A memória dos grandes

Das lendas vivas dos anos 60, apenas duas mantêm uma trajetória criativa significativa quase meio século depois: Bob Dylan e Paul McCartney. Os Rolling Stones, a outra lenda, estão no mesmo nível de um Chuck Berry e Little Richard, ou de Elvis em 1975, vivendo de shows em que reapresentam incessantemente um repertório brilhante composto décadas atrás; o que muda é apenas a magnitude. Apenas para comparação, nos últimos vinte e poucos anos os Stones lançaram apenas quatro discos com canções inéditas, todos medíocres, e são três compositores na banda. Nesse mesmo período de tempo McCartney lançou doze, incluindo dois discos de covers e três de música erudita, com alguns pontos altos.

O penúltimo último álbum de McCartney, Chaos and Creation in the Backyard, foi recebido com aplausos generalizados, inclusive por este blog. Menos de dois anos depois, e em meio a um dos divórcios mais públicos e escandalosos dos últimos anos, ele apareceu com um novo disco, Memory Almost Full.

Normalmente as pessoas resenham um álbum assim que ele é lançado. Mas algo de estranho acontece com McCartney: as pessoas elogiam seus discos durante o lançamento enquanto detonam o anterior, e esse processo segue infinitamente: a obvra elogiada hoje é detonada amanhã. Talvez a música de McCartney pareça biodegradável, não sei; por via das dúvidas, resolvi só publicar este texto pelo menos um ano depois do lançamento do disco.

Que a capa tenebrosa, provavelmente a pior de McCartney em quase meio século de carreira, não sirva de prelúdio ao conteúdo do disco: Memory Almost Full é um excelente álbum.

É curioso notar que, do ponto de vista do conjunto, Chaos and Creation é um disco melhor. É mais coeso, é claramente um álbum concebido como uma entidade única e orgânica. Mas Memory Almost Full tem uma vantagem nada desprezível: é um disco com melhores canções pop. Aqui se vê de volta o bom e velho Paul McCartney, com ecos dos Wings e uma capacidade de criar boas melodias que parecia perdida quando ele entrou em sua sétima década de vida.

O mais interessante é que, de repente, as letras de McCartney passaram a ser pessoais. É impossível ouvir o disco e deixar de pensar que algumas das faixas são respostas à crise por que ele passou nos últimos anos.

O disco foi gravado em dois momentos diferentes. O primeiro, em 2003, com a banda que o acompanha em shows e que estava presente em Driving Rain, disco de 2001. O segundo, a partir de 2006, com McCartney tocando todos os instrumentos. Depois do clique segue um comentário faixa a faixa.

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As vidas de John Lennon

Há exatamente 20 anos, um livro sobre John Lennon se tornou objeto de debate na mídia de fofocas: The Lives of John Lennon, escrito por Albert Goldman. Aparentemente, o livro tentava destruir a imagem do ex-beatle, tirando uma porção de sujeira de baixo do tapete e fazendo revelações inesperadas para passar uma mensagem clara: Lennon, o ídolo que entrou para a memória da humanidade como um pacifista que sonhava com um mundo sem posses, era um canalha viciado em drogas e com problemas sérios de relacionamento com as pessoas.

Goldman não era um neófito no jogo de esculhambar celebridades. Tinha na bagagem outro livro bastante conhecido: Elvis, em que fomos apresentados ao sujeito também viciado em drogas, com sérios problemas sexuais, uma imagem bem diferente do revolucionário dos anos 50 e até mesmo do semi-retardado inofensivo dos filmes dos anos 60.

De modo geral, aquele livro de Goldman sobre Elvis foi aceito como verdade. Até hoje, é essa a imagem que temos de Elvis: um junkie gordo e decadente e de poucos recursos artísticos, incapaz de superar o próprio complexo de Édipo.

No caso de Lennon, no entanto, nenhum exercício de iconoclastia parece conseguir sucesso duradouro. Há algo a mais na aura que cerca os Beatles há quase cinqüenta anos, e esse algo parece ser teflon. Isso não vale apenas para Lennon: McCartney, por exemplo, vai passar para a história como a imagem acabada do bom marido e pai de família — o que significa “esquecer” canalhices como sua recusa em reconhecer a paternidade de uma ou duas crianças (mas gastando bastante dinheiro em acordos extra-judiciais), e casos deliciosos como um fim de semana numa casa em Los Angeles em 1967, quando colocou uma starlet loura em um dos quartos, uma das prostitutas negras mais famosas da Califórnia em outro, e passou o fim de semana alternando-se entre elas, até que Peggy Lipton (atriz inglesa com quem Paul costumava sair, e que na época era sucesso na ilha com o seriado The Mod Squad) chegou de surpresa para fazer uma declaração de amor e bateu a cara na porta, porque Linda Eastman, sua futura mulher, ligara e Paul estava correndo para ela. (A propósito, como já deveria ser óbvio, eu sou um eterno fã de McCartney.)

E no entanto o livro de Goldman tem muitos méritos. De modo geral é um retrato acurado de Lennon, embora cruel, e por vezes uma boa análise da sua personalidade bastante complexa. Goldman acerta ao investigar a insegurança de Lennon, sua extrema crueldade (era pouco recomendável ser um deficiente físico perto dele: uma de suas diversões era chegar perto de mendigos aleijados na rua e perguntar: “Onde estão suas pernas, amigo? Fugiram com sua mulher?” Ele também não gostava de homossexuais nem de judeus).

Os problemas com drogas também são bem delineados. Para o folclore pop, os viciados em heroína dos anos 60 eram Janis Joplin, Eric Clapton, Keith Richards; Goldman mostra a extensão do vício em Lennon e, principalmente, em Yoko. E aqui cabe lembrar uma das principais queixas de Lennon sobre McCartney. Ele reclamava que o parceiro compunha 20 canções e então arrastava a banda para o estúdio. Dizia isso para ressaltar o papel dominador de McCartney. No entanto Goldman faz uma pergunta óbvia: não fosse a diligência de McCartney, quando os Beatles gravariam, já que Lennon estava imerso em um constante torpor de heroína e Harrison se perdia em ommms indianos?

O grande mérito de Goldman é que, embora se delicie com as fofocas típicas nesse tipo de livro, sua ética de trabalho é válida e quase honesta. Ele fez um trabalho decente de entrevistas e de checagem de fatos. Seu arquivo é até hoje uma boa fonte para quem escreve livros sobre os Beatles, como Bob Spitz, cujo “The Beatles – A Biografia” foi lançado recentemente no Brasil e, embora com defeitos, é a melhor biografia dos Beatles disponível atualmente em português.

Isso dá um nível quase suficiente de credibilidade ao livro, inicialmente atacado como um punhado de mentiras — afinal, Lennon e Ono reescreveram a sua vida como uma espécie de conto de fadas da nova era. The Lives of John Lennon foi se afirmando com o tempo, para consolo de Goldman, que morreu tentando defendê-lo. Revelações feitas ali pela primeira vez seriam depois admitidas por seus protagonistas — como o episódio em que Lennon, com Yoko numa festa, arrastou a namorada de Jerry Rubin para um quarto e deixou sua mulher e o namorado da moça na sala, ouvindo o aiaiai; Yoko finalmente mencionaria o episódio no livreto que acompanha o John Lennon Anthology, em 1998. Fica a impressão que outras revelações do livro (como o vício de Yoko durante todos os anos 70) são verdadeiras.

Mas Goldman também erra, e muito. Por todo o livro, parece haver uma necessidade de destruir por completo o mito de Lennon, o que o faz tirar conclusões tendenciosas e, por vezes, sem base. Por exemplo, ele parece encarar Allen Klein, o pivô financeiro da separação dos Beatles, como quase um anjo, incorrendo no erro contrário à narrativa oficial. Exagera a rivalidade entre Lennon e McCartney, simplificando em excesso a dinâmica da relação entre os dois e reduzindo a virtualmente nada a amizade profunda e a confiança artística que sempre os uniu.

