Uns meses atrás falei que nunca gostei de novelas e o Leo Bernardes disse que eu era noveleiro enrustido.
Não é verdade. No início desta ainda curta passagem por este vale de lágrimas, eu odiava novelas, porque impediam que eu visse seriados e desenhos na TV Itapoan. Mais tarde, aprendi a tolerá-las, e cheguei a assistir com alguma regularidade a algumas. Hoje novelas antigas me interessam, por um tipo especial de nostalgia e curiosidade. Mas isso as pessoas já deviam saber, já escrevi sobre elas neste blog.
O que ninguém por esta internet afora sabe é que já ganhei a vida escrevendo resumos de capítulos de novelas para uma rádio do interior de Sergipe.
Sabe como é. Eu era jovem. Os tempos eram difíceis. Eu precisava de dinheiro. Às favas com os escrúpulos de consciência.
Ainda tenho alguns desses textos, que se não me engano sobreviveram em um disquete à primeira perda de um HD. São seis, o que me faz acreditar que eu escrevia todos os programas da semana seguinte de uma vez.
No fundo, era uma espécie de picaretagem — falo envergonhado em “picaretagem” como se rádio fosse outra coisa. Funcionava assim: as revistas semanais de fofocas, como a Contigo! e umas outras, costumavam publicar os resumos dos capítulos das novelas da semana seguinte; antigamente as pessoas eram mais sensatas e não tinham tanta raiva de spoilers. Eu recebia as revistas, cozinhava seus resumos, acrescenava o que fosse preciso e mandava por fax para a rádio. Depois, com o meu primeiro computador, passei a fazer isso de casa, indo para o escritório da rádio para enviá-los. Acho que foi por isso que esses textos — não chegavam a ser exatamente roteiros — sobreviveram.
Como os resumos das revistas eram sempre muito curtos, telegráficos até, eu precisava aumentar o texto para garantir tempo de programação. Fazia isso falando besteira, enchendo linguiça e tentando utilizar uma linguagem mais leve, mais coloquial. O nome do programa era o mais óbvio possível, e perfeito: “Cenas do Próximo Capítulo”.
Assim, se a revista dizia algo como “Ilka encontra Ataliba com três mulheres no Quem Me Quer, chora e termina o namoro”, o trecho ganhava o seguinte título: “No capítulo de hoje de ‘Fera Ferida’, Ilka pega Ataliba no cabaré!” O texto seguia a cronologia de cenas no resumo da revista. E o trecho específico sobre essa cena virava isso:
E não é que a Ilka Tibiriçá, que anda mais enrolada com o Ataliba Timbó do que pé de maracujá em cerca de arame farpado, dá um fora no ex-jogador, ex-namorado e ex-homem? Pois é, gente. Acontece que hoje a moça, que pode ser agoniada mas é uma senhorita decente, pega Ataliba com três moças no Quem Me Quer. Três, é mole? Justo Ataliba, que não conseguia dar conta de uma só. E aí ela cai no choro. Com razão, né? Mas cá pra nós, chorar por um cabra safado desses? Tenha santa paciência! Antes dela dar aquelas comidinhas pro Ataliba, ele não era capaz de pegar nem meia mulher, quanto mais três. Agora taí, esbanjando. Tome prumo de homem, Ataliba… Mas olha, tem uma moça que também precisa tomar tenência na vida. Linda, mais uma vez, vai atrás de Flamel. Ô, mulher, se respeite… Parece mulher de malandro, gente!
Acho que cada novela era abordada em um intervalo comercial diferente da programação normal, ao longo do dia. Não sei. Na verdade, eu nunca ouvi os programas que escrevia, porque eram feitos ao vivo. Não imagino que ficassem bons, porque não eram bons locutores os que andavam por ali.
Mais importante, talvez: faltava assistir às novelas. Eu não vi mais que uns poucos capítulos esparsos de cada uma delas: à noite eu estava na universidade, bebendo em algum bar do Rosa Elze, conjunto que fica em frente e era então ainda mais barra-pesada do que é hoje, ou tentando sem sucesso arrastar alguma incauta para uma noite de prazer indizível nas cabines da biblioteca, ou assim eu tentava convencê-las, coitadas — coitadas, não; moças de sorte e juízo, porque nunca aceitavam. As aulas de Processo Civil não eram exatamente o que eu mais frequentava naquele antro do saber. E assim, o que eu sabia das novelas que descrevia para o público sertanejo era apenas o que lia nos resumos e em eventuais matérias daquelas mesmas revistas.
Não tinha como dar certo.
Fazia décadas que eu não lia esses textos. Olhando agora, percebo como eram ruins. Faltava a este garoto a tarimba do rádio, o ritmo da palavra falada, a interação com os locutores, a compreensão de que o texto podia ser um pouco mais bombástico, mais conversado, mais empolgante — “Pega fogo, cabaré! Hoje Ilka pega Ataliba com três quengas no Bem Me Quer!”. Faltava também o domínio da linguagem sertaneja, que deveria estar aí, nesses textos. Faltava tanta coisa. Fosse mais velho e levasse as coisas mais a sério, em vez de apenas escrever eu insistiria em produzir e dirigir o programa — pensando nele como um todo, não apenas como texto.
Dane-se. Mais um para a lista de coisas que eu poderia e deveria ter feito melhor ao longo da vida. Pegue a senha 2746 e sente ali no fim na fila, por favor.
Mas tinha um programa ainda pior, porque esse não era o único que eu escrevia. “Vida de Artista” era um programa de fofocas que ia ao ar aos sábados. Essencialmente as matérias dessas revistas reescritas e condensadas. Desse só sobrou um, e era muito ruim. O texto do programa que sobrou tem menos humor, mais maldade e é mais duro: o programa me parece, lido superficialmente agora, um grande equívoco. Certamente não é nada que se compare a tantos programas bem sucedidos que hoje existem por aí. Sônia Abrão pode ficar tranquila: eu jamais poderia tirar o seu emprego.
Eu realmente não consigo lembrar se esses dois programas faziam sucesso ou não. Acho que não, porque tenho a sensação de que não duraram muito, mas não lembro a razão. Por mais inacreditável que pareça, tampouco sei como meu período como redator de rádio chegou ao fim: não sei se fui dispensado ou se fui fazer outra coisa que desse um pouquinho mais de dinheiro; foi mais ou menos nessa época que fiz minha primeira campanha eleitoral.
Já se passaram mais de 30 anos. Não existe mais Contigo!, não existe mais fax, e telenovelas são uma sombra do que foram um dia na vida cultural destes tristes trópicos. Sobrevivi a tudo isso. Posso reclamar, não.