Dilma e o aborto

Dilma caiu na armadilha do aborto e Serra ganhou uma batalha importante. É uma armadilha muito semelhante à que Alckmin caiu em 2006; a diferença é que daquela vez era a privatização.

Já tinha caído antes, na verdade.

Mas na tal “Mensagem da Dilma” sobre o tema, veiculada hoje, ela assumiu uma posição clara, e disse que é “pessoalmente contra o aborto” e defende “a manutenção da legislação atual sobre o assunto”.

O que Dilma deveria dizer é que aborto é uma questão a ser resolvida pelo Legislativo, e se eximir de uma responsabilidade que, afinal, não é sua.

Deveria lembrar a sua própria história e mostrar o que significou, para uma mulher perseguida por uma ditadura sanguinária, ter coragem de gerar uma filha e lutar por ela. O que significou trabalhar para sustentá-la, acompanhar o seu crescimento, estar ao seu lado quando ela estava triste e quando ela estava alegre. Mostrar o orgulho que ela tem pela pessoa que formou.

Dilma deveria mostrar a alegria que sentiu ao pegar, pela primeira vez, o neto recém-nascido em seus braços. Mostrar o valor da família não em declarações que parecem saídas de alguém acuado, mas em seu próprio sentimento e humanidade. A história de Dilma é suficiente para revelar ao Brasil o seu valor como pessoa e como mulher — porque não são mais valores políticos que estão em pauta, mas valores pessoais. E deveria fazer isso de maneira psoitiva, não defensiva.

Maluf fez isso em um comercial antológico. Depois de uma frase infeliz sobre estupro — o famoso “estupra, mas não mata” –, ele reuniu toda a família e deixou claro que não era a favor daquilo. Mostrou que era a favor da família, que valorizava aquilo que tinha — e como um homem que amava tanto a sua família, com tantas mulheres em casa que obviamente amava, poderia ser a favor de algo hediondo como o estupro?

Já vi gente dizendo que não quer vencer a eleição a qualquer preço, e não abre mão de princípios e quetais. Esse é o discurso mais acomodado, mais esnobe que eu conheço. Essa história cai bem em mesa de bar, quando um monte de gente fica dando a explicação que bem entender sobre as razões do sucesso ou do fracasso de uma campanha.

Porque eu quero. Custe o que custar. Com os votos de quem for necessário. Para mim, voto não tem cheiro, não tem cor, não tem sequer ideologia. Voto é voto, e ponto final. O voto de um evangélico tem exatamente o mesmo peso do de um ateu — e Dilma será a presidente de todos, não de um só segmento social. Além disso, tenho como certo uma coisa simples: campanha é uma coisa, governo é outra. A discussão sobre o que deve ser o governo do ponto de vista de uma blogosfera progressista que defende o direito ao aborto, descriminalização da maconha ou coisa do tipo — plataformas que numa campanha eleitoral beiram a imbecilidade e só servem para afastar eleitores — deve ser iniciada no dia 1o de novembro; mas até lá o que importa é fazer o possível e o necessário para ganhar a eleição.

Sob esse aspecto, a campanha de Serra está mais acertada. É um candidato mentiroso, falso, baixo — mas ele faz o discurso que deve ser feito.

Dilma não está fazendo isso. Sua campanha está errada. Se fizeram um primeiro programa eleitoral que para mim — que já vi e fiz mais programas eleitorais que a imensa maioria dos mortais — é o melhor da história, de repente eles resolveram, em pleno segundo turno, privilegiar a informação e a comparação de governos, investindo em um discurso excessivamente racional. Esses são dados que devem sempre estar presentes, claro, mas a esta altura é preciso mais que isso. Não é mais questão de levantar razões para votar ou não na Dilma. Depois de dois meses de campanha na TV e no rádio, as pessoas já sabem o que o governo Lula fez e que Dilma é a candidata de Lula. O que se discute agora é quem é o melhor para sucedê-lo; e essa não será uma escolha feita de modo racional. Comparar governos talvez não seja a estratégia mais eficaz. Ou investir num conceito como o Serra Mil Caras — que sinceramente me parece inócuo.

