Michael Jackson

Quase 15 anos após sua morte Michael Jackson ainda me faz pensar, ainda que involuntariamente.

Quando assisti a Leaving Neverland, o documentário em que dois sujeitos, que dormiram com Jackson quando eram crianças e que décadas atrás serviram como suas testemunhas de defesa, voltam atrás e contam como foram abusados pelo “rei do pop”, incluindo os detalhes sórdidos de suas relações, não vi nada de realmente novo. Um deles, Wade Robson, já tinha sido dedurado por uma das testemunhas de acusação em um dos tantos processos a que Jackson respondeu em vida.

Mas dia desses finalmente li uma série de reportagens de Maureen Orth para a Vanity Fair (que, ela lembra, jamais foram questionadas por Michael Jackson ou por seu espólio), em que a jornalista traça um perfil deprimente de um homem psicologicamente doente, forçado a conviver com a escória da raça humana para satisfazer seus apetites de maneira infantil — afinal Michael Jackson podia ter o que quisesse, desde que estivesse disposto a pagar os preços pedidos.

Era tudo tão obvio, foi tudo tão óbvio desde o começo. Aquelas mães venderam seus filhos. Alguém disse que esses garotos deviam processar suas mães em vez de Jackson, por terem permitido tudo aquilo, e tem razão. Em Leaving Neverland pode-se ter uma visão clara de como elas fecham os olhos para o que pode estar acontecendo, justificando-se para si mesmas por eventuais possibilidades de estarem abrindo oportunidades para seus filhos.

O que me assusta é ver gente defendendo Michael Jackson tentando transformar a defesa de Jackson em uma defesa do movimento negro.

O próprio Jackson já tinha recorrido a isso — em 2002, saiu literalmente às ruas chamando a Sony de racista pouco depois dela cobrar o ressarcimento dos gastos com Invincible. Dizem que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Agora a alegação de racismo também é.

Por alguma razão que só pode ser creditada à crescente estupidez e infantilidade dos movimentos identitários, certos segmentos do movimento negro parecem acreditar nisso também.

Um tal de TI tenta pegar uma carona e garantir seu espaço no noticiário, dizendo que tudo isso é parte de um momento para destruir a cultura negra:

Destroy another strong black historical LEGEND?!?! It’s several examples of pedophilia in American History… if y’all pulling up all our old shit… we gotta examine ELVIS PRESLEY, HUGH HEPHNER,and a whole slew of others guilty of the same if not more!!! BUT WHY US all the time?

Elvis talvez possa ser chamado pedófilo, embora de um tipo socialmente aceito em seu tempo e lugar — Jerry Lee Lewis se casou com a prima de 13 anos; Loretta Lynn casou aos 15. No Brasil colonial, quando a menina menstruasse já podia casar. É algo aceito culturalmente, diferente, por exemplo, das ações de Adam Ant ou Michael Jackson — que ainda têm o agravante da torpeza. Mas ninguém questiona isso, na verdade, e o grito de TI é inócuo, bobo.

Aterrorizante é ver os comentários. As pessoas concordam com o tal TI. Elas se tornam desonestas aos se recusar a admitir que Michael Jackson era um sujeito doente, profundamente perturbado, cujas idiossincrasias faziam com que fosse rodeado por um tipo de gente abjeta que pessoas comuns têm dificuldade em acreditar que possam existir. Em vez disso, é melhor acreditar que ele era a vítima de um racismo inexplicável — talvez o mesmo racismo que fez dele o maior ídolo pop dos anos 80.

A questão é: defender um pedófilo só porque ele é negro? Não se trata sequer de um caso como o de Bill Cosby, que nos últimos anos teve sua imagem destruída por uma série de revelações de abusos sexuais. Ninguém pensou em creditar a denúncia dos crimes de Cosby a uma agenda racista — provavelmente porque a contribuição de Cosby para a afirmação da cultura negra já foi superada há algum tempo pelos atuais movimentos identitários. Assim, as pessoas puderam ver Cosby como ele é realmente: um criminoso, um estuprador. No caso de Jackson, ele ainda é um ídolo para muita gente; e num movimento que se baseia em simbolismos e “ressignificações” como o identitário, atacar sua reputação é o mesmo que enfiar uma faca em seu peito.

Ainda mais curioso é que, apesar da boa vontade dos que parecem tentar transformar Jackson em uma espécie de neo-Malcolm X post-mortem, a verdade sobre ele é mais complexa. O fato de ter vitiligo pode explicar o embranquecimento de sua pele, mas não explica o cabelo cada vez mais parecido com o de Elizabeth Taylor ou o nariz que, em sua última encarnação, prenunciava o da “Noiva Cadáver” de Tim Burton. O discurso de Jackson, em nenhum momento, foi o desses movimentos identitários; em vez disso, em canções como Black and White, nos seus filhos brancos e esposas mais brancas ainda, e nas suas vítimas brancas ou pelo menos latinas, Michael Jackson parecia dar a entender que preferia um mundo onde etnias simplesmente não fossem mais importantes. Se estivesse vivo hoje e mantendo as mesmas posições,  em algum momento certamente seria vítima preferencial desses “social justice warriors” lacradores que pululam nas redes sociais.

(As gerações atuais, mais burras, menos sutis, enfatizam Black or White como hino antirracista. Mas a ponte que Jackson criou se estabelecia em um nível mais alto, menos óbvio, mais artístico: quando Jackson misturava a música negra e a guitarra de Eddie van Halen em Beat It, por exemplo, invertendo o fluxo da música pop. Mas esse tipo de coisa parece sofisticada demais para as novas gerações.)

