últimas duas décadas têm sido irregulares. Press To Play (1986) é considerado um dos seus piores discos, inclusive pelo autor; Flowers in the Dirt (1989), aclamado por sua parceria com Elvis Costello, é considerado o seu retorno. Off the Ground, 1993, é elogiado por muita gente, mas é um disco absolutamente medíocre. Aí vem Flaming Pie, de 1997, para mim seu melhor disco nesses últimos 20 anos, e finalmente Driving Rain, de 2001 — que para alguns é excelente, mas que para mim soa estranho e pouco inspirado; vale apenas por umas três ou quatro faixas. Driving Rain traz a pior música que McCartney gravou em toda a sua carreira, Freedom, hino guerreiro deprimente composto logo após o 11 de setembro. Quem quiser entender por que Lennon, um músico inferior, é mais respeitado que McCartney, só precisa comparar essa canção com Give Peace a Chance.

Talvez por isso eu não estivesse muito ansioso pelo novo disco. Nem mesmo com o anúncio de que ele tinha dispensado sua banda e tocado a maioria dos instrumentos (hábito antigo, típico de um sujeito que tem que passar a vida provando a si mesmo que era melhor que Lennon). Nem o de que seria co-produzido por Nigel Godrich, produtor do Radiohead e de Beck.

Mas aí ouvi a nova canção do sujeito. Está disponível em seu site. Desde 1997 McCartney vem lançando seus singles na internet, antes do lançamento do disco. Young Boy em 1997, Driving Rain em 2001. Ouvi as duas e lembro de achar Young Boy um pop sem consistência e de achar Driving Rain francamente ruim.

Fine Line, a música de trabalho desse disco, é diferente. É uma canção típica de McCartney, com ecos dos tempos dos Wings; há muito tempo ele não faz isso. Não é brilhante, não é inovadora. Mas é consistente, e esse é um adjetivo que já não se dava a McCartney há algum tempo.

Paul McCartney já deixou de ser um artista fundamental há muitos anos, e o novo disco não vai reverter isso. Seus dias passaram, e hoje o tempo é dos Wilcos da vida, ou seja lá qual a sensação da última semana aclamada como os novos Beatles. Mas ainda é o sujeito que transformou a música ocidental, ainda é uma lenda viva, ainda é um dos mais completos e inventivos instrumentistas da história do rock e do pop, ainda é uma grande músico. O novo single é um bom presságio. Pelo menos para fãs.

A adorável Mrs. Miller

Confesso que torço o nariz diante de covers de canções dos Beatles.

Eles não eram apenas bons compositores. Eram também uma grande pequena banda, como Lennon costumava dizer. Eram grandes intérpretes, e essa é uma das razões para sua permanência.

Há muito poucas de que gosto. Ray Charles cantando Eleanor Rigby, os Skatalites tocando I Should Have Known Better, pouca coisa. Por exemplo, nao há nada mais tétrico do Elvis cantando Hey Jude. Talvez as versões em português sejam piores, é verdade.

Mas de vez em quando aparece algo fantástico, algo que me impressiona a ponto de praticamente me fazer esquecer as versões originais.

Como esta versão de Mrs. Miller cantando A Hard Day’s Night.

Um novo original de Lennon & McCartney

Uma coisa me incomoda quando as pessoas falam sobre Beatles: aqueles que dizem que Lennon e McCartney pioraram como compositores partir do fim da banda.

É uma mentira soez, diria Lennon. Qualquer pessoa pode perceber isso fazendo um experimento simples.

Pegue um ano, qualquer ano. 1970, por exemplo. Escolha 5 músicas do disco de McCartney daquele ano, 5 do disco de Lennon, 2 de George Harrison e dê qualquer coisa para Ringo cantar. Em termos de composição, o disco vai estar à altura de qualquer disco dos Beatles.

A minha seleção seria esta:

  1. God
  2. Mother
  3. Working Class Hero
  4. Well Well Well
  5. Love
  6. Every Night
  7. Maybe I’m Amazed
  8. That Would Be Something
  9. Junk
  10. Momma Miss America
  11. My Sweet Lord
  12. All Things Must Pass
  13. Fool to Cry

(Ainda sobrava um compacto com Instant Karma e What is Life.)

1971 seria ainda melhor:

  1. Imagine
  2. Gimme Some Truth
  3. Oh My Love
  4. Jealous Guy
  5. It’s so Hard
  6. Uncle Albert/Admiral Halsey
  7. The Back Seat of My Car
  8. Smile Away
  9. Three Legs
  10. Eat at Home
  11. Apple Scruffs
  12. Beware of Darkness
  13. Wine, Women, and Loud Happy Songs

(E, de novo, outro grande compacto com Another Day e How?.)

A lista pode seguir indefinidamente; em alguns anos pode-se colocar mais canções de McCartney, em outros mais de Lennon. 1973, por exemplo, seria um ano dominado por McCartney, porque o seu Band on the Run é infinitamente superior ao Mind Games de Lennon. O que acontece, e a minha impressão é a de que isso é o que confunde o pessoal, é que mesmo assim o disco vai soar diferente, mesmo inferior, aos discos dos Beatles.