O que Dilma deve recuperar é a emoção que esteve presente, de maneira magistral e insuperável, no primeiro programa. É a presença de Lula ao seu lado, lhe emprestando o carisma que ela, definitivamente, não tem. E a mensagem deve ser de paz e amor — a mensagem que Lulinha, ainda longe de ser o herói nacional que é hoje, passou em 2002. Dilma deve mostrar que é a garantia de que as pessoas vão continuar cada vez mais felizes, porque comem, porque vão à universidade, porque podem trabalhar, porque vão saber que Lula, através dela, continua olhando por eles.

Não é só a economia, estúpido. É também a emoção.

Enquanto isso, a militância poderia fazer algo que o NPTO está fazendo.

Se o primeiro turno deixou alguma lição, foi a de que as notícias sobre a morte da mídia foram muito exageradas. Foi a sua atuação que conseguiu valorizar Marina Silva (que merece um post e um mea culpa meus) e forçar um segundo turno que parecia remoto quinze dias antes. Não será no Twitter, no Facebook ou nos blogs que a eleição será ganha. É na rua. Se cada eleitor de Dilma se dedicar a conseguir pelo menos um voto nesses quinze dias que restam, nós ganhamos fácil a eleição.

Enquanto isso, para o Helio Jesuíno que veio cobrar post aqui, eu repito o que disse antes: minha guerra ganhei no primeiro turno. E agora com licença que eu vou ali escrever um panfleto para Déda e Dilma, que vai ser lido, ou pelo menos visto, por muito mais gente que os leitores deste blog, que obviamente volta à hibernação.

Lembranças de Dilma Rousseff

Durante uns dois anos, este blog foi invadido por bobos de direita que insistiam que o PSDB/DEM voltaria ao poder em 2010. Gente que olhava de cima para a candidata escolhida pelo presidente que odiavam, uma tal de Dilma Rousseff.

Abaixo seguem trechos de três posts distintos publicados aqui, mais de um ano atrás.

E um recado a todo aqueles que, com mais ou menos inteligência, tentaram contradizer o que já devia estar claro como o dia:

Vocês são uns idiotas.

22/01/2009 – A grande esperança da oposição, até agora, tinha sido a aposta na ausência de um candidato forte para suceder Lula. Finalmente reconhecendo que, mais que um político ou estadista, Lula é um dos maiores heróis nacionais na história, costumava ver como vantagem a idéia de que tinha candidatos mas não tinha programa, enquanto o governo tinha programa mas não tinha candidatos. (A propósito, este blog sempre achou que é mais fácil arranjar um candidato do que desenvolver um programa.)

(…) ao final das eleições de 2008, analistas políticos se apressaram em afirmar que o tão temido poder de transferência de votos de Lula era muito menor que o imaginado, já que o governo perdeu as eleições em várias capitais.

Mas uma eleição municipal não é a mesma coisa que uma eleição presidencial em termos de capacidade de transferência de votos do presidente em exercício. Cada dia mais atento, o eleitor brasileiro sabe diferenciar essas esferas. Uma eleição municipal é basicamente dominada por temas e interesses locais. Uma eleição presidencial tem forçosamente como referencial o atual mandatário e a avaliação que se faz do seu governo.

É por isso que na eleição presidencial de 2010 nós teremos Lula dizendo ao povo brasileiro: “A Dilma sou eu na presidência”. E por Lula na presidência entenda-se o cada vez mais forte e eficiente sistema de distribuição de renda simbolizado pelo Bolsa Família. A condução firme da política econômica. Uma posição internacional cada vez mais visível, sólida e influente. O Brasil que Lula vai deixar em 2011 é um país melhor do que aquele que o elegeu. Seus índices de popularidade alarmantes — para a oposição, ao menos — são o melhor exemplo disso. Em 2010, o que se terá será a disputa entre o modo de governo capitaneado por Lula e as alternativas pouco simpáticas às classes mais baixas representadas pelo PSDB e pelo PFL.

(…) Dilma Rousseff se consolidou de maneira surpreendente. Tem cada vez mais pontos positivos a seu favor, e se firma a cada dia como uma boa receptora dos votos do presidente Lula. Como possível candidata, vai se mostrando um nome ao mesmo tempo leve e sólido, sem as resistências que, por exemplo, um Ciro Gomes encontraria.