Imagine-se Michael dentro da cultura de vitimização que se tem criado ultimamente. Coitado, dormia com crianças porque não teve infância e foi abusado física, emocional e talvez sexualmente pelo próprio pai (que numa visita recente ao Brasil teve um piripaque por abuso de Viagra. Pelo visto, ele não gosta de meninos; gosta é de puta, mesmo, como qualquer pessoa decente). Um dos garotos de Suzano perpetrou o massacre na escola Raul Brasil porque tinha pais viciados em crack e gostava de jogos violentos. Tudo é desculpa, tudo é explicação para o que não carece de justificativa nem admite escusa. Num mundo onde todos são vítimas, não existem culpados.

A vida e o ambiente de Jackson eram um circo dos horrores, um pesadelo infantil. Branco ou preto, Michael Jackson era no mínimo estranho, um homem doente mas rico, vivendo num mundo cão. O número de pessoas que vivem vicariamente de seu nome e de seu espólio é impressionante até para os padrões de famílias pobres de superstars. São eles que estão assustados com a perspectiva de perda da galinha dos ovos de ouro. Em seus últimos anos Michael Jackson dava prejuízo. A decadência criativa, o estilo de vida insano, o vício em drogas e provavelmente os meninos não custavam barato — só o Jordie Chandler, que descreveu acuradamente a genitália de Jackson, lhe custou 25 milhões de dólares em um acordo que mostra que o dinheiro, para a justiça dos EUA, está acima do bem-estar das crianças. Morto, em menos de dez anos Jackson se tornou uma marca lucrativa novamente — e essas acusações ameaçam acabar com a renda de muita gente.

A morte da II Guerra Mundial

Há algum tempo conversei com um senhor que, quando criança, tinha que correr dos bombardeios aliados para se abrigar no subsolo de um castelo próximo de sua aldeia. Para ele esse tempo ainda existe, ainda é hoje, ele lembrava daqueles dias talvez melhor do que lembrava do que fez um mês atrás.

A cada dia tenho a sensação de que pareço mais e mais com ele.

Para mim, e certamente para toda a minha geração, a II Guerra era um tema atual. Nos anos 70 grande parte dos veteranos estava na casa dos 40 ou 50 anos — gente relativamente jovem, com histórias para contar ou para tentar esquecer. Pelo seu impacto na história do mundo, aquela guerra ainda fazia parte do imaginário cotidiano. E tinha uma presença cinematográfica que nenhuma outra teve antes ou teria depois.

Já não havia tantos filmes sobre o tema no cinema — era o início da era dos blockbusters , e por alguns anos os EUA tentaram ganhar na tela a guerra que perderam no Vietnã —, mas na TV ainda assistíamos aos seriados dos anos 60, uma espécie de segunda onda cultural: “Guerra, Sombra e Água Fresca”, “Combate”, “Ratos do Deserto”. E mesmo seriados contemporâneos de vez em quando traziam referências a ela: em Shangri-la Lil, episódio de um seriado hoje esquecido chamado “Operação Resgate”, mas que animou por algum tempo minhas tardes de domingo, os heróis se batem em 1979 com um soldado japonês que pensa que a guerra ainda não acabou, obviamente inspirado no caso de Hiru Onoda, moço meio tantã que acabou vindo morar no Brasil.

Mas agora tudo isso faz parte de um passado cada vez mais remoto. Em menos de 20 anos se comemorará o centenário da invasão da Polônia pelos alemães. Daqui a pouco morre o último veterano, se é que o coitado já não bateu as botas enquanto escrevo estas maltraçadas. Para as gentes mais novas que eu, a II Guerra jamais vai ter o apelo e a importância que tem para mim e para os outros velhinhos que arrastam com cada vez mais dificuldade suas carcaças. É só mais uma guerra. E não é.

A II Guerra foi a última guerra santa; não porque se combatia o nazismo e o fascismo, mas porque ao seu final se soube do Holocausto. Não havia mais zonas cinzentas, como houve na I Guerra e mesmo em uma invasão como a da Ucrânia pela Rússia: foi uma guerra do bem contra o mal, porque não há questionamento possível diante dos campos de morte da Polônia. Claro, nessa equação a gente finge que não viu os bombardeios de Dresden e Berlim pelos Aliados, nem dá notícia de Nagazaki; só os nazistas e os japoneses, afinal, cometeram crimes de guerra.

De lá para cá veio a guerra do Vietnã, a primeira a mostrar em tempo quase real a desumanidade de um conflito; mais tarde, a primeira Guerra do Golfo promoveu uma certa desumanização da guerra, tornou o que é apenas insensatez, dor e morte em algo cada vez mais asséptico e parecido com um videogame.

As coisas parecem estar mudando, no entanto. A estupidificação mundial alcançou seu ápice com a atual guerra de Israel contra o povo palestino, enquanto a mídia internacional tenta demonstrar por A mais B que vidas de israelenses valem mais que vidas de palestinos. Em outros tempos proavelmente conseguiriam. Mas as redes sociais devolveram a dor, o drama humano, o sangue à ideia de guerra. Guerra está perdendo a graça e parece estar voltando a ser apenas o que sempre foi: destruição, estupidez e morte.

Pensando bem, que bom que a II Guerra Mundial está morrendo.