Em primeiro lugar, depois do fim da banda eles passaram a ter a responsabilidade de encher álbuns inteiros. É lógico que canções que anteriormente seriam vetadas pelos outros membros ou que simplesmente não suportariam a concorrência entravam em seus discos solo, baixando o nível geral. Em um disco dos Beatles Lennon e McCartney tinham que brigar para colocar, digamos, 6 músicas em um disco. Nos anos solo, precisavam se virar para completar um álbum. E mesmo assim é impressionante que tenham conseguido fazer álbuns antológicos como o John Lennon/Plastic Ono Band e Venus and Mars. Sem contar o All Things Must Pass, o álbum triplo de George Harrison.

Ou seja: o que fazia a força dos Beatles é que o material mais fraco, com raras exceções, não passava pelo funil porque tinha mais gente querendo espaço e oferecendo canções de alto nível.

Nos discos solo faltava também a colaboração de cada um. Por exemplo, uma dica aqui, outra ali, uma palavra que se troca ou um acorde que se acrescenta, e tudo muda. Boa parte das composições de Lennon e McCartney são assim, composições de um deles com contribuições às vezes decisivas do outro, mesmo quando menores.

Vai faltar ainda o insight dos músicos. Deve ser fácil demais, para um Lennon ou um McCartney, dizer a um músico de estúdio: “eu quero assim.” Uma canção de Lennon no disco de Lennon é uma canção de Lennon, e isso é óbvio. Mas uma canção de Lennon num disco dos Beatles é uma canção de Lennon, McCartney, Harrison e Starr. Todos eles davam seu toque pessoal às músicas, e é isso, principalmente, que falta nos discos solo dos sujeitos. Numa banda, cada um pode dar a contribuição do jeito que quiser. Foi um dos motivos do fim dos Beatles, a necessidade de cada membro de fazer música do jeito que queria, não do jeito da banda.

O único problema é que, por acaso, aquela banda era muito boa.

John Lennon

John Lennon esteve em extrema sintonia com o seu tempo, e muitas vezes à sua frente. Ele se achava um gênio; provavelmente era. É muito para se dizer de um artista pop, mas a poucas pessoas no mundo do showbiz esse epíteto se aplica tão bem. Lennon foi parte do que se pode chamar de o primeiro grande fenômeno de massas produzido pelo marketing moderno, e o único que, ainda em termos de mídia, sobrepujou o rótulo que veio daí.

Mais do que produto de marketing ou gênio, entretanto, ele foi um produto de sua época. Uma época conturbada, rica em mudanças e em estremecimentos sociais, da qual o beatle foi, ao mesmo tempo, causa e efeito.

Para Lennon, tudo ocorreu no momento exato. Foi ingênuo quando a juventude, que surgiu como mercado consumidor e como grupo social com características próprias durante os late fifties, se consolidava como segmento social e como mercado consumidor; psicodélico quando essa mesma juventude começava a acreditar no que diziam que ela era e tentava moldar o mundo àsua imagem e semelhança; iconoclasta quando esse psicodelismo dava os sinais mais prementes de exaustão e o mesmo mundo que tomou um porre de juventude entrava em ressaca — e descobria que ressaca não mata; radical de esquerda quando os reflexos de 68 tomavam corpo e preparavam Watergate. Finalmente, saiu de cena para cuidar do seu filho, quando a geração à qual fornecera a trilha sonora crescia e começava a perceber que o mundo, afinal de contas, não havia mudado tanto assim, e que, ora bolas, ninguém era muito diferente dos seus pais — o que significava encarar o mundo e ter que ganhar a vida. Ou seja: entrar no establishment, daquele mesmo jeitinho tão criticado. Grand finale: morreu antes de entrar em decadência e ser ultrapassado pelos mais novos rebentos da juventude.

Os eternos fãs de Lennon se lembrarão para sempre de um homem à beira dos 30 anos, com cabelos castanhos compridos e óculos redondos com grau fortíssimo. A grande maioria nunca ouviu falar do quase delinqüente juvenil dos anos 50, em Liverpool, e faz questão de não levar a sério o ídolo pop que em tudo lembrava o Menudo. Os Beatles provavelmente ficarão para sempre na história mundial, mas cada dia menos se falará que eles, em suas turnês, eram obrigados a seguir todo o roteiro da bajulação: davam abraços a torto e a direito em prefeitos, crianças e socialites feias como o pecado, nos mais assombrosos grotões do mundo. Tampouco lembrarão que perto do fim dessas turnês, já não conseguiam lotar os teatros e estádios nos quais apresentavam a mesma fórmula batida. O aspecto comercial dos Beatles será relevado em favor do grande mito que alimenta a indústria, talvez com razão.