Dilma é uma mulher, o que por si só já representa um sopro importante de renovação. É uma política com ampla experiência administrativa e comprovadamente competente. Atravessou incólume o escândalo do mensalão, e não paira nenhuma suspeita sobre sua honestidade — mesmo no comando de um orçamento gigantesco, como o do PAC. Ou seja, a cada dia se consolida mais como o nome ideal para substituir o governo mais bem-sucedido da história democrática do país. É infensa até ao mais idiota dos argumentos contra Lula: ela tem mestrado em economia.

07/06/2009 – Em 2010, assim como em 2006, não vão adiantar factóides. Será preciso, ainda que isso a aterrorize, que a oposição apresente um programa de governo real e palpável. É algo que a sociedade vai cobrar dela. Ao contrário do que os saudosos do Plano Real possam imaginar, as eleições de 2010 não serão iguais às de 1994. O PSDB não vai estar na situação; e o povo não vai estar desesperado correndo de uma inflação de três dígitos. O país que a oposição vai enfrentar no ano que vem estará mais estruturado e mais bem encaminhado.

Resumindo: a oposição vai ter a inglória tarefa de apresentar conserto para um país que dá certo.

(..)

Qual é o projeto de Serra?

É preciso que a oposição faça a si mesma algumas perguntas. A primeira delas é: o que José Serra vai fazer de melhor como presidente? Sem cair na estupidez de dizer que este é um país que não funciona — porque, pela primeira vez em décadas, as pessoas finalmente sentem que ele melhora a cada dia –, o que Serra tem a apresentar que seja melhor do que Lula vem fazendo?

Quais as suas propostas para melhorar a distribuição de renda no país? Como ele fará com que o Brasil seja mais respeitado no exterior? O que ele pretende fazer para, sem passar por cima do jogo democrático e da separação de poderes, aumentar o nível de governabilidade do país?

Algumas armadilhas vão aparecer no seu caminho. Como justificar que, depois de oito anos dizendo que o Bolsa Família não presta, eles vão à TV e ao rádio dizer que não pretendem acabar com o programa? (Na verdade, eles já estão correndo atrás do prejuízo. Há cerca de duas semanas, o DEM e o PSDB de Sergipe realizaram um mini-seminário de um dia, com a presença do deputado federal carioca Rodrigo Maia, sobre Bolsa-Família. No que é um passo acertado, e uma correção de rumo há muito devida, a oposição resolveu deixar de lado a sua resistência irracional e aprender como é que se faz.)

Essas não são as únicas questões que vão aparecer diante da oposição. Eles vão precisar responder outras perguntas mais simples e que dão direito a menos tergiversações. Por exemplo: o que, no mandato de José Serra como governador de São Paulo, dá àqueles que o apóiam a convicção de que ele será melhor presidente do que Dilma? Com exceção de obras superfaturadas, crateras de metrô e livros didáticos heterodoxos, o que o governador de São Paulo vai poder apresentar como credenciais para que o povo brasileiro volte as costas ao projeto de Lula e vote nele?

Até agora, a neo-UDN tem apenas gritado e reclamado. Nesses oito anos, sua maneira de fazer oposição tem se mostrado aética e, definitivamente, nem um pouco republicana. Isso pode ser creditado ao seu desconforto nessa posição, em última análise. Mas isso são águas passadas. Do que se vai falar agora é de futuro. É de concepção de país. Pode ser uma perspectiva assustadora; mas é inevitável.

Está na hora de a oposição tirar a cabeça do buraco de onde grita “Está tudo errado!” e tentar mostrar às pessoas, afinal de contas, por que votar em Serra.

23/07/2009 – Qualquer tucano sabe que, ao escolher Dilma Rousseff como sua candidata à presidência, Lula fez uma escolha magistral. Dilma é uma mulher com qualidades “masculinas”, provavelmente o melhor meio-termo possível em política: pode representar uma mistura de renovação com segurança. Uma mulher forte, de história invejável e competência administrativa reconhecida. Uma mulher identificada, acima de tudo, com o governo Lula, muito mais do que outras personalidades petistas, que sempre tiveram carreiras paralelas à do presidente — e aqui se pode citar um Aloísio Mercadante ou uma Marta Suplicy. Dilma atravessou incólume a crise do mensalão, e está à frente de um dos mais importantes projetos de infra-estrutura do país, o PAC. Assustados, tucanos apontam pesquisas que indicam Serra na frente — mas mesmo eles sabem que isso, a esta altura, não significa nada, significa apenas que ela está crescendo, o que é um cenário ainda pior do que o que eles gostariam.

