Uma estreia na vida

Em 2009 eu estava numa cidadezinha perto de Londres, St. Albans. Visitava uns primos de minha então mulher. Cidadezinha simpática, aquela: tem umas casinhas em estilo Tudor, uma torre onde um rei francês qualquer ficou preso, umas ruínas romanas, um pub interessante que se diz o mais antigo da Inglaterra, o Ye Olde Fighting Cock, e a catedral onde João Sem Terra assinou a Carta Magna.

Eles tinham um casal de amigos, também brasileiros, que apareceu por lá. Eram os típicos emigrantes brasileiros: vindos do sul ou sudeste, jovens de classe média, tinham ido para Europa fazer serviços que jamais fariam aqui: ela era babá e ele entregador, acho.

Enquanto conversavam, eu olhava para eles e ficava pensando num passado que já era distante, mas não tão distante quanto agora. Foi naquele momento que percebi que talvez devesse ter feito as coisas de maneira diferente.

20 anos antes, finzinho de adolescência, o que eu mais queria era ir para a Europa, o centro do mundo, o lugar dos museus, das bibliotecas, dos escritores, dos cafés, das moças com um je ne sais quoi. Passar um ou dois anos conhecendo o que podia, vivendo a vida cosmopolita de um jovem despreocupado com o futuro.

Só não fui porque, além de frouxo, eu sentia que não podia largar as tantas responsabilidades. Tinha trabalho, faculdade, família. Não podia abrir mão de nada daquilo.

Foi ali em St. Albans, olhando aquele casal, que finalmente entendi que podia ter ido. A água que tinha passado embaixo daqueles 20 anos de ponte tinha me mostrado que não havia nada que eu não pudesse recuperar depois. Que minha família viveria sem mim, que eu poderia retomar a faculdade depois, que sempre haveria trabalho para eu fazer. Mais importante: talvez até tivesse voltado melhor, mais disciplinado, mais adulto, menos arrogante.

Naquele momento me arrependi de não ter feito o que quis ter feito um dia.

No fim das contas aquilo apenas se juntava a uns tantos arrependimentos que eu sempre tive, e a mesma água debaixo da ponte que tinha me mostrado isso tinha me feito não me preocupar com o que deixei de fazer na vida.

Porque sempre achei que a coisa mais idiota que alguém pode dizer é que só se arrepende do que não fez. É gente que não aprendeu nada na vida. Nunca me arrependi dessas coisas imaginárias, só das bobagens tantas e tantas que fiz ao longo da vida. Mas daquela vez fiquei pensando que tinha tomado a decisão errada. Anotei e deixei para lá, que o que não tem remédio, remediado está.

Mas St. Albans é longe demais, no espaço e agora no tempo. Lembrei disso porque, conversando com o Bia dia desses, ele me disse que devia ter feito isso e aquilo. O Bia é mais velho, mas lá no fundo é mais jovem que eu. Não fico penndo nessas coisas. Até porque essa ânsia de cosmopolitismo, que eu já tive, embora talvez de maneira mais difusa, é coisa de jovem. Hoje o que eu realmente gosto é de ficar deitado na rede, lendo no silêncio, sem sinal de celular e olhando os cachorros, beber vinho nas noites mais frias enquanto converso sobre o passado com essa mesma família que eu não pude abandonar por um ou dois anos.

Claro que não sei se se fiz o melhor que podia. Mas sei também de outra coisa: não importa. Talvez isso seja o melhor de envelhecer. É ficar em paz com o seu passado e fizer: eu fiz o que pude. Tá bom assim.

Beijinho, beijinho, tchau, tchau

Li as “Memórias” da Xuxa. Sei lá o que deu em mim. Nunca fui lá muito afeito a biografias e autobiografias, com exceções como as tantas sobre os Beatles, mas ultimamente andei lendo uma série delas. Nenhuma me deixou satisfeito, mas eu sei por quê: mesmo errado, sempre espero de uma autobiografia algo como as memórias de Casanova, ou algo abrangente como o trabalho de investigação feito por biógrafos como Peter Guralnick ou Mark Lewisohn. Em suma, uma autobiografia é para eu ficar sabendo de coisas sobre você que não posso saber de outra forma. Do contrário, seu livro é apenas exibicionismo barato, bazófia em mesa de bar, inútil para qualquer coisa além da satisfação da sua vaidade.

Meu próprio espanto diante desse livro vem do fato de que nunca tive nenhuma ligação emocional com a Xuxa. Mesmo criança detestava programas infantis de auditório, como “Parquinho” e “Recreio” em Salvador. E quando o “Xou da Xuxa” estreou eu já era velho demais para me interessar pelos desenhos que apresentava.

Mas mesmo em 2024, muita gente tem uma ligação emocional ainda forte com o que ela representou em seus passados, e esse é um fenômeno interessante. Além disso, Xuxa foi um dos grandes símbolos sexuais da minha geração, para dizer o mínimo. Sua existência não pode passar despercebida por nenhum brasileiro que tenha assistido à TV nos anos 80 e 90. E confesso: por 15 reais eu compro até livro de mashup entre ewoks zumbis e o amante de Lady Chatterley.