Na verdade, música pop não passa muito de indústria. Uma indústria que teve seus alicerces modernos plantados pelos Beatles. Mais que qualquer outro, Lennon tinha consciência disso. Tanta que, ao ser fisgado de verdade pelo sonho hippie, fez o possível para negar o seu passado, e mostrar ao mundo que o sonho havia acabado — o sonho dele, provavelmente porque já havia nascido maculado, a partir do momento que ele podia ver como a indústria alimentou e praticamente criou esse movimento. Nada era tão belo como pensavam. E isso só aconteceu porque, mais do que ninguém, Lennon acreditou no sonho enquanto paradoxalmente tentava destruí-lo.

***

Não fosse o rock and roll, Lennon estaria fadado a ser um operador de guindaste no porto de Liverpool. Era filho de uma mulher que, em qualquer tempo, seria conhecida como meio maluca — já pesou sobre ela a acusação de ter sido prostituta — e que não foi minimamente responsável pela sua criação. John Winston foi criado por uma tia em um bairro de classe média baixa. Aos quinze anos, já tendo a sua bandinha chinfrim de skiffle, conhece um garoto um pouco mais novo que entretanto toca melhor do que ele: Paul McCartney. George Harrison — que toca guitarra melhor do que os dois — entra logo depois. Juntos, conseguem tocar na zona do cais de Hamburgo, Alemanha Ocidental — lugar tradicionalmente reservado a ladrões, prostitutas, malandros e trabalhadores braçais. São oito horas de música por noite, regadas a cerveja e anfetaminas. O conjuntinho de Liverpool foi obrigado a se superar continuamente.

Os Beatles foram para Hamburgo com a nada recomendável fama de serem uma das piores bandas de Liverpool; voltam como a melhor. A barra pesada de Hamburgo, a necessidade de tocar muito alto, muito rápido, muito tempo os ensinou a fazer música. Em Liverpool, constroem aos poucos sua fama e conhecem um sujeito chamado Brian Epstein. A partir desse encontro os Beatles começam a se tornar o maior fenômeno da música mundial.

A primeira providência tomada é mudar as roupas. Casacos e calças de couro são coisa de marginal, e mais que isso, fazem parte do imaginário dos anos 50, algo já ultrapassado. Os Beatles devem se apresentar bonitinhos, mansos. Depois vem a mais difícil: colocar para fora da banda Pete Best. Não era um grande baterista, não se adequava à identidade visual desejada por Brian Epstein, e não era agradável aos outros Beatles, embora fosse muito amigo de Lennon. Em seu lugar entra Ringo Starr, que de várias formas completa aentidade que seriam os Beatles.

Hoje se torna difícil imaginar o que os Beatles representavam em 1964. Eram mais que a combinação de boa música e bom marketing — uma combinação perfeita, embora às vezes o marketing parecesse encobrir o lado musical; mas basta ouvir uma canção como I Want to Hold Your Hand, que não se parece com nada feito antes, para ver que os Beatles tinham algo de realmente diferente. É fácil, hoje, desdenhar da sua música, que parece ingênua: mas aquilo era revolucionário, quase tanto quando os delírios psicodélicos de alguns anos depois.

O fenômeno chegou a tal ponto que nos shows os próprios Beatles não conseguiam ouvir o que estavam cantando ou tocando. Lennon, irritado, dava vazão à sua frustração por ir de aeroporto em aeroporto sem saber muitas vezes onde estava, por viver em função de algo diferente do que eles haviam sonhado como a vida de um superstar, xingando os fãs fora do microfone.

Isso levaria ao fim das excursões, e parecia ser o fim dos Beatles. Não foi, pelo menos não imediatamente: ao darem uma guinada artística, priorizando a música ao marketing, os Beatles se tornaram não só a maior, como também a melhor e mais influente banda de música popular do mundo.

Mas antes disso Lennon disse que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. Uma frase que era um misto de verdade e de bravata, mas que causou uma série de reclamações, que os Beatles, intimamente, ridicularizavam. Não era para menos: os protestos, em sua maioria, consistiam em bandos de crianças ao lado de disc jockeys de meia idade, pisando em capas vazias dos discos deles. Em apenas um show a ameaça se tornou séria, com alguém dizendo que iria atirar em Lennon. Profissionais exemplares, eles fizeram o show, esperando um tiro que não veio.

O fim dos shows, que seria um dos ingredientes que levariam ao fim dos Beatles três anos mais tarde, deixou a banda livre para ingressar na vanguarda da música popular. Eles deram um novo rumo à sua música e à música pop de todo o mundo, ao se adaptarem a uma percepção de mundo que eles mesmos ajudaram a criar. A juventude atinge sua maturidade e o mundo dos caretas com mais de 30 anos passa a ver neles uma excelente fonte de renda. Os hippies e a contracultura viraram uma das melhores armas da indústria; e embora ninguém percebesse, o sonho na verdade era natimorto.

E então os Beatles acabam, dando os primeiros indícios de que uma era chegava ao fim; depois foram as mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison, três das mais importantes figuras da pop scene. Os anos 60, que haviam começado por volta de 63 — com o movimento encabeçado pelos Beatles, claro — chegavam ao início do fim em 1970.