O PSDB sabe que quando Lula aparecer na TV e no rádio, colocar a mão no ombro de Dilma e disser “Dilma sou eu na presidência, mas ainda melhor”, milhões de brasileiros decidirão imediatamente os seus votos.

O que eles ainda não conseguiram entender com clareza é a razão disso.

Vale a pena ver de novo

Funcionava assim: chegava o meio do ano e eu republicava o que achava serem os melhores posts antigos.

Isso na em tempos idos, em que tinha post todo dia neste blog zumbi.

Agora chegou o momento de fazer a minha parte para enterrar de vez o que o meu Estado tem de pior. É a hora de reeleger Déda governador — e de quebra dar uma mãozinha indireta à minha futura presidente.

Dessa vez eu vou aproveitar para, com a republicação desses posts antigos, dar um pouquinho de vida a um blog que sofre com a minha falta de tempo crônica.

Vai ter post dia sim, dia não pelos próximos meses, coisa que não acontece neste blog já há um bom tempo. Alguns deles, acredite, são bonzinhos. São antigos, é verdade, mas como dizia o poeta panela velha é que faz panela boa — e eu sou um velhinho que prefere um bom post velho do que um mau post novo.

O sub-tenente Towersey, novamente

Há muitos anos, nos primórdios deste blog, escrevi sobre um livro que achei num sebo em Niterói. Era uma edição comum de How Green Was My Valley, mas que trazia o nome do seu primeiro dono: Y. R. Towersey, sub-tenente da Marinha Britânica que adquiriu o livro em maio de 1941, enquanto se preparava para a II Guerra Mundial no HMS Excellent, em Portsmouth.

É um post de que eu gosto.

Nele eu dizia que não tentaria descobrir nada sobre a história do livro, porque me contentava em imaginar suas peripécias até chegar às minhas mãos. Não ia tentar descobrir se o senhor Towersey tinha sobrevivido ou não à Iguerra. O sub-tenente Towersey poderia ser o que eu tinha imaginado.

Cumpri a promessa que fiz a mim mesmo. Não procurei saber nada sobre Towersey, principalmente depois que fiquei sabendo que o Excellent não era um navio, e sim um centro de treinamento.

Mas sete anos depois eu posso contar o destino do sub-tenente Towersey, e isso é, para mim, tão interessante quanto a história que eu mesmo criei para ele.

Towersey lutou na guerra. Serviu primeiro em um caça-minas no Mediterrâneo, e mais tarde foi para a base naval da Algéria, trabalhando na parte administrativa.

Quando a guerra acabou, a Inglaterra estava em frangalhos. E Towersey, àquela altura mais um civil procurando emprego em uma cidade que não os oferecia, foi trabalhar para uma empresa de navegação, que tinha um escritório no Rio de Janeiro, para onde foi enviado.

No Rio lhe deram um conselho sábio: que fosse se hospedar em Niterói, para fugir da febre amarela. E lá o sub-tenente criou sua família. De alguma forma, um de seus livros foi parar num sebo. E hoje descansa na minha estante.

Fiquei sabendo da história de Towersey porque seu filho, Daniel, achou este blog e o post sobre o seu pai, e deixou um comentário.

Na verdade, o nome do sub-tenente cujo livro veio parar em minhas mãos não começava com Y, e sim com F — eu é que li errado. E ele está vivo em 2010, do alto de seus 90 anos. Ao lado está uma foto do oficial ainda jovem.

Daniel Towersey descobriu que alguém, que ele nunca viu na vida, escreveu sobre um pedaço da história de sua família.

E eu descobri que algumas coisas continuam mágicas mesmo depois que você descobre o mais importante sobre elas.

