A campainha tocou.
Ante surpresa tão rude, nem sei como pude chegar ao portão. E lá estava ela.
Ah, como esse amor demorou a chegar. Ela disse-me assim: “Tenha pena de mim”.
Sem saber o que fazer, as palavras saíram da minha boca: “Entre, meu bem, por favor, não deixe o mundo mau lhe levar outra vez. Entra, podes entrar: a casa é tua, já que cansaste de viver na rua e teus sonhos chegaram ao fim.”
Ela entrou, cabeça baixa, e ficou ali parada, no meio da sala, à luz difusa do abajur lilás.
Eu interrompi o silêncio: “Que queres tu de mim? Que fazes junto a mim?”
Olhando nos meus olhos, o mesmo olhar, ela perguntou: “Como vai você? Eu preciso saber da sua vida, razão da minha paz tão esquecida.”
Balancei a cabeça, e então lembrei de tudo: “Só louco amou como eu te amei. Só louco quis o bem que eu te quis.”
Ela deu um sorriso triste: “Esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei.” Devagar, se aproximou de mim, o mesmo perfume, o mesmo andar: “Negue o seu amor, o seu carinho. Diga que você já me esqueceu. Diga que já não me quer, negue que me pertenceu que eu mostro a boca molhada, ainda marcada pelo beijo seu”.
Explodi: “Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar.”
Ela levantou a cabeça, e tentou mostrar a velha altivez de antes:
“Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz! Se meu passado foi lama hoje quem me difama viveu na lama também.”
Aquelas palavras me deixaram descontrolado. Gritei: “Agora você vai ouvir aquilo que merece. As coisas ficam muito boas quando a gente esquece; mas acontece que eu não esqueci a sua covardia, a sua ingratidão, a judiaria que você um dia fez pro coitadinho do meu coração!”
Seu Orestes e dona Dolores, meus vizinhos, ouviram os gritos e foram até a janela perguntar o que estava se passando. E eu disse a ele: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher? E depois encontrar esse amor, meu senhor, ao lado de um tipo qualquer?” Seu Orestes abanou a cabeça e levou um cutucão de dona Dolores. Nesse instante uma voz ecoou: “Magoou-se, pobre filho meu?” Era dona Dolores, preocupada. Respondi que não, que eu resolveria aquilo, e eles se foram.
Olhei para ela: “Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem. A nossa casa, querida, já estava acostumada, guardando você; as flores na janela sorriam, cantavam por causa de você. E tu pisavas nos astros distraída…”
Aos prantos ela se ajoelhou aos meus pés: “Nunca mais vou ouvir o que o meu coração pedir! Nunca mais vou fazer o que o meu coração mandar! Eu fiz mal em sair, eu fiz mal em deixar o que eu tinha em você! Hoje eu volto vencida, a pedir pra ficar aqui, faz de conta que eu não saí!”
A estrofe derradeira merencórea revelava toda a história de um amor que não morreu.
Mas isso não bastava. Não para mim: “Quando eu queria o teu amor não davas atenção ao meu. Pra mim tu não tens mais valor, agora quem não quer sou eu. Nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim as pazes contigo eu farei.”
Ela continuou: “Se eu soubesse naquele dia o que eu sei agora, eu não seria este ser que chora, eu não teria perdido você”.
Quem sou eu pra ter direitos exclusivos sobre ela?, pensei. Menti: “Se acaso você chegasse no meu chatô e encontrasse aquela mulher? Eu falo porque essa dona já mora no meu barraco, à beira de um regato.
“Quem é ela?”
“De quem eu gosto nem às paredes confesso. Provei do amor todo amargor que ele tem. Então jurei nunca mais amar ninguém. Porém, eu agora encontrei alguém que me compreende e que me quer bem.”
Ela ficou em silêncio.
Apontei para fora. “Eu estou lhe mostrando a porta da rua pra que você saia sem eu lhe bater.”
Ela ficou parada, estática. Limpou as lágrimas, alisou o vestido e, dirigindo um último olhar para mim, falou: “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor. E às pessoas que eu detesto diga sempre que eu não presto, que o meu lar é o botequim; que eu arruinei sua vida, que eu não mereço a comida que você pagou pra mim.”
E ela se foi.
Hoje eu quero a paz de criança dormindo e o abandono de flores se abrindo para enfeitar a noite de meu bem. Mas quando eu morrer, na minha campa nenhuma inscrição: quando eu morrer não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela.
Lindo, lindo, lindo, Rafa! Brilhante é pouco!!
Beijão!!!
Ficou muito bom!
Lembrei-me do monólogo encenado pelo Pedro Paulo Rangel aqui no Rio todo baseado em letras de músicas. Chama-se Soppa de Letras e ficou quase 1 ano em cartaz.
Amei, muito bem feito.
Abraços
É, parece que tem gente que queria ser o teu caderninho.
Até que ficou direitinho. Continua assim que eu te “linko” lá no meu blog.
Abraço.
Bela viagem pela música do século passado!
Fui lendo e cantando os pedacinhos.
Rafael, devagarinho estou começando a desconfiar que voce é um cara ligeiramente especialíssimo. Grande post. Destravou portas de meu cérebro fossilizado.
Adorei o post! Sacada criativa e sensível. Também fiquei cantando. Bjs.
ótimo post, pra ler coladinho….
“Devias vir para ver os meus olhos tristonhos e quem sabe sonhar o meu sonho….”
Adorei o texto. Mas… por que será que eu li cantando mentalmente? Mistérios da vida… 😉
Como disse a Viva: aqui em BH o Pedro Paulo Rangel trouxe o espetáculo Soppa de Letras, também. Quase sempre, para dizer o indizível, recorremos aos poetas. Estes, sim, descobrem a palavra certa nos momentos incertos. “Ah! se soubessem o que sei!”
Ta aí, Rafa. Mais uma páginas e vira um musical de sucesso em São Paulo. 🙂
Rafael sempre surpreendendo.
não é do meu tempo!
:>)
Lindo. Galvão rasga a minha roupa e me faz mulher?
Ui, te quero!
Já estava com raiva da maldita!
Palmas…