Sobre livros

Parei de ler o conto de Tchekov porque naturalmente lembrei de John Cheever, e consequentemente lembrei de Dorothy Parker — mas agora a lógica é só minha porque descobri um e outra na mesma época. Coloquei o livro de lado, o cinzeiro na barriga e fiquei olhando para as vigas e ripas do telhado que tive que fazer e refazer porque primeiro reutilizei as telhas antigas da casa velha e elas eram ruins. Fidel está deitado ao pé da cama, Ceci sempre agoniada entra e sai do quarto, esperando acordar meu sobrinho que dorme no quarto ao lado.

No que penso é simples, penso nisso de vez em quando.

Tenho a impressão de que as pessoas estão lendo de maneira diferente. Talvez seja a minha ancianidade, a minha impaciência, ou a minha intolerância que não para de crescer, e então não vejo mais o que está à minha volta; mas leitores como os que eu via, que se aproximavam de livros como quem encontra fortuitamente um desconhecido na rua, esses eu não vejo mesmo. Vejo gente que descobriu um autor qualquer, normalmente menor, na universidade, e fala dele como velhinhos falam de Joyce ou Mann, ou um grupo de autores, quase sempre contemporâneos ou defuntos ainda frescos, porque eles são mais palatáveis a uma cultura imediatista, excessivamente abundante, uma corrida de ratos em que já não se sabe qual o prêmio, mas se sabe que não dá para deixar de correr.

Nas internets não vejo muitas conversas sobre literatura que não façam parte de guetos universitários, onde meninos são guiados pelos caminhos de escritores que interessam aos seus professores e seus artigos publicados em revistas que ninguém lê; parecer haver mesmo uma competição cujas regras só eles conhecem, uma busca por autores que eles conheceram antes que o resto daquele seu pequeno mundo — “antes que fosse modinha”, como dizem em seu dialeto —, que possam lhe dar uma certa primazia no conhecimento e que reflete uma certa obsessão permanente pelo novo que vai lhe fazer diferente e talvez melhor, como se um livro fosse um vestido de costureiro chique.

Vejo mais frequentemente conversas sobre livros, mediadas pelo consumo e pelo mercado, sobre edições bonitas com todos aqueles truques supérfluos que as editoras usam para tornar uma sequência de folhas de papel sujas de tinta em um objeto mais desejável peloseus  valor como objeto do que pelas palavras e frases que formam, como letras grandes e papel com gramatura maior e capas duras, sempre mais respeitáveis que brochuras.

Aí eu lembro que literatura também é moda. Nos anos 80, uma geração americanófila exercia uma influência enorme; isso mudou, se tornou mais diverso, paradoxalmente mais rico e menor; mas ainda assim é moda. A nova moda agora são autoras negras, parece. Amanhã talvez sejam índios, eu não sei.

Lembro também que houve um tempo em que havia uma certa unidade em torno de livros, que a internet matou. Graças a um ecossistema que incluía jornais e revistas, essas coisas que ninguém mais compra, alguns livros extrapolavam os limites do mercado, vendiam tiragens bem maiores que as três mil por edição de praxe. E esses livros ajudavam a criar elos em comum entre as pessoas. De memória, é fácil lembrar de tantos: “Vastas Emoções, Pensamentos Imperfeitos”, “Estorvo” numa resenha magnífica de Roberto da Matta na Veja (ou será que minha memória me trai mais uma vez?), “Perestroika”, “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”, “Personas Sexuais” de uma Camille Paglia que o identitarismo enxotou da moda. Tudo isso acabou. Alguns livros, por suas qualidades, conseguem superar seus guetos, mas ao mesmo tempo porque se adequam a uma percepção cada vez mais “nidificada” do mundo. “Torto Arado” talvez seja o melhor exemplo: se destaca ainda mais por outro elemento que não suas qualidades óbvias, mas porque está perfeitamente inserido naquilo que a nova elite intelectual quer ouvir e permite dizer.

Por isso penso no meu sobrinho que Ceci está esperando acordar, que parece saber tantas coisas, muito mais do que outros meninos de sua idade, mas que no entanto não parece ler tanto; e então fico com a impressão de que esse conhecimento vem pelo YouTube, ou de alguma outra rede social, e a maneira como se relacionam com esse conhecimento é diferente, e a própria natureza desse conhecimento é diferente. É um mundo diferente o que se forma à minha frente. Então talvez seja por isso que não vejo as pessoas falando de Cheever, nem ostentando o sorriso amargo que um conto de Dorothy Parker deixa na cara das pessoas.

Ontem matei uma aranha marrom antes que a curiosidade de Ceci a fizesse ser picada; e lembrei que se contasse isso nas internets algum desses moços ou moças que não conseguem mais viver sem tentar impingir aos outros suas boas intenções telúricas iria dizer que não se deve matar aranhas, porque elas fazem parte do ecossistema e são criaturas de Deus iguais em direitos a mim e superiores ao mendigo sem as duas pernas, porque comem isso e aquilo, sei lá que diabo elas comem.

Eu mato, mato, mato com gosto. Mais gosto, só em matar lacraia, porque eu já fui picado por uma e o seu veneno, em vez de me transformar no Homem-Lacraia porque eu não fui criado por Stan Lee, fez de mim o Psicopata do Piolho de Cobra, um vingativo raivoso que começa a tremer de ódio e a espumar pela boca quando vê uma lacraia.

Mas a conversa era sobre livros, acho. Ou não, não sei mais. Retomi o conto de Tchekov, que é o melhor que eu podia fazer.

A poesia das causas siderais perdidas

Existe um curso online de ufologia. Eles dão certificado e tudo. E você pode fazer mesmo que tenha sido abduzido, já que não é presencial.

Se eu fosse ainda o Rafael de 15 anos atrás estaria espantado com a estupidez do mundo, agora arreganhada sem nenhuma vergonha diante de meus olhos cansados. Mas nesses últimos anos passamos por tanta coisa. As manifestações de junho de 2013, a histeria canalha da Lava Jato, o impeachment de Dilma, Michel Temer, a ascensão da extrema direita, a eleição de Jair Bolsonaro, os quatro anos de tragédia e agonia, a pandemia de COVID. Passamos pelas pessoas que rezam para pneus e pela Cagona do 8 de Janeiro, a velha traficante que transformou o mero defecar em ato de terrorismo. Passamos pela transformação da esquerda em uma auxiliar boazinha de um capitalismo cada vez mais exigente, preocupada em me empurrar goela abaixo a ideia de que se eu falar “todes” as mazelas do mundo estarão resolvidas. Passamos pela consolidação da cultura do cancelamento, pela universalização da estupidez através das redes sociais.

Diante de tudo isso, a existência de ufólogos é quase um refresco, a sensação reconfortante de que a estupidez, afinal, não é de hoje e algumas coisas são permanentes neste mundo baumaniano. Para mim, ao menos, significa um tipo de maluquice inofensiva e quase benevolente, o sujeito que chamamos de excêntrico porque é o tipo de doidinho que não faz mal a ninguém, nem mesmo a ele. É uma variedade einsteiniana do astrólogo.

Mais que isso, me surpreende a tenacidade e a resiliência desse pessoal. Agora que todos têm uma câmera na mão, parece que ninguém mais tem uma ideia na cabeça.

É o grande paradoxo sideral destes tempos: há câmeras em tudo quanto é bolso, e mesmo assim ninguém agora tira foto de um disco voador. A chance que ufólogos tinham de provar que estavam certos, que os idiotas éramos os céticos, até agora não foi aproveitada.