Deus e o diabo

O mais me fascina em quem acredita em Deus é a maneira como eles estão dispostos a acreditar em um ser superior sem começo nem fim, sem nenhuma explicação, que criou toda a matéria do nada e vai continuar existindo a despeito de tudo o que achamos, e ainda assim não conseguem perceber a beleza e a similaridade da idéia de que tudo o que existe é grande e belo o suficiente para dispensar um criador, matéria sem começo nem fim, sem nenhuma explicação, e que vai continuar existindo a despeito de tudo o que achamos.

O que mais me fascina em quem não acredita em Deus é a maneira como eles estão dispostos a acreditar que tudo o que existe é grande e belo o suficiente para dispensar um criador, matéria sem começo nem fim, sem nenhuma explicação, e que vai continuar existindo a despeito de tudo o que achamos, e ainda assim não conseguem admitir a beleza e a similaridade da idéia de um ser superior sem começo nem fim, sem nenhuma explicação, que criou toda a matéria do nada e vai continuar existindo a despeito de tudo o que achamos.

E o que me irrita em uns e outros é a maneira que, ao fazer proselitismo de suas crenças, abdicam da razão e se igualam na mesma lama da ignorância.

Defendendo Dunga

Assisti ao final da convocação a seleção brasileira de futebol para a Copa da África do Sul, e à coletiva posterior.

A primeira impressão que tive foi a da qualidade impressionantemente baixa do jornalismo esportivo perpetrado neste país. As perguntas eram feitas no seguinte tom: “Você tem sua opinião, Dunga, e ninguém é obrigado a concordar, mas…” e “Graças a Deus você não era técnico da seleção em 58, porque senão Pelé…”. Nível baixo demais, de confronto, feito por gente que deveria ter vergonha de pronunciar a palavra “profissional”.

Logo depois foi a vez das mesas redondas nos canais esportivos. Normalmente, mesas redondas são cenários de bobagens ditas com ar de autoridade e ânimos exaltados, mas a animosidade contra Dunga, as críticas exacerbadas, tudo isso passou a impressão de que a escalação foi uma surpresa absoluta. Naquele momento, Dunga parecia ser o arauto do futebol-arte que, de repente, tinha traído seus ideais e abdicado do futebol brilhante que o Brasil pode jogar em função de uma covardia repentina, de uma mudança súbita para um futebol sem surpresas e feito para, antes de tudo, defender. O sujeito que, depois de três anos e meio fazendo de sua seleção algo de dar inveja a Telê Santana, jogou fora os seus jogadores para catar cabeças-de-bagre retranqueiros.

Eram os mesmos jornalistas que vinham elogiando o sujeito, ainda que com um muxoxo, porque ele vinha ganhando as competições que disputava.

A única opinião sensata foi dada pelo Juca Kfouri. Segundo ele, Dunga montou a seleção que se esperaria dele, definida em função de um objetivo bem específico: ganhar a Copa do Mundo. Não era a seleção que o Kfouri convocaria, mas era uma seleção respeitável e, acima de tudo, competitiva.

Dunga tem sido perseguido pela imprensa desde sempre. Em 1990 foi tomado para Cristo de uma seleção que não era sua culpa, em 1994 o ridicularizavam quase que por reflexo condicionado– e sequer conseguiam reconhecer que ele não apenas desempenhou bem o seu papel naquela copa, como até mesmo surpreendeu com lançamentos excelentes para Romário.

O mais engraçado é que, do jeito que esses jornalistas sérios e competentes falam, ficou parecendo que essa é a primeira seleção “de resultados” que se monta no Brasil. Que até a véspera da convocação este país era o palco de seleções que jogavam como em 1982, ou ainda melhor. A se acreditar nos jornalistas brasileiros, as seleções de Lazaroni, Parreira, Zagallo e Scolari foram prodígios do toque de bola solto e do ataque inconsequente. Fiquei com a impressão de que a minha memória me traía, e nenhum deles convocou seleções medianas; umas melhores, outras piores. Eu achava que desde 1982 não via uma seleção que realmente enchesse os olhos, apenas eventualmente seleções que claramente tinham chances de ganhar, como a de 1994; eu estava enganado, porque esses jornalistas me disseram.