Em tudo isso, Lennon era uma das figuras de frente. Era oficialmente o líder dos Beatles, por ser o responsável por algumas das mais cáusticas declarações dos Beatles e por ter sido ele quem, afinal de contas, havia começado tudo, embora nos bastidores a coisa não fosse bem assim. Paul McCartney, que nos anos 90 compôs duas peças (medíocres, é verdade) de música erudita, se afirmava como um dos maiores melodistas e baixistas do rock, além de ser o mais interessado nas técnicas de estúdio. Ele foi ainda responsável pelo projeto mais ambicioso dos Beatles, o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, considerado ainda hoje, quase 40 anos depois, o mais importante disco de rock, e pela concepção do disco tecnicamente mais perfeito dos Beatles, o Abbey Road. Paul McCartney, ao que parece, era o líder musical dos Beatles — embora até hoje não se saiba, e provavelmente jamais se saberá, o que realmente acontecia dentro do conjunto. É mais sensato achar que os Beatles funcionavam como uma máquina bem lubrificada em que uma parte era indissociável da outra.

Mas era Lennon quem conseguia estar completamente antenado com o que o mundo queria. Sabia que o mundo não queria apenas música. Sabia intuitivamente o que falar e quando falar. E realmente se identificava com tudo o que interessava. Era o ícone de uma geração anestesiada e profundamente ingênua, que fazia de roupas espalhafatosas e de cigarros de maconha símbolos de rebeldia. Um dos principais artífices do que se convencionou chamar “anos 60”, Lennon, também ele, acreditou no faz-de-conta. E com o esgotamento do ideário hippie, Lennon ficou perdido.

Nisso ele não era diferente do restante de sua geração. A maioria ignorou o movimento hippie, como os jovens de dez anos depois ignorariam o movimento punk, como a maioria da juventude ignora a maioria dos movimentos, recebendo apenas os reflexos esmaecidos que são absorvidos pela sociedade. Uma boa parte atravessou essa era como quem atravessa uma crise de adolescência. E alguns entraram de cabeça e saíram por aí para ver se encontravam o tal mundo melhor. Desses, a maior parte desistiu quando viu que o caminho era longo e que nem mesmo sabiam direito qual era. Uma parte pequena afundou nas drogas, e não foram poucos os que não voltaram à tona. No fim das contas, a maioria aprendeu a se conhecer melhor e a se definir no mundo, por sua vez aparentemente modificado pela sua ação.

Para conseguir acompanhar o ritmo de sua geração, Lennon tomou LSD e heroína, fez terapia, tentou de tudo. No fundo, a única coisa que ele sabia fazer era expressar o que havia de melhor e de pior em si através da música. Além disso, como beatle ele havia provado o gosto do sangue. Não adiantava querer negar: John Lennon era um pop star, talvez o mais anatemático deles. E o seu maior trunfo, uma marca absolutamente pessoal que o distinguiu do resto do cenário pop de todos os tempos, era a extrema capacidade de se mostrar ao seu público e de se tornar o modelo máximo de identificação de sua geração.

O seu primeiro disco solo, o LP Two Virgins, gravado e lançado ainda durante o tempo dos Beatles, leva essa característica ao extremo. A capa, única em toda a história da música pop, mostra Lennon e Yoko nus, o máximo de exposição a que alguém pode almejar. Era assim que eles eram, era assim que todos deviam ser. Não interessava se o conteúdo do disco era insuportável; na época dizia-se que era vanguarda. Como não vingou, pode-se dizer que era apenas delírio.

O segundo disco continua essa tendência: a capa mostra Lennon deitado ao lado de Yoko em um hospital, e o disco mostra as batidas do coração do filho (morto durante essa sessão no hospital) e um desabafo do beatle John sobre o seu cotidiano e sobre a falta de camas nos hospitais ingleses. A letra em si não tem nenhuma qualidade literária; é só John Lennon mostrando o que sente para o seu público. O resto é a barulheira habitual. O terceiro, o Wedding Album, é mais um episódio do “Diário Público de John Ono Lennon”.

Esses discos são bastante emblemáticos. Ninguém ouviu, hoje ninguém vê. Mas ajudaram a fazer Lennon erguer-se acima da música, criando sua própria aura mítica.

Depois do fim dos Beatles, o primeiro (e melhor) disco de Lennon continua nessa direção. Ele fala da dor nunca superada na relação com sua mãe, fala das dificuldades que enfrenta ao lado de Yoko, continua sendo o referencial maior de sua geração. E é nesse disco, também, que ele se refere ao fim do sonho hippie.

Deixar de acreditar em um mito não é fácil, e para Lennon, que havia sido o próprio mito, era mais difícil ainda. Mas novamente a Providência foi generosa com ele, e a política conturbada dos Estados Unidos do começo da década de 70 (um reflexo do movimento hippie que só foi devidamente assimilado com quase dez anos de atraso) forneceu a ele um meio de defender aquilo em que acreditava, talvez o único meio que um pop star tem de ficar remotamente ligado ao seu passado comum.

