Jesus Manero

Eu sei que tem gente por aí, gente desocupada que redundantemente não tem o que fazer, que diz que não levo religião a sério.

Na verdade eu levo. Levo tanto que até hoje tento descobrir como é que o puto do Moisés atravessou o Mar Vermelho. Se parar para pensar numa bobagem dessas não é levar a sério, eu não sei mais o que é.

Quem não leva essa merda a sério é o pessoal do Jesus Manero — o site mais abençoado da internet. O mané aqui nem sabia que essa pérola existia. Agora estou rindo há horas enquanto passo o arquivo do site em revista.

Disney e o passado

Um site magnífico para quem lembra das revistinhas Disney de eras passadas: o Vila Xurupita’s Brazilian Covers apresenta todas as capas das revistas Disney publicadas no Brasil nesses pouco mais de 60 anos, de maneira bem simples e organizada.

Mas há outro ainda mais completo, o InDucks, um banco de dados abrangente com cada história incluída em cada revista Disney publicada em vários países, o que inclui o Brasil. É um trabalho hercúleo de documentação, e um tesouro de informação ao mesmo tempo pouco importante e inestimável. Pouco importante porque são só revistas em quadrinhos de algumas vidas atrás, útil apenas para sessões sem sentido de nostalgia; inestimável porque para muita gente que não tem medo de sessões sem sentido de nostalgia é um documento acurado de parte de suas vidas.

Deve ser o meu caso. De muitas dessas capas lembrei imediatamente. Algumas apenas sei que tive, pela época em que foram publicadas, embora não lembrasse delas. Mas lembro bem, por exemplo, dos números 1470 da Pato Donald e 1471 da Zé Carioca, quando as suas logomarca foram mudadas depois de 30 anos. Comprei a Mickey 340 e a 341, agora também com logomarca diferente. Foi lendo a Zé Carioca comemorativa de 20 anos da revista, em julho de 1981, que fiquei sabendo do torpedeamento do Lusitânia — infelizmente, só fui descobrir quando, e que diabos aquilo tinha significado, muitos anos depois. Li a Tio Patinhas 170, em 1979, e descobri a palavra “sarraceno”. Na Tio Patinhas de Ouro 2 ouvi falar de uns sujeitos na Pérsia — que já não existia àquela época — chamados dervixes.

Era o tempo em que as revistas traziam impresso um pequeno aviso na capa: “Manaus, Santarém, Boa Vista, Altamira, Macapá, Porto Velho, Rio Branco, Jiparaná (via aérea): Cr$ 00,00 – CÓD. 0051” — e isso significava, basicamente, um aumento de cerca de 30% no preço de capa. Era um Brasil diferente e a região Norte ficava mais longe. Tão longe que até hoje eu não sei onde fica Jiparaná.

O site avivou algumas lembranças antigas, mas também corrigiu outras. Sempre achei que a primeira Almanaque Disney que eu havia comprado tinha sido a 90; na verdade foi a 76, em setembro de 1977. Há muitos anos comecei um post neste blog dizendo que “Ainda lembro do dia em que comprei o meu primeiro Almanaque Disney. Foi em agosto de 1977.” Eu estava errado. Na verdade foi em setembro, e comprei porque, de brinde, vinham umas moedas douradas; crianças, macacos e corvos gostam de coisas que brilham. A confusão vem porque nesses meses eu morava num hotel em Salvador. Também achava que tinha comprado a “Anos de Ouro do Mickey” no final daquele ano, mas isso aconteceu dois anos depois — mas do local eu não esqueci: na banca do Renato, um sujeito que me lembrava o Emerson Fittipaldi, banca que fica ainda hoje no Largo da Barra.

Além disso, ver a palavra “Bingola” — um joguinho de tabuleiro com tampinhas de Coca-Cola, se não me engano — nas capas de várias revistas me lembrou que eu brinquei com isso, o que quer dizer que comprei, ou pelo menos li, outras revistas antes da tal Almanaque Disney 76. (Uma busca por “Bingola” mostrou que há por aí gente mais maluca do que eu, gente que guardou suas tampinhas até hoje. Ano passado um sujeito estava vendendo sua coleção por 1.500 reais no Mercado Livre.)

É impressionante que eu ainda consiga lembrar de capas de revistas que li mais de 30 anos atrás. É difícil saber se a minha fascinação por elas — e o valor que lhes dou — vem do seu valor real ou porque elas simplesmente fizeram parte de minha vida e de minha formação — ou seja, no final das contas essas revistas não eram tão boas assim, eu é que era suficientemente ignorante para julgá-las excelentes. Talvez seja uma mistura dos dois; reler as histórias publicadas nessa época mostra que, se minha memória afetiva talvez tenha aumentado sua importância, ao mesmo tempo elas são infinitamente superiores ao que se tem publicado da Disney ultimamente, com exceção das histórias de Don Rosa.

O melhor nessas revistas é que havia um universo variado de personagens e temáticas. Não eram apenas os personagens tradicionais de Disney, aqueles que até hoje vivem em Patópolis; mas havia uma variedade de elementos paralelos — as histórias das Aristogatas, de Banzé, Hawita e tantos outros, e quadrinizações dos filmes das Disney — que emprestavam àquelas revistas uma abrangência que outras não têm. Além disso havia uyma seção aparentemente retirada da série True-Life Adventures, com informações sobre o mundo animal, e os cartuns da Zoo Disney. Havia também um bom núcleo de histórias brasileiras, especialmente as do Zé Carioca e do 00-ZÉro.