Mickey

Percebi dia desses que, ao contrário do que acontece com gente mais perspicaz que eu, para mim os personagens Disney clássicos — Mickey Donald, Tio Patinhas, os habitantes de Patópolis — pertencem ao mundo das revistas em quadrinhos, e não ao cinema.

Comprei ano passado e vim ler agora Mickey Mouse – The Ultimate History. É um desses livrinhos curiosos da Taschen, que estava em promoção; e eu nunca resisti a promoções de livros.

Ali está claro o que para mim nunca foi óbvio: para o mundo, o Mickey que conta é aquele do cinema, que inaugurou o desenho animado moderno em Steamboat Willie ao coordenar de maneira inovadora som e imagem e que seguiu estrelando curtas e médias metragens ao longo das décadas seguintes. O livro fala brevemente de sua existência nos quadrinhos, mencionando inclusive a produção brasileira, que foi uma das mais importantes do mundo entre os anos 70 e 80.

Por um desses acasos da vida, o primeiro filme a que assisti no cinema foi justamente um daqueles desenhos: “Mickey e a Foca”, numa matinê no Cine Guarani, no comecinho mesmo dos anos 70. Tenho uma vaguíssima lembrança disso. Eram os últimos suspiros de um tempo em que cinemas tinham várias sessões diárias e buscavam atingir públicos diversos no mesmo dia. Mais tarde, ainda era possível assistir eventualmente a um longa animado em alguma reprise nos cinemas, como “Cinderela” ou “A Bela Adormecida”.

Mas era muito mais fácil achar uma revista em quadrinhos da Disney do que um desenho em cartaz. Aqui, as revistinhas Disney foram publicadas ininterruptamente pela editora Abril por 68 anos. Em qualquer momento que se fosse a uma banca de revistas, podia-se achar uma revista nova da Disney.

E daí que, pensando nisso porque obviamente não tenho mais em que pensar, percebo como o Mickey dos quadrinhos era tão mais rico que o dos desenhos animados. O Mickey dos desenhos não tem uma história real. Não tem vida além daquilo que vemos naquele desenho, daquela situação específica. Pode ser um operário de estaleiro, um sujeito em férias, um sujeito às voltas com uma foca em seu banheiro. Enquanto isso, o Mickey dos quadrinhos era detetive, cuidava dos sobrinhos, flutuava espaço afora em companhia de Esquálidus na Patrulha Estelar, era o escada perfeito para o Pateta. Nos quadrinhos, o Mickey alcançava voos muito mais altos. E não falava fino daquele jeito.

Isso vale para todos os outros personagens. Não custa lembrar que o Tio Patinhas é um personagem dos quadrinhos, não dos desenhos animados. As histórias desenhadas por Carl Barks, que deu a milhões de crianças uma noção mais ampla do mundo, existiam nas revistinhas, não nas telas de cinema. E o Zé Carioca, além de umas duas ou três aparições nas telas para adular o Brasil a ficar do lado dos EUA na II Guerra Mundial, só existe mesmo nas folhas de papel.

Pensar nisso me faz lembrar que sempre fiz distinção entre dois mundos Disney bem diferentes. Um era o dos quadrinhos, aquele que me era mais próximo, o do cotidiano. O outro era o do cinema — “Branca de Neve”, “Os 101 Dálmatas”, “Cinderela”, até mesmo “Bernardo e Bianca”. Podiam até se encontrar nas páginas das revistas, mas eles nunca me enganaram: eu sabia de onde vinham. Faziam parte de uma classe mais alta, mais abastada, mais chique. Eu não ligava de verdade para eles.

Acho que os editores da Disney no Brasil não pensavam assim. Imagino que, para eles, tudo era um produto só, que misturava indistintamente cinema e quadrinhos.

Paulo Maffia, editor da Disney no Brasil, disse há algum tempo que a era das revistas em quadrinhos baratas vendidas em bancas está acabando. Na verdade, as próprias bancas são hoje equipamentos públicos em extinção acelerada. Ele deve ter razão, mas o mundo se torna mais pobre com isso.

Ao sol que arde em Itapuã

Entre 79 e 80 as pessoas ainda veraneavam em Itapuã; como na minha casa as coisas eram diferentes, fui morar ali, em frente ao Hotel Quatro Rodas, então em construção, numa rua perpendicular à que hoje se chama Passárgada. Diante da casa havia um grande areal que se estendia até o Abaeté; e para chegar à praia passávamos pela casa de Vinícius de Moraes, que acabou dando nome à rua que a separa do mar, rua da Curva do Vinícius.

A casa pertencia a um sueco, se não me engano cônsul honorário. Tinha nome como um estate inglês, Vila Niva, com placa no portão a lhe dignificar. Corria uma lenda de que ele morara ali com uma sueca em um andar e uma brasileira no outro. Devia ser só isso, mesmo, só uma lenda, mas gosto de achar que é verdadeira porque ela reafirma minha fé na humanidade.

Os fundos da casa davam para o terreno imenso onde ficava o bar de Juvená. Era o bar onde eu comia ostras, uma ou duas dúzias de uma vez só, e onde Fia Luna tocava seu atabaque nos fins de semana. Lembro de brincar algumas vezes com o filho de Juvená — Ricardo ou Rodrigo, um nome assim; mas geralmente eu brincava sozinho, porque aquele mundo de areia era grande o bastante para dar espaço à minha imaginação.

Havia um restaurante de caça no centro de Itapuã. Nunca comi lá, nem sei se existe ainda; mas se eu já tivesse comido cotia naqueles dias tenho certeza de que seria cliente fidelíssimo. Havia também uns botecos onde jukeboxes tocavam Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Altemar Dutra — aquela boa música brega dos anos 70, quando os artistas populares ainda tentavam fazer com honestidade e verdade o melhor que podiam, ainda que o resultado fosse um pastiche de jovem guarda e música romântica de seu tempo.