Ao sair de cena, logo depois de gravar um álbum em que voltava às origens, cantando músicas que ouvia quando era adolescente, Lennon seguia o que o mundo lhe ditava, e mais uma vez estava na linha de frente de sua geração. Durante anos, de certa forma ele tentaria manter vivo o sonho que ele mesmo havia declarado morto, invertendo os papéis com sua mulher e ficando em casa criando o seu filho, enquanto Yoko Ono ia para a rua e trazer dinheiro para casa (ou melhor, gerir o dinheiro que ele conseguira). Finalmente, quando percebeu que não podia viver afastado da cena pop e voltou ao trabalho, um homem chamado Mark David Chapman deu-lhe cinco tiros, transformando-o em mais que um ídolo.

A partir daí, todos os atos de auto-exibição, os discos que ninguém ouviu, as palavras que Lennon disse fizeram sua parte. A partir do dia 8 de dezembro de 1980, John Lennon se tornava o primeiro santo da era da comunicação. Centenas de milhares de pessoas choraram sua morte.

A aura que existe hoje em torno do beatle é paradoxal. Seu espírito é baseado no Lennon contestador, o que ia para as ruas protestar e participar de passeatas, um ativista político de esquerda; mas o objeto de adoração em si é o Lennon romântico, sonhador, que se contentava em imaginar um mundo melhor. E essa imagem nem sempre corresponde à realidade. Ele sentou praça no imaginário popular como o gênio e o roqueiro; sua carreira solo, entretanto, nem sempre corresponde a isso.

Os álbuns solo que se seguiram a John Lennon/Plastic Ono Band e Imagine (Some Time in New York City, Mind Games e Walls and Bridges) não são somente melosos; são fracos também. Além de haver pouquíssimo rock and roll, no sentido clássico da palavra, a essa altura Lennon havia ido longe demais na idéia de expôr-se ao seu público; e Some Time… vale principalmente como uma crônica aguada do movimento de esquerda nos Estados Unidos em 1972.

Os casos de Mind Games e Walls and Bridges são mais graves. Esses dois álbuns não apenas constituem pouco mais que um apelo dirigido a Yoko, mas têm músicas e letras muito fracas. Era como se Lennon tivesse perdido o talento demonstrado nos seus dois primeiros álbuns.

Fazendo uma comparação: quando Mick Jagger cantava ao mundo que não conseguia satisfação, ele não somente era sincero (um pré-requisito básico da cena rock) como o seu problema era o mesmo de milhões de jovens em todo o mundo. Ao pedir desculpas para Yoko em Aisumasen, Lennon podia estar sendo sincero — mas o que é que o resto do mundo tinha a ver com isso?

A sua volta em 1980 o redimiu de todos esses pecadilhos. Conseguia transformar seu amor por Yoko em algo universal, com o qual milhões de pessoas podiam se identificar e assumir como suas, e novamente com letras de qualidade.

***

Não haveria mais lugar para o ícone John Lennon no mundo de hoje. Não numa época em que, por mais que se alardeiem mudanças, tudo continua do jeito como sempre esteve. Os tempos são mais propícios aos Paul McCartney — pessoas talentosas cujas posições políticas mais corajosas jamais ultrapassam a barreira do plenamente aceitável.

A julgar pelo seu último trabalho, talvez o próprio Lennon, se estivesse vivo, fosse mais parecido com o retrato que se faz dele, hoje. Em Double Fantasy, que ele mesmo definia como crônica de sua vida na época e conseqüentemente de uma geração Lennon falava de amor, de seu filho e da gratidão e paixão incomensuráveis que sentia por Yoko Ono. O conteúdo de suas letras não era nem sombra das explosivas canções do álbum Some Time in New York City, por exemplo. Lennon não havia atravessado a década do eu impune, e estava antecipando a era Reagan. Em um mundo apático e desiludido, que assiste a guerras de verdade como se fossem partidas de video-game, cansado de tudo e com uma eterna sensação de dejà-vu, não se pode imaginar aquele sujeito de cabelos compridos e óculos redondos que acreditava que podia convencer o mundo a dar uma chance à paz, sendo o espelho fiel de seu tempo, algo muito necessário quando nada parecia estar no lugar.

O que parece mais engraçado, ao se prestar atenção à história de Lennon, é que apesar de tudo o que disse, e de tudo em que acreditava, ele não conseguiu mudar muita coisa. George W. Bush pertence à geração que cresceu ouvindo Lennon. A grande mudança que se pode apontar, na realidade, é que o protesto não vende mais tantos discos. Está tudo banalizado e minimizado, foram todos absorvidos pelo temível establishment. Sintonizado com o seu tempo como era, é provável que hoje Lennon estivesse vindo se apresentar no Brasil, trazendo na bagagem a mulher e o filho, para encantar um público que viveu os anos 60 à distância cantando Imagine pela milésima vez, ou revivendo os Beatles para cantar I Want to Hold Your Hand no mesmo microfone que Paul McCartney.