E algo de que eu tinha esquecido: um bando de meninos e meninas maluquinhos, na faixa dos 8, 10 anos, que queriam se corresponder com outras crianças e davam seus endereços publicamente — algo impensável nos tempos paranóicos de hoje, em que a meninada não vai mais à esquina sozinha.

O site também acaba sendo uma crônica visual da decadência dos quadrinhos Disney no Brasil. Quem conhece as revistas feitas há 30, 40 anos lembra da impressão com cores sempre chapadas, os defeitos da colorização manual e das tecnologias de impressão disponíveis; lembra das variações de letras a cada história, também feitas à mão. De lá para cá houve imensos progressos técnicos. Tudo, da finalização à colorização e às letras, é feito no computador. As impressoras trazem cores mais ricas, com mais nuances tonais e mais controle sobre o resultado final. O tempo operou suas mudanças também na lingua, e hoje ela se apresenta mais coloquial.

No entanto basta uma olhadela superficial nas capas para ver que, paralemente ao avanço técnico, houve um retrocesso terrível no campo das idéias.

Cada capa trazia uma gag visual significativa, piadas simples e muitas vezes excelentes. A novas capas das revistas Disney, ao menos as poucas que ainda se sustentam, perderam isso. Ficaram mais parecidas com as revistas de super-heróis, puro lixo pouco criativo, artesanato que se faz sem pensar, e com vistas apenas a chamar a atenção do eventual comprador. As capas refletem um pouco a pobreza das histórias mais novas. A julgar pelo pouco que vejo aqui, a Disney não conseguiu se atualizar sem perder sua essência — algo que eventualmente conseguiu nos longa-metragens animados, como “A Bela e a Fera” e “Rei Leão”.

E há a questão do negócio em si.

Há 30 anos — e as capas de diversas revistas mensais e edições especiais comprovam isso — esse era um negócio excelente. Hoje, diante do tamanho do império de dívidas da Abril, não tenho essa certeza. No começo deste século, por exemplo, ela não teve problemas em se desfazer dos super-heróis da Marvel e, cerca de um ano depois, da DC. No entanto se apega às revistas Disney, mesmo que pareça não mais saber o que fazer com elas. Por uma matéria lida há uns dez anos na finada Gazeta Mercantil, parece que é por razões sentimentais: o Pato Donald foi a primeira revista publicada pela editora, em 1950, e sempre foi questão de honra para o fundador, Victor Civita. Isso torna ainda mais incompreensível e injustificável o trabalho porco que realizam com essas revistas. A única coisa decente que ainda publicam é uma tal de Disney Big — mais ou menos a mesma coisa que a antiga Disney Especial, mas sem o fio temático que era a marca daquelas revistas e cada vez mais limitado ao universo de Carl Barks. O resto é lixo mal editado — e é deprimente que, com mais de meio século de histórias, eles não consigam simplesmente escolher as melhores.

Mas isso interessa pouco. Passei horas procurando as revistas que ajudaram a me formar — aquelas do final dos anos 70, começo dos 80. E a cada reconhecimento, a cada “essa eu tive”, a criança que eu fui um dia ficou mais forte e, por alguns momentos, mais feliz.

E aí, Sergio Leo, o mundo acabou?

Ontem os senadores brasileiros aprovaram em primeiro turno uma Proposta de Emenda Constitucional que traz dos mortos a exigência de diploma de comunicação social para o exercício do jornalismo, derrubada há pouco mais de dois anos num daqueles raros momentos de sanidade do STF.

Em tempos d’antanho este blog defendeu o fim da exigência do diploma. Porque jornalismo não é profissão que precise oferecer uma defesa à sociedade na forma de diploma individual; porque a lei era uma intromissão desnecessária do Estado no que essencialmente é a sociedade falando consigo própria; e pelas próprias origens da nefanda, uma lei de ditadura concebida para controlar jornalistas.

Mas já há muito tempo, uns 20 anos pelo menos, essa discussão era desnecessária e anacrônica. Sua queda ou manutenção, na prática, significava coisa nenhuma. Novos jornalistas continuariam a ser necessariamente recrutados nos bancos das faculdades, simplesmente porque a oferta é grande demais e, de modo geral, recém-formados são mais qualificados que focas vindos de outras áreas. Não consta haver muita gente vindo de fora querendo ser jornalista. E há tantos estudantes implorando por uma primeira chance que a seleção já não é feita entre os que têm e os que não têm diploma, mas entre aqueles nas multidões de recém-formados que têm algum talento e estão dispostos a trabalhar por muito pouco em nome de uma primeira oportunidade.

Não foi a exigência do diploma que criou essa situação. Foi basicamente a evolução natural do mercado. Este é cada vez mais um mundo de especialistas superficiais, cujas origens estão nas crianças que, por várias razões, são obrigadas a fazer escolhas de vida fundamentais aos 17 anos de idade. É isso que gera o excedente de mão de obra que afasta os eventuais não-jornalistas das redações. E esse fenômeno que se vê no jornalismo também se repete em outras profissões, mesmo as que não exigem diploma, como a publicidade: é nas faculdades que são recrutados os estagiários de criação, mídia ou qualquer coisa assim, porque por pior que sejam — e, também generalizando, essa meninada parece vir cada vez pior, cada vez mais ignorante —, ainda assim têm uma formação específica melhor do que quem nunca fez um layout em toda a vida. Ou seja, não é necessário diploma para garantir esse tipo de evolução socioeconômica. O mercado já se encarregou disso faz um certo tempo.