Havia também uma loja de caça e pesca. Foi lá que comprei uma vara de pescar — de bambu ainda, não era dessas modernas — e uma faca de caça, com cabo imitando marfim, que me fazia sentir o próprio Tarzan. Comprei também uma bússola, objeto mais inútil que comprei na vida, porque o que importava eu sabia: a direção do mar.

Tudo o que eu conseguiria pegar com aquela vara, e mesmo assim um ano depois, de volta à Barra — lugar que sempre me tratou com o carinho e o amor maternal que eu merecia —, seria um baiacu pequenininho. Baiacu é rima, não é peixe.

A praia era delimitada pelo farol de Itapuã ao sul e por umas pedras ao norte. Era perigosa, violenta, e eu não costumava entrar nela. Mas entre as pedras a maré baixa formava uma pequena piscina natural, e era lá que eu passava dias quase inteiros, entre uma maré alta e outra. Um bocado de peixes nadava por ali, e havia um coral rosa numa de suas reentrâncias, na minha imaginação grande como as cavernas submarinas onde o Almirante Nelson e o Capitão Crane enfiavam o Seaview — ou ao menos o Sub-Voador.

Nunca consegui apanhar um daqueles peixes, mas uma vez arranjei um martelo e um formão e arranquei um pedaço daquele coral tão bonito; eu não sabia que era um ser vivo, e ninguém pode imaginar a minha tristeza quando vi aquele rosa quase imediatamente dar lugar ao que parecia apenas um pedaço de areia dura — nem o meu arrependimento por ter destruído aquilo.

Mas do que mais lembro, mesmo, é do cheiro. O cheiro do mar e da vegetação de restinga, o cheiro da areia branca.

Havia lagartixas e calangos e tijubinas, os mais bonitos. Bonitos, mas muito difíceis de apanhar. Era mais fácil pegar as lagartixas comuns, mais lentas, e delas havia a literalmente dar com o pau. Me tornei um exímio caçador de lagartixas, já que não podia caçar as raposas que diziam haver por lá e pendurar suas peles na parede, como eu via penduradas em “Daniel Boone”.

Tudo isso pertence a um tempo que já passou há muito. O único problema é que o passado nunca morre de verdade, vence a todos, inclusive o futuro que invariavelmente se transforma nele.

Há alguns anos achei na internet uma faca bem parecida com a que tive, e comprei: hoje ela é pequena para minha mão. E agora, em vez da bainha de couro, vem numa bainha chocha de poliéster.

Itapuã é contramão para mim, lugar para passar quando chego e quando saio de Salvador — e a minha cidade não é essa em que os baianos hoje vivem e da qual reclamam diuturnamente, ela existe em outro tempo. Faz muitos anos que não ando a pé por Itapuã; mas passando de carro dá para perceber que embora alguns marcos ainda estejam lá, como a quase centenária padaria Portugal, o bairro está cada vez mais caótico, e não devia ser à toa que Caymmi foi morar em Rio das Ostras, bem longe da praia que não abriga mais jangadeiros como Chico, Ferreira e Bento, e onde Rosinha de Chico não vigia mais as ondas, dizendo “Morreu… Morreu…”

Mas uns anos atrás, depois de uma dessas campanhas em que a gente se ausenta do mundo esperando que ao final ele melhore, resolvi passar uns dias ali. Me hospedei no Quatro Rodas, que agora se chama DeVille.

O cheiro ainda está lá, em algumas partes a areia branca ainda está lá, mas tem cada vez menos areia e cada vez mais casas, e o cheiro parece meio diluído em meio aos tantos não-cheiros da civilização que finalmente alcançou Itapuã. Fia Luna não toca mais, agora é nome de rua em Stella Maris. A casa em que morei foi demolida para dar lugar a um desses villages de casas quase geminadas que estão na moda. Onde havia uma casa grande e uma casa de empregados e muita areia e um bocado de árvores agora há oito casas, se contei direito; e o areal em frente há muito deu lugar a muros feios e casas feias, típicas daquela maldição que flagela os baianos e os condena a enfeiar a cidade o quanto podem, até deixá-la irreconhecível em sua fealdade. Da casa sobrou apenas um pedaço do muro de pedra e alguns coqueiros, agora enormes. Mais nada. Quem morou ali um dia escolheu o lugar para se perder do mundo na imensidão dos areais de Itapuã, mas o progresso chegou e trouxe o aperto da cidade para mais longe.

Mas é como eu disse, o passado nunca é totalmente passado, e passei umas duas horas na piscininha como se ainda tivesse oito anos, porque ela continua igual ao que era há tanto tempo. Os peixes continuam nadando ali, tranquilos porque sabem que ninguém vai conseguir pegá-los com as mãos.

Eu só não sabia que já não era o caiçara que fui um dia, e a pele não aguentava mais, e saí de lá com ela vermelha, queimando, e queimaria por mais alguns dias. Mas não estava triste. Porque no lugar de onde eu tinha tirado o coral quatro décadas antes a vida tinha voltado, e ele estava lá, rosa, como se nunca tivesse passado pelas mãos de um menino que ainda não sabia nada da vida.