The Beasties

No dia 25 de fevereiro de 2004, grande parte da internet se vestiu de cinza, fazendo parte da Grey Tuesday.

Era um protesto contra a imbecilidade da Apple ou EMI, não lembro direito, mandando o DJ Danger Mouse tirar do ar o seu Grey Album, um disco com remixes de músicas do “Album Branco”, dos Beatles.

Acima de tudo, aquilo era uma imbecilidade. Contra a liberdade de criação, mas principalmente contra eles mesmos: a ordem virou contra eles e de repente todo mundo fez daquilo, com justiça, um ato de desobediência civil, um cavalo de batalha em defesa

A confusão ajudou a esconder o fato simples: o disco era ruim de doer. Muito antes da ordem judicial eu já havia baixado duas canções e desistido. Em uma palavra, medíocre. Ou lixo, se preferirem. É chato ter que

Agora é a vez do DJ BC apresentar The Beasties. E este é tudo o que o outro deveria ser. É muito, muito bom: uma boa mistura de Beatles e Beastie Boys, especialmente as faixas 8, 2, 7 e 9.

Por esse, sim, valeria a pena armar um fuzuê.

It looks as though they're here to stay

Lendo uma entrevista de Chuck Berry — que completou 78 anos por esses dias –, me surpreendo com uma declaração dele:

Q: If you had one piece of music that would play in your mind forever, what would it be?
A: The song “Yesterday.” I wish I’d have written it. It fits me to a T. I can hear it over and over and over.

Eu sou o único beatlemaníaco que simplesmente passa batido por Yesterday? Certo, a canção é bonita. O arranjo pode ser considerado revolucionário. Na história dos Beatles, é a primeira canção “solo”, já que nenhum outro beatle participa da música. Criou ciúme dentro da banda. Serviu para uma pequena vingança de McCartney (contra a mãe de uma ex-namorada, que disse que ele não tinha sentimentos: no dia em que a apresentou ao vivo pela primeira vez, ligou para ela e mandou que assistisse ao programa. “Vamos ver se eu não tenho sentimentos”). É a música mais regravada do mundo. A mais tocada.

E com tudo isso, eu passo direto de I’ve Just Seen a Face para Dizzy Ms. Lizzy.

***

De qualquer forma, esse é um elogio e tanto vindo de Chuck Berry — que além de ter definido o papel da guitarra no rock and roll foi um dos melhores letristas de sua geração.

Em Memphis, Tennessee ele fala com absoluta simplicidade sobre um pai que mora longe da filha. Em Brown Eyed Handsome Man, sobre as vantagens sexuais de um homem negro — e prenunciou em vários anos o black is beautiful. Havana Moon conta uma história deliciosa de desencontro, doce como poucas canções daquela época. Para alguns mais empolgados, School Days prenuncia maio de 68.

Um fato de que pouca gente lembra é que os Beatles eram uma grande banda cover. Compare, por exemplo, sua versão de Twist and Shout com a original dos Isley Brothers. Mas quando a música é de Berry — normalmente cantada por Lennon, que o apresentou uma vez como “meu herói” — suas versões são fidelíssimas, reverentes, até. Lennon seria processado por plágio de You Can’t Catch Me em Come Together, e se as pessoas prestassem atenção veriam que Beautiful Boy deve muito, muito a Havana Moon. Os Beatles simplesmente não tinham coragem de alterar as músicas de Chuck Berry. Isso deve significar alguma coisa.

OnoLennon

O comentário do Allan me fez pensar um pouco sobre a relação de Lennon e Yoko.

A primeira pergunta é fácil de responder: Lennon viu em Yoko uma mulher, só isso. Uma mulher extremamente inteligente com quem ele sentia estar falando de igual para igual, diferente daquela matuta que tinha em casa cuidando do filho indesejado. E que, a julgar pelas litografias que ele publicou, era muito melhor de cama do que ele poderia imaginar. Essa é uma excelente razão.

Acho que há outros fatores, também. Imagine-se fazendo parte dos Beatles nos anos 60. Deve ser algo assustador. Você não existe, a não ser como um beatle. E então aparece uma mulher que reforça o seu ego, que lhe vê como um indivíduo, e que o acha maior que a banda que se tornou parte de sua vida.

Durante muito tempo me perguntei que diabos Lennon estava pensando quando dizia que seu trabalho fluiu melhor fora dos Beatles, quando sua obra solo é nitidamente inferior. Precisei envelhecer um pouco para perceber o que ele queria dizer.

Cada disco dos Beatles tinha, em média, de 12 a 14 faixas. Dessas, duas eram de George. Uma era tradicionalmente de Ringo, composta por quem quer que fosse. A John e Paul restava a briga por umas 10 faixas.