Mas para o Sergio Leo, e tantos outros jornalistas, a queda do diploma parecia significar o maior golpe que a profissão poderia sofrer. Em seu momento mais empolgado, o Sergio invocou neste blog a maldade intrínseca dos patrões, que seriam a favor da queda do diploma para ter à sua disposição mão de obra farta e barata — como se “mão de obra farta e barata” não fosse quase sinônimo de “recém-formado”.

Pelos bons argumentos, e pelo fato de ser um excelente jornalista, o Sergio merecia ser ouvido. Poucas pessoas escrevem tão bem sobre relações internacionais, com tanta clareza. Pessoalmente acho que isso se deve ao seu imenso talento pessoal, e não exatamente à sua formação específica em jornalismo; mas não é isso que está em questão aqui. De qualquer forma, é justamente por esse respeito que pergunto: e aí, Sergio Leo? Dois anos depois, o mundo acabou? As redações foram infestadas por padeiros ávidos por assinar seu nome em uma matéria com chamada de capa? Estagiários no seu e nos outros grandes jornais do país — e nos pequenos, também — passaram a ser recrutados nas faculdades de matemática? Os donos de jornal utilizaram os milhões de pedreiros, garis, advogados, médicos e guardas de trânsito que agora podem ser jornalistas para chantagear a classe por salários mais baixos, quase de fome?

Mais que isso: o caos reinante nas redações justifica a volta dessa exigência estranha que nos levaria de volta à companhia de bastiões da imprensa de qualidade como Congo, Costa do Marfim e Honduras — embora agora de maneira democrática, como deve ser?

***

Nos dias seguintes à derrubada do diploma, eu e muitos outros servimos como destinatários involuntários de grandes desabafos de jornalistas indignados com o que consideravam ataque à sua profissão.

Jornalistas de todo o país se manifestaram e apontaram o início do apocalipse, o fim da profissão, o desrespeito absoluto à catiguria, essas coisas. Jornalistas se revoltaram ao serem, como quiseram fazer parecer, comparados a cozinheiros — por sinal um episódio típico do modus operandi de certo segmento da imprensa brasileira, não apenas pelo elitismo e bacharelismo que parece fazê-los pensar que uma profissão é mais importante do que outra, mas pela má-fé demonstrada ao destacar uma frase de seu contexto e fazer o mais baixo sensacionalismo a partir dela.

No final das contas, a mobilização vazia de jornalistas no pós-queda acabou sendo uma prova de miopia e de incapacidade de ver o mundo como ele é — além, é claro, de prova da incapacidade da categoria de se organizar politicamente. E esse é o tipo de coisa que se pode cobrar deles mais de dois anos depois, especialmente às vésperas de uma volta ao antigo status quo.

Mas a pergunta a ser feita agora, na minha opinião, deveria ser outra: como alguém que se propõe a mostrar e explicar para mim o mundo em que vivo pode-se arrogar esse direito se não consegue sequer compreender fatos que lhe afetam diretamente? Com que moral um jornalista vai tentar interpretar um fato para mim se ele mesmo não consegue entender corretamente os sinais que o mundo lhe dá a cada novo dia? Ou, se entende — algo do que duvido, a julgar pelas manifestações vistas há dois anos —, não tem a honestidade necessária para me dizer como as coisas realmente são?

Talvez isso explique o nível geral da imprensa deste país. Não foram jornalistas sem nível universitário que perpetraram a cobertura desmoralizante das eleições do ano passado — o que por si só deveria desqualificar qualquer tentativa de justificativa do diploma como garantia ética, erro que tantos defensores da obrigatoriedade cometem. Agora, um ano depois, cabe também perguntar quem fez mais mal à profissão: Gilmar Mendes e sua alusão a padeiros ou o papel indigno que os principais jornais deste país desempenharam na cobertura da última campanha presidencial?

Eu tenho uma resposta para isso, e acho que ela está certa. No entanto, preferia estar errado. Preferia concordar com tantos jornalistas e achar que a queda do diploma iria destruir a profissão. Porque só a incompetência de gente aboletada na desculpa da falta de preparo teórico poderia explicar o que está acontecendo com a imprensa deste país.

Cigarros, religiões e o mal que eles fazem

Ao contrário do que o Bia disse nos comentários ao post anterior, não é uma questão de discutir se ateus são mais ou menos tolerantes — eu acho que são, pelo menos por enquanto, mas isso não importa aqui. A questão é o teor classista no texto mencionado no post anterior e no que eu considero ser parte bem significativa da abordagem da classe média em relação aos evangélicos.

O Bia disse que os católicos não são tão intrusivos, “ficam lá na igreja deles”. Isso não é totalmente verdade, e me lembrou aquele branco que diz não existir racismo no Brasil porque pretos podem ir para a escola pública como qualquer branco.

Se a Igreja Católica não parece tão intrusiva é por algumas razões. A primeira é que a gente simplesmente não percebe, porque já faz parte do nosso cotidiano. A segunda é porque ela não precisa. Por exemplo, não precisa criar seu próprio canal de televisão (embora faça isso), porque na maior de todas ela exibe a Santa Missa em Seu Lar há décadas. (Alguém já percebeu que se fala muito do bisonho “Fala Que Eu Te Escuto”, mas ninguém questiona uma aberração como a missa televisada?) Além disso, nenhum meio de comunicação de porte tem coragem de se posicionar claramente contra os valores que ela prega, bons ou ruins. Jornais, rádios — essas mídias não precisam pertencer à ICAR nem vender espaços a ela para lhe dar voz.