Goldman afirma categoricamente que Lennon e o empresário dos Beatles, Brian Epstein, tiveram relações sexuais durante uma famosa viagem à Espanha, em 1963. Eu também acho isso. Mas o fato é que o único envolvido a se pronunciar publicamente sobre o assunto, o próprio Lennon, disse que foi “intenso, mas não consumado”. O que aconteceu realmente sempre foi um segredo, e foi para a cova com os dois. Goldman erra ao tomar como fato algo que não passa de especulação. É um erro grave para um historiador.

Aqui e ali, outros erros aparecem. Goldman faz uma boa análise do que Drive My Car quer dizer sobre a psique de Lennon — uma análise bastante acurada se a canção não fosse principalmente de Paul McCartney. Ao mesmo tempo, Goldman lembra acertadamente o fiasco que foi a carreira solo de Lennon, que começou com um álbum absolutamente genial, o John Lennon/Plastic Ono Band, comercializou-se bastante com o belíssimo Imagine e então despencou para bobagens redundantes e medíocres como o Mind Games.

O livro de Goldman é um livro para fãs: a compreensão dos mecanismos e processos por trás dos Beatles é útil para nós. Mas não interessa a mais ninguém. Porque o que realmente importa, nos Beatles e em John Lennon, é a música. E para isso não é necessário livro de fofocas nenhum.

Meu beatle preferido

Agora é minha vez de dizer qual o meu beatle preferido.

Todos.

As razões basicamente são as mesmas alegadas pelo Allan. Os Beatles são um caso raro em que a banda só funciona com seus quatro elementos, em que o resultado final é muito maior que a soma dos quatro. Os Stones são os Stones sem Brian Jones ou Bill Wyman; os Beatles não seriam os mesmos sem George Harrison ou Ringo Starr, mesmo descontando-se o domínio claro de Lennon/McCartney. O melhor exemplo está nos discos solo de John e de Ringo: em alguns deles os ex-beatles tocaram, mas o som não era igual ao que faziam na banda. Era o som de Lennon ou de Ringo. Por outro lado, mesmo quase 40 anos depois do fim, quando fizeram aqueles caça-níqueis chamados Free as a Bird e Real Love, o som era inegavelmente beatle. Isso é mágica, e não dá para explicar.

Já em termos de carreira solo, acho a de McCartney mais consistente, mais ousada, ainda que com resultados variáveis. Mesmo que seja encarado como o conservador da banda, McCartney é quem historicamente mais se aventurou musicalmente — rock, baladas, music hall, música erudita, standards. Dentro e fora dos Beatles.

Isso não quer dizer sempre melhor, necessariamente. McCartney tem discos deprimentes como o Wings at the Speed of Sound e o Off The Ground. Mas quem fala da superioridade de Lennon deveria lembrar que boa parte de sua produção solo foi medíocre, que depois de dois discos geniais, John Lennon/Plastic Ono Band e Imagine, ele gravou uma sucessão de discos ruins como o Mind Games e o Walls and Bridges. Já George Harrison, em que pese um início maravilhoso, viu sua produção decair consistentemente a cada novo disco e ficar cada vez mais rarefeita, lançando apenas dois discos solo inéditos nos seus últimos 20 anos — um deles póstumo, a propósito.

O Victor está errado ao dizer que Harrison era quem tinha mais vontade de refazer a banda. Na verdade, era exatamente o contrário. Até Lennon, quando se acalmou aí perto da metade dos anos 70, admitia a hipótese remota da banda voltar. Harrison, nunca: quando Lennon morreu ainda estava brigado com ele (dizem que saiu até tapa, foi uma baixaria, rapaz), e até o fim da vida manteve uma relação tensa com McCartney (ele dizia “cármica”), muito semelhante à de um irmão caçula em relação ao mais velho. Foi Harrison quem disse que tudo o que os Beatles lhe deram foi “um sistema nervoso em frangalhos”. E só aceitou participar do projeto Anthology porque estava quebrado, graças à sua Handmade Films.

Já o Bruno justificou a sua preferência por George Harrison de maneira engraçada. Harrison não era hippie — nenhum deles era. E o seu relato de sua única visita a Haight-Ashbury (que Hunter Thompson chamava, brilhantemente, de Hashbury), no Verão do Amor, é interessantíssima pelo horror que aquilo tudo lhe causou. É verdade que era o menos pedante, provavelmente o mais generoso; ao mesmo tempo, era o sujeito que cantava a mulher de Ringo na frente dele e que ofereceu a própria esposa a Eric Clapton para poder comer a cunhada. E que me desculpe o Bruno, mas dos quatros beatles acho o pior instrumentista. Melhorou muito depois do fim da banda, quando praticamente migrou para o slide guitar, mas ainda assim fica atrás de gente boa como Duane Allman. Por outro lado Ringo, um baterista forte, econômico, é relegado a quase nada pelos críticos.

Mas o mais curioso nessa pequena enquete é o número de pessoas que preferem McCartney. Alguém devia dizer isso a ele, porque o velhinho tem um problema sério em relação à afirmação do seu passado. McCartney é um gênio musical, um dos poucos que ainda restam. É um homem capaz de, aos 65 anos, lançar um disco cheio de frescor e ao mesmo tempo pungente como Memory Almost Full, e que em 2 anos lançou dois grandes discos pop, um de música clássica e vai lançar agora mais um de música lounge, dance, ambiente, sei lá. Não conheço muita gente com sua idade capaz de fazer isso. E dos mitos dos anos 60, é (junto com Dylan) o único que ainda lança grandes discos, e o único que ainda explora frentes novas.

O diabo é que o melhor disco de McCartney não pode ser, por convenção, melhor que o pior dos Beatles. Se a convenção está certa ou não — e eu acho que não está; Band on the Run é muito melhor que o Beatles For Sale —, não interessa. Quando o Chaos and Creation foi lançado, o produtor Nigel Godrich declarou que não queria McCartney soando como os Beatles. Basicamente, repetiu o que todo crítico diz sobre o ex-marido de Heather Mills. E aí está o seu drama, coitado. Para qualquer banda, dizer que lembram os Beatles é um elogio. Para McCartney, que mais que qualquer outra pessoa no mundo tem o direito a esse título, é um crime.

E a culpa é dele mesmo. Dele, de John, de George e de Ringo.

Umas duas palavrinhas sobre os Beatles

Não é comum ver matérias sobre os Beatles escritas por quem realmente entende do assunto. E o Marcelo O. Dantas entende. Publicou um belo artigo na Piauí de dezembro (que já tinha sido mostrado em parte no material de divulgação do primeiro número da revista, há alguns meses). Dantas cria, para começar, um trocadilho que define à perfeição o arquétipo da dupla Lennon & McCartney: apaulíneo e johnisíaco. Normalmente não gosto de trocadalhos do carilho, mas esses fazem sentido.

Como descobri agora que o artigo está disponível online, vale a pena linkar o danado.

É definitivamente um grande texto sobre os Fab Four. Por exemplo, ele lembra que os Beatles eram uma grande banda cover. Gravavam canções de outros artistas como ninguém, e muitas vezes faziam das suas as versões definitivas (é só pensar em Twist and Shout, Long Tall Sally e Words of Love, em que a mudança de acordes — C, F e G para A, D e E — muda completamente a canção). Normalmente esse fato é um pouco obscurecido pela concepção geral de que os Stones eram uma banda infinitamente superior ao vivo. Um equívoco baseado na percepção do esquema da beatlemania: shows de meia hora repetindo sempre a mesma performance, para um público histérico cujos gritos tornavam impossível ouvir qualquer coisa. Para entender o que foram os Beatles ao vivo, o melhor é ouvir as gravações semi-oficiais feitas no Star Club, em Hamburgo, 1962. A qualidade de som é deplorável, mas ali está a prova definitiva: como Lennon sempre disse, os Beatles eram uma pequena grande banda de rock and roll.