Every Now and Then

A primeira coisa que se deve levar em conta ao pensar na música dos Beatles é que eles eram uma fusão, e não uma soma. Soma, por exemplo, é o Led Zeppelin: músicos brilhantes fazendo um som que é a combinação de cada talento individual. Nos Beatles acontecia algo diferente: era a contribuição de cada um que se transformava, ao se fundir às dos outros. Por isso, talvez, nenhum ex-beatle jamais soou como Beatles, ou como soava na banda.

Quando Free as a Bird apareceu, podia ser picaretagem, caça-níqueis, acerto de contas; mas era indubitavelmente uma canção dos Beatles. McCartney e Harrison trabalharam mais que a letra ou a criação de um novo middle eight: cada um deu sua contribuição ao som final da canção, e o resultado foi algo que não soava como suas carreiras solo. Traziam, além disso, algo novo: McCartney tocava um baixo inédito, o Wal de cinco cordas, e a guitarra slide de George era algo que não podia ser ouvido em qualquer canção dos Beatles.

Em resumo, Free as a Bird soava como os Beatles poderiam soar em 1995, em um dos tantos futuros possíveis.

Now and Then não tem nada disso. É apenas uma música fraca de Lennon superproduzida por McCartney. Só isso. Mais nada. Não há Beatles nessa frase, e é esse o seu problema.

Para começar, é o resultado de uma pequena canalhice. Ela jamais seria lançada se Harrison estivesse vivo. Ele a definiu perfeitamente: era lixo, e não queria ser visto ao seu lado como eu não gostava de ser visto ao lado dos urutaus a que a vida me obrigava na adolescência.

Mas Harrison está adubando algum coqueiro no Havaí há mais de duas décadas. E agora a famosa democracia beatle não vale mais nada. McCartney sempre quis lançar essa canção, talvez porque sonhe com uma reedição da parceria com Lennon e essa seja a sua última chance, talvez porque saiba que em tempos de streaming é preciso lançar um factoide realmente impactante de vez em quando. É uma vitória pessoal de McCartney, mas é uma vitória de Pirro.

Now and Then é uma canção chata em tom menor, como convém aos tempos. É pouco inspirada, só mais uma encarnação da eterna lamentação de Lennon por Yoko Ono. A participação de Harrison se resume a um violão, certamente tirado do run through que aparece no vídeo, e está lá apenas para desencargo de consciência; não há a mínima sombra da marca de George nessa canção.

É a sua ausência, acima de tudo, que condena Now and Then a não ser uma música dos Beatles.

Sua ausência, claro, e a abordagem dada à canção. O objetivo de McCartney não parece ter sido fazer uma canção que soe nova, fresca; é como se ele a abordasse não mais como um membro da banda, mas com a perspectiva de alguém que olha de fora e quer que a canção soe como Beatles.

McCartney chegou a usar seu velho e bom Hofner, baixo que, enquanto ainda era um beatle de verdade, abandonou em 1966. O Hofner, com seu som limitado, foi usado porque esse é o “beatle bass”. Da mesma forma, fez um solo medíocre de slide guitar porque é o que se esperaria de um solo de Harrison hoje. Para ter mais raiva, compare com o belíssimo solo de George em Free as a Bird.

No fim das contas, a canção soa como McCartney e como Lennon, apenas. A canção tem a marca de Lennon, e embora chata tem um refrão agradável potencializado por McCartney, mas traz também os mesmos valores de produção típicos dos discos recentes de Macca — especialmente o seu piano.

E isso não é Beatles. Quando Page and Plant lançaram No Quarter ou Walking into Clarksdale, nos anos 90, ninguém tentou dizer que eram novos discos do Led Zeppelin. Não deveriam aceitar que se diga isso agora.

O mais irônico em tudo isso é que McCartney fez o que acusou Phil Spector de fazer em The Long and Winding Road. É uma tentativa de salvatagem de material ruim no estúdio. Como a história é uma malvada singularmente cruel, o resultado a que ele chegou é inferior ao de Spector.

Mas há um outro aspecto interessante em tudo isso. Estão dizendo que esta é a última canção dos Beatles. Não é. É algo completamente diferente: é o início de um novo tempo.

***

A segunda coisa que se deve ter em mente é que The Beatles, hoje, é apenas uma marca administrada por uma empresa de asset management chamada Apple Corps, que só existe para gerenciar os produtos disponíveis e possíveis de uma banda que acabou há quase meio século.

Neste momento, a empresa passa por um processo de sucessão. Yoko Ono, com a indesejada das gentes fungando cada mais perto do seu cangote, já passou o seu lugar na Apple para o filho Sean. Dhani Harrison mais cedo ou mais tarde será o único responsável pelo espólio do pai. Em algum momento nos próximos anos, os filhos de Paul McCartney e Ringo Starr assumirão os lugares dos pais como sócios administradores da Apple.

Nenhum deles tem os compromissos estéticos e emocionais com o legado dos Beatles que McCartney, Starr e Ono ainda têm. Não viveram aquilo, não têm lembranças, não tem razão para mágoas. Sabem do seu valor, claro, mas estão distantes o suficiente para encarar o material que têm nas mãos como produtos iguais a quaisquer outros.

Além disso, não custa lembrar que os filhos dos Beatles são essencialmente filhos de milionários. Com poucas exceções, como Stella McCartney e Zak Starkey, são diletantes que, no caso de Dhani e James McCartney, veem a música como passatempo, ou que, nos casos dos outros, se dão ao luxo de manter padrões de vida altos porque o dinheiro nunca deixou de entrar. (O mais talentoso filho de um beatle é Julian Lennon, mas esse foi há muito alijado desse grupo, e mesmo ele não tem a fome que falta aos seus co-irmãos.)