É uma obra muito ruim. É óbvio que ela não quer um relato realmente franco. Ela tem consciência de quem é e sabe o que deve dizer, dentro dessa perspectiva. Talvez por isso o título “Memórias”, naturalmente mais vago. Ela não quer elaborar muito, não quer refletir sobre sua vida e o sentido dela. Não quer contar o que não lhe é útil ou interessante. Ela está simplesmente deixando registrada a imagem que quer deixar para o seu público.

Mas ainda que se admita esse escopo tão limitado, o livro é esparso, insuficiente. Mesmo quando aborda temas dolorosos, como os abusos de que foi vítima na infância, Xuxa é discreta, quase reticente. Nas memórias de Xuxa Meneghel não há a possibilidade da merda no ventilador, do balde chutado, da abertura do peito; mas mesmo coisas que poderiam ser interessantes — o seu cotidiano em Nova York, a rotina de gravações do Xou da Xuxa, as pessoas interessantes que ela encontrou na vida — estão ausentes.

Os capítulos são curtos. As histórias são poucas. A verdade é que qualquer pessoa que corra os arquivos de revistas de fofocas dos últimos 40 anos poderia escrever uma biografia muito mais aprofundada, apenas com o que foi publicado nelas.

O livro traz um texto medíocre, de um tipo comum de jornalismo para iletrados, quase padrão nesse tipo de literatura. Pode ser apenas impressão, e quem sabe ele traduza com fidelidade as inflexões da própria Xuxa; mas eu já vi esse texto milhares de vezes antes, texto de ghost writer que simplifica demais o original.

Diante de tudo isso, o trecho mais interessante do livro talvez seja o momento em que ela fala sobre o comportamento do seu cão quando ela o namorado, Junno, faziam saliência:

Como ele sempre estava com a gente, quando a gente namorava na cama, ele virava de costas para não ver. Quando acabava, ele vinha com aquele sorriso e a gente dormia.

Gargalhei por uns 15 minutos depois de ler a cena, porque não consigo mais deixar de imaginar o cachorrinho latindo para dizer: “Ei, Junno, não é assim não, porra! Primeiro cheira o cu dela, cheira! Isso! Agora morde o pescoço! Maravilha, garoto! Pode montar! Aê, meu filho! Joga duro aí que vou ficar de vigia pra que ninguém jogue água fria em vocês!”

Curiosamente, as referências a sexo em todo o livro são raras, sempre contidas, quase pudicas. Isso é surpreendente, principalmente em comparação com as revelações feitas por ela no podcast de Sergio Mallandro recentemente. Ah, se os adolescentes dos anos 80 ouvissem a Xuxa falando que gosta de sexo anal, como ela contou no tal podcast.

O problema é que não são os segredos de alcova da Xuxa que me interessam, mas sim outro tipo de detalhes da vida privada. Parece faltar a ela a compreensão da dimensão correta de sua existência e do que é realmente interessante em sua vida para o público e para a História; e assim nos deparamos com informações absolutamente sem importância como o cachorro que se recusava a ser voyeur involuntário ou quantas tatuagens ela tem ou o que mudaria nela mesma ou uma longa peroração sobre as vantagens éticas do veganismo.

Talvez por isso, num livro tão rarefeito, o que mais chama a atenção não é uma informação, e sim duas grandes omissões.

A primeira chega a ser canalha, e é talvez o ponto baixo do livro: o capítulo breve que ela dedica ao filme “Amor Estranho Amor”, de Walter Hugo Khoury. Para quem não lembra, uma Xuxa ainda em início de carreira fez o papel de uma prostituta que tenta dormir com o filho de outra prostituta, interpretada por Vera Fischer. Do jeito que ela escreve agora, parece que apesar de ter feito contra a vontade, ela desde o início foi uma defensora pública do filme, atacado pelas forças conservadoras da sociedade brasileira. Isso não é só mentira, é safadeza pura e simples.

Hoje ela diz para as pessoas verem o filme. O que é curioso, já que ela moveu um processo proibindo justamente isso. Durante um bom tempo, Xuxa pagou 60 mil dólares anuais para que o filme não fosse exibido, e isso destruiu as possibilidades comerciais do filme. Mais recentemente, perdeu uma ação contra o Google em que pedia a proibição de menções ao filme em seus resultados de buscas.

Xuxa deve desculpas ao Khoury, que viu um bom filme seu ser censurado porque Xuxa achava que ele não ia bem com sua imagem de “rainha dos baixinhos”, e ao ator Marcelo Ribeiro, que faz o menino que ela tenta comer e que já reclamou várias vezes de ter tido sua carreira interrompida pelo processo da Xuxa. Aqui ela tenta reescrever a sua história de maneira cínica, e além de se expor ao ridículo, tudo o que consegue é levantar a suspeita de que mais trechos de sua trajetória foram tratados da mesma forma.

A outra omissão é mais complexa. Diz respeito a Marlene Mattos, sua ex-empresária, ex-guru, madrinha de sua filha e reconhecida universalmente como a principal responsável pela sua ascensão a ícone absoluto de toda uma geração.

