A loura, de volta

Dorothy Parker voltou a ser publicada no Brasil.

Era absurdo, mas até poucos meses atrás não havia nenhum livro de Dorothy Parker em catálogo por estas bandas. A Companha das Letras relançou “Big Loira e Outras Histórias de Nova York”. Se alguém tem dúvidas de que o livro é excelente, basta olhar uma das pouquíssimas resenhas publicadas por leitores no site da Amazon:

Os contos me deixaram meio deprimida. Ficaram datados: falam de mulheres e homens que bebem, que traem e que não têm muitos objetivos na vida. São deprimentes e deprimem o leitor/ leitora. Talvez na época em que foram escritos refletissem uma realidade que precisasse ser conhecida e discutida. Me decepcionei, infelizmente.

Se há recomendação melhor para que se compre e se leia o livro com urgência, eu não conheço. Só posso dizer que fico feliz por saber que pessoas que bebem, traem e não têm muitos objetivos na vida são coisa do passado, e triste por ver como o nível intelectual da Tupilândia decaiu tão absurda em umas poucas décadas.

Parker é uma das grandes escritoras americanas do século XX, ponto. Não conheço sua obra poética. Conheço a contista, que vai muito além da crônica dos roaring twenties. The Portable Dorothy Parker, uma coletânea alentada de seus melhores contos, é um daqueles livros essenciais na literatura americana. Seus contos têm uma causticidade irônica que disfarça uma capacidade extrema de ver o tragicômico nas pequenezas da vida. Há uma ironia e uma melancolia extrema em seus contos, mas há também uma comiseração e empatia em relação aos seus personagens, talvez condescendente, mas sempre humana.

Por isso era um absurdo que não houvesse nada dela no Brasil. Já tinha havido. No final dos anos 80, foi lançado aqui “Big Loira e Outras Histórias de Nova York”. Era uma coletânea de alguns contos da moça, traduzida pelo Ruy Castro.

Eram tempos instigantes, aqueles. A Companhia das Letras era então uma editora jovem e ousada. E em torno dela circulava uma geração, então na casa dos seus 40 anos, que tinha sido formada nos anos 50 e 60, quando a indústria cultural americana impunha um novo padrão ao mundo. Gente como o próprio Ruy Castro, Sérgio Augusto, alguns outros. Graças a esse ambiente, a literatura americana do século XX, provavelmente a mais rica de seu tempo, foi publicada extensivamente pela editora: como Parker, Cheever, Bellow, Bashevis Singer, Malamud, Doctorow.

Parker é uma das melhores dessa safra, competindo apenas com Cheever.

A nova edição troca “loira” por “loura”, não sei se por imposição da nova ortografia ou por simples evolução do vernáculo. A nova capa é adequada, embora a original fosse mais sofisticada; a nova, sei lá por quê, me lembra os livros da Codecri. Tampouco sei se a tradução é a mesma. O que sei é que, seja como for, vale muito a pena.

Sobre livros

Parei de ler o conto de Tchekov porque naturalmente lembrei de John Cheever, e consequentemente lembrei de Dorothy Parker — mas agora a lógica é só minha porque descobri um e outra na mesma época. Coloquei o livro de lado, o cinzeiro na barriga e fiquei olhando para as vigas e ripas do telhado que tive que fazer e refazer porque primeiro reutilizei as telhas antigas da casa velha e elas eram ruins. Fidel está deitado ao pé da cama, Ceci sempre agoniada entra e sai do quarto, esperando acordar meu sobrinho que dorme no quarto ao lado.

No que penso é simples, penso nisso de vez em quando.

Tenho a impressão de que as pessoas estão lendo de maneira diferente. Talvez seja a minha ancianidade, a minha impaciência, ou a minha intolerância que não para de crescer, e então não vejo mais o que está à minha volta; mas leitores como os que eu via, que se aproximavam de livros como quem encontra fortuitamente um desconhecido na rua, esses eu não vejo mesmo. Vejo gente que descobriu um autor qualquer, normalmente menor, na universidade, e fala dele como velhinhos falam de Joyce ou Mann, ou um grupo de autores, quase sempre contemporâneos ou defuntos ainda frescos, porque eles são mais palatáveis a uma cultura imediatista, excessivamente abundante, uma corrida de ratos em que já não se sabe qual o prêmio, mas se sabe que não dá para deixar de correr.

