A lista do Bia

O Biajoni publicou uma lista dos seus filmes preferidos. Demorou mais de 20 anos para ser feita. Ele fala de algo assim desde 2003, pelo menos.

Devo dois filmes ao Bia: um é Dogville, que não fui ver no cinema porque achava que era teatro filmado, mas que assisti por causa de sua recomendação entusiasmada; o outro é “Adaptação.”, cujo final o Bia explicou para mim e me fez ter outra visão do filme. Nada disso justifica, no entanto, o fato de “Casablanca” não estar na lista dele. Uma lista sem “Casablanca”, qualquer lista, seja de quem for, é como pão sem manteiga. É uma tristeza que o filme, que nos anos 80 viu uma espécie de renascimento (talvez em grande parte graças ao “Sonhos de um Sedutor” de Woody Allen), tenha sido relegado ao quase esquecimento neste século. Como é um século burro e idiotizado, talvez seja compreensível.

Sempre achei que não poderia fazer uma lista baseada nesse critério. Tem filmes que eu me recuso a assistir de novo porque tenho medo que percam o encanto, e no entanto gosto muito mais deles do que dos que revejo. Não é o caso, mas quando assisti a “O Campeão” pela primeira vez, caí em pratos, o que era incomum mesmo naquele tempo, porque meu coração sempre foi mais frio do que cu de foca; revi depois e a cena de Ricky Schroeder chorando o pai morto não me dizia mais nada — curiosamente, me emociono sempre que vejo o reencontro do garoto com Chaplin em The Kid. O Bia cita Birdy, um belíssimo filme de Alan Parker; me apaixonei por ele quando o vi, mas revê-lo não fez bem. Talvez por isso eu não tenha coragem de assistir novamente a alguns filmes que me fascinaram: não ouso, por exemplo, rever “A Paixão de Joana D’Arc” por medo de seu impacto — isso num filme que fará 100 anos em 2028 — se perder. Como ele, há tantos.

Por exemplo, vi Sweet November, um desses filminhos mal avaliados que ninguém viu mas que eu adorei, na TV preto e branco de minha avó. Depois de procurar muito consegui achar o filme, mas nunca assisti novamente: ele é colorido, o que destruiria minha percepção original, e para piorar foi conspurcado por uma refilmagem tenebrosa com Keanu Reeves no início dos anos 2000; seria inevitável fazer, a cada minuto, uma comparação entre os dois, e este certamente não é um filme que se presta a uma análise racional.

O Hitchcock favorito do Bia é o “Psicose”; o meu sempre foi “Janela Indiscreta”, embora o tempo me tenha feito apreciar cada vez mais “Ladrão de Casaca”. De Woody Allen o Bia gosta mais de “Memórias”, e eu sempre fui apaixonado por “Manhattan”. Curiosamente, eu esperava a enxurrada de filmes de Brian de Palma, mas não os tantos filmes de Allen.

É uma surpresa concluir que o Bia não é lá grande fã de comédias; Allen não conta, é um tipo sofisticado demais. O Bia, aquele puto, não tem senso de humor. Como é que pode não haver um filme de Chaplin que ele reveja constantemente? Ou Djéury Líus? Nenhum Python, pelo amor de Deus? Para piorar, ele certamente submete a sua criança interior a trabalhos forçados, uma espécie de David Copperfield da sala escura: nenhum desenho animado na lista.

Também lembro do impacto de assistir a Pulp Fiction e sair do cinema tentando compreender o que tinha acabado de ver. Mas ele gosta dos três filmes da trilogia do dólar de Leone, os únicos westerns na lista. Eu sempre digo que “Sete Homens e um Destino” é melhor que “Os Sete Samurais”, mas “Por Um Punhado de Dólares” não é melhor que Yojimbo — mesmo que praticamente tenha fundado um novo subgênero, o spaghetti, do qual não sou grande fã.

Partindo para outro gênero, definitivamente não sou exatamente um grande fã de Watchmen.

Achei engraçado que o Bia tenha saído com medo do cinema depois de assistir a “O Sexto Sentido”; eu saí encantado, repassando várias vezes o filme na minha cabeça em busca das pistas que o canalha do Shyamalan tinha espalhado pelo filme. Esse é um dos filmes a que assisto de vez em quando:  eu vejo pessoas mortas, o tempo todo. Quem diz que “Beleza Americana” era melhor que “O Sexto Sentido” é capaz de qualquer atrocidade.