Não é exagero. No YouTube é possível achar trechos do programa que a Xuxa apresentava na TV Manchete. É a mesma Xuxa, com o mesmo talento, o mesmo carisma incomparável, a mesma singularidade a que nos acostumamos. Mas ainda um diamante bruto, que não deixava perceber o tamanho do seu potencial. Foi na Globo que ela desenvolveu uma imagem muito maior que a vida, absoluta. E foi Marlene Mattos a grande responsável por isso.

Com Marlene, Xuxa chegou à capa da Veja em 1991 numa matéria que falava sobre sua fortuna de 19 milhões de dólares, na época. Marlene era devotada à sua garota: enriqueceu e fez da Xuxa uma milionária, dirigindo sua carreira com mão de ferro, fazendo o que era necessário para que ela continuasse sendo a autoproclamada “Rainha dos Baixinhos”.

Enquanto estiveram juntas, formaram um time imbatível. Um amigo dirigiu a Xuxa num spot para rádio da campanha contra a poliomielite infantil, no final dos anos 80. As duas chegaram juntas: Xuxa extremamente simpática, parecendo uma menina acompanhada da mãe contra quem tentava se rebelar timidamente, resmungando protestos, e Marlene direta, grossa, rude. Depois de gravar o primeiro take, ele pediu que ela fizesse mais um, e que fosse “mais Xuxa”. Ao lado dele, na mesa de controle, com o mau humor que lhe era proverbial, Marlene lhe perguntou: “E quem é que você acha que tá lá dentro?”

Xuxa e Marlene desempenharam uma simbiose quase perfeita. Juntas, conquistaram o Brasil e a Argentina. Separadas, jamais conseguiram ter o mesmo sucesso. A Marlene veio parar em Sergipe, administrando um hotel-fazenda por uns tempos. Não sei onde anda.

É essa Marlene que é quase totalmente ignorada na biografia.

Na matéria da Piauí que fala desse livro e da série do Globoplay, Xuxa diz que se afastou de Marlene porque passaram a discordar sobre os rumos de sua carreira. Marlene achava que Xuxa devia migrar para o público adulto. Xuxa, encantada com a recém-maternidade, queria fazer o “Xuxa Para Baixinhos”. Na matéria, Xuxa se autocongratula e diz que estava certa: os discos e vídeos dessa série venderam milhões de cópias.

Mas ela está mentindo para o leitor, e provavelmente também para si mesma.

“Xuxa para Baixinhos” pode ter vendido os tubos, mas no final das contas Xuxa acabou foi na Record. Ela não entendeu ou não aceitou o que Marlene sabia institivamente: que a Xuxa precisava envelhecer com seu público. E que, en passant, ela era maior que a Bia Bedran. O que Marlene e a torcida do Flamengo entendiam é que Xuxa poderia ter sido a nova Hebe Camargo, o que parece mais que óbvio num mundo onde Luciana Gimenez alcançou alguma permanência. Em vez disso, ali a musa do Pelé deu início a uma carreira errática que terminou com ela fazendo alguma coisa em algum lugar, eu não sei mais.

E mesmo com tudo isso, ainda assim o livro é bem-sucedido: o leitor chega ao fim simpatizando com essa mulher que desempenhou um papel importante na cultura e no imaginário nacional, e que no fim das contas acumulou qualidades que hoje, em um país piorado e cada dia mais medíocre, são admiráveis.

Isso é tudo que tenho para dizer. Mas antes de ir embora, queria mandar um beijo para o papai, para a mamãe e para a Xuxa.

Identidades

Meu cachorro é um cão equilibrado, tranquilo. Nunca fez mal a ninguém além dos pés de minhas cadeiras, minha edição de “O Gene Egoísta” e umas galinhas incautas que chegaram perto demais, nunca precisou. Meu pastor alemão é um poodle.

Eu sei que ele se identifica com um poodle. Um poodle melhorado, porque não é nervoso, não fica chorando quando saio, não tem medo de fogos de artifício, nem medo de outros cachorros, mas ainda assim um poodle.

É isso que vou responder quando as pessoas perguntarem se tenho cachorro. Tenho, sim, tenho um poodle. E na rua, quando os poucos que se atrevem a chegar perto de mim perguntarem “é um capa preta?”, eu vou dizer que não, é um poodle.

E se você alguma vez criticou a J. K. Rowling, vai me dar razão e vai dizer: sim, é um belo poodle, Deus benza.

E a minha cachorra, ah, essa é uma pinscher.

Como o Holocausto

Já passou da hora de dessacralizar o Holocausto.

Em vários momentos deste blog escrevi sobre o assunto, sempre lembrando a mesma coisa: o Holocausto é singular porque não fazia sentido economicamente, ao contrário da escravidão africana; porque era apenas a materialização em última instância de um ódio racial injustificável, explicado em sua origem por uma necessidade existencial do cristianismo; e pela sua natureza industrial, o fato de os nazistas montarem um complexo mecanizado de assassinatos em massa.

O sacrifício desses seis milhões de homens, mulheres e crianças acabou tendo um aspecto curioso. O Holocausto deu fim aos quase dois milênios de perseguição institucional ao povo judeu. O antissemitismo deixou de ser considerado apenas um preconceito a mais, e a memória do genocídio possibilitou a formação do Estado de Israel, em termos prejudiciais aos habitantes da região mas autorizado pela lembrança dos horrores nos campos de concentração.