Mais que qualquer coisa, no entanto, a Igreja Católica se beneficia de um certo tipo de inércia característico de quem exerce poder há tempo demais.

Os filhos de quantos ateus são batizados na boa e velha Santa Madre Igreja, apenas porque não faz diferença para eles atender a esse desejo do pai ou da mãe ou dos avós? Quantos ateus são padrinhos de crianças, e fazem isso apenas porque gostam de seus pais e querem fazer parte dessa homenagem mútua?

Em tudo isso, são os valores católicos que estão em questão. E sua presença é tão grande que não conseguimos mais ver. A Igreja Católica não precisa ser tão obviamente intrusiva porque seus valores estão tão entranhados na sociedade brasileira que isso seria redundante.

Isso não quer dizer que não seja ativa. E incomoda ver as pessoas continuarem a insistir nessa falsa dicotomia: igreja evangélica ruim, igreja católica boazinha. É essa insistência em ver o diabo nas igrejas evangélicas e os anjinhos na Igreja Católica (e olha que nem mesmo estou falando de padres gulosos e bispos coniventes) que na minha opinião denota o viés classista presente em determinado tipo de abordagem.

Alexandre, nos comentários:

(…) São pobres os eleitores da maioria do legislativo – por óbvio – já que vivemos num país de miseráveis. Há muitos “candidato dos pobres” muito embora todos – ou quase todos, incluindo os bispos – pertençam às elites. O que assusta, Rafael, é que a bancada evangélica está usando a influência e o dinheiro que possui para financiar uma política de retrocesso, de preconceito e de cunho evidentemente religioso. Nada além disso.

Eram pobres também os eleitores de Lula em 2006, e boa parte dos de Dilma em 2010. Mas pobre só vota certo quando vota com a gente. Já os ricos que votam em candidatos identificados com a Igreja Católica, bem, desses ninguém lembra. Ou, se lembra, eles são ruins não porque defendem o ideário da Igreja Católica, mas porque pertencem a partidos reacionários.

O Alexandre certamente não acompanha a influência católica sobre as bancadas parlamentares (os links incluídos no post anterior mostram padres fazendo política rasteira e reacionária em seus púlpitos, mas não parecem ser suficientes). Pois a Igreja Católica exerce muito mais poder sobre os parlamentos do que as bancadas evangélicas. Só recentemente as bancadas evangélicas passaram a ter poder. Mas o atraso não precisava delas: o divórcio civil só foi legalizado há pouco mais de 30 anos, o aborto não foi até hoje. As igrejas evangélicas apenas parecem mais conspícuas e conseguem mais propaganda — por interesses de classe ou comerciais, ou porque sua militância é mais ostensiva. E elas assustam a classe média.

E tem o exemplo do cigarro.

Ele foi usado para mostrar que não é exatamente o proselitismo que incomoda, porque eu sabia que alguém viria defender o antitabagismo ao mesmo tempo em que condenaria o antiateísmo ou anticatolicismo ou anti-qualquer coisa. Se é verdade que o Brasil está ficando menos cordial, a responsabilidade não é apenas dos evangélicos. Alexandre e Daniel acharam que o exemplo do cigarro não se aplicava, porque fumar é ruim. E assim demonstraram o básico: que ninguém se incomoda com pressão social, nem vê ameaças à cordialidade nacional, se são as suas idéias empurradas goela abaixo das outras pessoas.

Cigarro faz mal? Faz, claro. Mas religiões também fazem; a diferença é que cigarros fazem mal a indivíduos que fumam por escolha própria, enquanto religiões fazem mal a sociedades inteiras. A questão, no entanto, não é essa. Quando o Alexandre justificou a perseguição social sofrida pelos fumantes — e como ex-fumante eu sei bem do que estou falando — mas continuou a atacar as igrejas neopentecostais, justificou perfeitamente a escolha do exemplo, demonstrando que quando é a sua fé que está no ataque, ninguém se incomoda muito com essa tal de cordialidade. Ou seja: o evangélico não é cordial quando tenta me fazer abraçar a fé dele, algo que ele sinceramente acha que vai me fazer bem, por errado que esteja, porque certamente lhe fez; mas o anti-tabagista tem toda a razão do mundo quando tenta me proibir de fazer algo que afinal só prejudica a mim.

Tanto o Alexandre quanto o Daniel, imbuídos da ideologia de sua classe — cada vez mais laica, por sorte, e chata, por azar –, se apressaram a defender o bullying que fumantes sofrem, e que é basicamente o cerceamento ao exercício de um direito. Eles não entendem que, assim como para o ateu o militante evangélico é intrusivo, desagradável e burro, para o fumante o antitabagista materializa os mesmos adjetivos. E por isso, quando um certo setor da sociedade reclama do efeito deletério da falta de cordialidade do pobre evangélico que não sabe o seu lugar, mas não vê problemas na agressividade e intrusão dos militantes antitabagistas, definitivamente reflete, também, os valores de uma classe social.

Essa gente diferenciada e suas religiões nada cordiais

Em política costuma-se dizer que evangélicos podem eleger bancadas fortes nos parlamentos, mas não conseguem chegar ao executivo; porque ainda são minoria, e porque na hora H o resto da sociedade — católica, atéia, xintoísta — se une contra eles. Marcelo Crivella deve ter algo a dizer sobre isso.