Para eles, a Apple é apenas a empresa do pai, e empresa tem que dar dinheiro. E desde o Napster, ficou mais difícil tirar dinheiro das pessoas simplesmente reembalando material antigo — e aí estão as caixas comemorativas de discos dos Beatles para provar, em que é preciso sempre adicionar material novo.

O que Now and Then e seu uso de tecnologias sonoras modernas descerra para a Apple é um mundo de possibilidades para transformar em produtos comercialmente adequados o que resta de material inédito da banda. Posso apostar com qualquer um que o próximo passo será remasterizar a voz de Lennon em Free as a Bird e Real Love. (Devem aproveitar também para tirar os excessos da produção de Jeff Lynne.) O segundo será recuperar e melhorar as gravações do Live at the BBC.

Mas há um mundo muito maior de possibilidades pela frente.

Por exemplo, os Beatles só lançaram um disco ao vivo oficial. Mas agora poderão fazer as gravações ao vivo soarem como se tivessem sido gravadas em estúdio, atuando naquela zona cinzenta entre restauração e recriação que a IA possibilita. Por exemplo, poderão dar qualidade decente ao Star Club, um disco de legalidade confusa mas muito interessante — bem mais que o Hollywood Bowl, certamente — que os Beatles conseguiram tirar em circulação em 1998. Ou podem pegar as gravações de shows ao vivo que circulam há mais de 50 anos e lançá-las oficialmente. Os shows no Japão, por exemplo, têm qualidade bem superior ao resto, e shows como o de Vancouver dariam bons discos. (Vale a pena procurar, nas redes, o Complete Purple Chick Live Collection Vol 1-12, com o que há disponível em gravações ao vivo por aí; se não achar me manda uma mensagem.)

Isso explica muitas coisas. Eu achei estranho que tão pouco material inédito tenha sido lançado na caixa do Let it Be remasterizado. Agora sei por quê: porque nos próximos anos, com uma distância razoável entre um e outro, veremos mais lançamentos de sobras. Porque o show tem que continuar.

Heróico

Já me acostumei com o Word corrigindo minha ortografia. Me acostumei com assembleia, com ideia, me acostumei até com o vazio deixado pelo trema que jurei defender até minha última gota de sangue, embora ainda ache que cinquenta não esquenta, e que os dois pinguinhos líricos no U cumpriam uma função importante e quase indispensável.

Essa resignação é mais notável porque desde o início bati pé contra a reforma ortográfica do Houaiss. Desnecessária, incompleta, e em um caso — é, o do trema — assassina. Mas o tempo vai passando, a gente vai se acostumando, a saudade deixa de doer tanto, a vida é assim mesmo. E os portugueses a odeiam ainda mais que eu.

Tecnicamente passei por duas dessas reformas. A primeira, no início dos anos 70, extinguiu acentos diferenciais e graves como o de “sòzinho” e “êle”. Infelizmente, boa parte do que li na infância e começo da adolescência tinha sido publicado antes de sua vigência, e o resultado eram pequenas confusões quando comecei a trabalhar, até que descobri que vivia em um mundo diferente. A segunda é essa de 1990, ainda mais canalha porque, não contente com acentos até discutíveis e hífens que norteavam minha vida, resolveu mirar no trema, antigo e indelével amor.

Mas eu me acostumei, tinha que me acostumar. Não tinha jeito. Então que tirem o acento dos ii, que os -éis percam-nos também. Eu aceito: “por um, por mil”, é um ditado da minha terra que o tempo me faz perceber tão correto.

Só tem um ou dois assassinatos de acentos que não ainda não consegui engolir. Certo, eu sei que esse dia triste chegará, mas para minha surpresa ele hoje me incomoda mais que a ausência do trema.

Como alguém pode escrever heróico sem acento e sem se envergonhar, sem enrubescer — embora eu ache que ninguém enrubesça mais desde a reforma de 1946?

Talvez essa minha revolta se deva à Reader’s Digest. Quando eu era criança, minha avó me deu um livro — hoje facilmente encontrável nos sebos do Rio — com algumas dezenas de biografias curtas de personalidades notáveis publicadas naquela revista. Eram eulogias, na verdade. Através dele conheci um pouco mais de gente de que havia ouvido falar, como Beethoven, Rondon, Sócrates, Galileu, Ford, Twain, Newton, e descobri um bocado de gente nova: Verdi, Helen Keller, Florence Nightingale, Marie Curie, Robert Peary.

E Toscanini.

Em 1944, Arturo Toscanini recebeu uma carta de um menino que pedia para ele tocar a “Heróica” de Beethoven, porque seu pai, recentemente morto na guerra, gostava muito dessa obra. Depois descobri que a sinfonia se chamava “Eroica” e que eu tinha feito uma confusão a partir da minha própria ignorância: por uma dessas inversões inexplicáveis que a cabeça da gente faz, heróico sem acento só remeteria a um menino que ainda não sabia escrever corretamente e pediu um dia para Toscanini tocar a Eroica.

Quando o corretor ortográfico me corrige nessa palavra, mais um pedaço de Toscanini morre em mim.

Ao resto já me acostumei. Me acostumei, sim. Primeiro era o Word, e no começo, porque gosto de brigar com corretores ortográficos e com a voz de puta do GPS do Google Maps que me manda entrar onde não devo, eu ia lá e recolocava o erro que não era erro em seu lugar. Depois o cansaço tomou conta da minha alma, não valia a pena continuar brigando por isso, ficou até fácil escrever assembleia sem acento, a verdade é que as ideias não ficavam melhores e nem piores por causa daquele traço em cima do E

Mas heroico não desce. Não vai descer nunca.