Nas internets não vejo muitas conversas sobre literatura que não façam parte de guetos universitários, onde meninos são guiados pelos caminhos de escritores que interessam aos seus professores e seus artigos publicados em revistas que ninguém lê; parecer haver mesmo uma competição cujas regras só eles conhecem, uma busca por autores que eles conheceram antes que o resto daquele seu pequeno mundo — “antes que fosse modinha”, como dizem em seu dialeto —, que possam lhe dar uma certa primazia no conhecimento e que reflete uma certa obsessão permanente pelo novo que vai lhe fazer diferente e talvez melhor, como se um livro fosse um vestido de costureiro chique.

Vejo mais frequentemente conversas sobre livros, mediadas pelo consumo e pelo mercado, sobre edições bonitas com todos aqueles truques supérfluos que as editoras usam para tornar uma sequência de folhas de papel sujas de tinta em um objeto mais desejável peloseus  valor como objeto do que pelas palavras e frases que formam, como letras grandes e papel com gramatura maior e capas duras, sempre mais respeitáveis que brochuras.

Aí eu lembro que literatura também é moda. Nos anos 80, uma geração americanófila exercia uma influência enorme; isso mudou, se tornou mais diverso, paradoxalmente mais rico e menor; mas ainda assim é moda. A nova moda agora são autoras negras, parece. Amanhã talvez sejam índios, eu não sei.

Lembro também que houve um tempo em que havia uma certa unidade em torno de livros, que a internet matou. Graças a um ecossistema que incluía jornais e revistas, essas coisas que ninguém mais compra, alguns livros extrapolavam os limites do mercado, vendiam tiragens bem maiores que as três mil por edição de praxe. E esses livros ajudavam a criar elos em comum entre as pessoas. De memória, é fácil lembrar de tantos: “Vastas Emoções, Pensamentos Imperfeitos”, “Estorvo” numa resenha magnífica de Roberto da Matta na Veja (ou será que minha memória me trai mais uma vez?), “Perestroika”, “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”, “Personas Sexuais” de uma Camille Paglia que o identitarismo enxotou da moda. Tudo isso acabou. Alguns livros, por suas qualidades, conseguem superar seus guetos, mas ao mesmo tempo porque se adequam a uma percepção cada vez mais “nidificada” do mundo. “Torto Arado” talvez seja o melhor exemplo: se destaca ainda mais por outro elemento que não suas qualidades óbvias, mas porque está perfeitamente inserido naquilo que a nova elite intelectual quer ouvir e permite dizer.

Por isso penso no meu sobrinho que Ceci está esperando acordar, que parece saber tantas coisas, muito mais do que outros meninos de sua idade, mas que no entanto não parece ler tanto; e então fico com a impressão de que esse conhecimento vem pelo YouTube, ou de alguma outra rede social, e a maneira como se relacionam com esse conhecimento é diferente, e a própria natureza desse conhecimento é diferente. É um mundo diferente o que se forma à minha frente. Então talvez seja por isso que não vejo as pessoas falando de Cheever, nem ostentando o sorriso amargo que um conto de Dorothy Parker deixa na cara das pessoas.

Ontem matei uma aranha marrom antes que a curiosidade de Ceci a fizesse ser picada; e lembrei que se contasse isso nas internets algum desses moços ou moças que não conseguem mais viver sem tentar impingir aos outros suas boas intenções telúricas iria dizer que não se deve matar aranhas, porque elas fazem parte do ecossistema e são criaturas de Deus iguais em direitos a mim e superiores ao mendigo sem as duas pernas, porque comem isso e aquilo, sei lá que diabo elas comem.

Eu mato, mato, mato com gosto. Mais gosto, só em matar lacraia, porque eu já fui picado por uma e o seu veneno, em vez de me transformar no Homem-Lacraia porque eu não fui criado por Stan Lee, fez de mim o Psicopata do Piolho de Cobra, um vingativo raivoso que começa a tremer de ódio e a espumar pela boca quando vê uma lacraia.

Mas a conversa era sobre livros, acho. Ou não, não sei mais. Retomi o conto de Tchekov, que é o melhor que eu podia fazer.