A presença de “Elvis e Madona” na lista é compreensível, porque somos todos humanos, demasiadamente humanos; mas a verdade é que o livro do Bia é muito melhor que o filme. Quando o li, antes de ver o filme, mandei um email para ele com um bocado de críticas; aí vi o filme e percebi o tanto de besteiras que tinha dito.

Falando em filmes brasileiros, descobri que não costumo rever tantos. Há 10 anos redescobri “A Garota do Lado”, e o vi mais umas duas ou três vezes, fascinado com a sua delicadeza; mas é incomum assistir a eles, mesmo sabendo que alguns me encantariam a cada nova visita, como “O Bandido da Luz Vermelha”. Aliás, uns tantos anos atrás eu e o Bia publicamos uma lista de 25 melhores filmes brasileiros; vi agora horrorizado que ela não tem, por exemplo, “Eles Não Usam Black-Tie”. Quero nem olhar os outros absurdos. Quem esculhambou essa lista estava coberto de razão.

Revoltante é apenas a presença de Fletch; dia desses descobri que criei uma memória falsa, porque achava que era o Alex Castro, fã do personagem como eu, quem gostava desse filme equivocado; era o energúmeno do Bia. Pensei tão mal do Alex à toa, e dessa vez injustamente.

Fora isso, muitos filmes de terror, gênero de que não gosto muito. Um bocado de filmes que não vi, alguns de que nem tinha ouvido falar. Agora quero assistir a alguns deles. E um assombro: o Bia assistiu mais de 22 vezes a “Coração Satânico”. Eu podia jurar que o seu filme mais assistido seria algum de De Palma, de preferência um ruinzinho. Por outro lado, é uma surpresa ver que “O Portal do Paraíso”, filme singular porque sua ambição o habilitava a ser realmente grande, mas que fracassa miseravelmente, não está na lista. Agora entendo: o Bia defendia esse filme só da boca para fora.

Depois de ver a lista, meu primeiro pensamento foi: eu jamais poderia fazer uma lista com esse critério porque só revejo comédias românticas, gênero absolutamente desvalorizado pelo qual sempre tive uma queda. Notting Hill, “Em Algum Lugar do Passado”, Melody, Harry & Sally, essas coisas. Acho que é por isso que, quando eu tinha uma lista de 100 melhores filmes, o Bia reclamava que era uma lista acadêmica, no mínimo racional, e ele preferia uma lista mais pessoal — como essa que ele finalmente fez. Eu achava que ele tinha razão, mas dane-se se você tem razão, e dava o dedo para ele.

Mas depois de ver a lista do Bia fui pensando nos tantos filmes que revejo com frequência ao longo da vida. Faroestes como “Rastros de Ódio”, “Os Brutos Também Amam”, “Sete Homens e um Destino” e “Era Um Vez no Oeste”. Noirs como “Relíquia Macabra” e The Naked Kiss. Qualquer coisa com Humphrey Bogart, Marlon Brando, Chaplin e James Dean. Uns tantos italianos como “A Terra Treme” e “Ladrões de Bicicleta” e “Milagre em Milão” e “Cinema Paradiso”. L’Argent de Poche. O bom cinemão hollywoodiano de “…E o Vento Levou”, “Os Dez Mandamentos” e “Ben-Hur”.

Agora, graças à lista do Bia, e usando esse critério, percebo que a minha lista era, sim, muito, muito pessoal. Não interessa se são óbvios. É desses filmes que eu gosto de verdade — desses e de Notting Hill. Agora estou em paz comigo mesmo.

2 thoughts on “A lista do Bia

  1. Senti a mesma coisa que você quando assisti Pulp Fiction no cinema, pratalicamemte na estrela. Depois o revi vairias vezes.
    Outro dia fui mostrar esse filme pra minha filha que nasceu em 2001 e confesso que sofri pra assistí-lo. Começou a demorar, as cenas memoráveis parece que não estavam mais tão impactantes, sofri pra terminar. Acho que envelheci e mudei.

  2. Sobre a lista dos brasileiros que você fez com o Biajoni e se arrepende, espero que continue achando “Limite” uma merda (porque é mesmo!).
    Meus três favoritos do Woody Allen são “Manhattan”, “Broadway Danny Rose” e “Crimes e pecados”. “Sonho de um sedutor” é dirigido pelo Herbert Ross, baseado na peça de teatro do próprio Allen. Mas tem cara de filme do Woody Allen mesmo, mesmo passado na Califórnia.
    “Casablanca”, cada vez que eu revejo eu gosto mais. Já os filmes do Mel Brooks pra mim envelheceram mal, exceto o “Primavera para Hitler”.
    Você disse que não gosta de western spaghetti. Nem de “Il grande silenzio”? Esse eu acho genial.

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