Lembro disso porque me incomoda ver alguém falando em “vida dura de ateus”, como neste texto da Eliane Brum republicado pelo Milton há alguns dias. Alguém — não lembro quem nem onde, infelizmente; mas um comentário do Matheus Lopes a esse post no Milton diz basicamente a mesma coisa, e este post do Gravataí Merengue deixa tudo mais claro — já disse que nunca viu um ateu ser perseguido ou espancado por ser ateu. Eu também não vi. Ateus não andam por aí com estrelas amarelas pregadas na roupa. Além disso, ateísmo é praticamente a outra religião da classe média brasileira, muitas vezes disfarçado sob agnosticismo.

Eu gostaria apenas que todas as mulheres que apanham de seus maridos e não podem fazer nada por causa de suas famílias, os negros que nascem pobres e estão condenados a morrerem pobres, e os homossexuais que apanham e morrem apenas porque algum enrustido tem medo do reflexo de si próprio que vê neles tivessem uma vida igualmente dura. Quem entrou na justiça contra o direito de alguém ser ateu, assim como entram contra as cotas, sociais ou raciais? Quantos ateus andam apanhando de uma hipotética Brigada São Tomás de Torquemada, como gays em todo o país estão apanhando?

Isso é mimimi de classe média que está desacostumada ao contraditório, ainda que medíocre, porque ficou fácil defender as idéias de sempre.

Esse, no entanto, não é o ponto principal. O que me impressionou de verdade no texto da Eliane Brum foi o quanto há de preconceito de classe nele. Porque o problema com os evangélicos não é propriamente religioso. É social. O crescimento dos evangélicos assusta em grande parte porque representa a ascensão das classes mais baixas, e cada vez mais o desconforto da antiga classe média é impressionante. Aquela gente feia e brega ocupando sua poltrona nos aviões, lotando os shoppings no dia posterior ao pagamento, causando com seus carros — ônibus não devia ser suficiente para eles? — congestionamentos cada vez maiores; tudo isso tem gerado na velha classe média uma sensação de desconforto e de insatisfação que muitas vezes parece não ter causa definida.

A impressão que o texto me deixou foi essa, a de que o neopentecostalismo incomoda mesmo porque é a religião pouco sofisticada de gente diferenciada, que agora resolve se sentir superior à classe média.

Afinal de contas, a vida naquele táxi foi dura por quê? Porque o sujeito tentou fazer proselitismo? Porque ele demonstrou ter uma certa “pena” por ela ser atéia? — a “superioridade” que ela percebeu em sua atitude a incomodou o bastante para ser notada no texto.

Ele não bateu na jornalista, não a xingou, não a obrigou a fazer nada. Riu. Discutiu, expôs suas idéias, por pobres que sejam. Pelo que li, também posso dizer que o taxista foi respeitoso. Tentou ser simpático e a convidou para se juntar a ele na tal Igreja. Grande parte do que a jornalista inferiu (“O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida”) exsuda um paternalismo e um senso de superioridade tão grandes (além do fato de que elogio em boca própria é sempre estranho) que é difícil não ver, nisso, o mais básico preconceito de classe. É quase como se o taxista, além de ser burro por ser evangélico, tivesse esquecido qual o seu lugar ao se achar melhor que uma atéia de classe média.

Crenças, quaisquer que sejam elas, fazem isso com as pessoas. Evangélicos no entanto não estão sozinhos nisso; ateus também costumam se sentir superiores aos pobres supersticiosos que ainda acreditam numa noção de sobrenatural criada na pré-história, assim como uma certa elite cultural se julga superior a quem gosta de Calypso — que por sua vez despreza essa elite que “não sabe se divertir”.

É aí que entra o viés de classe, talvez não percebido pela jornalista. Um preconceito que fica ainda mais claro quando ela fala na tolerância da Igreja Católica ao ateísmo.

Associar as igrejas evangélicas à intolerância enquanto livra a cara da ICAR só pode ser brincadeira. Primeiro, porque em vários campos as igrejas neopentecostais são mais tolerantes que a igreja do papa Bento — costumam ser mais liberais em termos de costumes, por exemplo, aceitando divórcios e uso de preservativos. Segundo, porque basta olhar para as últimas eleições para ver que essa tolerância católica (procure no YouTube por “Dilma e aborto) não tem absolutamente nada de proverbial.

Uma coisa deve ficar bem clara: ao contrário do que diz o texto, o catolicismo não mantém, nunca manteve relação de tolerância com o ateísmo; aliás, tudo o que essas igrejas neopentecostais fazem é copiar procedimentos de evangelização dos primeiros tempos do cristianismo. Quem mantém relação de tolerância são os católicos. Não porque são católicos, mas porque são de classe média, educados em um meio sociocultural naturalmente tolerante, a não ser quando se sente ameaçado pela classe C. Na verdade — e isso os ateus que reclamam de perseguição costumam esquecer — toleram o ateísmo muito mais do que toleram outras religiões associadas às classes mais baixas, como o candomblé e, agora, o protestantismo. Ateísmo é religião de rico, que pode pensar e chegar a conclusões racionais, e essas coisas de rico são vistas com bons olhos pela classe média.