Ninguém mais é abduzido, ninguém mais dá passeios pelo lado escuro da lua — nem mesmo a melhor das promessas feitas por esses alienígenas safadinhos, a ET verdinha e gostosa dos peitão que vinha fazer um filho para levar lá para a constelação da Ursa Polar, ah, nem mesmo isso parece existir mais. Os ETs broxaram, e nós também.

Por tudo isso é de se respeitar, sim, a insistência em acreditar no inacreditável.

E assim como admiro os golpes de Afonso Coelho, assim como um dia ainda compro um busto de Victor Lustig, o gênio que vendeu a Torre Eiffel como sucata, preciso prestar meus respeitos ao malandro que criou esse curso.

Porque de uns tempos para cá dei de pensar que deixar de acreditar em OVNIs é, no fim das coisas, uma coisa ruim, ruim e triste. Porque fazer isso seria como deixar a imaginação para os roteiristas de filmes de ficção científica, que seguem sempre a mesma inspiração, as mesmas fórmulas. Acreditar em OVNIs significa um resquício de fé no improvável, de teimosia em acreditar no que não existe; é, e isso é talvez o mais importante, uma forma mais pura de fé que a dos religiosos; ufólogos não esperam nada de ruim dos ETs, esperam paz e progresso e levá-los ao nosso líder — e não fazem mal a ninguém, nem mesmo a eles, ao contrário de quem acredita que seu Deus que os faz matar em nome do amor.

Borges dizia, e eu sempre repito, que a um cavalheiro só interessam as causas perdidas. Nenhuma causa é mais perdida do que essa, e isso a justifica e engrandece. E é assim, transformando a estupidez no mais próximo que consigo chegar da poesia, que a gente segue levando a vida.

Não vivemos mais no mundo em que nascemos

O título deste post é um comentário do Thiago ao post de ontem,

É algo em que sempre acreditei. E talvez tivesse até alguma razão, como Heráclito tinha ao colocar o pé no rio. Mas eu estava enganado, porque só agora a frase se torna realmente verdadeira.

Eu era criança em 1980. Via filmes dos anos 50 ou 60 e achava que vivia mesmo num mundo completamente diferente, e não percebia que o que era essencial no mundo não tinha mudado em nada. Talvez justamente porque tanta coisa permanecia inalterada, era mais fácil ver o que tinha se transformado — os carros eram diferentes, as roupas eram diferentes — e dar a isso uma importância maior do que realmente tinha, como se o bolo de chocolate virasse bolo de morango porque a cobertura mudou.

Em 1960 uma criança — e é isso o que mais me importa aqui, a infância — ia para a escola sentar com lápis e papel para aprender o que professores escreviam em quadros-negros, ia brincar com os amigos na rua. Via TV, os mesmos desenhos e seriados e novelas que seus vizinhos assistiam, os pais liam os jornais e revistas que seus vizinhos liam, ia-se para o cinema ver o filme que todos iam ver.

30 anos depois, a vida continuava exatamente a mesma. A TV tinha ganhado cor, as modas tinham mudado — mas a essência das coisas, não. Os elementos fundamentais da vida cotidiana continuavam os mesmos. Em 1990 os filhos daquelas crianças de 1960 continuavam usando lápis e papel na escola, aprendiam com livros e quadros-negros, à tarde iam para a rua brincar, ou ver TV, e à noite estavam diante da TV, com jornais e revistas em volta. O mundo era o mesmo, só mudava a maquiagem e uma roupinha nova. Mas a gente pensava que tinha mudado tanto.

Agora a gente olha 30 para trás e percebe que só agora a frase se torna verdadeira. Internet e smartphones mudaram a maneira como as pessoas se relacionam, mediam mesmo a sua interação com o mundo. As pessoas sabem menos porque, paradoxalmente, o mundo lhes oferece mais e mais. Amizades e amores se formam à distância. Encontros são mais raros, e considerados cada vez mais perigosos. Vidas encapsuladas se tornam cada vez plenas na percepção de quem as vive. Essa é uma mudança real.

(Me permito achar isso tão estranho. Em 1980 eu tinha 9 anos e saía da Euclydes da Cunha, onde morava, pegava um ônibus ao lado do antigo Campo da Graça e descia em frente ao cine Guarani, na praça Castro Alves. Assistia ao filme, atravessava a rua e pegava o ônibus que me deixaria no mesmo lugar. No ano seguinte, talvez me achando adulto aos 10, não era incomum ir ao centro da cidade a pé — Rua da Graça, Corredor da Vitória, Campo Grande, Avenida Sete, rua Chile, Praça da Sé onde ainda existia algumas livrarias —, mas era muito mais comum ir até a Barra de onde eu nunca deveria ter saído, brincar com amigos no meu pequeno feudo que ia do final da João Pondé até a Alameda da Barra, hoje mais conhecida como rua Miguel Calmon. Não sei de criança de classe média que faça algo parecido hoje.)

Havia uma certa unidade de pensamento que a internet extinguiu, e as pessoas, fossem quem fossem, tinham mais coisas em comum.

O fim da TV aberta é um símbolo importante disso, e por isso o impacto simbólico da morte do patrão do Lombardi. Por ser linear e analógica, durante algumas décadas, ela ajudou a unificar o país e definir uma base social e cultural comum. Eu nunca assisti a Silvio Santos ou Faustão ou Hebe, mas nunca tive dúvidas de que, como outros marcos da TV como o Jornal Nacional, o Fantástico, as telenovelas, eles representavam essa permanência e essa unidade. E é por isso que sua morte — e o fim do programa do Roberto — dá a impressão de ser a pá de cal num mundo que vem morrendo há muito tempo.

Sempre me incomodei com aquele pessoal que vive dizendo que “no meu tempo era melhor”, porque essa lenga-lenga é repetida a cada geração. Não era o seu tempo que era melhor, você é que era. Agora, pela primeira vez vejo diferenças que me incomodam. Ao contrário de gente que publica livros dizendo que a burrice se alastra — impressão que, a propósito, tenho a cada olhada nas redes sociais —, não acho que as novas gerações estejam menos inteligentes. Mas tenho a sensação cada vez mais incômoda de que estão mais fechadas, mais isoladas, sem perceber a grande maravilha que é a diversidade de informações, de conhecimentos, de opinião, de gostos mundo afora. A internet é uma das responsáveis por isso: o mundo parece ter diminuído demais para tanta gente.

Em “O Incrível Homem Que Encolheu”, um pequeno grande filme de 1957, encolhemos porque descobríamos a nossa pequenez diante de um mundo cada vez maior que nós mesmos tínhamos criado; agora, encolhemos porque escolhemos fazer com que o mundo encolha conosco.

É por isso que ver a frase do Thiago agora me fez pensar. 30 anos atrás, eu pensava que isso já era verdade, e embora iludido achava isso uma coisa boa, boa de verdade. Perceber que agora isso se torna verdade não é apenas melancólico demais: é assustador.

Boa é a vida, mas melhor é o vinho

Dia desses o Hermenauta citou um enólogo que disse que nenhum vinho vale mais de 100 dólares. Na hora discordei rapidamente e deixei para lá, porque era tarde e ninguém tem a obrigação de aturar minhas diatribes.

Mas fiquei pensando nisso. O tal enólogo certamente não concorda com Fernando Pessoa, de quem furtei o título deste post. E cheguei à conclusão de que dizer isso é o mesmo que afirmar que nenhum carro vale mais que um Corolla.