Nada disso é menos que justo.

Nas últimas décadas, no entanto, Israel fez do Holocausto o seu habeas corpus permanente, num cartão de saída livre da prisão de Banco Imobiliário. Ao transformá-lo no maior crime humanitário que o mundo viu em toda a sua história — os 10 milhões de mortos no Congo Belga na virada do século, por exemplo, batem o Holocausto nos números e também em desprezo a uma raça considerada inferior, mas carecem da sofisticação alemã na criação de uma máquina de matar e da publicidade que os campos de concentração receberam, e por isso não merecem os mesmos lamentos —, e principalmente em algo que não admite comparação possível, Israel se vê liberado para cometer as atrocidades que quiser, porque nunca deixará de ser uma vítima inalcançável. “15 mil crianças mortas em Gaza? Você tem a audácia de comparar isso com Dachau?” Dando um passo adiante, descobriram a tática eficiente que é chamar qualquer pessoa que critique o que Israel faz com os palestinos de antissemita, palavra bexigosa da qual se corre como quem corre da lepra.

É por isso que diplomatas israelenses usam estrelas amarelas ao irem à ONU enquanto avançam no genocídio do povo palestino. Foi por isso que uns 30 anos atrás judeus novaiorquinos protestaram contra uma exposição sobre as vítimas gays e ciganas nos mesmos campos de concentração onde seis milhões de judeus perderam a vida.

A exclusividade do sofrimento, aqui, não é defendida com unhas e dentes à toa. Há um propósito nessa glorificação da desgraça, e se ela nasceu como uma garantia de que o Holocausto não se repetiria, agora se torna o pedestal sobre o qual Israel se escuda diante de um mundo cada vez mais horrorizado com a sua própria selvageria.

O tabu de se comparar o Holocausto com qualquer coisa precisa cair. Torná-lo “aquele que não deve ser nomeado” não é mais exatamente uma garantia para os direitos dos judeus. É, ao contrário, o passaporte para a violação dos direitos dos palestinos. O Holocausto é agora a desculpa para um novo Holocausto.

***

Quando o Hamas realizou sua ofensiva contra Israel em outubro do ano passado, jornalistas compararam o ato a um pogrom, angariando capital emocional para defender a crueldade sionista que naquele momento já tinha tido início. Fingiram esquecer que o que aconteceu ali foi justamente o contrário.

Pogroms eram algo totalmente diferente. Eram a violência contra um povo minoritário e oprimido. O ataque do Hamas foi o inverso: mais uma tentativa de um povo de se libertar do seu invasor.

A única comparação possível, que esses jornalistas se recusam naturalmente a fazer, é com a rebelião do Gueto de Varsóvia. Israel tem feito em Gaza nas últimas décadas o que os nazistas fizeram em Varsóvia, mas agora em muito maior escala.

É por isso que a definição do Hamas como terrorista parece cada vez mais inaplicável. Ninguém chama, por exemplo, a Resistência Francesa na II Guerra de “terrorista”, porque ninguém pode negar a uma nação oprimida e ocupada o direito à resistência armada. A não ser que essa nação seja a palestina.

Há toda uma nomenclatura canalha utilizada pela mídia internacional para mascarar o genocídio. Falam, por exemplo, da guerra de Netanyahu contra o Hamas, e não do que realmente é, a execução de um genocídio pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Usando esses termos, Israel pode destruir a Faixa de Gaza, pode atacar a Cisjordânia, pode chacinar mais de 100 pessoas na fila da ajuda humanitária.

Usando as palavras certas, eles podem tudo, como dizia a Golda Meir.

***

Independente de como chamamos o Hamas, e independente do resultado desta crise, a única coisa que se pode tomar como garantida é que a cada incursão israelense em território palestino, a existência de Israel se torna cada vez mais inviável.

Desde o início, Israel só foi possível pelo investimento das grandes potências, pelo interesse estratégico dos EUA, por exemplo, em um enclave no posto de gasolina do mundo. Num mundo multipolar onde outras potências se afirmam, no entanto, essa posição se torna a cada dia mais vulnerável.

E a cada pai morto, a cada mãe assassinada, Israel cria mais e mais militantes do Hamas, construindo aos poucos a sua própria inviabilidade. O ódio se espalha e se justifica. Israel entrou em um círculo de violência e autodestruição do qual não poderá mais sair.

Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

O tempo é relativo

Encontrei este texto que não publiquei, não faço ideia da razão; acho que porque disse coisas semelhantes em outros textos. Pela referência a Doris Day, é de 2019. E o que me deixou fascinado é que todos os nomes citados no segundo parágrafo morreram nesses três anos.

Quando Kirk Douglas e Olivia de Havilland morrerem — e aos 102 anos de idade, esse dia parece cada vez mais próximo — morre, definitivamente, a Era Dourada do cinema.