No entanto discordo da grande influência negra apontada pelo Dantas. É mais fácil encontrar a influência de Buddy Holly, que tem origens claras no country & western, embora Chuck Berry e Little Richard sejam fundamentais também. Essas influências, aliás, são as mais divulgadas. Mas há outra na qual se fala um pouco menos: os Everly Brothers. Brancos e caipiras até a medula. É impressionante como Lennon e McCartney se esforçavam para soar como Phil e Don. Até o final.

O Marcelo Dantas também analisa com muita propriedade a dialética entre a dupla e as razões de sua permanência. Aquilo que faz uma garotada que sequer viu Lennon vivo se apaixonar por uma banda que acabou há quase 40 anos. Faltou apenas lembrar que um dos principais fatores para a permanência da banda é a sua dedicação absoluta à canção.

Numa banda comum — e isso vale para qualquer uma, dos Rolling Stones ao Led Zeppelin — uma canção normalmente tem que se adaptar à banda. Ou seja: precisa deixar espaço para o vocalista, para os solos do guitarrista, para os desvarios do baterista. Nos Beatles acontecia o contrário: a banda tinha que se adaptar à canção. Se ela precisava que Paul McCartney, um dos melhores, mais melódicos e certamente o mais influente baixista em sua época, tocasse apenas tumtumtum (ou seja, ficasse apenas nas root notes), ele tocava. Se ela dispensava a bateria, Ringo esperava lá fora.

É isso que faz dos Beatles a banda com o maior número de canções eternas, que resistem ao tempo e se tornam atemporais.

O artigo só tem um erro factual:

Get Back — o melhor rocker de toda a obra dos Beatles — nasceu da (compreensível) irritação de Paul com Yoko e do seu desejo de deixar bem claro quem continuava a ser o dono do pedaço.

Na verdade, Get Back foi criada aos poucos em janeiro de 1969, durante as gravações do que seria o filme Let it Be (e quanto a ser o melhor rock, bem, isso é questão de opinião; não é a minha). Nasceu como um comentário à crescente resistência dos ingleses aos paquistaneses que chegavam à Inglaterra em busca de sub-empregos. Suas versões iniciais são conhecidas como “Commonwealth“.

Numa das primeiras versões gravadas, quando a canção não era mais que um rock and roll no estilo de Elvis, Paul, ainda improvisando a letra, ataca o refrão: “Commonwealth ” — e Lennon, em falsete, responde: “Yes?“. McCartney não segura a risada, e a brincadeira dá o tom da música dali em diante. (Isso ajuda a confundir um pouco o mito da banda que não se suportava durante as gravações do Let it Be. No mínimo mostra o quanto todos os dois ficavam felizes quando viam que agradaram ao parceiro.)

As versões seguintes — melodicamente já Get Back, mas ainda sem letra além do refrão — são conhecidas por No Pakistanis; uma das gravações começa com Paul dizendo: “Don’t dig no Pakistanis, taking all they people’s jobs“,

Finalmente, a canção se transforma em Get Back, sem nenhuma referência à questão dos imigrantes — e dela há uma infinidade de versões, como uma cantada por Lennon e outra, por McCartney, em alemão.

Claro que é bem possível que McCartney, em algum momento, tenha aproveitado a chance para dar um recado a Yoko. Lennon dizia que McCartney olhava para Yoko enquanto gravava a canção, o que é, no mínimo, discutível. Mas isso não quer dizer que ela foi concebida como uma alfinetada na senhora Lennon.

De qualquer forma, essa implicância minha é bobagem. Há um erro na minha opinião mais grave, por ser de avaliação — porque o artigo impressiona pela sua altíssima qualidade justamente nesse quesito: é quando Dantas diz que Lennon e McCartney se tornaram compositores com altos e baixos após o fim da banda.

Não, não. Eles continuaram os compositores geniais que sempre foram. Mas agora tinham que publicar também a sua produção menor, aquela que não conseguia sobreviver à concorrência com o parceiro e ao crivo do resto da banda. Se antes brigavam para emplacar 5 ou 6 canções, sozinhos tinham que encher um álbum inteiro. É mais adequado dizer que tanto Lennon quanto McCartney lançaram bons e maus discos depois do fim da banda. Ainda assim, é impressionante que álbuns como Imagine ou Band on the Run tenham qualidade comparável à da maior banda de todos os tempos.

Finalmente, há uma lacuna na interpretação da dialética da parceria Lennon/McCartney. Dantas repete a interpretação dominante: que Lennon instigava McCartney a escrever letras melhores, e que como letrista, ainda que pelo exemplo, dava um tom mais sóbrio, às vezes sombrio, às canções de McCartney.

Isso é absolutamente correto, mas não é tudo. Nessa definição falta um entendimento um pouco mais amplo da dialética, e subestima-se a capacidade de Lennon como músico.

McCartney sempre foi um compositor de criatividade melódica extrema, mas que muitas vezes encontrava dificuldade para dar coesão às suas canções. Por exemplo, é só ver as últimas três canções de seu álbum Ram, de 1971. São oito temas musicais distintos, e todos brilhantes. Na verdade, eram pequenos trechos que ele não desenvolvia e tentava costurar em um lugar só, mais ou menos na linha do lado B do Abbey Road.

Lennon atuava muitas vezes como editor das músicas, dando consistência ao trabalho de McCartney. Obrigava-o a se esforçar um pouco mais e polia as músicas do parceiro. E esse papel é muitas vezes subestimado, porque vêm Lennon prioritariamente como letrista e quando eles se referem ao “edge” dado por ele, pensam imediatamente nas letras. Não era só isso. Isso dizia respeito à música, também. Ou melhor, principalmente à música. Afinal, como lembrou brilhantemente o Dantas, é isso, a música, o que conta nos Beatles.

Republicado em 25 de julho de 2010

John Lennon

John Lennon esteve em extrema sintonia com o seu tempo, e muitas vezes à sua frente. Ele se achava um gênio; provavelmente era. É muito para se dizer de um artista pop, mas a poucas pessoas no mundo do showbiz esse epíteto se aplica tão bem. Lennon foi parte do que se pode chamar de o primeiro grande fenômeno de massas produzido pelo marketing moderno, e o único que, ainda em termos de mídia, sobrepujou o rótulo que veio daí.

Mais do que produto de marketing ou gênio, entretanto, ele foi um produto de sua época. Uma época conturbada, rica em mudanças e em estremecimentos sociais, da qual o beatle foi, ao mesmo tempo, causa e efeito.

Para Lennon, tudo ocorreu no momento exato. Foi ingênuo quando a juventude, que surgiu como mercado consumidor e como grupo social com características próprias durante os anos 50, se consolidava como segmento social e como mercado consumidor; psicodélico quando essa mesma juventude começava a acreditar no que diziam que ela era e tentava moldar o mundo à sua imagem e semelhança; iconoclasta quando esse psicodelismo dava os sinais mais prementes de exaustão e o mesmo mundo que tomou um porre de juventude entrava em ressaca — e descobria que ressaca não mata; radical de esquerda quando os reflexos de 68 tomavam corpo e preparavam Watergate. Finalmente, saiu de cena para cuidar do seu filho, quando a geração à qual fornecera a trilha sonora crescia e começava a perceber que o mundo, afinal de contas, não havia mudado tanto assim, e que, ora bolas, ninguém era muito diferente dos seus pais — o que significava encarar o mundo e ter que ganhar a vida. Ou seja: entrar no establishment, daquele mesmo jeitinho tão criticado. Grand finale: morreu tragicamente antes de entrar em decadência e ser ultrapassado pelos mais novos rebentos da juventude.