Aos fatos: não existem mais carros ruins. Até aqueles chineses que se desmanchavam em movimento hoje conquistam mercado com um nível de qualidade cada vez maior. Mesmo o carro mais barato vendido no Brasil tem confiabilidade, conforto e segurança impensáveis 50 anos atrás.

Assim, o Corolla deveria ser um carro suficiente para qualquer pessoa — ou pelo menos é o que me dizem, porque nunca tive um e andei em muito poucos. Confiável, seguro, equipado com mais que o básico para o seu conforto. Está aí há décadas, e deve haver uma razão para isso.

Mas algumas pessoas precisam carregar carga, precisam de tração 4×4. Outras não abrem mãos das possibilidades de velocidade um Porsche oferece. Algumas pessoas precisam, ou acham que precisam, de mais espaço. Tem gente que faz de um carro uma afirmação ética, e se aboleta num Tesla. Ou faz questão daquela BMW que abaixa para você entrar nela, mais ou menos como uma jega do avô de um amigo já ia abaixando os quartos quando via o dono se aproximar.

No caso dos vinhos, a verdade é que quase todo vinho em torno dos 50 reais no Brasil é ao menos correto, sem grandes defeitos. Geralmente vale o que custa. A questão é que ele não vai oferecer a complexidade de cheiros e gostos que um vinho de 100 dólares — mais ou menos mil reais no Brasil — pode oferecer. Um vinho como o Marques de Casa Concha custa mais ou menos 25 dólares e, ele também, é suficiente para a vontade de beber um bom vinho seja plenamente saciada.

Se o tal enólogo dissesse que um vinho de 100 bidens é mais que suficiente para qualquer pessoa, eu assinaria embaixo. Diria que pode até ser um desperdício para quem gosta mesmo é de um Pérgola. Objetivamente, ninguém precisa beber um vinho desse preço, mas qualquer pessoa acostumada a beber vinho vai perceber a diferença e se sentir mais recompensada por isso.

Mas há possibilidades num vinho que só a fabricação mais elaborada e o tempo podem oferecer. E isso custa dinheiro. Claro, não é para todo mundo — mas um Porsche também não é, e não apenas por causa do preço. É a isso que se chama valor. Eu sempre disse que jamais compraria o Romanée-Conti que vi uma vez por meros 32 mil euros, porque duvido que alguém neste mundo tenha papilas gustativas suficientes para justificar esse preço; quem compra isso segue o mesmo raciocínio — ou falta de — que faz um redator gastar 18 mil reais num MacBook Pro para fazer o que qualquer PC faz por 3 mil. Mas a verdade triste é que eu seria capaz de dar, uma vez na vida, os 4 mil pedidos num Petrus, se 4 mil euros fossem para mim o equivalente a duas mariolas e um cigarro Yolanda.

***

Pensar nisso me lembrou de tempos idos há muito, e de como eu e o vinho sempre fomos bons amigos, ou quase sempre.

Nos anos 70, o que frequentava as mesas da classe média brasileira em Salvador era o Chateau Duvalier, vinho que, acho, nem existe mais de tão ruim que era. Lá em casa muito raramente havia bebidas, mas de vez quando aparecia uma garrafa dessas, sempre tinto, e me deixavam tomar um pouco, com água e açúcar.

No réveillon de 1980 acordei depois que a festa lá em casa, de que eu não tinha participado porque dormia muito cedo, havia acabado. Meio da noite, casa vazia. Vi uma garrafa de Chateau Duvalier rosé, que eu nunca tinha tomado, e resolvi tomar um pouco. Coloquei o vinho, a água, o açúcar, e tomei um gole. Vomitei tudo, imediatamente.

O mais próximo que cheguei de um rosé desde esse dia foi um clarete espanhol, uns 10 anos atrás.

Aí pelo final da adolescência, saindo por algum tempo com uma moça que comprava sempre um branco português chamado Calamares, me acostumei a beber uma garrafa inteira, sem problemas. Pouco depois, fui trabalhar numa agência grande em Salvador, por um salário que, para mim que andava mordendo beira de penico dizendo que era biscoito, era inimaginável.

Resolvi comemorar o meu primeiro salário com uma garrafa de vinho. Parei no Paes Mendonça do Shopping Piedade, no caminho da casa de minha avó, e perscrutei a prateleira de vinhos. Estava decidido a comprar uma garrafa de vinho chique, porque o mundo dá voltas, né, queridinha? Escolhi um vinho do Porto, de que eu já tinha ouvido falar em tantos e tantos livros — o senhor Wickfield castigava um Porto direitinho, em “David Copperfield”. Comprei até uma taça, que não havia na casa de minha avó, para beber um vinho comme il faut. Era dessas taças em que restaurantes simples mas metidos serviam água e refrigerantes.

Cheguei em casa, enchi a taça e em duas horas tinha bebido a garrafa inteira. Acordei debaixo do chuveiro, onde meu tio tinha me jogado para que eu não vomitasse a casa inteira. Foi a pior ressaca de minha vida, e dela não tenho saudades. Mantive distância de vinho do Porto até pouco tempo atrás, quando um amigo trouxe uma garrafa de Portugal para mim.

E os anos se passaram. Aprendi que vinhos suaves de mesa, os velhos e bons vinhos de garrafão, ofereciam excelente relação custo-benefício, e que o Figueiras era melhor que o Dom Bosco. Devo noites muito agradáveis a eles.

Na virada dos anos 80 para os 90, como resultado da evolução da vitivinicultura brasileira, começou-se a falar mais amiúde em uns tais “varietais”; até então, nós da plebe ignara só conhecíamos tinto, branco, rosé e champagne Georges Aubert — e o Surpresa, um espumante artificial que devia envergonhar seu fabricante. Foi quando surgiram, pelo menos para mim, marcas sofisticadérrimas como Forrestier e Almadén. Na minha imaginação, o Forrestier estava ali, pau a pau com o Chateau Lafite que eu sequer sabia que existia.

Em 92, 93, um sábado em que um dinheirinho a mais apareceu, fui até o supermercado e comprei uma garrafa de vinho, para beber enquanto lia os jornais do dia que só chegavam à tarde em Aracaju, o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo.

Escolhi com mais cuidado que daquela vez em Salvador. Por via das dúvidas, apostei num branco de marca reconhecida e elegante: um “semillon blanc” da Almadén — o blanc era por conta deles, claro.

E enquanto bebia, sentia um cheiro estranho naquele vinho. Cheiro de algo meio podre, passado. Era como se eu tivesse comprado um minas frescal e recebido um camembert.

“Então esse é um vinho sofisticado”, foi o que pensei. “Então esse cheiro de cavalo suado é o cheiro da sofisticação, da elegância. Melhor eu me acostumar, não vou ser pobre para sempre.”

Só muito tempo depois entendi que aquele vinho estava contaminado com Brett. E o pior é que, depois de metade da garrafa, eu já estava gostando mesmo do negócio.

O tempo passou, os chilenos apareceram, vinho virou moda. Como já disse aqui antes, bebo bem mais que os padres do Vaticano, com a vantagem de não gostar de menininhos. Apesar de toda aquela conversa da primeira parte deste post, os vinhos lá de casa nunca passam dos 250 reais, e a grande maioria anda aí na faixa dos 50, porque eu gosto de beber mas não tenho dinheiro para comprar um Corolla e não tenho dinheiro para comprar um premier grand cru classé ou um brunello de Montalcino.