A condescendência com a Igreja Católica, clara no texto, é um dos grandes sintomas desse preconceito de classe disfarçado. Ela não incomoda porque, afinal de contas, faz parte do status quo. Não importa o quanto combata o direito ao aborto, o uso de camisinha, não importa que faça campanha para candidatos de direita — ela é tolerante porque é a religião de uma classe média pouco religiosa, e por isso não representa mal nenhum; afinal, essa classe média pode fazer aborto quando quiser.

Em vez de se alarmar com a “inevitável” destruição do brazilian way of life por essa horda de pobres evangélicos e evangelizadores, essa classe média iluminada devia se perguntar por que, afinal, as igrejas neopentecostais têm crescido tanto. Que respostas elas oferecem ao povo. O fato é que essas igrejas melhoram de verdade a vida dos seus fiéis. Não por causa de uma eventual noção de Deus, mas por causa do apoio de grupo que podem dar em um tempo de desagregação social. Talvez elas devolvam ao indivíduo um senso de propósito e senso de tribo, algo cada vez mais raro na sociedade da informação. Não sei. O que sei é que como antes se reclamava dos pretos macumbeiros, dos ebós no meio das encruzilhadas, e como os franceses hoje reclamam dos muçulmanos com suas burcas e véus, a classe média brasileira se apavora com o crescimento dessa religião de gente diferenciada.

***

Se em vez de ateísmo o tema em questão fosse tabagismo, por exemplo, o diálogo seria bem parecido:

– Esse cigarro no seu bolso… Você fuma?
– Fumo.
– Deus me livre! Para de fumar.
– Não, eu não quero. Eu gosto de fumar.
– Deus me livre!
– Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.
– (riso nervoso).
– Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por gostar de fumar?
– Porque cigarro mata.
– E daí?
– A gente precisa viver com qualidade de vida. Se você não parar de fumar, não vai ter qualidade de vida.
– Mas eu não quero isso, eu quero fumar.
– Deus me livre!
– Eu não acredito nisso de qualidade de vida, porque qualidade de vida significa ficar contente como fico ao acender um cigarro. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.
– Acho que você é maratonista.
– Não, já disse a você. Sou fumante.
– É que o câncer não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.
– Olha, sinceramente, acho difícil que o câncer vá me pegar. É mais fácil o enfisema. Mas sabe o que acho curioso? Que eu não queira fazer você fumar, mas você queira acabar com o meu direito de fumar. Não acho que você seja pior do que eu por ser anti-tabagista, mas você parece achar que é melhor do que eu porque não fuma. Não era Jesus que pregava a tolerância?
– É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto…

Milhares de fumantes em todo o país ouvem isso todos os dias. Nem por isso saem por aí dizendo que “o anti-tabagismo está destruindo a cordialidade brasileira”.

Thor Heyerdahl

A revista Náutica de setembro passado trouxe uma matéria sobre Thor Heyerdahl e sua famosa expedição Kon Tiki. A revista dá a entender que a teoria que Heyerdahl defendia era válida e provável. Aí lembrei de uma National Geographic antiga, de janeiro de 1971, que traz na capa um relato da viagem do Ra II, também construiído por Heyerdahl.

A viagem do Ra II foi feita para que Heyerdahl tentasse provar uma das teorias curiosas que costumava elaborar: como egípcios e mesoamericanos construíram pirâmides, deveria ter havido algum contato entre eles antes da descoberta da América por Colombo. Para provar essa teoria Heyerdahl construiu um barco de junco e viajou até a América. A primeira não deu certo e ele afundou a 600 milhas náuticas de Barbados. Construiu um novo barco, o Ra II, e aos trancos e barrancos conseguiu chegar à ilha, com o barco fazendo água e meio submerso.

Com isso, Heyerdahl mostrou que a sua teoria era possível.

Mas ele já era famoso muito antes disso. No final dos anos 40, tentou provar que a Polinésia foi povoada pelos sul-americanos. Partiu do princípio de que ventos e correntes marítimas favoráveis, no sentido leste-oeste, tornavam a sua teoria mais plausível do que a ideia normalmente aceita, de que as ilhas do Pacífico Sul — a última região do globo povoada pelo homem, há coisa de pouco mais de mil anos — foram povoadas no sentido oeste-leste. Apontou uma série de indícios linguísticos para embasar sua teoria. Precisava provar também que era possível à tecnologia dos nativos incas da época navegar em direção ao oeste através do maior oceano do mundo. Com a expedição Kon-Tiki, construiu uma balsa para provar sua teoria. Depois de pouco mais de 3 meses no mar acabou dando nas ilhas Tuamotu.

Assim como provaria mais tarde com o Ra II, ele mostrou que era possível, disso não há dúvida. O problema é que nem tudo que é possível é provável. Heyerdahl esqueceu do óbvio: toda a história da exploração por mar se dá no contravento, ou na certeza de sua existência. Não há outra maneira possível.

A explicação é muito simples: velejar contra o vento — especialmente antes da invenção da vela latina, aquela triangular — era a única garantia que qualquer explorador tinha de que conseguiria voltar, caso sua busca não desse em nada. A viagem mais difícil seria a de ida; e quando a comida e água começassem a terminar, era só dar meia-volta que chegariam rapidamente em casa, dentro de um período de tempo facilmente demarcável — e muito menor que a viagem de ida.

Resumindo, um explorador só saía mar afora tendo a certeza da volta.