Os eternos fãs de Lennon se lembrarão para sempre de um homem à beira dos 30 anos, com cabelos castanhos compridos e óculos redondos com grau fortíssimo. A grande maioria nunca ouviu falar do quase delinqüente juvenil dos anos 50, em Liverpool, e faz questão de não levar a sério o ídolo pop que, embora apenas aparentemente, lembrava o Menudo. Os Beatles provavelmente ficarão para sempre na história mundial, mas cada dia menos se falará que eles, em suas turnês, eram obrigados a seguir todo o roteiro da bajulação: davam abraços a torto e a direito em prefeitos, crianças e socialites feias como o pecado, nos mais assombrosos grotões do mundo. Tampouco lembrarão que perto do fim dessas turnês, já não conseguiam lotar os teatros e estádios nos quais apresentavam a mesma fórmula batida. O aspecto comercial dos Beatles será relevado em favor do grande mito que alimenta a indústria, talvez com razão.

Na verdade, música pop não passa muito de indústria. Uma indústria que teve seus alicerces modernos plantados pelos Beatles. Mais que qualquer outro, Lennon tinha consciência disso. Tanta que, ao ser fisgado de verdade pelo sonho hippie, fez o possível para negar o seu passado, e mostrar ao mundo que o sonho havia acabado — o sonho dele, provavelmente porque já havia nascido maculado, a partir do momento que ele podia ver como a indústria alimentou e praticamente criou esse movimento. Nada era tão belo como pensavam. E isso só aconteceu porque, mais do que ninguém, Lennon acreditou no sonho enquanto paradoxalmente tentava destruí-lo.

***

Não fosse o rock and roll, Lennon estaria fadado a ser um operador de guindaste no porto de Liverpool, ou funcionário público de Sua Majestade. Era filho de uma mulher que, em qualquer tempo, seria conhecida como meio maluca — já pesou sobre ela a acusação injusta de ter sido prostituta — e que não foi minimamente responsável pela sua criação. John Winston foi criado por uma tia em um bairro de classe média baixa. Aos quinze anos, já tendo a sua bandinha chinfrim de skiffle, conheceu um garoto um pouco mais novo que entretanto tocava melhor do que ele: Paul McCartney. George Harrison — que tocava guitarra melhor do que os dois — entrou logo depois. Juntos, conseguiram tocar na zona do cais de Hamburgo, Alemanha Ocidental — lugar tradicionalmente reservado a ladrões, prostitutas, malandros e marinheiros. Eram oito horas de música por noite, regadas a cerveja e anfetaminas. O conjuntinho de Liverpool foi obrigado a se superar continuamente.

Os Beatles foram para Hamburgo com a nada recomendável fama de serem uma das piores bandas de Liverpool; voltaram como a melhor. A barra pesada de Hamburgo, a necessidade de tocar muito alto, muito rápido, muito tempo os ensinou a fazer música. Em Liverpool, construíram rapidamente sua fama e conheceram um sujeito chamado Brian Epstein. A partir desse encontro os Beatles começaram a se tornar o maior fenômeno da música mundial.

A primeira providência tomada foi mudar as roupas. Casacos e calças de couro eram coisa de marginal, e mais que isso, faziam parte do imaginário dos anos 50, algo já ultrapassado. Os Beatles deviam se apresentar bonitinhos, mansos. Depois veio a mais difícil: colocar para fora da banda Pete Best. Não era um grande baterista, não se adequava à identidade visual desejada por Brian Epstein, e não era agradável aos outros Beatles, embora fosse muito amigo de Lennon. Em seu lugar entrou Ringo Starr, que de várias formas completou a entidade que seriam os Beatles.

Hoje se torna difícil imaginar o que os Beatles representavam em 1964. Eram mais que a combinação de boa música e bom marketing — uma combinação perfeita, embora às vezes o marketing parecesse encobrir o lado musical; mas basta ouvir uma canção como I Want to Hold Your Hand, que não se parece com nada feito antes, para ver que os Beatles tinham algo de realmente diferente. É fácil, hoje, desdenhar da sua música, que parece ingênua: mas aquilo era revolucionário, quase tanto quando os delírios psicodélicos de alguns anos depois. Mais que qualquer outro, foram os Beatles que inventaram os anos 60.

O fenômeno chegou a tal ponto que nos shows os próprios Beatles não conseguiam ouvir o que estavam cantando ou tocando. Lennon, irritado, dava vazão à sua frustração por ir de aeroporto em aeroporto sem saber muitas vezes onde estava, por viver em função de algo diferente do que eles haviam sonhado como a vida de um superstar, xingando os fãs fora do microfone.

Isso levaria ao fim das excursões, e parecia ser o fim dos Beatles. Não foi, pelo menos não imediatamente: ao darem uma guinada artística, priorizando a música ao marketing, os Beatles se tornaram não só a maior, como também a melhor e mais influente banda de música popular do mundo.

Mas antes disso Lennon disse que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. Uma frase que era um misto de verdade e de bravata, mas que causou uma série de reclamações, que a banda, intimamente, ridicularizava. Não era para menos: os protestos, em sua maioria, consistiam em bandos de crianças ao lado de disc jockeys de meia idade, pisando em capas vazias dos discos deles. Em apenas um show a ameaça se tornou séria, com alguém dizendo que iria atirar em Lennon. Profissionais exemplares, eles fizeram o show, esperando um tiro que não veio.

O fim dos shows, que seria um dos ingredientes que levariam ao fim dos Beatles três anos mais tarde, deixou a banda livre para ingressar na vanguarda da música popular. Eles deram um novo rumo à sua música e à música pop de todo o mundo, ao se adaptarem a uma percepção de realidade que eles mesmos ajudaram a criar. A juventude atingiu sua maturidade coimo mercado e o mundo dos “caretas” com mais de 30 anos passou a ver nela uma excelente fonte de renda. Os hippies e a contracultura viraram uma das melhores armas da indústria; e embora ninguém percebesse, o sonho na verdade era natimorto.

E então os Beatles acabam, dando os primeiros indícios de que uma era chegava ao fim; depois foram as mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison, três das mais importantes figuras da cena pop. Os anos 60, que haviam começado por volta de 63, chegavam ao início do fim em 1970.

Em tudo isso, Lennon era uma das figuras de frente. Era oficialmente o líder dos Beatles, por ser o responsável por algumas das mais cáusticas declarações dos Beatles e por ter sido ele quem, afinal de contas, havia começado tudo, embora nos bastidores a coisa não fosse bem assim. Paul McCartney, que nos anos 90 compôs duas peças (medíocres, é verdade) de música erudita, se afirmava como um dos maiores melodistas e baixistas do rock, além de ser o mais interessado nas técnicas de estúdio. Ele foi ainda o principal responsável pelo projeto mais ambicioso dos Beatles, o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, considerado ainda hoje, quase 40 anos depois, o mais importante disco de rock, e pela concepção do disco tecnicamente mais perfeito dos Beatles, o Abbey Road. Paul McCartney, ao que parece, era o líder musical dos Beatles — embora até hoje não se saiba, e provavelmente jamais se saberá, o que realmente acontecia dentro do conjunto. É mais sensato achar que os Beatles funcionavam como uma máquina bem lubrificada em que uma parte era indissociável da outra.