E porque, no fim das contas, é Pedro quem me orienta ainda hoje, a lembrança dele no dia em que, jovens estroinas que éramos no comecinho dos anos 90, resolvemos esbanjar comprando um Chateau Duvalier — sempre ele. Pedro não viu a garrafa e quando recebeu o copo, deu o primeiro gole, fez uma careta e se indignou:

— Oxente, e agora deram para falsificar o Dom Bosco, foi?

Sobre Deus e ateus

Tenho fama de ateu porque nunca consegui acreditar em um deus tão pequeno que fez essa desgraça de humanidade à sua imagem e semelhança mas não fez direito, um deus mesquinho que não se dá ao respeito e se incomoda se grãos de areia como eu — ou assim ele quer que eu me considere — mandam-no ralar o cu na ostra, que é o que Ele mereceria se existisse.

Isso sempre me deixou com um problema, que é explicar coisas que não posso explicar, a matéria e o universo. Sempre fui muito velho para dar murro em ponta de faca ou achar que seria possível saber o que havia antes do Big Bang, e então fico com a ideia de que tem algo nessa bodega que não sei o que é e nunca vou saber, mas que não interfere em absolutamente nada na minha vida e nem na de ninguém, e certamente não vai me fazer acertar na loteria esportiva.

Esse incômodo, na verdade, nunca me tirou o sono. Deus nunca fez parte da minha vida. Não vim de família religiosa, nunca fizeram pressão para que eu acreditasse ou deixasse de acreditar em qualquer coisa. A gente sempre andou para Deus e Ele para nós. Estivemos todos bem, assim.

E no entanto sou fascinado pela trajetória do cristianismo. Debates essencialmente filosóficos ou doutrinários me dão um pouco de sono, mas sempre tive uma curiosidade muito grande sobre como o cristianismo se tornou o que é, como moldou o mundo em que vivo. Independente daquilo em que acredito ou não, eu sou um produto do mundo cristão. Valores sociais em que acredito devem muito à noção cristã da caridade e à crença (ou vã esperança) na bondade intrínseca do Homem.

Adoro as mentiras descaradas do Novo Testamento, por exemplo. Gosto de tentar entender a maneira como aquele conjunto de estórias mirabolantes foi se solidificando ao longo de umas poucas décadas em uma narrativa com algum grau de coesão. Gosto de ver o esforço malabarista das posturas doutrinárias do cristianismo antes e depois de Constantino, Teodósio e Justiniano. Quase posso tolerar a destruição cultural do mundo greco-romano ou as liquidações de hereges patrocinadas pelos cristãos, porque do ponto de vista histórico isso é antes de tudo um fenômeno curioso: como se deu o processo que levou uma religião com um discurso calcado na ideia de altruísmo e de bondade a se consolidar, em muito pouco tempo, como uma das forças mais deletérias e mais cheias de ódio da história da humanidade? E quais os instrumentos utilizados para isso?

Gosto, quase tanto, de tentar entender os malabarismos intelectuais dos primeiros cristãos, que precisaram criar uma nova ideia de messias para que ela se adequasse ao discurso judaico anterior, numa tentativa de legitimar o seu maluco de estimação. Há algo de desesperado nisso, também um bocado de má-fé; mas é também o reflexo, ainda que distorcido e pervertido, de uma vontade de fazer o que entendiam por bem aos outros que é quase louvável. Fanatismo tem dessas coisas.

Gosto de ver o respeito crescente às religiões de matriz africana como aspecto de uma afirmação étnica e social, e é lindíssima a cosmogonia do candomblé, tanto quanto a grega antiga; mas me irrita o discurso hipócrita do candomblé e da umbanda, de mansidão intrínseca à religião, porque me lembra o sujeito que depois de um atentado fundamentalista insiste que a Bíblia ou o Alcorão são livros de amor; sou baiano e sempre soube que pai de santo bom pra desgraçar os outros, matar a mulher do seu amante, eram os de Cachoeira; e vi despachos de amantes inconformadas em esquinas demais para cair nessa conversa safada. No fim das contas, não consigo esquecer que é uma religião em que seus sacerdotes estão liberados para tentar destruir outras pessoas. E por valorizar a preguiça como um grande valor humanístico, não entendo por que alguém em sã consciência se oferece a tantas obrigações sem sentido real, por que abre mão voluntariamente de sua liberdade para isso e aquilo em nome de contos de fadas.

Confesso que tenho apenas uma pinimba e um medo.

A pinimba é com o kardecismo. Porque não dá para respeitar uma religião surgida em pleno século XIX, o século dos trens e das máquinas, de Balzac e de Marx, e que se tenta dar ares quase científicos. Porque todas as outras grandes religiões têm a desculpa de serem basicamente superstições e mistificações pré-históricas, nascidas em um tempo em que macacos em acelerado processo de evolução precisavam de alguma explicação para o raio que caía na cabeça do vizinho e de uma providência para que ele não caísse na sua.

O kardecismo é mais uma das tantas religiões que, assim como toda a cultura ocidental, deriva do judaísmo e do cristianismo. Como todas as outras, para funcionar precisa jogar nas costas de alguém a culpa por toda a miséria humana. A ideia de um deus consciente e cheio de desígnios que se dá ao desfrute de elaborar um sistema complexo e imbecil de reencarnações e expiações, por si só, é tão absurda que é incrível que as pessoas a levem a sério; esse no mínimo é um deus sádico, que coloca gente no mundo para sofrer quando não havia necessidade nenhuma, se o incompetente fizesse decentemente o seu trabalho e criasse direito seu boneco de barro. Mas o kardecismo se esmera na justificação dessa crueldade. Por exemplo, imagine uma criança que nasce com paralisia cerebral gravíssima. Ela não vai aprender nada em toda a sua existência. No entanto, kardecistas fazem malabarismos interessantes para justificar essa aberração teológica. Uns dizem que a criança nasceu assim para pagar pecados — quando, obviamente, ao não poder aprender nada ela não pode evoluir. Outros dizem que ela nasceu assim para “ensinar” os pais. Tá, e a criança que se dane sem controlar seu próprio esfíncter.

Para piorar, como o número de almas neste vale de lágrimas não para de crescer, a gente entende que Deus fez o homem, não fez direito, não corrigiu a própria merda e mesmo assim continua fazendo mais. É um imbecil.

E tem ainda o racismo inerente ao kardecismo. De vez em quando lembram por aí de um texto de Kardec onde ele diz que “os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior”. E ao menos cá no Brasil, essa é uma religião eminentemente branca, em que é nítido o desprezo à sua prima preta, a umbanda.

Mais que isso, a sua tentativa de criar um sistema aparentemente sofisticado, influenciado pelo positivismo, é provavelmente a mais malsucedida de todas. Cristãos, macumbeiros, muçulmanos ao menos têm a sabedoria de não se aprofundar muito e jogar o bagulho nas costas de Deus antes que tudo fique confuso demais. Kardecistas, no entanto, se dedicam a malabarismos pseudorracionais impressionantes. Uma vez perguntei a uma delas se cachorros tinham alma. Ela me respondeu que tinham uma “alma coletiva”, seja lá o que isso for. Eu não quis me aprofundar no assunto porque fiquei com medo, e ninguém pode me recriminar por isso.

Provavelmente é por tudo isso que uma das melhores frases que li nos últimos anos é essa: “Chico Xavier era um sujeito que falava sozinho e ainda anotava o recado”. Isso resume o espiritismo para mim e mais não é necessário falar.