Colombo só velejou rumo à América, achando que ia encontrar a China, porque já conhecia o regime de ventos do Atlântico Norte, com ventos de leste à altura das Canárias e de oeste um pouco mais acima. Cabral só chegou ao Brasil porque tentava refinar a descoberta de Vasco da Gama de que, afastando-se da costa da África, havia a garantia de ventos melhores — ele apenas afastou-se demais. Os vikings e os irlandeses só chegaram à Islândia, à Groenlândia e à Terra Nova porque conheciam os ventos e a geografia da região e sabiam quais seriam as condições de volta. Um dos tantos motivos que impediram que os chineses, muito mais avançados em navegação do que os europeus até o século XVI, chegassem à América foi a dependência confortável do regime de monções do Índico, que garantiam vento de popa na ida e na volta em um espaço perfeitamente delimitado e que lhes trazia lucros suficientes no comércio.

Nenhum navegador, por melhor que fosse, sairia Pacífico afora a favor do vento, porque isso seria garantia de morte certa. Esse era o principal elemento lógico que tornava a teoria de Heyerdahl fantasiosa. Se a matemática favorecia os sul-americanos, já que a ilha de Páscoa é mais próxima do continente, esses outros fatores se revelavam muito mais importantes.

Ou seja: era possível chegar à ilha de Páscoa com a tecnologia disponível na época. O problema era ter a vontade e a falta de juízo para fazer isso. Heyerdahl só fez essa viagem porque sabia que havia terra a oeste. Difícil seria fazer uma bobagem dessas sem saber absolutamente nada além da certeza de que seria extremamente difícil voltar.

Essa é a principal razão pela qual americanos em geral não tinham absolutamente nenhuma tradição de navegação. A terra e a navegação costeira lhes oferecia tudo de que precisavam; e o regime de ventos e correntes marítimas como a do Brasil não incentivavam muito esse tipo de exploração. Era exatamente o contrário do que acontecia com os polinésios, com pouca terra, condições favoráveis e a mais fantástica habilidade marinheira de toda a história da humanidade.

Foi contra isso que Heyerdahl se “insurgiu”. Quando se defende a sua teoria boba, a única razão é o que parece ser uma certa arrogância europeia, ainda que extremamente sutil. Parece ser um raciocínio curioso: como é o que os incas, maias e astecas chegaram a civilizações tão imponentes e não se aventuraram no mar? É mais ou menos como se perguntar por que portugueses e espanhóis esperaram até o século XV para atender ao que parecia ser a sua vocação natural, e transformaram a Europa de um continente vagabundo e atrasado na civilização que dominaria o mundo nos séculos seguintes. Heyerdahl parecia acreditar que grandes civilizações como a europeia necessariamente dariam grandes exploradores. A tese de Heyerdahl era burra e arrogante — a começar pela idéia de que a Europa era “grande” naquele momento, o que não condiz com o desprezo com os orientais receberam um Vasco da Gama andrajoso, sujo e mendicante –, e é impressionante como ainda hoje tantas pessoas, provavelmente entusiasmadas com a aventura em si do Kon Tiki, digna de todos os elogios possíveis, celebram essa teoria.

A página em português da Wikipedia, de uma mediocridade assombrosa, não contesta a tese de Heyerdahl. A versão em inglês é mais completa; lembra que a comunidade científica nunca levou a teoria do norueguês muito a sério, e que pesquisas de DNA recentes provaram que a teoria de Heyerdahl é só uma grande bobagem bonitinha.

O triste é precisar de exames tecnologicamente sofisticados para provar que uma bobagem é só uma bobagem.

A vingança dos clones

E-mail recebido de repente, não mais que de repente:

A. Gusmão
to rafael.galvao, me

Boa tarde Rafael.
Favor fazer o depósito referente a 23/12/2010 no valor de R$ 950,00.
Banco itau
Ag.: XXXX (fica em Copacabana)
Cc.: XXXXX

Até onde sei não tenho nada alugado no Rio, e tampouco conheço algum Gusmão. Isso, no entanto, obviamente não podia ser empecilho para uma resposta adequada e respeitosa, porque credores merecem sempre alguma explicação. Pelo menos os dos outros, porque aos meus já estou acostumado e não ligo mais.

Caro A.,

Infelizmente, não posso pagar agora.

Para não parecer que deixo de pagar por má vontade, coisa que minha saudosa mãe ensinou a nunca fazer, deixo abaixo uma rápida explicação das tribulações por que tenho passado nos últimos meses.

Minha mãe faleceu e minha mulher decidiu se separar de mim, levando consigo muitos dos bens que amealhamos juntos. A esta altura, ela está se divertindo com o meu melhor amigo, ou melhor, ex-amigo. O mesmo para o qual emprestei uma soma considerável há alguns meses, e que, se não me pagou até agora, dificilmente pagará.

Além disso, estou de aviso prévio no emprego; meu hábito de beber incomodou a um dos chefes, que tem me perseguido desde que entrou na empresa. Como medida de precaução, subloquei um quarto para uma amiga que, desde que a Help fechou, também tem passado por sérias dificuldades. Os vizinhos têm estranhado o constante entra e sai de homens do meu apartamento — já que, como o senhor sabe, eu sempre fui um homem caseiro —, mas essa medida me ajudará a pagar o aluguel eventualmente.

Por tudo isso, peço a sua compreensão no sentido de me dar um prazo para regularizar minha dívida.

Obrigado.

Eu até começo a aceitar que tenha clones poetas, carnavalescos e quetais mundo afora. Mas caloteiro, não. Aí já é sacanagem.

***

Mas não terminou por aí: Nova carta para seu Gusmão.