Mas era Lennon quem conseguia estar completamente antenado com o que o mundo queria. Sabia que o mundo não queria apenas música. Sabia intuitivamente o que falar e quando falar. E realmente se identificava com tudo o que interessava. Era o ícone de uma geração anestesiada e profundamente ingênua, que fazia de roupas espalhafatosas e de cigarros de maconha símbolos de rebeldia. Um dos principais artífices do que se convencionou chamar “anos 60”, Lennon, também ele, acreditou no faz-de-conta. E com o esgotamento do ideário hippie, Lennon ficou perdido.

Nisso ele não era diferente do restante de sua geração. A maioria ignorou o movimento hippie, como os jovens de dez anos depois ignorariam o movimento punk, como a maioria da juventude ignora a maioria dos movimentos, recebendo apenas os reflexos esmaecidos que são absorvidos pela sociedade. Uma boa parte atravessou essa era como quem atravessa uma crise de adolescência. E alguns entraram de cabeça e saíram por aí para ver se encontravam o tal mundo melhor. Desses, a maior parte desistiu quando viu que o caminho era longo e que nem mesmo sabiam direito qual era. Uma parte pequena afundou nas drogas, e não foram poucos os que não voltaram à tona. No fim das contas, a maioria aprendeu a se conhecer melhor e a se definir no mundo, por sua vez aparentemente modificado pela sua ação.

Para conseguir acompanhar o ritmo de sua geração, Lennon tomou LSD e heroína, fez terapia, tentou de tudo. No fundo, a única coisa que ele sabia fazer era expressar o que havia de melhor e de pior em si através da música. Além disso, como beatle ele havia provado o gosto do sangue. Não adiantava querer negar: John Lennon era um pop star, talvez o mais anatemático deles. E o seu maior trunfo, uma marca absolutamente pessoal que o distinguiu do resto do cenário pop de todos os tempos, era a extrema capacidade de se mostrar ao seu público e de se tornar o modelo máximo de identificação de sua geração.

O seu primeiro disco solo, o LP Two Virgins, gravado e lançado ainda durante o tempo dos Beatles, leva essa característica ao extremo. A capa, única em toda a história da música pop, mostra Lennon e Yoko nus, o máximo de exposição a que alguém pode almejar. Era assim que eles eram, era assim que todos deviam ser. Não interessava se o conteúdo do disco era insuportável; na época dizia-se que era vanguarda. Como não vingou, pode-se dizer que era apenas delírio.

O segundo disco continua essa tendência: a capa mostra Lennon deitado ao lado de Yoko em um hospital, e o disco mostra as batidas do coração do filho (morto durante essa sessão no hospital) e um desabafo do beatle John sobre o seu cotidiano e sobre a falta de camas nos hospitais ingleses. A letra em si não tem nenhuma qualidade literária; é só John Lennon mostrando o que sente para o seu público. O resto é a barulheira habitual. O terceiro, o Wedding Album, é mais um episódio do “Diário Público de John Ono Lennon”.

Esses discos são bastante emblemáticos. Ninguém ouviu, hoje ninguém vê. Mas ajudaram a fazer Lennon erguer-se acima da música, criando sua própria aura mítica.

Depois do fim dos Beatles, o primeiro (e melhor) disco de Lennon continua nessa direção. Ele fala da dor nunca superada na relação com sua mãe, fala das dificuldades que enfrenta ao lado de Yoko, continua sendo o referencial maior de sua geração. E é nesse disco, também, que ele se refere ao fim do sonho hippie.

Deixar de acreditar em um mito não é fácil, e para Lennon, que havia sido o próprio mito, era mais difícil ainda. Mas novamente a Providência foi generosa com ele, e a política conturbada dos Estados Unidos do começo da década de 70 (um reflexo do movimento hippie que só foi devidamente assimilado com quase dez anos de atraso) forneceu a ele um meio de defender aquilo em que acreditava, talvez o único meio que um pop star tem de ficar remotamente ligado ao seu passado comum.

Ao sair de cena, logo depois de gravar um álbum em que voltava às origens, cantando músicas que ouvia quando era adolescente, Lennon seguia o que o mundo lhe ditava, e mais uma vez estava na linha de frente de sua geração. Durante anos, de certa forma ele tentaria manter vivo o sonho que ele mesmo havia declarado morto, invertendo os papéis com sua mulher e ficando em casa criando o seu filho, enquanto Yoko Ono ia para a rua e trazer dinheiro para casa (ou melhor, gerir o dinheiro que ele conseguira). Finalmente, quando percebeu que não podia viver afastado da cena pop e voltou ao trabalho, um homem chamado Mark David Chapman deu-lhe cinco tiros, transformando-o em mais que um ídolo.

A partir daí, todos os atos de auto-exibição, os discos que ninguém ouviu, as palavras que Lennon disse fizeram sua parte. A partir do dia 8 de dezembro de 1980, John Lennon se tornava o primeiro santo da era da comunicação. Centenas de milhares de pessoas choraram sua morte.

A aura que existe hoje em torno do beatle é paradoxal. Seu espírito é baseado no Lennon contestador, o que ia para as ruas protestar e participar de passeatas, um ativista político de esquerda; mas o objeto de adoração em si é o Lennon romântico, sonhador, que se contentava em imaginar um mundo melhor. E essa imagem nem sempre corresponde à realidade. Ele sentou praça no imaginário popular como o gênio e o roqueiro; sua carreira solo, entretanto, nem sempre corresponde a isso.

Os álbuns solo que se seguiram a John Lennon/Plastic Ono Band e Imagine (Some Time in New York City, Mind Games e Walls and Bridges) não são somente melosos; são fracos também. Além de haver pouquíssimo rock and roll, no sentido clássico da palavra, a essa altura Lennon havia ido longe demais na idéia de expôr-se ao seu público; e Some Time… vale principalmente como uma crônica aguada do movimento de esquerda nos Estados Unidos em 1972.

Os casos de Mind Games e Walls and Bridges são mais graves. Esses dois álbuns não apenas constituem pouco mais que um apelo dirigido a Yoko, mas têm músicas e letras muito fracas. Era como se Lennon tivesse perdido o talento demonstrado nos seus dois primeiros álbuns.

Fazendo uma comparação: quando Mick Jagger cantava ao mundo que não conseguia satisfação, ele não somente era sincero (um pré-requisito básico da cena rock) como o seu problema era o mesmo de milhões de jovens em todo o mundo. Ao pedir desculpas para Yoko em Aisumasen, Lennon podia estar sendo sincero — mas o que é que o resto do mundo tinha a ver com isso?

A sua volta em 1980 o redimiu de todos esses pecadilhos. Conseguia transformar seu amor por Yoko em algo universal, com o qual milhões de pessoas podiam se identificar e assumir como suas, e novamente com letras de qualidade.

***

Não haveria mais lugar para o ícone John Lennon no mundo de hoje. Não numa época em que, por mais que se alardeiem mudanças, tudo continua do jeito como sempre esteve. Os tempos são mais propícios aos Paul McCartney — pessoas talentosas cujas posições políticas mais corajosas jamais ultrapassam a barreira do plenamente aceitável.

A julgar pelo seu último trabalho, talvez o próprio Lennon, se estivesse vivo, fosse mais parecido com o retrato que se faz dele, hoje. Em Double Fantasy, que ele mesmo definia como crônica de sua vida na época e conseqüentemente de uma geração Lennon falava de amor, de seu filho e da gratidão e paixão incomensuráveis que sentia por Yoko Ono. O conteúdo de suas letras não era nem sombra das canções panfletárias do álbum Some Time in New York City, por exemplo. Lennon não havia atravessado a “década do eu” impune, e estava antecipando a era Reagan. Em um mundo apático e desiludido, que assiste a guerras de verdade como se fossem partidas de video-game, cansado de tudo e com uma eterna sensação de dejà vu, não se pode imaginar aquele sujeito de cabelos compridos e óculos redondos que acreditava que podia convencer o mundo a dar uma chance à paz, sendo o espelho fiel de seu tempo, algo muito necessário quando nada parecia estar no lugar.