Acima de tudo, o que irrita em todas as religiões é o discurso canalha que diz “a religião é boa, ruins são alguns religiosos”. Não. Toda religião é ruim; elas existem para negar a realidade, para justificar o injustificável, para eximir o homem do mal que há no mundo e lhe oferecer uma saída imaginária. Existem para dar legitimidade ao que há de humano nas pessoas, e propósito a um tipo específico de inconformado. Existem como muleta para explicar o que ainda não foi explicado, e acaba se tornando, sempre, um instrumento de obscurantismo. Toda religião é ruim.

E mesmo assim, durante muito tempo a militância ateia me incomodou. Sou um grande fã de Richard Dawkins, por exemplo, especialmente de “O Gene Egoísta”; mas outros livros seus sempre me pareceram desnecessários. Proselitismo ateu costumava ser tão incômodo para mim quando o proselitismo religioso. Ainda mais, até, porque a princípio um ateu está um degrau acima na escola de pensamento de quem ainda acredita num deus preocupado se você dá o rabo; se ele chega à conclusão da inexistência de um deus todo-poderoso, ou da impossibilidade de crença a partir do raciocínio lógico, é porque pelo menos se deu ao trabalho de pensar, algo que não posso dizer de quem acredita em Adão e Eva.

Mas o ateísmo pode ser também uma quase desistência do pensamento, e de certa forma quase tão arrogante e falso quanto os religiosos, porque não apenas não se consegue provar a existência ou inexistência de Deus, mas porque a recusa em admitir a possibilidade de se estar errado é estúpida. Para muita gente, ela parece justamente o contrário porque é comparada à religião, que encontra na vontade inescrutável de Deus uma explicação confortável para a topada que arrancou metade da sua unha. É, de forma um tanto diferente, o mesmo reflexo humano, demasiado humano de necessidades que não têm nada de divino.

Nos últimos tempos, entretanto, isso deixou de ser tão incômodo. À medida que a militância religiosa vem justificando guerras e perseguições em todo o mundo, mas principalmente num momento em que políticos evangélicos vêm consolidando sua influência política e se espalhando como metástase no tecido social; à medida que pessoas cuja noção de conhecimento é paradoxalmente baseada na ignorância passaram a definir os rumos do país; à medida que, como os primeiros cristãos, evangélicos tentam impor de maneira cada vez mais violenta sua visão obtusa e cruel de mundo aos outros, a religião passou a ser uma inimiga. As pessoas podem acreditar no que quiserem — eu continuo acreditando no Grande Deus do Pleno Xibiu da minha adolescência, por exemplo, porque ainda não descobri coisa melhor —, mas quando se organizam politicamente para tornar essa crença dominante e cercear os direitos dos outros, elas se tornam algo a ser combatido e, se possível, destruído.

A história do processo civilizatório é a história da superação da religião. Quando negaram a natureza divina da realeza, quando negaram o direito de fazer churrasquinho de bruxas, quando disseram que Estado e superstição não deviam caminhar juntos — foi nesses momentos que a humanidade deu um passo à frente e tornou o mundo um pouco mais justo e igual.

Daí que no mundo surreal em que dou a sorte de viver, em que uma religião retrógrada e perigosa cresce assustadoramente, a sensação de que a militância ateia era tão estúpida quanto os fanáticos do “gloriadeus” desapareceu.

O ateísmo nunca fez nenhum mal à humanidade, algo que não pode ser dito de nenhuma religião monoteísta. Na verdade, por ser falta de crença, retira da pauta a imbecilidade religiosa. E nos tempos atuais, em que uma onda de obscurantismo religioso vem patrocinando uma constante regressão intelectual e cognitiva para a humanidade, ele se torna quase um exemplo de resistência à progressiva metástase no tecido social patrocinada por religiosos.

E aqui está o meu medo. A cada dia, me apavora o crescimento das religiões protestantes no país. E não falo das neo-pentescostais em que malandros apopléticos tiram dinheiro de imbecis que, para mim, merecem ser tosquiados porque ninguém tem o direito de ser tão cretino. Hoje, o pensamento evangélico e sua ação política são a maior ameaça à democracia e ao avanço do país.

Percebi isso quando vi a maneira como a gíria religiosa se imiscuiu na sociedade brasileira. Expressões como glóriadeus, tá amarrado, ô glória, é pra glorificar de pé se espalharam pelo tecido social e são um exemplo sociológico claro da expansão e capilarização do pensamento evangélico. É assim que as metástases ocorrem. Em sua luta para fazer do Brasil uma narcoteocracia, as igrejas evangélicas são um câncer que não para de crescer e a principal razão pela qual meu otimismo em relação ao futuro deste Brasil velho de meu Deus é hoje muito pequeno.

Deus pode até existir, mas se alguém tem alguma esperança na humanidade, é melhor fingir que não.

Beijinho, beijinho, tchau, tchau

Li as “Memórias” da Xuxa. Sei lá o que deu em mim. Nunca fui lá muito afeito a biografias e autobiografias, com exceções como as tantas sobre os Beatles, mas ultimamente andei lendo uma série delas. Nenhuma me deixou satisfeito, mas eu sei por quê: mesmo errado, sempre espero de uma autobiografia algo como as memórias de Casanova, ou algo abrangente como o trabalho de investigação feito por biógrafos como Peter Guralnick ou Mark Lewisohn. Em suma, uma autobiografia é para eu ficar sabendo de coisas sobre você que não posso saber de outra forma. Do contrário, seu livro é apenas exibicionismo barato, bazófia em mesa de bar, inútil para qualquer coisa além da satisfação da sua vaidade.

Meu próprio espanto diante desse livro vem do fato de que nunca tive nenhuma ligação emocional com a Xuxa. Mesmo criança detestava programas infantis de auditório, como “Parquinho” e “Recreio” em Salvador. E quando o “Xou da Xuxa” estreou eu já era velho demais para me interessar pelos desenhos que apresentava.

Mas mesmo em 2024, muita gente tem uma ligação emocional ainda forte com o que ela representou em seus passados, e esse é um fenômeno interessante. Além disso, Xuxa foi um dos grandes símbolos sexuais da minha geração, para dizer o mínimo. Sua existência não pode passar despercebida por nenhum brasileiro que tenha assistido à TV nos anos 80 e 90. E confesso: por 15 reais eu compro até livro de mashup entre ewoks zumbis e o amante de Lady Chatterley.

É uma obra muito ruim. É óbvio que ela não quer um relato realmente franco. Ela tem consciência de quem é e sabe o que deve dizer, dentro dessa perspectiva. Talvez por isso o título “Memórias”, naturalmente mais vago. Ela não quer elaborar muito, não quer refletir sobre sua vida e o sentido dela. Não quer contar o que não lhe é útil ou interessante. Ela está simplesmente registrando a imagem que quer deixar para o seu público.

Mas ainda que se admita esse escopo tão limitado, o livro é esparso, insuficiente. Mesmo quando aborda temas dolorosos, como os abusos de que foi vítima na infância, Xuxa é discreta, quase reticente. Nas memórias de Xuxa Meneghel não há a possibilidade da merda no ventilador, do balde chutado, da abertura do peito; mas mesmo coisas que poderiam ser interessantes — o seu cotidiano em Nova York, a rotina de gravações do Xou da Xuxa, as pessoas interessantes que ela encontrou na vida — estão ausentes.