Agora imagine-se dono de um talento monstruoso, na flor dos seus 20 anos, compondo como quem faz xixi. Você tem umas 15 músicas para o próximo álbum, mas sabe que só vai conseguir emplacar umas cinco — e essa era a maravilha dos Beatles, serem uma democracia de verdade em que só o que todos gostavam via a luz do dia. Essas cinco canções certamente terão sua concepção, ou pelo menos sua execução, alteradas pelo resto da banda.

Se isso foi a grande força dos Beatles, essa seleção que a competição forçava deve ter deixado alguém como Lennon ansioso por um modo de despejar o resto de sua criação, de dizer como cada canção seria gravada. Porque o talento que ele possuía vinha com um ego do mesmo tamanho. O resultado pode ser considerado inferior, canções mais fracas baixam a média de cada disco, mas o que está ali é a sua obra, como ele quis.

Eis o ponto: foi Yoko quem lhe deu coragem para assumir isso. Em troca o influenciou muito com a sua própria atitude artística, que podia até fazer algum sentido nos anos 60, mas que consistia basicamente em fingir que aquele amontoado de bobagens era algo realmente importante. Lennon, que sempre teve um senso de humor brilhante, passou a se levar a sério demais, e pelo menos na minha opinião isso prejudicou sua obra. Pelo menos um disco seu foi destruído por Yoko, o Some Time in New York City.

Quanto às razões pelas quais Yoko ainda vive à sombra do falecido, bem, pode não ser só por isso, mas certamente é pelo dinheiro, também. Sempre é pelo dinheiro. Os milhões de dólares que os beatlemaníacos despejam anualmente em sua conta são certamente um bom incentivo para tirar dos arquivos arrotos de Lennon e empacotá-los para consumo.

É interessante notar que, segundo as más línguas, o casamento dos dois já estava fazendo água quando Lennon foi assassinado, e dizem que ela já namorava Sam Havadtoy. É bem provável. Mas seria cinismo dizer que aquela não foi uma belíssima história de amor, que chegou às raias da loucura. Pelo menos durante a maior parte dos anos 70, eles viram a si mesmos com duas partes indivisíveis de uma mesma entidade. Imagine pode ser assinada só por Lennon, mas tem a mão de Yoko. O ataque mais pesado a McCartney, How Do You Sleep?, foi composta em parceria.

Talvez ela seja mesmo uma sombra. Mas é bom lembrar uma sombra só existe em função de um corpo. E não seria exagero dizer que Yoko era um dos membros do corpo que ela hoje divulga incessantemente. No fim das contas, ela trabalhou por aquele dinheiro.

***

Falando em dinheiro: os Beatles sempre odiaram as versões diferentes que a Capitol, gravadora que os representava nos Estados Unidos, lançava de seus LPs. Diziam que de cada disco deles a Capitol fazia 3 ou 4. Conseguiram unificar os lançamentos em 1966, e em 1975 a discografia oficial no mundo inteiro passou a ser a inglesa.

Agora estão lançando todos aqueles discos em CD. Certamente vão alegar que contêm versões diferentes de algumas músicas, que são documentos históricos, etc.

Só não vão dizer que é pelo dinheiro.

Como ordenhar uma vaca sagrada

Ser beatlemaníaco já foi pior. Antes da internet, tudo era difícil de se encontrar.

Talvez o fato daquele pessoal ter envelhecido e passado a pensar com mais carinho no dinheiro que se pode receber tenha feito com que eles passassem a desovar tudo o que havia nos arquivos. E não era pouca coisa.

Mas o nível a que se chegou em termos de tentar tirar dinheiro dos fãs é impressionante.

No que se refere aos Beatles, provavelmente pelos interesses conflitantes, eles foram mais comedidos. Em 25 anos lançaram um disco ao vivo em 1977, o bom Live at BBC em 1994 e a série Anthology em 1995, que tem coisas boas e ruins (eu, pelo menos, já conhecia praticamente todo o primeiro volume, mesmo antes da internet). Foram discos feitos especialmente para aproveitar um mercado que os piratas vinham ocupando havia 20 anos. Só recentemente é que fizeram uma grande bobagem, lançando o horroroso Let it Be… Naked.

O caso de Lennon é mais triste. Sob vários aspectos, Yoko Ono é uma criminosa: para começar, tirou praticamente todo o senso de humor de Lennon, uma de suas grandes qualidades. Depois de estabelecer-se como parte de uma entidade chamada OnoLennon (como antes tinha sido LennonMcCartney), o pobre John passou a se levar a sério demais. Seus discos solo se ressentem disso. Grosso modo, o conjunto de sua obra é mais inferior em relação aos Beatles do que a de McCartney. É essa mesma Yoko que controla o espólio de Lennon, e pelo visto tem se dedicado a não deixar que a lembrança do beatle se esvaneça, nem que o dinheiro pare de jorrar em sua conta.