O que parece mais engraçado, ao se prestar atenção à história de Lennon, é que apesar de tudo o que disse, e de tudo em que acreditava, ele não conseguiu mudar muita coisa. George W. Bush pertence à geração que cresceu ouvindo Lennon. A grande mudança que se pode apontar, na realidade, é que o protesto não vende mais tantos discos. Está tudo banalizado e minimizado, foram todos absorvidos pelo temível establishment. Sintonizado com o seu tempo como era, é provável que hoje Lennon estivesse vindo se apresentar no Brasil, trazendo na bagagem a mulher e o filho, para encantar um público que viveu os anos 60 à distância cantando Imagine pela milésima vez, ou revivendo os Beatles para cantar I Want to Hold Your Hand no mesmo microfone que Paul McCartney.

Originalmente publicado em 30 de janeiro de 2005

Uma pequena bibliografia dos Beatles

Só Deus sabe quantos livros a respeito dos Beatles existem por aí.

Essa é uma listinha sucinta dos mais importantes deles.

The Complete Beatles Recordings
Mark Lewisohn
Foi lançado em 1988, comissionado pela EMI como parte das comemorações pelo seu centenário. Acabou se transformando no livro definitivo sobre os Beatles no estúdio de gravação — e foi ali, no estúdio, que os Beatles se tornaram o que são até hoje. É um diário de todas as sessões da banda, provavelmente o livro mais acurado que já se escreveu sobre ela. Infelizmente fora de catálogo há muitos anos, se tornou a bíblia dos beatlemaníacos, o livro a que se recorre para dirimir dúvidas. Ainda espero a chance de colocar novamente minhas mãos sobre um exemplar, é o único fundamental que falta na minha estante. Os anos passaram e veio a internet, um repositório muito maior de informações. O livro mostrou ter lacunas, e mesmo alguns erros. Mas continua sendo o livro mais importante já escrito sobre o dia a dia dos Beatles, e necessário para que se entenda a dinâmica que fez da banda a maior de todos os tempos. Nunca foi lançado no Brasil.

The Complete Beatles Chronicle
Mark Lewisohn
Lançado depois do Complete Beatles Recordings, inclui as gravações, descritas de maneira mais resumida, assim como um relato das apresentações ao vivo e gravações de filmes, apresentações em TV, etc. Tem também uns bons resumos históricos e críticos sobre cada ano da banda. Se eu tivesse que comprar apenas um livro sobre a banda, seria esse. Nunca foi lançado no Brasil e passou um bom tempo fora de catálogo, mas vale a pena comprar via Amazon.

The Beatles
Hunter Davies
É a biografia oficial dos Beatles, e durante muito tempo foi o livro mais importante sobre a banda. O tempo passou e ele se tornou meio redundante, e com várias informações falsas, mas ainda assim é um documento importante. Foi a Hunter Davies que McCartney ligou, de saco cheio do que considerava ataques de Yoko Ono, para dizer que ninguém lembrava das vezes que Lennon o magoou e que ele sabia ser “um porco manipulador”. É o tipo de livro que se compra porque se fala dele há quase 40 anos, e basicamente só por isso.

The Beatles Anthology
The Beatles
Parte do projeto Anthology — que incluiu também o documentário hoje disponível em DVD e os três CDs duplos (ou álbuns triplos em vinil, lançados apenas na Inglaterra e que fazem parte dos meus xodós), é a história dos Beatles contada por eles mesmos. É bem aceitável, apesar de eles, claramente, saberem bem os limites da verdade a que podem chegar. Independente disso, é um livro fantástico como objeto. (Alguns anos depois os Stones lançaram a sua versão de autobiografia, como não podia deixar de ser. Mas nela a diagramação deslumbrante do Anthology foi substituída por um layout burocrático e sem graça. Típico.)

The Love You Make
Peter Brown
Brown era funcionário da Apple (citado por Lennon em The Ballad of John and Yoko). Portanto este é um relato de insider — cheio de todas as fofocas imagináveis. Foi o primeiro livro a revelar, de forma razoavelmente confiável, o lado negro da banda que dizia que tudo o que você precisa é amor. É ideal para quem gosta de baixaria. E quando se trata de Beatles, eu gosto.

Many Years From Now
Paul McCartney
Oficialmente a autoria é de Barry Miles. Mas isso não ilude ninguém. O livro é, na verdade, a autobiografia de Paul McCartney; o ghost writer apenas levou um crédito maior, provavelmente para que Macca se sentisse mais livre para falar as bobagens que quisesse e soltar as farpas que bem entendesse. De qualquer forma, é um daqueles livros fundamentais para a compreensão da história dos Beatles. A versão brasileira é melhor que a minha, porque tem alguns acréscimos feitos depois da morte de Linda McCartney.

The Beatles: The Biography
Bob Spitz
É o livro mais recente sobre a banda, e pelo que dizem um dos mais completos. A crítica se divide sobre ele, e como ainda não li, não posso falar muita coisa além de repetir o que dizem: é abrangente mas contém erros. Se alguém quiser me dar de presente, sinta-se à vontade.

…E no terceiro dia

Em 1980, os Beatles já tinham deixado de pertencer ao imaginário popular. Se hoje eles são um mito, na época eram apenas uma grande banda que tinha acabado.

Aqueles eram os anos da discoteca. Quem não viveu aquilo, ainda que marginalmente, não tem idéia do que era. Disco music era o verdadeiro mainstream, e as pessoas lotavam discotecas e se vestiam como Tony Manero; pior, tentavam dançar como ele, sem conseguir.

O rock, por sua vez, tinha passado por outras ondas, como o progressivo e o punk. Para os poucos que ainda ouviam a música dos anos 60, que não perdiam tempo com os Bay City Rollers, os Wings de Paul McCartney ofereciam um substituto quase aceitável. Mas os grandes nomes da época eram Led Zeppelin e Peter Frampton. Os Beatles eram passado, mais do que nunca. Pensando bem, é assim que as ocisas devem ser.

Mas então apareceu Mark David Chapman e deu cinco tiros nas costas de John Lennon.

Em 1980, John Lennon era um artista decadente. Antes de se retirar de cena, em 1975, seus discos vinham vendendo cada vez menos — e as críticas, depois de um início promissor com duas obras-primas, eram cada vez mais negativas. Seu álbum de retorno, Double Fantasy, vinha tendo péssimas vendas; talvez porque, depois de um hiato de 5 anos, as pessoas esperassem que o “beatle avant garde” aparecesse com algo realmente novo, e não com o pastiche dos anjos 50 que apresentava ali.

Os tiros de Chapman se encarregaram de criar um mito. E assim como as vendas do Double Fantasy dispararamn a partir dali, o ostracismo dos Beatles começou a chegar ao fim.

Mas não foi só por isso. Era preciso algo mais. E esse algo mais foi uma hecatombe chamada “anos 80”.

Os anos 80 foram a década em que os protagonistas dos anos 60, sem exceção, viraram dinossauros anacrônicos. Por exemplo, com a discutível exceção de Tattoo You, os Rolling Stones não lançaram um disco sequer aceitável naquela década miserável. Mas eles morreram de fato quando os Sex Pistols apareceram gritando por anarquia no Reino Unido. O vínculo emocional que existia entre os artistas dos anos 60 e seu público, e que fez daquela década algo especial, acabava ali. Eles não tinham mais o que dizer.