Os capítulos são curtos. As histórias são poucas. A verdade é que qualquer pessoa que corra os arquivos de revistas de fofocas dos últimos 40 anos poderia escrever uma biografia muito mais aprofundada, apenas com o que foi publicado nelas.

O livro traz um texto medíocre, de um tipo comum de jornalismo para iletrados, quase padrão nesse tipo de literatura. Pode ser apenas impressão, e quem sabe ele traduza com fidelidade as inflexões da própria Xuxa; mas eu já vi esse texto milhares de vezes antes, texto de ghost writer que simplifica demais o original.

Diante de tudo isso, o trecho mais interessante do livro talvez seja o momento em que ela fala sobre o comportamento do seu cão quando ela o namorado, Junno, faziam saliência:

Como ele sempre estava com a gente, quando a gente namorava na cama, ele virava de costas para não ver. Quando acabava, ele vinha com aquele sorriso e a gente dormia.

Gargalhei por uns 15 minutos depois de ler a cena, porque não consigo mais deixar de imaginar o cachorrinho latindo para dizer: “Ei, Junno, não é assim não, porra! Primeiro cheira o cu dela, cheira! Isso! Agora morde o pescoço! Maravilha, garoto! Pode montar! Aê, meu filho! Joga duro aí que vou ficar de vigia pra que ninguém jogue água fria em vocês!”

Curiosamente, as referências a sexo em todo o livro são raras, sempre contidas, quase pudicas. Isso é surpreendente, principalmente em comparação com as revelações feitas por ela no podcast de Sergio Mallandro recentemente. Ah, se os adolescentes dos anos 80 ouvissem a Xuxa falando que gosta de sexo anal, como ela contou no tal podcast.

O problema é que não são os segredos de alcova da Xuxa que me interessam, mas sim outro tipo de detalhes da vida privada. Parece faltar a ela a compreensão da dimensão correta de sua existência e do que é realmente interessante em sua vida para o público e para a História; e assim nos deparamos com informações absolutamente sem importância como o cachorro que se recusava a ser voyeur involuntário ou quantas tatuagens ela tem ou o que mudaria nela mesma ou uma longa peroração sobre as vantagens éticas do veganismo.

Talvez por isso, num livro tão rarefeito, o que mais chama a atenção não é uma informação, e sim duas grandes omissões.

A primeira chega a ser canalha, e é talvez o ponto baixo do livro: o capítulo breve que ela dedica ao filme “Amor Estranho Amor”, de Walter Hugo Khoury. Para quem não lembra, uma Xuxa ainda em início de carreira fez o papel de uma prostituta que tenta dormir com o filho de outra prostituta, interpretada por Vera Fischer. Do jeito que ela escreve agora, parece que apesar de ter feito contra a vontade, ela desde o início foi uma defensora pública do filme, atacado pelas forças conservadoras da sociedade brasileira. Isso não é só mentira, é safadeza pura e simples.

Hoje ela diz para as pessoas verem o filme. O que é curioso, já que ela moveu um processo proibindo justamente isso. Durante um bom tempo, Xuxa pagou 60 mil dólares anuais para que o filme não fosse exibido, e isso destruiu as possibilidades comerciais do filme. Mais recentemente, perdeu uma ação contra o Google em que pedia a proibição de menções ao filme em seus resultados de buscas.

Xuxa deve desculpas ao Khoury, que viu um bom filme seu ser censurado porque Xuxa achava que ele não ia bem com sua imagem de “rainha dos baixinhos”, e ao ator Marcelo Ribeiro, que faz o menino que ela tenta comer e que já reclamou várias vezes de ter tido sua carreira interrompida pelo processo da Xuxa. Aqui ela tenta reescrever a sua história de maneira cínica, e além de se expor ao ridículo, tudo o que consegue é levantar a suspeita de que mais trechos de sua trajetória foram tratados da mesma forma.

A outra omissão é mais complexa. Diz respeito a Marlene Mattos, sua ex-empresária, ex-guru, madrinha de sua filha e reconhecida universalmente como a principal responsável pela sua ascensão a ícone absoluto de toda uma geração.

Não é exagero. No YouTube é possível achar trechos do programa que a Xuxa apresentava na TV Manchete. É a mesma Xuxa, com o mesmo talento, o mesmo carisma incomparável, a mesma singularidade a que nos acostumamos. Mas ainda um diamante bruto, que não deixava perceber o tamanho do seu potencial. Foi na Globo que ela desenvolveu uma imagem muito maior que a vida, absoluta. E foi Marlene Mattos a grande responsável por isso.

Com Marlene, Xuxa chegou à capa da Veja em 1991 numa matéria que falava sobre sua fortuna de 19 milhões de dólares, na época. Marlene era devotada à sua garota: enriqueceu e fez da Xuxa uma milionária, dirigindo sua carreira com mão de ferro, fazendo o que era necessário para que ela continuasse sendo a autoproclamada “Rainha dos Baixinhos”.

Enquanto estiveram juntas, formaram um time imbatível. Um amigo dirigiu a Xuxa num spot para rádio da campanha contra a poliomielite infantil, no final dos anos 80. As duas chegaram juntas: Xuxa extremamente simpática, parecendo uma menina acompanhada da mãe contra quem tentava se rebelar timidamente, resmungando protestos, e Marlene direta, grossa, rude. Depois de gravar o primeiro take, ele pediu que ela fizesse mais um, e que fosse “mais Xuxa”. Ao lado dele, na mesa de controle, com o mau humor que lhe era proverbial, Marlene lhe perguntou: “E quem é que você acha que tá lá dentro?”

Xuxa e Marlene desempenharam uma simbiose quase perfeita. Juntas, conquistaram o Brasil e a Argentina. Separadas, jamais conseguiram ter o mesmo sucesso. A Marlene veio parar em Sergipe, administrando um hotel-fazenda por uns tempos. Não sei onde anda.

É essa Marlene que é quase totalmente ignorada na biografia.

Na matéria da Piauí que fala desse livro e da série do Globoplay, Xuxa diz que se afastou de Marlene porque passaram a discordar sobre os rumos de sua carreira. Marlene achava que Xuxa devia migrar para o público adulto. Xuxa, encantada com a recém-maternidade, queria fazer o “Xuxa Para Baixinhos”. Na matéria, Xuxa se autocongratula e diz que estava certa: os discos e vídeos dessa série venderam milhões de cópias.

Mas ela está mentindo para o leitor, e provavelmente também para si mesma.

“Xuxa para Baixinhos” pode ter vendido os tubos, mas no final das contas Xuxa acabou foi na Record. Ela não entendeu ou não aceitou o que Marlene sabia institivamente: que a Xuxa precisava envelhecer com seu público. E que, en passant, ela era maior que a Bia Bedran. O que Marlene e a torcida do Flamengo entendiam é que Xuxa poderia ter sido a nova Hebe Camargo, o que parece mais que óbvio num mundo onde Luciana Gimenez alcançou alguma permanência. Em vez disso, ali a musa do Pelé deu início a uma carreira errática que terminou com ela fazendo alguma coisa em algum lugar, eu não sei mais.

E mesmo com tudo isso, ainda assim o livro é bem-sucedido: o leitor chega ao fim simpatizando com essa mulher que desempenhou um papel importante na cultura e no imaginário nacional, e que no fim das contas acumulou qualidades que hoje, em um país piorado e cada dia mais medíocre, são admiráveis.

Isso é tudo que tenho para dizer. Mas antes de ir embora, queria mandar um beijo para o papai, para a mamãe e para a Xuxa.