Afinal de contas, esperavam o quê? Ganso, Robinho e Neymar no ataque? Quem ainda esperava isso em maio de 2010 acompanhou ainda menos que eu o futebol brasileiro nos últimos quatro anos. Dunga convocou o que se podia esperar que ele iria convocar. O Milton Ribeiro, por exemplo, acertou virtualmente todos os convocados. Aqui e ali algumas surpresas realmente estranhas, como Grafite e Kleberson. Mas nada que não pudesse ser previsto.

Ao que parece — e aqui falo sem muita certeza porque não acompanhei — esses anos de preparação de Dunga foram, ao menos, mais sérios que as eliminatórias disputadas por Luxemburgo e Scolari — Léo Costa, Tinga, lembra? E ao que me dizem foi uma seleção que venceu tudo o que disputou. No mínimo, Dunga é digno de admiração por não ter ouvido o cacarejar da imprensa esportiva, que se deleita em pedir os times que atendem a suas idiossincrasias ou interesses e crucifica qualquer um que não ganhe a Copa– e não faz uma conta entre esses dois aspectos, beleza e competitividade, porque isso não lhes interessa.

Eu, pelo menos, lembro ainda das críticas que Telê Santana enfrentou em 1982. Jô Soares tinha um quadro humorístico em que ele implorava a Telê, de um orelhão — na época ainda se usava orelhões — que levasse um ponta-direita. Mais ainda, lembro da crucificação de Telê depois da derrota, da sua demissão e substituição primeiro por Parreira, depois por Evaristo de Macedo, e sua volta às vésperas da Copa de 86. Logo depois da derrota para a Itália ninguém apareceu com a conversa de “futebol-arte”, de como era melhor perder mas jogar bonito. Em vez disso reclamaram do burro, do idiota, do jumento do técnico.

Ontem mesmo, diante da virada do Grêmio sobre o Santos, os mesmos que esculhambaram Dunga já falavam que o time de Ganso, Robinho e Neymar é lindo no ataque mas, ao precisar se defender, se perde.

Se alguém quer minha opinião, acho essa seleção de Dunga medíocre no sentido clássico da palavra, mediana. Ao mesmo tempo, é como disse o Juca Kfouri: uma seleção competitiva, escolhida para tentar ganhar a Copa do Mundo. Não questiono, de modo geral, as suas escolhas. É um estilo de jogo e pronto, e nem sequer é inédito entre as seleções brasileiras. Acho apenas, como o jornalista Paulo Vinícius Coelho, que ele errou no banco de reservas, que poderia ter sido mais criativo ali, até porque em algum momento pode vir a ser necessário uma mudança de estilo de jogo. Um jogador excepcional como Ganso teria lugar em qualquer seleção, com qualquer idade. Finalmente, Zidane provou ao Brasil — duas vezes seguidas — que um meio-campo criativo é capaz de destruir qualquer esquema tático, mas nenhum técnico brasilerio parece ter aprendido a lição ainda.

O que mais irrita é saber que, se qualquer um dos sábios que esculhambou Dunga fosse técnico profissional e tivesse que convocar uma seleção para uma Copa do Mundo, provavelmente faria a mesma escolha: um time que aposta no futebol de resultados porque o verdadeiro objetivo para a CBF é vencer, ainda que jogando feio. É para isso que ele é contratado. Infelizmente, não acho que vá conseguir. O Brasil vai chegar classificado ao terceiro jogo, contra Portugal. Dificilmente será desclassificado nas oitavas; o mais provável é que chegue às semi-finais. No entanto, o Brasil não vai ganhar essa Copa, porque algo no mapa astrológico da FIFA me diz isso, e porque a festa brasileira está reservada para daqui a quatro anos.

(Obviamente, torço para estar errado.)

Eu, pessoalmente, prefiro ver o futebol de 82, ou mesmo o que o Santos tem jogado. Mas também gosto de comemorar uma vitória de Copa do Mundo, e para quem viu a sua primeira com uma seleção como a de 1994, qualquer coisa já é lucro. Se puder ter os dois ao mesmo tempo, ótimo. Se não puder, a esta altura da vida, me contento com qualquer um dos dois.

A maior parte das pessoas, no entanto, prefere vencer. Os jornalistas também, apesar do seu discurso hipócrita — e se viram hipocrisia e forçação de barra nos apelos ao “comprometimento” e ao “patriotismo” de Dunga, eu vejo também na sua grita incansável, pronta a detonar qualquer técnico que não vença, jogando feio ou bonito.