Mas o enterro, mesmo, foi nos anos 80.

O mais curioso é que os ídolos dos anos 70 seguiram o mesmo caminho, cedo demais. Seria de se esperar que durassem pelo menos dez outros anos, assim como o pessoal dos anos 60. Mas tão rapidamente como surgiram, eles sumiram — infelizmente não antes que o Clash definisse o som da nova década com Rock the Casbah, assim como os Beatles definiram os 60 com Please Please Me. Foi esse vazio, criado pelo conjunto de fim dos grandes e a morte de John Lennon — que é única por não ser o final de um exercício aplicado de auto-destruição como as mortes de Joplin ou Jim Morrison, mas uma agressão gratuita e inexplicável — quie possibilitou a volta dos Beatles.

O fato de os Beatles passarem a ser venerados a partir dos anos 80 não é exatamente um reconhecimento de sua grandeza; esse reconhecimento veio 20 anos antes, por gente boa como Leonard Bernstein. É, antes de tudo, o sinal de que um vazio muito grande existia naquela década perdida.

Deixa estar

No primeiro quarto de século depois do fim dos Beatles, apenas um disco inédito (sem contar o Let it Be, um álbum póstumo, de certa forma) foi lançado pela EMI/Apple: o Live at the Hollywood Bowl, em 1977.

De repente, em 1994, a Apple decidiu abrir seus arquivos. A partir daí foram lançados o Live at the BBC, o projeto Anthology, e finalmente o pior de todos, o Let it Be… Naked. Relançaram também em DVD ou nos cinemas a maioria dos filmes da banda, como A Hard Day’s Night, Help!, Magical Mystery Tour e o desenho animado Yellow Submarine.

Mas ainda está faltando um grande projeto, talvez o último deles: o relançamento do filme Let it Be.

A história do filme é simples: logo após o fim das gravações do “Álbum Branco” — quando a coisa começou a ficar feia para os Beatles –, e sentindo que a crise era muito séria, McCartney resolveu que estava na hora de voltarem a tocar ao vivo, porque isso poderia recolocar a banda nos trilhos. As sugestões que foram surgindo a partir daí incluíam um show num anfiteatro vazio no norte da África, que se encheria aos poucos com gente de todas as cores, credos e raças, idéia depois reciclada pelo Pink Floyd em Pompéia.

Apesar de toda a grandiosidade das idéias, àquela altura já seria uma grande vantagem simplesmente juntar os quatro beatles em qualquer lugar. Se resignaram a gravar um documentário para a TV mostrando a banda no processo de gravação de um novo disco. A idéia seria mostrar os Beatles “sem as calças”, como dizia Lennon. Ensaiando, gravando suas músicas ao vivo como nos primeiros tempos. Tudo deveria ser o mais natural possível.

Até isso deu errado. Com os Beatles apenas adiando um fim inevitável, o filme foi posto de lado e acabou sendo lançado nos cinemas, o que explica os ângulos esquisitos de várias tomadas. O disco com parte da trilha sonora seria lançado um mês após o anúncio oficial do fim dos Beatles.

É quase impossível fazer uma análise objetiva de Let it Be porque aquilo não é bem um filme, é James Stewart apontando o binóculo para o apartamento de Raymond Burr.

Do ponto de vista cinematográfico Let it Be é um fime horroroso. É mal dirigido, mal editado — é um fracasso tosco. Michael Lindsay-Hogg, o diretor, poderia ter feito um trabalho bem melhor dentro das diretivas “naturalistas” que recebeu. Não fez, e acima de tudo Let it Be é um filme extremamente chato.

Mas é também um documento importante.

Ele acabou entrando para a história como o registro do processo de desintegração da banda mais influente da história. Mas na verdade não é isso que ele mostra. Se tivesse sido lançado exatamente como é, mas a banda não tivesse se separado naquele momento, ele seria visto como uma alegoria da superação: o filme começa em um ambiente muito tenso, nos estúdios de Twickenham, melhora quando vão para a Apple e tem sua apoteose no show no telhado, interrompido pela polícia. Poderia ser visto como uma prova de que o amor pela música e a camaradagem entre quatro sujeitos que cresceram juntos supera tudo.

Infelizmente os Beatles se separaram menos de um ano depois das gravações e, para todo mundo, o filme é um epitáfio.

A Apple vem realizando um trabalho incessante em cima do filme. Há anos vem trabalhando nele — e algumas cenas do filme restaurado já foram vistas no Anthology. Ainda não se sabe quando será lançado, e a cada Natal os boatos redobram. Talvez tenha ficado mais fácil depois da morte de George Harrison, um dos que mais carregavam mágoas daquela época, mas ainda é um tema de que nenhum dos sobreviventes gosta de falar com honestidade. O Let it Be é o retrato mais acabado do que são as relações entre os ex-beatles: um saco de gatos em que dinheiro e mágoas desempenham papéis equivalentes.

Mas eles sabem que, quando relançarem o filme, as vendas em DVD vão ser excelentes. E o dinheiro pode até ser equivalente às mágoas, mas Paul McCartney, Ringo Starr, Yoko Ono e Olivia Harrison sabem que mágoas não enchem bolsos.

Chaos and Creation in the Backyard

Deve ser muito difícil produzir um disco de Paul McCartney. Por três razões. A primeira é o fato de o sujeito ser uma lenda viva, uma das últimas. A segunda, o fato de ele ter produzido, sozinho, alguns dos maiores sucessos dos anos 70 — seus Wings, ao lado do Led Zeppelin, foram talvez a banda de maior sucesso comercial da década. Terceira: se alguém esqueceu, foi ele o sujeito que inventou o estúdio como local de criação em vez de apenas gravação.

Nigel Godrich tem um bom currículo. Produziu o OK Computer, do Radiohead, e foi indicado a McCartney por ninguém menos que George Martin. Teve a coragem de desde o início deixar claro que não iria se abster de fazer suas próprias críticas, que só iria trabalhar nas canções de que gostasse. Nas entrevistas coletivas que vêm dando agora, ele e McCartney falam dos choques que tiveram e de como isso resultou em tensão criativa — mas as fofocas da época davam conta de desentendimentos piores.

Talvez o que Godrich tenha feito de melhor foi se recusar a trilhar os dois caminhos mais óbvios em se tratando de um músico com o porte e a história de McCartney. Podia simplesmente ser um engenheiro de som de luxo, deixando que o ex-beatle fizesse o que quisesse e como quisesse; ou poderia tentar transformar McCartney em algo que ele não é — um jovem com excesso de adrenalina e vontade de revolucionar a música pop.

O que ele fez foi simples: primeiro, não deixou que McCartney alcançasse o nível de auto-complacência que costuma demonstrar quando em uma banda fixa. Obrigou o sujeito a gravar sozinho, tocando todos os instrumentos, e executou um controle de qualidade estrito quanto às canções apresentadas. Parece ter compreendido o que Lennon sempre disse: quando forçado, Paul McCartney é capaz de fazer coisas realmente grandiosas. Em segundo lugar, deu uma roupagem moderna a sua música, como era necessário, mas ao mesmo tempo reforçou todas as melhores características que fizeram dele o artista mais bem sucedido da história da música pop.

Mas há uma pequena diferença entre o McCartney com o baixo Rickenbacker e o de 2005. Driving Rain, seu último disco de estúdio, de 2001, trazia um traço um pouco inusitado na obra de McCartney, sempre o autor de letras leves, bobas e otimistas: pela primeira vez, de maneira consistente, entrevia-se letras pessoais, que sempre foram o traço distintivo de Lennon. Aquele era o primeiro disco de estúdio e com músicas compostas após a morte de Linda McCartney. E o que ele cantava ali era medo, dor, perda, saudade.