Identidades

Meu cachorro é um cão equilibrado, tranquilo. Nunca fez mal a ninguém além dos pés de minhas cadeiras, minha edição de “O Gene Egoísta” e umas galinhas incautas que chegaram perto demais, nunca precisou. Meu pastor alemão é um poodle.

Eu sei que ele se identifica com um poodle. Um poodle melhorado, porque não é nervoso, não fica chorando quando saio, não tem medo de fogos de artifício, nem medo de outros cachorros, mas ainda assim um poodle.

É isso que vou responder quando as pessoas perguntarem se tenho cachorro. Tenho, sim, tenho um poodle. E na rua, quando os poucos que se atrevem a chegar perto de mim perguntarem “é um capa preta?”, eu vou dizer que não, é um poodle.

E se você alguma vez criticou a J. K. Rowling, vai me dar razão e vai dizer: sim, é um belo poodle, Deus benza.

E a minha cachorra, ah, essa é uma pinscher.

O tempo é relativo

Encontrei este texto que não publiquei, não faço ideia da razão; acho que porque disse coisas semelhantes em outros textos. Pela referência a Doris Day, é de 2019. E o que me deixou fascinado é que todos os nomes citados no segundo parágrafo morreram nesses três anos.

Quando Kirk Douglas e Olivia de Havilland morrerem — e aos 102 anos de idade, esse dia parece cada vez mais próximo — morre, definitivamente, a Era Dourada do cinema.

Há uma lista maior de sobreviventes, com gente cujos nomes são fáceis de reconhecer e que estreou no cinema na década de 40. Rhonda Fleming, Sidney Poitier, Angela Lansbury, Marsha Hunt, Jane Powell — astros não tão grandes em seu tempo mas que conseguiram a proeza de se afirmar, ao menos em parte e independente do seu talento ou beleza, por terem vivido mais que os outros. Mas esses não contam. Das estrelas, mesmo, aqueles que aproveitaram o melhor que o studio system podia oferecer, restaram apenas aqueles dois. Doris Day, que morreu dia desses, virou estrela justamente no crepúsculo dessa era, nos anos 50, quando a Universal já tinha feito o acordo com a CBS para disponibilizar seus filmes para a TV, e que para mim é o grande marco do fim da era de ouro da velha Hollywood.

Mas isso faz pensar em como o tempo é relativo, bem mais do que eu pensava quando tinha uns 20 anos e ainda não tinha visto tanta coisa e tanta gente passar diante dos meus olhos.

Para mim, o Velho Oeste americano sempre foi algo tão distante quanto os tempos medievais, ou quanto a Revolução Francesa. Basicamente porque havia uma série de símbolos e elementos que faziam parte do meu cotidiano e eram tão comuns quanto o oxigênio que eu respirava, e que não faziam parte do seu: luz elétrica, televisão, automóveis, telefones, asfalto. A própria ideia de fronteira, de conquista de um mundo novo, era uma completa estranha para mim. Ninguém é criança impunemente em Salvador.

Não é difícil entender: para quem tem vinte anos ou menos, basta imaginar um mundo sem telefone celular, sem chaves remotas em automóveis e sem internet. Daí porque Tombstone para mim não tinha absolutamente nada a ver com a Salvador

Mas o Velho Oeste nunca foi tão distante assim. E para mim, os melhores exemplos são Wyatt Earp e Bat Masterson, duas das grandes lendas do oeste.

Earp era um desses sujeitos sempre atrás de uma maneira de ficar rico, muitas vezes lidando com a violência própria daquele tempo e lugar. Seguia o dinheiro e, nas três primeiras décadas deste século, os dólares estavam em Hollywood. Earp foi consultor de filmes, apareceu em The Half-Breed, com Douglas Fairbanks, foi amigo de Tom Mix (o que deu em um filme ruim estrelado por Bruce Willis, Sunset). Masterson terminou seus dias como colunista esportivo num jornal novaiorquino, mais próximo daqueles jornalistas interpretados por Humphrey Bogart do que de Billy the Kid. Tenho a impressão de que alcançaram uma dimensão histórica imerecida simplesmente porque viveram mais tempo e puderam contar suas próprias histórias. Mitificaram miudezas. Quando se pensa em um episódio como o duelo no OK Corral entre os Earp e Doc Holiday contra os Clanton como um dos acontecimentos legendários da história americana, a vontade que dá é mandá-los passar uns dias numa operação policial no Complexo do Alemão. Ou talvez nem precise: Columbine e as tantas chacinas periódicas nos EUA são muito mais importantes do que um tiroteiozinho safado num cudemundo qualquer do Arizona.

Masterson morreu em 1921, Earp em 1926. Isso quer dizer que hipoteticamente minha bisavó, que tinha a idade do século, poderia ter ouvido histórias contadas por eles. E eu, já adulto, poderia ter ouvido dela essas histórias, em primeira mão. É essa possibilidade que encurta a passagem, que cria wormholes e torna qualquer espaço de tempo maior ou menor dependendo do seu ponto de vista.

Cabeça de desocupado é o escritório do diabo, e isso me faz pensar em como o tempo, afinal, não é tão relativo — a começar por pensar nisso, o tipo de coisa em que só se pensa depois que muita água passou por debaixo da ponte. O rio não para de correr, isso é clichê velho. Mas quando o clichê acontece com você, é diferente.

Em 2010 tomei um susto ao ver que 1990 já tinha sido há 20 anos. Não pela passagem do tempo em si, porque já fazia tempo que minhas memórias abrangiam décadas. Mas pela diferença fundamental que aquela data marcava na qualidade dessas memórias.

Durante todos os anos anteriores, quando eu lembrava de mim mesmo 20 anos antes estava lembrando de outra pessoa. Porque uma criança de 7 anos não é o mesmo que um homem de 19. Em todo esse tempo, quando lembrava de mim mesmo eu lembrava de alguém ainda em formação, ainda descobrindo o mundo e seus significados. E eu certamente não via o mundo aos 9 anos como via aos 30.

Mas a partir de 2010, quando voltava 20 anos no tempo, passei a lembrar de um adulto. A mesma droga entra ano e sai ano, pau torto já incorrigível e conformado.

Eu pensava que isso era ruim. O que eu não sabia é que isso podia piorar.

Mais dez anos se passaram e agora é 2000 que foi há quase duas décadas. Coisas que para mim foram ontem na verdade aconteceram há 10, 20 anos. Xingo Kubrick por me fazer acreditar que em 2001 eu estaria tentando desligar o HAL-9000, ou os tantos diretores de filmes B que fizeram ter a esperança de veranear em Andrômeda ou Aldebaran. Eu ainda quero as minhas roupinhas de papel alumínio, cadê elas?

Tudo isso é coisa que as pessoas que nasceram depois do bug do milênio jamais poderão compreender, e é até melhor assim. Eles não tiveram o ano 2000 como a expectativa de um marco fundamental a separar o passado do futuro. Quem já nasceu com o bug do milênio como passado, no entanto, tem uma vantagem: a própria concepção de futuro mudou, e a julgar pelos filmes de ficção científica o futuro é só um presente piorado e muitas vezes distópico; a minha geração e as que me antecederam tiveram direito a alguma esperança.

Penso nisso e solto uma risadinha anasalada de velho.