Curling

Quando fizerem uma retrospectiva de 2010, tenho quase certeza que um dos destaques do ano vai ser o curling, que apesar de ser um esporte antigo apareceu de verdade nas Olimpíadas de Inverno de Vancouver. Ninguém sabia que aquilo existia. Eu, pelo menos, não sabia. Talvez os velhinhos paulistas que ficam jogando bocha suspeitassem de que algo assim poderia existir; eu confesso a minha total ignorância.

Até assisti uns pedaços de uma ou duas partidas. E eu simplesmente não assisto esportes que não entendo, como esse tal de curling, e aqueles que francamente detesto — rugby me irrita profundamente, por exemplo.

Mas o curling tinha umas dinamarquesas bonitinhas, e as meninas deslizando pelo gelo eram uma imagem bonita de se ver — quase tão bonita quanto duas moças se pegando numa piscina de lama ou de gel. No fim das contas, estavam jogando um jogo absolutamente imbecil para capturar as atenções de uma humanidade que agora se alimenta prioritariamente de novidades, por mais bobas que sejam.

Curling é basicamente bola de gude jogada por empregadas domésticas. Pelo que entendi — e confesso que não entendi muito — uma fica tentando afastar a chaleirinha da adversária do buraco — em Aracaju chamavam “biloco” — enquanto uma dupla de empregadas mui devotadas vão varrendo o chão.

Pensei seriamente em sugerir à minha empregada que montássemos uma equipe. Íamos fazer sucesso. Eu joguei um pouco de bola de gude na infância, ela varre bem. Daria certo.

Mais comentários vagabundos

É engraçado que os comentários aos posts anteriores tenham derivado quase exclusivamente para a questão da greve de funcionários públicos.

Por favor, releiam os textos ou pelo menos o último comentário do fm. As greves abusivas são apenas um detalhe. É o cotidiano de professores desinteressados e incompetentes, de médicos que vão aos hospitais uma hora por dia, que irrita e que era objeto dos textos.

De qualquer forma parece ser necessário explicar novamente.

Qualquer funcionário público tem direito — e às vezes o dever — à greve. O problema começa quando essas greves são abusivas. Quando prejudicam sistematicamente outro setor da sociedade, geralmente os mais indefesos. É o problema das greves dos professores, do jeito que são feitas. O blog propôs uma alternativa as greves aos professores; ninguém discutiu isso. Apenas reafirmaram o mesmo discurso velho, cansado e extremamente corporativista.

A atitude cínica de “eu finjo que trabalho e você finge que me paga” é nociva, deletéria e falsa. Porque os salários do Estado não são os salários de fome apregoados no início de cada discurso, e porque, no mínimo, o Estado paga muito mais do que o que recebe. Esse é o problema. (Quanto à defasagem salarial alegada por tanta gente, eis um comunicado a todos aqueles que pretendem prestar concurso público e estiveram fora do planeta Terra nas últimas 3 décadas: seu salários certamente sofrerão algum tipo de defasagem ao longo dos anos. Pronto. Agora a desculpa das perdas salariais não vale mais para a ausência de trabalho.)

O argumento do “não está satisfeito, vá embora” é simplista, como diz o Akakiev? Talvez. É ético, ao menos, e é o que milhões de pessoas que trabalham no setor privado por salários semelhantes fazem a vida inteira — logo, não é exatamente o fim do mundo. O que importa, mesmo, é que a reação a essa idéia reflete, ao menos em parte, uma certa mentalidade de expropriação do Estado por parte de uma parcela de funcionários públicos. As pessoas querem que o Estado lhes ofereça tudo — bons salários, garantia de emprego por toda a vida, excelentes condições de trabalho — sem dar o que precisam dar em troca.

São socialistas quando se trata de receber do Estado, mas capitalistas na hora de dar.

Mas o meu problema está no prejuízo causado à sociedade em nome de direitos — às vezes privilégios — de alguns.

Fazer greve no Estado é como bater na mãe: você pode até estar errado, ela pode até ficar sem falar com você durante anos, mas no final ela vai lhe perdoar. Lula — que fez greve no setor privado e contra os interesses de uma ditadura que, apesar do que diz a Folha, não era nada branda — deixou claro que greve nos termos que os professores fazem não é greve, são férias. Ainda assim, a greve é um direito básico de cada trabalhador, público ou privado. O problema está no abuso, e principalmente, no uso do povo — que não pode se defender — como refém.