Há uma lista maior de sobreviventes, com gente cujos nomes são fáceis de reconhecer e que estreou no cinema na década de 40. Rhonda Fleming, Sidney Poitier, Angela Lansbury, Marsha Hunt, Jane Powell — astros não tão grandes em seu tempo mas que conseguiram a proeza de se afirmar, ao menos em parte e independente do seu talento ou beleza, por terem vivido mais que os outros. Mas esses não contam. Das estrelas, mesmo, aqueles que aproveitaram o melhor que o studio system podia oferecer, restaram apenas aqueles dois. Doris Day, que morreu dia desses, virou estrela justamente no crepúsculo dessa era, nos anos 50, quando a Universal já tinha feito o acordo com a CBS para disponibilizar seus filmes para a TV, e que para mim é o grande marco do fim da era de ouro da velha Hollywood.

Mas isso faz pensar em como o tempo é relativo, bem mais do que eu pensava quando tinha uns 20 anos e ainda não tinha visto tanta coisa e tanta gente passar diante dos meus olhos.

Para mim, o Velho Oeste americano sempre foi algo tão distante quanto os tempos medievais, ou quanto a Revolução Francesa. Basicamente porque havia uma série de símbolos e elementos que faziam parte do meu cotidiano e eram tão comuns quanto o oxigênio que eu respirava, e que não faziam parte do seu: luz elétrica, televisão, automóveis, telefones, asfalto. A própria ideia de fronteira, de conquista de um mundo novo, era uma completa estranha para mim. Ninguém é criança impunemente em Salvador.

Não é difícil entender: para quem tem vinte anos ou menos, basta imaginar um mundo sem telefone celular, sem chaves remotas em automóveis e sem internet. Daí porque Tombstone para mim não tinha absolutamente nada a ver com a Salvador

Mas o Velho Oeste nunca foi tão distante assim. E para mim, os melhores exemplos são Wyatt Earp e Bat Masterson, duas das grandes lendas do oeste.

Earp era um desses sujeitos sempre atrás de uma maneira de ficar rico, muitas vezes lidando com a violência própria daquele tempo e lugar. Seguia o dinheiro e, nas três primeiras décadas deste século, os dólares estavam em Hollywood. Earp foi consultor de filmes, apareceu em The Half-Breed, com Douglas Fairbanks, foi amigo de Tom Mix (o que deu em um filme ruim estrelado por Bruce Willis, Sunset). Masterson terminou seus dias como colunista esportivo num jornal novaiorquino, mais próximo daqueles jornalistas interpretados por Humphrey Bogart do que de Billy the Kid. Tenho a impressão de que alcançaram uma dimensão histórica imerecida simplesmente porque viveram mais tempo e puderam contar suas próprias histórias. Mitificaram miudezas. Quando se pensa em um episódio como o duelo no OK Corral entre os Earp e Doc Holiday contra os Clanton como um dos acontecimentos legendários da história americana, a vontade que dá é mandá-los passar uns dias numa operação policial no Complexo do Alemão. Ou talvez nem precise: Columbine e as tantas chacinas periódicas nos EUA são muito mais importantes do que um tiroteiozinho safado num cudemundo qualquer do Arizona.

Masterson morreu em 1921, Earp em 1926. Isso quer dizer que hipoteticamente minha bisavó, que tinha a idade do século, poderia ter ouvido histórias contadas por eles. E eu, já adulto, poderia ter ouvido dela essas histórias, em primeira mão. É essa possibilidade que encurta a passagem, que cria wormholes e torna qualquer espaço de tempo maior ou menor dependendo do seu ponto de vista.

Cabeça de desocupado é o escritório do diabo, e isso me faz pensar em como o tempo, afinal, não é tão relativo — a começar por pensar nisso, o tipo de coisa em que só se pensa depois que muita água passou por debaixo da ponte. O rio não para de correr, isso é clichê velho. Mas quando o clichê acontece com você, é diferente.

Em 2010 tomei um susto ao ver que 1990 já tinha sido há 20 anos. Não pela passagem do tempo em si, porque já fazia tempo que minhas memórias abrangiam décadas. Mas pela diferença fundamental que aquela data marcava na qualidade dessas memórias.

Durante todos os anos anteriores, quando eu lembrava de mim mesmo 20 anos antes estava lembrando de outra pessoa. Porque uma criança de 7 anos não é o mesmo que um homem de 19. Em todo esse tempo, quando lembrava de mim mesmo eu lembrava de alguém ainda em formação, ainda descobrindo o mundo e seus significados. E eu certamente não via o mundo aos 9 anos como via aos 30.

Mas a partir de 2010, quando voltava 20 anos no tempo, passei a lembrar de um adulto. A mesma droga entra ano e sai ano, pau torto já incorrigível e conformado.

Eu pensava que isso era ruim. O que eu não sabia é que isso podia piorar.

Mais dez anos se passaram e agora é 2000 que foi há quase duas décadas. Coisas que para mim foram ontem na verdade aconteceram há 10, 20 anos. Xingo Kubrick por me fazer acreditar que em 2001 eu estaria tentando desligar o HAL-9000, ou os tantos diretores de filmes B que fizeram ter a esperança de veranear em Andrômeda ou Aldebaran. Eu ainda quero as minhas roupinhas de papel alumínio, cadê elas?