Se bem que eu disse a mesma coisa do trema e olha eu aqui, escrevendo coisas grandiloquentes sem o respeito necessário a uma pobre, mas importante e inesquecível vítima da modernidade.

Quem sabe.

Molambo

Eu sei que vocês vão dizer que é tudo mentira, que não pode ser. Mas o index prohibitorium desses tempos estranhos ganhou uma nova palavra — desta vez uma palavra maltrapilha, paupérrima, um trapo de palavra: molambo.

Uns tempos atrás rapper chamado Djonga — muito prazer, Djonga, quem é você mesmo? —, que me informam ser useiro e vezeiro nessa patrulha ortográfica que faz a delícia de desocupados nas redes sociais, caiu na própria armadilha: chamou a torcida do Flamengo de molambada e depois, como é a praxe nesses novos mecanismos de exposição, fez um mea culpa — esse pessoal adora a imagem de si mesmos com vestes rasgadas e cinzas na cabeça — dizendo que a expressão era racista porque era usada pelos senhores de escravos para designá-los.

Não sei o que o rapaz é, se vascaíno ou tricolor, mas a essa desdita ele acrescenta a estupidez, e se não se pode culpar ninguém por ser fiel a um time e se esbaldar no justo e prazeroso exercício de tripudiar a torcida alheia, pode-se reclamar de sua burrice.

Para impedir que a maldade fizesse de mim um molambo qualquer, sei que como flamenguista eu deveria ficar feliz porque as torcidas adversárias, se obedientes aos ditames dos censores vernaculares, ainda não podem chamar a gente de molambada, mesmo depois de ano triste como este 2023 que se acaba. Não que fosse me incomodar, até porque lembro que botei minha roupa melhorzinha para assistir ao pouco que vi in loco no Maracanã — mas em casa, diante da TV, era na base do molambo, mesmo. O problema é que, como cidadão com algum juízo, fico apenas mais um pouco desanimado com os rumos que este mundo está tomando.

Bem sei que assim procedendo me exponho ao desprezo de todos vocês, mas não é preciso ir ao dicionário para intuir que molambo é palavra de origem africana; o que o pai dos burros me diz além disso é que originalmente designava um pano que mulheres amarravam à cintura. Apesar do que diz o Djonga, é bem provável que senhores tenham aprendido a palavra e o seu significado a partir do uso que os escravos já davam. E é esse, ou pelo menos era até anteontem, o uso que o mundo lusoparlante lhe dá.

Molambo é feito em primeiro lugar, para descrever de maneira clara o estado de algo; em segundo, para ofender pobre malvestido, seja qual for a cor do desgraçado que não ouviu os conselhos da Glória Kalil. Pelo menos foi nisso que sempre acreditei. Eu e o resto da molambada, a torcida do Flamengo. Apenas no mundo distorcido desses militantes molambo é feito para ofender apenas negros.

Não há nada mais correto, sob qualquer ponto de vista, do que banir palavras e expressões que um tempo e um lugar julgam preconceituosos. “Preto de alma branca”, umas tantas por aí já incomodam mesmo que não se pense detidamente sobre elas, são expressões que a gente percebe imediata e instintivamente serem racistas.

Ruim é quando a imbecilidade acha cabelo em casca de ovo. Quando inventam mentiras bobas como as telhas feitas nas coxas de escravos, ou a aguardente que queimava as costas dos coitados nos engenhos, até mesmo o infeliz do criado-mudo, que mesmo calado está errado. O problema começa quando malucos ignorantes inventam os fatos necessários para justificar suas teorias.

Funciona assim: o mundo usa a expressão “a coisa está preta” desde sempre, porque a falta de luz sempre significou problemas. Aí aparece um pessoal dado a ressignificar palavras, se apropria da expressão e de repente diz que ela se tornou ofensiva e que devo me sentir culpado de usá-la.

Daqui a pouco a expressão “luz no fim do túnel” vai se referir a posteriori (sem e com trocadilho, por favor) a um negão com uma lâmpada enfiada no rabo por maldade do feitor, e eu não vou mais poder utilizá-la.

Durante muito tempo, tive a impressão de que zelotes sionistas tentavam puxar para si a dor do mundo, como se só os judeus tivessem sofrido; era um argumento até convincente porque nunca houve tão tenebroso quanto o Holocausto, a realização  mecânica de um ódio tão absoluto que não precisava sequer de uma motivação econômica. Funcionou enquanto o antissemitismo era o inimigo da vez; por sorte, não está funcionando tão bem enquanto Israel explode crianças em Gaza. Mas as coisas mudaram, o racismo contra os povos africanos ganhou — justamente, me apresso a acrescentar antes que encontrem mais bases do que já têm para me chamar de racista — a primazia nestes tempos inglórios, e agora é estranho que haja uma franja no movimento identitário que parece um masoquista vernacular, ao ficar procurando ou inventando palavras que possam lhe humilhar um pouco mais. É uma mistura estranha e retorcida de oportunismo e ignorância, típico da origem desse movimento: parte de uma elite cultural e acadêmica, profundamente influenciada pela academia americana a ponto de importar seu binarismo racial e as soluções dele derivadas, para a qual a palavra é o que realmente importa, mais que a realidade concreta, e que acreditam que se problematizarem o vernáculo vão mudar completamente o mundo.