Estátuas

Em que pé anda aquele movimento que questionava e queimava estátuas país afora? Há uns dois ou três anos a iconoclastia andava campeando solta, na esteira das manifestações pelo assassinato de George Floyd, e um bocado de gente queria tirar das ruas estátuas de vultos históricos associados a momentos e atividades hoje abominados. As estátuas estavam se movendo. Traficantes de escravos, bandeirantes, líderes secessionistas e escravagistas nos EUA. Cristóvão Colombo entrou definitivamente na lista. Sobrou até para o Borba Gato, o patinho feio das estátuas quatrocentonas de São Paulo, que virou churrasquinho.

A destruição de estátuas é sempre uma resposta aos tempos atuais. Não é novidade. A atual sensibilidade não admite a escravidão — um passo menos óbvio e mais importante do que parece, já que ela foi uma constante nos milhares de anos de história da humanidade — e encara o processo de expansão europeia no Novo Mundo como genocídio puro e simples, sem nuances ou complexidades. É bom lembrar que também não admite o socialismo científico (ou pelo menos não admitia há algumas décadas, quando estátuas de Marx e Lênin foram derrubadas em todo o Leste Europeu) e, durante muito tempo, não admitiu a cultura greco-romana.

Eu adoro estátuas, seja de quem forem. Acho que elas enriquecem as cidades. Sempre me entristeceu o fato de Aracaju ter poucas estátuas de suas figuras históricas, lacuna parcialmente compensada nas últimas duas décadas por João Alves Filho e Marcelo Déda. Estátuas significam um reconhecimento da própria história e a perenização de um momento no tempo. Concordo com Jacques Le Goff: monumento é documento. E não acredito que a história possa ser contada apenas com os documentos deixados por um lado só.

Daí porque a ideia de derrubar estátuas não é daquelas que me agradam de verdade. Até entendo a motivação, mas acho que ela está mal direcionada. Há um pensamento totalitário que está sempre na base dessas tentativas de obliteração: de certa forma, é como Stálin apagando seus desafetos das fotos soviéticas.

Uma sociedade é formada pelos mais variados segmentos, e por processos históricos muito mais complexos que palavras de ordem. As pessoas querem queimar a tal estátua de Borba Gato (talvez o menos culpado pelo extermínio de índios) e derrubar o Monumento às Bandeiras do Ibirapuera? Certo — mas foram os bandeirantes que aproveitaram a União Ibérica para estender o país até aproximadamente os limites atuais. Bandidos ou mocinhos, eles têm um papel histórico que não pode ser obliterado. Podem cancelá-los à vontade; podem apontar com razão que foram assassinos, escravagistas, até genocidas; mas eles agiram dentro das exigências de seu tempo, de necessidades históricas e econômicas e, ao contrário do que andam dizendo, não eram criminosos em seu tempo, até porque crime é um conceito histórico. Ao contrário, na maior parte das vezes foram chancelados pelo Estado.

Apagá-los da história significa estabelecer uma narrativa moral falsa e insuficiente para o país, algo que a longo prazo não dá certo. É um desserviço. Em vez de apagar, explicar é sempre um caminho melhor. Apagar é essencialmente jogar a sujeira para baixo do tapete: e uma hora ela ressurge. Muita gente adora repetir que um povo que não conhece seu passado está condená-lo a repeti-lo no futuro, mas não tem problemas em tentar obliterar parte dele.

É assim que o Brasil acerta as contas com o passado: apaga seu rosto na foto. Finge que não existiu. E mais cedo ou mais tarde, esse passado cobra sua conta. O país, por exemplo, se recusou a acertar as contas com a última ditadura, se recusou a meter na cadeia ex-ditadores e torturadores; o 8 de janeiro é, também, resultado disso. Se recusar a encarar o passado é mais que covardia, é quase pedir para que isso se repita, porque apagar um nome não significa apagar os elementos na sociedade que levaram a isso. Alguns anos atrás, o governo de Sergipe renomeou três escolas estaduais que se chamavam Castelo Branco, Costa e Silva e Médici. Não renomeou os conjuntos habitacionais com o mesmo nome porque os moradores não iriam gostar, assim como os moradores da Vieira Souto se recusaram a morar na Av. Antônio Carlos Jobim nos anos 1990. Não tenho coragem de afirmar que esse tipo de atitude não tem nenhuma, nem uma linha imperceptível de ligação com a legião de idiotas que se reuniram diante dos quarteis pedindo a volta da ditadura.

E se é para acabar com referências a ditadores, por que não acabar com as tantas referências a Getúlio Vargas? Getúlio deu não um, mas dois golpes de Estado. Foi envolvido em uma guerra civil em São Paulo. Só não perseguiu mais comunistas que a ditadura de 64. Seria candidato óbvio ao “cancelamento”.

O problema é que a dimensão de Getúlio é muito grande para que as pessoas finjam não ver nele um personagem gigantesco, e talvez por isso decidiram que as coisas “boas” que fez compensam as más e reconhecem o seu papel na formação do Estado brasileiro.

Essa complexidade, por várias razões, é negada a outros personagens; e é muito pior fora do Brasil. Em Bristol derrubaram a estátua de um traficante de escravos. Até anos atrás era considerado apenas um benfeitor da cidade. Nenhum dos dois lados estava errado, e nenhum estava certo.

Em vez de tentar obliterar o passado, o que deviam fazer era erigir mais e mais estátuas, representando os mais variados aspectos da sociedade. Espalhem Zumbis pelo país, Cunhambebes, Sepés Tiarajus, e deixem que os próximos novos heróis ganhem estátuas também; corrijam equívocos como a inexistência, até onde sei, de estátuas de Joana Angélica e tia Ciata.

Por falar em tia Ciata, imagine que, algum dia, um grupo mais vocal resolva “cancelar” Pixinguinha. Sei lá por que razão: por ser maconheiro, por bater na mulher, por não ser ativista negro, por roubar músicas, imagine aí qualquer coisa absurda, verdadeira ou falsa. Parece absurdo, eu sei, mas sensibilidades mudam. O Rio de Janeiro perderia muito se derrubassem a sua estátua na travessa Sete de Setembro. E se isso parece maluquice, a verdade é que boa parte das estátuas cariocas estão ameaçadas. General Osório, D. Pedro I — se alguém se tocar que D. João VI, como todo rei português, foi grande beneficiário do tráfico de escravos, a Praça XV vai ficar um pouco mais feia. Se alguém cismar que Gandhi, como dizem alguns, gostava de menininhas, lá se vai mais uma estátua da Cinelândia.

O reconhecimento dessas sensibilidades atuais me faz achar que não vale a pena brigar por isso. Querem derrubar, derrubem. Enfiem as estátuas em museus. Destruam, se quiserem. Mas quando se derruba uma estátua, estabelece-se o precedente para que o outro lado — e sempre há o outro lado — faça a mesma coisa. E assim segue a história: um lado vencedor derruba umas estátuas, depois o outro lado derruba outras, até a hora em que não vai restar mais nenhuma a ser derrubada, e nos reste enforcar o último padre nas tripas do último rei. Ou o contrário, sei lá.

Lembrei que também na esteira das manifestações, apareceram nas redes comentários de que a HBO iria tirar “…E o Vento Levou” de seu catálogo. Por sorte, antes que eu realizasse a primeira exibição clandestina do filme em um velho aparelho de videocassete resgatado de algum lixão, em que antes de apertar o play todos nos levantaríamos e, emocionados, gritaríamos “Je vous salue, Marie!”, surgiu a notícia correta: a HBO iria exibir, junto com o filme, um documentário explicando o seu contexto. O exemplo da HBO deveria ser seguido por todos. Talvez assim sobrem algumas estátuas no mundo para contar a história.