Tudo isso é coisa que as pessoas que nasceram depois do bug do milênio jamais poderão compreender, e é até melhor assim. Eles não tiveram o ano 2000 como a expectativa de um marco fundamental a separar o passado do futuro. Quem já nasceu com o bug do milênio como passado, no entanto, tem uma vantagem: a própria concepção de futuro mudou, e a julgar pelos filmes de ficção científica o futuro é só um presente piorado e muitas vezes distópico; a minha geração e as que me antecederam tiveram direito a alguma esperança.

Penso nisso e solto uma risadinha anasalada de velho.

Dona Canô

Uma entrevista de Maria Bethânia ao Pasquim, agora disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional, traz duas coisas curiosas, que saltam aos olhos.

A primeira é a relutância de Bethânia em fazer elogios ou críticas a Gal Costa — ela insiste em não cair na pressão dos jornalistas e se limita a dizer que Gal é uma cantora “moderna”. Eram outros tempos, mais de cinquenta anos atrás, e o que se depreende disso é que Bethânia via Gal como uma concorrente, num tempo em que nenhuma das duas ainda tinha se firmado como um grande nome da música mercado. E, dependendo do olhar sobre a sua atitude e o próprio significado da palavra “moderna”, conclui-se também que Bethânia não era particularmente fã do estilo de Gal, talvez até se julgando superior em estilo e em repertório.

A outra coisa, e essa é mais interessante, é a importância de seu pai no imaginário e nas relações de hierarquia da família.

Dona Canô já entrou para a história como a grande matriarca dos Velloso, a figura central da família. A impressão que se tem hoje — me corrija se eu estiver errado — é que aquela família existia em função da grande senhora, que ela era assumia o papel de líder da casa, o esteio sobre o qual se instituiu uma família com importância incomparável na evolução da cultura nacional.

Não é o que se vê na entrevista. Ali está claro que a família girava em torno do pai, ele era o grande referencial da família. É dele que Bethânia fala, não é da mãe.

Mas ele morreria logo e, dos anos 70 em diante, quando os Velloso de Santo Amaro da Purificação ganharam o país e o mundo, Dona Canô se tornou a grande matriarca da família, e essa é a versão que vai ser contada.

Moral: a História se constrói do fim para o começo.

Os que vestem as cuecas por cima das calças

Faz 12 anos que deixei, de uma vez por todas, de comprar revistinhas de super-heróis.

Já tinha deixado antes, várias vezes. Das primeiras por falta de dinheiro, depois porque passava por ciclos de desinteresse e cansaço.

Ainda assim, acompanhei essas revistas com alguma regularidade durante uumas três décadas, mesmo que pulando alguns períodos de quando em vez. Quando comecei a ler as danadas, no início dos anos 80, elas apresentavam em grande parte as histórias do começo dos anos 70, boa parte das quais já publicadas pela EBAL e RGE. Foi a melhor fase do Capitão América — meu primeiro super-herói —, e o início de uma das mais chatas do Homem-Aranha. Stan Lee ainda escrevia muita coisa e era tudo muito repetitivo: o Capitão-América se sentia deslocado no mundo e tinha problemas com a namorada. O Homem Aranha se sentia deslocado no mundo e tinha problemas com a namorada.

Para uma criança de dez anos, era um mundo atraente e com o qual ela podia facilmente se identificar. Larguei aí pelos 13.

Mais tarde, acompanhei a revolução iniciada por “O Cavaleiro das Trevas” e aquelas que se seguiram: Watchmen (a série em quadrinhos mais superestimada da história), “A Piada Mortal”, “Asilo Arkham”, umas tantas por aí — sem falar no Spirit de Will Eisner — e eu voltei a comprar as revistas mensais.

Mas isso durou pouco tempo. Em 1992 a necessidade de cativar novos leitores fez com que os quadrinhos descambassem por caminhos estranhos. Para mim, o começo do fim se deu com a morte do Super-Homem. Descobriram uma fórmula mágica para conseguir um aumento expressivo de vendas por algum tempo, e dali em diante todos os super-heróis morreriam, real ou figuradamente.

A gota d’água foi quando substituíram o Peter Parker pelo seu clone, numa história impossível para quem tinha lido as histórias originais. Parei de ler as revistas nesse momento, e voltei quando a Abril lançou aquelas edições premium caríssimas. Logo depois a Abril desistiu da Marvel e da DC, e eu desisti também.

Algum tempo depois voltei a comprar as revistas do Batman, porque ele vinha sendo bem tocado. O Homem-Aranha, por sua vez, tinha umas fases razoáveis e outras muito ruins, porque se tornou um personagem convoluto demais, com reviravoltas inacreditáveis demais; mas também voltei a comprar suas revistas algum tempo depois.

Parecia namoro de adolescente, com vaivéns constantes até que se cansa de uma vez. Deixei de comprar as revistinhas definitivamente em 2012, quando me irritei com problemas de distribuição das últimas que ainda comprava — “Batman”, “Homem-Aranha” e “Vertigo” — e acedi ao cansaço que elas já me causavam há algum tempo. Adeus, passem bem.