Nesse aspecto, o novo disco segue no mesmo caminho. É um disco sombrio em várias de suas letras, e como raras vezes antes consegue-se entrever os sentimentos pessoais de um sujeito que nunca se incomodou em empurrar as letras mais bobas se a melodia fosse boa. Mas Driving Rain tinha também o defeito de, de repente, ter tirado de McCartney sua personalidade. Apesar de algumas grandes gravações, naquele disco ele era como um vehinho de quase 60 anos numa festa de adolescentes. Foi justamente esse erro que Godrich evitou. O resultado é o melhor disco de McCartney em muito tempo. É um disco verdadeiramente novo, dentro dos limites de um sujeito que roda os palcos há quase 50 anos.

Chaos and Creation in the Backyard será lançado amanhã. Está sendo anunciado como o vigésimo disco de estúdio de McCartney. Nas minhas contas é o vigésimo primeiro, mas e daí? Definitivamente, é um grande disco.

Eis uma opinião sobre o disco, faixa por faixa:

Fine Line
O carro-chefe. Uma canção que, em muitos momentos, lembra os Wings, provavelmente o ápice da carreira solo de McCartney. E desde os primeiros acordes já mostra que o instrumento dominante neste disco será o piano. Mostra também que, como aconteceu no álbum anterior, McCartney voltou a abordar o seu contrabaixo como se deve: com a postura esperada do baixista mais influente da música pop.

How Kind of You
É uma canção complexa que poderia estar no Driving Rain, pela pior razão: apresenta um padrão de composição de McCartney que demonstra uma certa perda do brilho melódico que sempre foi sua marca registrada. Isso não faz com que seja uma música ruim, longe disso. É uma canção pungente, verdadeira, e também um dos arranjos mais complexos do disco.

Jenny Wren
Descrita pelo autor como “irmã mais nova de Blackbird“, poderia ser descrita melhor como a sua irmã feia. Apesar do arranjo, da mesma mensagem otimista, há algo que não decola na música, como se fosse uma tentativa de gravar uma versão levemente diferente da mesma música. Lembra muito mais Distractions, do Flowers in the Dirt (1989). Mas esse é o comentário de alguém que tem Blackbird na cabeça. Talvez, se vista de maneira isolada, ela seja mesmo tudo o que se diz dela.

At The Mercy
Chata, só isso. Para que gastar tempo escrevendo sobre uma música chata?

Friends To Go
Bela canção, com traços de country — dominada pelo violão em um disco que parece ter sido todo composto no piano — e estrutura melódica que lembra os Beatles, aqueles de 1965, entre o Help! e o Rubber Soul, mas principalmente os primeiros anos de sua carreira solo. Uma letra interessante, bem construída, aparentemente despretensiosa mas cheia de pequenas surpresas, e com belas imagens. McCartney disse que esta canção foi feita rapidamente porque não era ele escrevendo: ele sentia que George Harrison estava escrevendo essa música para ele. Então tá. Pode-se mesmo sentir ecos do estilo de Harrison na canção. Mas seja lá de que mundo venha, psicografada ou não, Friends To Go é McCartney em sua melhor forma: pop de altíssima qualidade e um talento melódico excepcional. Ele diz que é uma de suas músicas preferidas no disco; é uma das minhas, também.

English Tea
A linha descendente de acordes no piano lembra, muito vagamente, For No One. Mas isso é tudo. De qualquer forma, pela letra curiosa e pela harmonia e arranjos, extremamente econômicos ao mesmo tempo que evocativos dos anos 60, é uma canção que poderia muito bem estar no Revolver. Elegante e clássica.

Too Much Rain
É talvez a minha faixa preferida no disco, ao lado de Friends to Go. Quando se ouve McCartney cantar “It’s not right, in one life, too much rain” é impossível não pensar nos quatro anos em que viu Linda McCartney perder a batalha contra o câncer, e nos três anos seguintes, quando foi a vez de George Harrison.

Certain Softness
Parece ser a maneira como McCartney entende a música latina. É um grande bolerão, ainda que tenha o seu toque pessoal. É também uma das canções do álbum que revelam a extrema versatilidade e inventividade melódica de McCartney. De certo modo, é como Nat King Cole cantando “Cachito, Cachito, Cachito mio

Riding to Vanity Fair
Uma canção sobre amizade e traição, quase amarga. A pergunta que se faz é a quem é dirigida. Minha aposta: Geoff Baker, o relações públicas que McCartney demitiu recentemente depois de anos juntos, e com quem andou trocando algumas farpas. Outra canção que poderia muito bem ter saído de Driving Rain.

Follow Me
Sem dúvida vai ser umas das canções na turnê de McCartney que começa dia 16; e sem dúvida é uma das mais fracas de todo o disco. Uma balada típica, com bela melodia, é verdade, mas nada que ele não tenha feito antes. É apenas mediana dentro do contexto em que se apresenta. Em um ábum mais fraco talvez não fosse.

Promise To You Girl
Um dos poucos rocks deste disco, uma canção alegre e divertida que chega quase a quebrar o tom melancólico e sombrio do disco. É impossível não bater o pé enquanto se ouve a música. Bela canção.

This Never Happened Before
Boa balada de McCartney, mas em um disco tão bom, e com vários momentos brilhantes, parece ser apenas mais uma balada, com algo de anos 70, quase algo de Barry Manilow. Talvez seja injustiça.

Anyway
Outra balada ao piano típica. Nada demais, e também nada que comprometa o álbum.

***

O disco pode ser comprado, a partir sei lá de quando, no Submarino. Compre por aqui e a comissão vai para uma vítima do Katrina e seu cachorro pederasta, para ver se ele finalmente pára de fazer posts sobre o bicho.

Jealous Guy

Jealous Guy é uma das músicas mais bonitas que algum filho da mãe já escreveu até hoje. É quase perfeita: na melodia, na letra, no arranjo extremamente simples.

No entanto, ela foi rejeitada durante dois anos pelos Beatles. Seu título original era Child of Nature, e a letra era essa:

On the road to Rishikesh
I was dreaming more or less
And the dream I had was true
Yes, the dream I had was true

I’m just a child of nature
I don’t need much to set me free
I’m just a child of nature
I’m one of nature’s children

Sunlight shining in your eyes
As I face the desert skies
And my thoughts return to home
Yes, my thoughts return to home

Underneath the mountain ranges
Where the wind that never changes
Touch the windows of my soul
Touch the windows of my soul

Child of Nature foi escrita na Índia e deveria entrar, originalmente, no “Álbum Banco”. Era mais ou menos Mother Nature’s Son (de McCartney e que foi incluída no disco) com um tom mais telúrico, aquele jeito meio Gaia de ser. É uma letra fraca, boba; lhe falta verdade. E basta compará-la com a definitiva para ver que os outros três beatles tinham razão.

Ao que tudo indica, Lennon ouviu os conselhos dos companheiros — ou, mais provavelmente, de Yoko Ono. Refez a letra, fez dela um recado claro para Yoko — e ao mesmo tempo deu um toque de genialidade que a tornou universal. É mais fácil encontrar sujeitos ciumentos que filhos da natureza em comunidades hippies. E então o que poderia ser só mais uma canção boba se transformou em um clássico maravilhoso:

I was dreaming of the past
And my heart was beating fast
I began to lose control
I began to lose control

I didn’t mean to hurt you
I’m sorry that I made you cry
I didn’t want to hurt yo
I’m just a jealous guy

I was feeling insecure
You might not love me anymore
I was shivering inside,
I was shivering inside,

I was trying to catch your eyes
Thought that you were trying to hide
I was swallowing my pain
I was swallowing my pain

Jealous Guy diz muito sobre a maneira como os Beatles trabalhavam.