É gente que acredita que homofóbicos matam travecões, mas não transgêneros.

E isso me deixa triste porque eu realmente gostaria que eles tivessem razão. Não têm. Mas talvez isso seja algo bom, e as coisas sejam assim para impedir que 0a loucura fizesse de mim um molambo qualquer.

Then and Now

Temporariamente aleijado, e sem poder escrever direito, a avaliação que posso fazer de Now and Then é de que continua sendo uma canção ruim de John Lennon superproduzida sem brilho por Paul McCartney — inclusive soando como sua produção mais recente. Chega a ser vergonhosa. E pior: não é uma canção dos Beatles, como Free as a Bird era. É McCartney sacaneando Lennon. Mas serve para deixar clara a dinâmica entre os Beatles: aqui George Harrison, que só aparece com uma guitarra contrabandeada de algum lugar, faz muita falta.

Now and Then

Já definiram: Now and Then, a última música de Lennon trabalhada por McCartney, Harrison e Starr, vai ser lançada dia 23. A canção é velha conhecida, embora o autor, sabiamente, não o tenha incluído no Double Fantasy. É uma balada chatinha, embora típica de Lennon, razoavelmente datada em alguns trechos. A capa do compacto é de uma mediocridade impressionante. Seria melhor usar as capas clássicas dos compactos ingleses nos anos 60, apenas um papel preto com um buraco no meio.

Now and Then acompanha o relançamento das duas grandes coletâneas da banda, conhecidas desde 1973 por Álbuns Vermelho e Azul, agora inflacionadas em 50% e e transformadas em álbuns triplos.

Em seu tempo, foram coletâneas importantes, porque ofereciam um resumo razoável da música da banda. Como efeito colateral  cristalizou no imaginário do público a divisão da carreira da banda em duas fases distintas, o que não corresponde exatamente à realidade nem, certamente, era sua intenção original. Hoje, sua única utilidade é garantir mais uns tostões para a gravadora e para a banda. Mas sejamos benevolentes:  são o acompanhamento adequado a uma canção pela qual McCartney briga há quase 30 anos. Eu achava que o Get Back fecharia para eles a porta das lembranças, e com chave de ouro, mas os danados sempre acham um alçapão.

Por coincidência, dia desses entrei num grupo de Facebook dedicado a bootlegs dos Beatles. É impressionante o número de pessoas que ainda colecionam e vendem e trocam discos piratas, mesmo em um tempo de assombros e maravilhas em que grande parte das gravações estão disponíveis gratuitamente e com melhor qualidade de som na internet, ou mesmo em lançamentos oficiais como os Live at the BBC.

Não recrimino ninguém por isso. Um dos primeiros discos dos Bealtes que comprei foi um pirata, o Decca Tapes. Durante anos, busquei sofregamente por qualquer versão alternativa ou inédita em que pudesse pôr as mãos. Até me imaginei um colecionador e um completista por vocação, sem saber que estava muitos, muitos níveis abaixo sequer do aceitável. Eu não tinha muito, mas queria ter, e isso me fazia achar que estava nesse barco.

Mas a chegada da internet e do compartilhamento fácil de arquivos me ajudou a ter uma perspectiva mais estoica diante desse comportamento. Me fez lembrar, em última análise, que o importante é, sempre, a música.

Não eram os discos em si que eu queria. Era a música que eles continham. Todo o resto — capas, encartes, badulaques — era dispensável. Diziam respeito à indústria musical. Libertar a música dos suportes físicos foi revolucionário.

Tudo o que eventualmente é realmente interessante nesse material está disponível na internet há muito tempo; para mim, por exemplo, é o bastante. Mas cada um faz o que quer, ninguém tem nada com isso.

Confesso apenas que costumo rir de colecionadores de vinil que ficam horas discutindo a superioridade do vinil sobre o CD, e isso e aquilo. Primeiro porque essa tara rediviva pelo vinil não passa muito de uma maneira de se diferenciar da choldra que ouve CDs ou mp3 bovinamente. Segundo porque quando a música fez diferença, quando ajudou a tocar o mundo para a frente, ela era ouvida mesmo era em rádios AM.

É mais ou menos como baixistas que juntam em fóruns da internet para discutir qual encordoamento é melhor, a vantagens mínimas de um baixo de 5000 dólares sobre outro de 5,500: nessas horas sempre lembro de Paul McCartney, o homem que revolucionou o papel do baixista. Quando perguntado sobre quais cordas usava, respondeu: “umas compridas e brilhantes”.

A Apple tem feito um dinheiro bom com esse pessoal. Pelas minhas contas, só nos últimos 40 anos esse grupo, que espero ser muito restrito, comprou os mesmos discos pelo menos nove vezes — a remasterização de 1988, os CDs mono, as remasterizações mono e estéreo, de 2009, os CDs mono e estéreo dessas remasterizações, os CDs americanos da Capitol, e agora es caixas de aniversário. Comprar uma coleção remasterizada de uma coletânea, no entanto, quando qualquer um pode montar a sua num pen drive ou no Spotify, me soa excessivo até para esses padrões e para estes tempos tão loucos. Não é a toa que Now and Then será lançada também em fita cassete — a prova derradeira de que essa necrofilia musical passou absolutamente dos limites.

Mas estou curioso. E não apenas para saber qual vai ser o lado B. Nas mãos de McCartney, Now and Then tem potencial para se elevar acima de si mesma. Mas posso esperar para que ela vaze nas redes.