De lá para cá, de vez em quando batia uma certa saudade das revistinhas de super-herói. Chegava numa banca e me espantava com a abundância delas, títulos e mais títulos que me faziam perguntar onde é que arranjam tantos compradores, afinal. Não faço ideia dos números de circulação; imagino que não se comparam a seu auge na Abril. Mas dia desses percebi que, quarenta anos atrás, havia muito mais personagens à disposição. Cada revista trazia três, quatro personagens diferentes, uma fórmula simples da Abril que tornava suas revistas mais interessantes que as originais americanas. Passei a achar que não estão lendo mais histórias do que eu lia. Apenas estão pagando mais por elas.

Mas de uns dois meses para cá resolvi baixar algumas revistas na internet. Alguns malucos reúnem os lançamentos de cada semana nos Estados Unidos e os disponibilizam nos torrents da vida.

E são coisas tão estranhas para este ancião.

À primeira vista, são mudanças demais. As revistas do Aranha estão ainda mais chatas e confusas para mim. Universos demais para quem não consegue lidar sequer com um. Mary Jane Watson está casada com outro sujeito? Otto Octavius virou o Homem-Aranha? É complicação em excesso, e algo que me parece uma bagunça dos alicerces originais sobre os quais se construíram esses personagens. É como os X-Men tivessem contaminado todo o universo Marvel, e ele não ficou melhor por isso. O Batman me parece um pouco melhor, porque seu filho é um personagem bem interessante e atualiza a dinâmica da dupla dinâmica, se perdoam isso que acabei de escrever.

É claro que sei que aqueles que acompanham essas revistas devem pensar diferente de mim. Que tudo para eles faz sentido, e suas sensibilidades são diferentes da minha. Pode ser, estou pouco me lixando. A verdade é que não consigo mais ler essas revistas. Passo os olhos, leio apenas algumas partes de cada uma delas.

Percebi que super-heróis já não me interessam, de nenhuma forma. Mas ainda me interesso por Bruce Wayne, Peter Parker, Steve Rogers.

É assim que leio essas revistinhas hoje, sempre que lembro de baixá-las: pulando as partes em que seres improváveis combatem o mal dando murros e pontapés, como faziam para as crianças de quase 100 anos atrás, e tentando acompanhar a vida privada de personagens fictícios que conheço há décadas demais para contar. O que transformou os super-heróis nos quadrinhos em algo um pouco mais que entretenimento para crianças, a ser abandonado a partir da primeira mão num peitinho, foi justamente a percepção que ainda mais importante que os poderes ou as peripécias ou a simples porradaria de sujeitos vestidos de maneira improvável eram os problemas do cotidiano que suas identidades civis poderiam ter. Foi essa a grande revolução que a Marvel protagonizou no início dos anos 60. Era Peter Parker, estúpido.

De onde vêm as palavras

Eu menti. Menti descaradamente, mas peço perdão porque não foi intencional.

Alguns anos atrás, respondendo a um comentário do Serge, falei que os quadrinhos Disney não foram importantes para o desenvolvimento do meu vocabulário.

Eu realmente acreditava nisso. Mas depois que escrevi me peguei pensando nas revistinhas que li quando tinha 6, 10 anos. E aí lembrei dos vândalos.

Passei anos tentando descobrir em que revista eu tinha lido uma certa história do Zé Carioca. Nela o Zé, em um dos quadrinhos, olha para uma porção de colcheias e semicolcheias caindo do céu porque um pandeiro mágico fora destruído, enquanto o inventor do instrumento, fora de quadro, grita: “Vândalos!”

Foi na Disney Especial “Os Mágicos”, de maio de 1979, e se chamava “O Pandeiro Mágico”. A partir do dia em que li essa história, e por um bom tempo, imaginei que vândalos fossem aquilo, aquelas figuras de notação musical.

Lembrando disso percebi que ao menos uma base do que entendo do mundo aprendi naquelas revistinhas, principalmente nas histórias escritas por Carl Barks. Até hoje, por exemplo, se imagino um país longínquo penso que o seu nome termina em “-istão”, porque o Tio Patinhas e os sobrinhos sempre precisavam resolver problemas e roubar tesouros em cusdemundo como Longistão ou coisa parecida.

“Expediente”, por exemplo — no sentido de lista de funcionários —, é palavra que aprendi também lendo as Disney Especial.

Durante anos achei que “dervixe” era outra dessas palavras, mas há pouco finalmente achei a história em que os tinha visto — e nela a palavra dervixe não era usada, e sim acrobatas; o que mostra um aspecto ainda mais curioso, aquele em que a imagem é tão forte que quando você descobre a palavra que a define automaticamente a associa a ela.

Essas são as de que lembro agora, sem pensar muito. Não faço ideia de todas as que aprendi naquelas revistinhas — ah, lembrei de outra, “cosmonauta” —, porque revistas não têm o caráter de permanência dos livros.

O meu problema, o que me faz desprezar tão injustamente as revistas em quadrinhos, é que ao mesmo tempo em que as lia, também lia outros tipos de livros, como a tal “Clássicos da Literatura Juvenil” de que já cansei de falar aqui. E lia também os livros do meu pai, com preferência para os policiais da Colecção Vampiro. Além disso, depois que ficou fácil achar essas revistas digitalizadas, reli várias delas e a verdade é que lembrava de muito poucas histórias, e por associação achei que não aprendi tanta coisa assim.