Sobre o debate de ontem

O debate de ontem entre os candidatos à presidência me incomodou. E não foi apenas a dificuldade pessoal de Dilma em elaborar um discurso persuasivo, sedutor, chegando ao ponto de parecer menos simpática que, último entre todos, Serra.

A ênfase excessiva na privatização como está sendo feita, a não ser que as pesquisas me digam que estou errado, me parece um erro. 2010 não é 2006. Talvez a demonização de Serra como privatista, de maneira genérica, não seja tão eficiente hoje quanto a perspectiva de que tudo aquilo que os brasileiros conquistaram no governo Lula seja perdido com o modo de Serra governar.

(Um comercial de Serra veiculado naquele momento faz ataques pessoais a Dilma, colocando em dúvida a sua capacidade de gerenciar crises. Certamente é um comercial mais eficiente, mesmo mentindo, mesmo apelando para a baixaria, do que comerciais conceituais condenando a privatização.)

Por exemplo, Dilma precisa aproveitar as oportunidades que aparecerem para lembrar que “eles” passaram oito anos dizendo que o Bolsa Família não prestava, que era bolsa-esmola. Eles nunca entenderam o que o Bolsa Família representa para quem agora sabe que no dia certo vai ter o dinheiro para comprar pão e leite para seus filhos. Ela precisa olhar para a câmera e falar para cada brasileiro: “Você lembra: eles diziam que o Bolsa Família era salário para vagabundo, para gente que não queria trabalhar. Agora, só para se eleger, dizem que vão até criar o décimo-terceiro do Bolsa Família. Será que eles acham que alguém acredita nisso?”

Além disso, Dilma parece ter uma tendência a ficar no varejo das coisas. Tem domínio dos números; mas números são importantes, mesmo, quando fornecem a base para a construção de um sistema de valores que represente a importância do governo de que ela foi parte fundamental.

Ela acaba se comportando mais como a excelente administradora que é, a mulher que pode fazer o Brasil continuar a crescer, do que uma candidata a um cargo político eleitoral. Esquece de contextualizar o que representa o governo Lula, esquece de trabalhar valores como a satisfação dos brasileiros com as suas vidas e a esperança no futuro para ficar em dados burocráticos. Pelo menos nesse debate, faltou a ela a capacidade retórica de construir um raciocínio político que extrapolasse os dados puros e deixasse claro que ela é a única pessoa que pode dar continuidade a um governo que é muito mais do que as obras que realizou. Dilma não está conseguindo captar e comunicar os valores do governo Lula.

Quando Serra insistiu nos recursos do FAT, dizendo que havia emprego de sobra e trabalhador qualificado de menos, ela primeiro deveria aproveitar e lembrar que isso é um grande exemplo do crescimento do país durante o governo Lula; no tempo do governo dele e de FHC era diferente, faltava emprego, o Brasil não crescia, como cresce hoje a 7,5% ao ano. E então ela engatava a segunda e explicava o que significa o número de escolas técnicas construídas. Mostrava que o governo ampliou o acesso ao ensino profissionalizante, explicava a filosofia por trás disso. Deveria mostrar que, mesmo mantendo a qualificação dos trabalhadores, o Governo Lula está oferecendo chances aos jovens que nunca foram oferecidas.

Quando Serra mencionou estradas — embora eu tenha a impressão de que ali havia uma pegadinha, que não sei qual é — ela deveria ter lembrado, antes de mais nada, a herança maldita. Deveria lembrar que ela e Lula — não ela, não Lula: ela e Lula –, ao chegar ao governo, encontraram as estradas destruídas por FHC. Devia falar diretamente ao telespectador: você lembra como era, sabe como era difícil. Serra e Alckmin resolveram isso privatizando estradas, vendendo o patrimônio do povo paulista, e criando pedágios e mais pedágios nas rodovias de São Paulo; é assim que eles fazem o cidadão pagar por um serviço que deveria ser público, e hoje um cidadão tem que pagar sei lá quantos reais — eu não sei o valor; ela tem obrigação de saber — para ir do Rio a São Paulo. Agora, para você ver a diferença entre o nosso governo e o deles: nós também encontramos as rodovias abandonadas no Sul, no Nordeste. Mas em vez de privatizar, nós investimos na recuperação e ampliação das estradas em todo o país. Neste exato momento, enquanto o Serra cobra pedágio, nós estamos duplicando rodovias em Sergipe, em X, em Y. Ao todo, investimos três vezes mais do que o Governo de Serra e FHC. É claro que não pudemos fazer tudo o que era necessário. Ainda falta fazer muito, é claro — segue lista de obras principais, incluindo as do Mato Grosso. E termina: é isso que está em jogo agora. O eleitor vai decidir entre dois modos bem diferentes de governar: se quer as estradas pelas quais passam todos os dias privatizadas, cobrando pedágios absurdos e extorsivos, ou vai eleger um governo que investe o dinheiro público em obras importantes para o futuro e para mais brasileiros.

Dilma domina os números. Mas precisa dominar, acima de tudo, os conceitos. A discussão sobre números interessa a Serra, porque é ele quem precisa desconstruir a obra do governo Lula; Dilma não precisa reafirmá-la de maneira absoluta até porque os 80% de aprovação popular do governo Lula não se devem aos seus belos olhos. Em vez disso, ela precisa retomar o seu significado. Dilma precisa, acima de tudo, evocar a mágica de uma obra sem precedentes na história deste país.