Nos 24 anos que se seguiram à sua morte, praticamente todo o tipo de caça-níqueis foi lançado. Sem falar nas exibições de arte, primeiro Yoko Ono lançou as sobras do último disco deles, Double Fantasy, em Milk and Honey, além da canção-título de Every Man Has a Woman (Who Loves Him). Em 1986 foi a vez do Live in New York City, o seu último show, no Madison Square Garde — ruim, por sinal. Menlove Ave., um disco com sobras dos seus dois discos mais fracos e do Rock and Roll, saiu no ano seguinte. Em 1988, uma primeira versão de Imagine, e uma versão de Real Love (que seis anos depois os outros ex-beatles iriam regravar). Finalmente lançou uma caixa enorme, o John Lennon Anthology, com bons e maus momentos. Agora está lançando dois de uma vez: a reedição de Rock and Roll com algumas canções do Menlove Ave. e um take alternativo de outra dessas canções, e o John Lennon Acoustic, uma coletânea de versões acústicas de algumas de suas músicas.

O Rock and Roll não interessa, por ser coisa velha. Mas o John Lennon Acoustic é um caso a se pensar. Obviamente não ouvi o disco ainda, mas pelo tracklist o que se tem é mais do mesmo: versões inferiores de músicas já conhecidas. Pelo menos a versão acústica de Cold Turkey eu já conheço; foi uma das primeiras MP3 que baixei.

Deve ser difícil continuar a ordenhar uma vaca morta há um quarto de século, mesmo quando ela é sagrada.

Please please me, I can't get no satisfaction

Durante muito tempo achei que a canção mais revolucionária da tal swinging London era Satisfaction. A principal razão era a letra:

When I’m driving in my car
And a man comes on the radio
He’s tellin’ me more and more
About some useless information
Supposed to fire my imagination
(…)
When I’m watching my TV
And a man comes on and tells me
How white my shirts could be
But he can’t be a man ‘cos he doesn’t smoke
The same cigarettes as me
(…)
When I’m riding ’round the world
And I’m doing this and I’m signing that
And I’m trying to meet some girl
Tells me “Baby better come back maybe next week,
‘Cos you see I’m on a losin’ streak”

É praticamente um sumário da revolução de costumes dos anos 60, mais forte na Inglaterra que em qualquer outro lugar. Gosto mais dela que de My Generation, por ser menos óbvia, mais irônica. Mais que o conflito de gerações expressa da maneira mais explícita possível na música do Who, Satisfaction trata demonstra esse conflito incidentalmente, enquanto mostra o que realmente incomodava aquele pessoal: a incapacidade de aceitar os valores impostos pela geração anterior e aquela desgraçada que se recusa a dar porque está menstruada. I can’t get no girly action.

Acho que por isso demorei a entender que revolucionária, mesmo, era Please Please Me, dos Beatles.

Não é a letra que importa em Please Please Me. Ela é só uma brincadeira disfarçada sobre sexo oral — please please me, like I please you, da maneira domesticada como os Beatles sempre falaram as coisas. Havia um comedimento natural na forma como eles se expressavam que impedia que suas letras, grosso modo, tivessem a ressonância de um Bob Dylan, por exemplo.

O que há de revolucionário na canção é o ambiente sonoro que ela cria. Toda a música pop inglesa deriva de Please Please Me, nesse aspecto. E nisso até mesmo Satisfaction, agressiva, franca, deve muito a ela. Ali, os Beatles inauguraram a música que, depois de tomar de assalto os Estados Unidos, definiria os caminhos do pop de todo o mundo. A música popular não seria mais a mesma, e não pode haver revolução maior que essa.

Satisfaction, se ainda é uma das melhores canções da história do rock, é menos a deflagadora de uma revolução musical do que a crônica, acurada e brilhante, de uma situação já consolidada. O que não é pouco, nem de longe.

E isso leva a uma conclusão tão óbvia que quase me envergonho de assumir que demorei a tirar: não eram as letras. Era a música.

My Sweet Lord

Ouvindo All Things Must Pass com atenção pela primeira vez em muito tempo. É o disco que George Harrison lançou logo depois de sair dos Beatles. Antes achava excessivo, achava que a crítica era exagerada e ele daria um bom álbum duplo, ou um álbum simples brilhante. Eu, como acontece mais vezes do que gosto de admitir, estava errado. O disco é genial. É o melhor álbum triplo de todos os tempos. É uma obra prima.

O que me chama atenção é My Sweet Lord. Até agora, eu cantava a música com despreocupação. Preferia rir do fato de ela ser um plágio de He’s so Fine, das Chiffons, e achava aquele monte de “Aleluia” e “Hare Khrishna” bonitinhos. Era uma bela canção, belos violões de Peter Fampton, boa produção de Phil “Shoot Me” Spector, bons solos de Harrison, e só. Ela estava no domínio do pop, e esse é um domínio que, embora o meu preferido, não ultrapassa tantos limites.

Só agora vejo que a música não está na frase “my sweet Lord“. Está em “but it takes so long“. De repente a música adquire uma intensidade angustiada que eu não reconhecia nela.

Alguma coisa aconteceu ao longo de todos esses anos. E tenho a impressão incômoda de que foi comigo.