Claro que nem tudo era essa maravilha de que lembro e falo, e eu certamente tinha dificuldades para entender grande parte do humor e da ironia, e levei a sério demais livros como “As Aventuras de Huck”, embora mesmo depois de ler o original não consiga concordar com Hemingway, que dizia ser esse livro o ponto de partida da literatura americana. Da mesma forma, hoje tenho certeza de que acabei por menosprezar a importância daquelas revistinhas porque não consegui resolver uma dicotomia curiosa: nas últimas décadas, uma progressiva estupidificação cultural mundial se esforça para elevar os quadrinhos a um patamar literário imerecido, o que me incomoda porque, no exagero contrário, nunca achei que sequer chegassem perto de literatura séria.

No fim das contas, o fato é que eu lembrei dos vândalos, mas não posso fazer ideia de todas as palavras que aprendi naquelas revistas, de lugares do mundo reais ou imaginários. Devo mais a elas do que consigo imaginar. E isso nem sempre é bom: se você quer me enrolar, é só me falar de um país qualquer cujo nome termine com “-istão”. Eu vou acreditar que ele existe.

A volta do Zé Carioca

Nem li ainda, porque as revistas Disney publicadas pela Culturama, apesar de toda a conversa sobre “distribuição revolucionária” que cercou seu lançamento, não chegam a Aracaju. Mas vi em algum lugar que já há alguns anos voltaram a ser publicadas as estórias do Zé Carioca, e isso encheu o meu coração, sempre tão triste, de alegria.

Outro motivo de alegria é que fico sabendo também que redesenharam mais uma vez o figurino do Zé.

O Zé Carioca original era o típico malandro dos anos 30. Terno, chapéu palheta, gravata borboleta, guarda-chuva em pleno sol fluminense, como bom arremedo de lordes ingleses que eram e continuam sendo os brasileiros. O Zé Carioca era um 171, uma espécie de Afonso Coelho inofensivo, sempre aplicando pequenos golpes num tempo em que malandragem não era essa bandidagem carioca barra-pesada que acabou nos dando Bolsonaro.

Décadas mais tarde, colocaram o Zé numa camiseta branca. Não foi das piores transformações, mas a roupa faz o homem, e não à toa o Zé Carioca foi se transformando de vigarista clássico em apenas um boa-vida cada vez mais caricato, que odeia a simples ideia de trabalho. Achei um erro, que já escrevi aqui nos primórdios do blog: para o Zé Carioca, a roupa era um instrumento de mistificação e de ascensão social.

Finalmente, nos anos 90 transformaram-no na versão em quadrinhos de Claudinho e Buchecha. Velho conservador e reacionário que sou, protestei contra isso, mesmo achando que entendia a razão: uma maior identificação do Zé com a juventude atual, que nesse meio-tempo adquiriu protagonismo e poder de mercado, e correspondia à afirmação da comunidade que só queria ser feliz, andar tranquilamente na favela em que “naisci”. Era uma opção válida, embora não custe lembrar que as pessoas não pararam de dar golpes e que o Zé, antes de tudo, queria era sair do morro e morar com a Rosinha na mansão do Rocha Vaz.

De qualquer forma, hoje entendo que podia ser muito pior. Por sorte não acompanharam a transformação estética do personagem com uma mudança adequada e fidedigna de caráter. Ia ser estranho ver um Zé Carioca evangélico, carregando um AR-15 e gritando “nóis é cria”.

Agora leio que o Zé Carioca volta usando camiseta, sim, mas também um chapéu panamá. E é esse pequeno detalhe que me deixa feliz, porque mostraram que entendem um pouco melhor o Zé, sabem o que é o personagem. Não é mais o estelionatário boa-praça de 1942, e nunca voltará a ser; mas também não é mais o dançarino de baile funk, e isso acalma meus preconceitos, aquele mínimo de rigor histórico que ainda tenho, e me reconforta.

Em parte, isso acontece porque, de certa forma, vivemos a era da pós-malandragem. Ela perdeu muito de sua mística quando descobrimos como é na realidade. Não é preciso lembrar de Chico Buarque indo à Lapa para saber que aquela tal malandragem não existe mais. O malandro comum de hoje vira coach, vira pastor evangélico, aposta em esquemas de day trade, vira cabo eleitoral em eleição municipal. Malandro que aplica golpes no Mercado Livre ou OLX, tira dinheiro de velhinhas com cartões de crédito ou dá uns tapas no velhinho que acabou de pegar sua aposentadoria na saída da Caixa Econômica perdeu o direito de ser chamado de malandro, é bandido. Ninguém gosta de bandido.

Mas há algo na malandragem do Zé Carioca que permanece, e deve permanecer. É a malandragem no limite do inofensivo, quase uma tradução de uma certa joie de vivre talvez anacrônica, e de certa forma uma antítese do viralatismo agudo que nos assola já há alguns anos.

E essa malandragem talvez possa ser simbolizada pelo chapéu panamá, um detalhe bobo mas significativo. É quase como se um velho amigo estivesse voltando e, ao chegar, pendurasse o chapéu na porta.