O ponto central do post, ao contrário do que diz a Nicolle no seu desabafo autobiográfico e revoltado no post anterior, não é o de que funcionários públicos não podem reclamar. Podem e devem. O que não podem é deixar de fazer o trabalho para o qual foram contratados sabendo de antemão qual seria o seu salário; ao defender a melhoria desses salários, não podem prejudicar sistematicamente os seus clientes.

Isso não pode ser tão difícil de entender assim.

Ninguém, aliás, lembrou do ponto de vista de pacientes e alunos: eles pagam impostos. Têm o direito constitucional a saúde e a educação. No entanto, porque alguns funcionários públicos acham, com ou sem razão, que seus salários não são justos, esses direitos lhe são negados constantemente. É por tudo isso que o discurso da Nicolle é bonitinho e indignado, mas também repleto dos lugares comuns de sempre:

Por 2000 reais você lutaria contra traficantes no morro do alemão, na rocinha ou na maré? E se eu acrescentasse que eles estão em maior número, mais bem armados e talvez até mais organizados que você? Por pouco mais de 500 reais você trabalharia de segunda à sexta sob condições de trabalho precárias das escolas públicas brasileiras? E se eu acrescentar aí que a escola referida fica numa comunidade carente, seus alunos estão sendo recrutados para o tráfico e até ameaças de morte você recebe?

A Nicolle não parece ter compreendido o texto e o mundo. A resposta para as duas perguntas é “não”, mas responder isso me parece idiotice: é o que eu digo desde o primeiro post, e o que o Akakiev e o fm compreenderam. A questão é: se eu aceitasse, eu daria a aula. É só isso. O que não dá para aceitar é alguém fazer concurso, sabendo quais são as condições que lhe esperam, e depois dizer que não vai dar aula ou atender seus pacientes porque o salário é baixo, sendo que não pode ser demitido ou penalizado por isso.

Mais ainda, me incomoda profundamente o cinismo de professores que trabalham ao mesmo tempo na rede pública e na rede privada de ensino, sendo que na privada ganham menos, não fazem greve e, o que é mais importante, dão aula de verdade. O Akakiev poderia me explicar, por exemplo, por que é que há professores decentes de matemática na rede privada de ensino, sendo que esta, com exceção dos salários altíssimos dos professores de cursinho, pagam consistentemente menos que o Estado? O salário não é justificativa suficiente, portanto. Se fosse assim não existiria servente de pedreiro competente.

A personalização de histórias também é algo que, certamente, não deveria fazer parte de um debate. A Nicolle citou o exemplo da mãe, que fez concurso para ganhar 330 reais. Fez por “falta de alternativas”. Não é essa a questão, no entanto. É: ela deu as aulas que precisava dar? Enquanto as pessoas continuarem olhando para os setores de educação e saúde do Estado como assistência social — “eu não tenho emprego então vou catar algo no Estado” –, as coisas não vão melhorar nunca.

***

Uma das coisas que me irritam, e que esqueci de mencionar no primeiro post mas que o comentário do fm acabou me lembrando: classe média reclamando que é quem mais paga impostos e a que menos recebe serviços públicos em troca.

A classe média recebe, sim, pelos seus impostos. Recebe muito mais do que os pobres. Ela reclama de não usar os professores do Estado ou o serviço de saúde: mas recebe saneamento, pavimentação, iluminação pública, segurança, sistema de trânsito, coleta de lixo. Os serviços prestados pelo Estado à classe média são consistentemente melhores que os prestados às classe mais baixas.

E isso acontece por uma razão: a classe média tem acesso à mídia e pode reclamar. Um miserável fica feliz quando o Estado tira, finalmente, o esgoto de sua rua. Os padrões da classe média são mais altos, coisas desse tipo são impensáveis.

Mas como é ela a prestar aqueles serviços específicos aos pobres, então a coisa muda de figura. Aí é o Estado que não presta, que paga mal, e isso lhes desobriga de fazer o básico: o seu trabalho.