Não vivemos mais no mundo em que nascemos

O título deste post é um comentário do Thiago ao post de ontem,

É algo em que sempre acreditei. E talvez tivesse até alguma razão, como Heráclito tinha ao colocar o pé no rio. Mas eu estava enganado, porque só agora a frase se torna realmente verdadeira.

Eu era criança em 1980. Via filmes dos anos 50 ou 60 e achava que vivia mesmo num mundo completamente diferente, e não percebia que o que era essencial no mundo não tinha mudado em nada. Talvez justamente porque tanta coisa permanecia inalterada, era mais fácil ver o que tinha se transformado — os carros eram diferentes, as roupas eram diferentes — e dar a isso uma importância maior do que realmente tinha, como se o bolo de chocolate virasse bolo de morango porque a cobertura mudou.

Em 1960 uma criança — e é isso o que mais me importa aqui, a infância — ia para a escola sentar com lápis e papel para aprender o que professores escreviam em quadros-negros, ia brincar com os amigos na rua. Via TV, os mesmos desenhos e seriados e novelas que seus vizinhos assistiam, os pais liam os jornais e revistas que seus vizinhos liam, ia-se para o cinema ver o filme que todos iam ver.

30 anos depois, a vida continuava exatamente a mesma. A TV tinha ganhado cor, as modas tinham mudado — mas a essência das coisas, não. Os elementos fundamentais da vida cotidiana continuavam os mesmos. Em 1990 os filhos daquelas crianças de 1960 continuavam usando lápis e papel na escola, aprendiam com livros e quadros-negros, à tarde iam para a rua brincar, ou ver TV, e à noite estavam diante da TV, com jornais e revistas em volta. O mundo era o mesmo, só mudava a maquiagem e uma roupinha nova. Mas a gente pensava que tinha mudado tanto.

Agora a gente olha 30 para trás e percebe que só agora a frase se torna verdadeira. Internet e smartphones mudaram a maneira como as pessoas se relacionam, mediam mesmo a sua interação com o mundo. As pessoas sabem menos porque, paradoxalmente, o mundo lhes oferece mais e mais. Amizades e amores se formam à distância. Encontros são mais raros, e considerados cada vez mais perigosos. Vidas encapsuladas se tornam cada vez plenas na percepção de quem as vive. Essa é uma mudança real.

(Me permito achar isso tão estranho. Em 1980 eu tinha 9 anos e saía da Euclydes da Cunha, onde morava, pegava um ônibus ao lado do antigo Campo da Graça e descia em frente ao cine Guarani, na praça Castro Alves. Assistia ao filme, atravessava a rua e pegava o ônibus que me deixaria no mesmo lugar. No ano seguinte, talvez me achando adulto aos 10, não era incomum ir ao centro da cidade a pé — Rua da Graça, Corredor da Vitória, Campo Grande, Avenida Sete, rua Chile, Praça da Sé onde ainda existia algumas livrarias —, mas era muito mais comum ir até a Barra de onde eu nunca deveria ter saído, brincar com amigos no meu pequeno feudo que ia do final da João Pondé até a Alameda da Barra, hoje mais conhecida como rua Miguel Calmon. Não sei de criança de classe média que faça algo parecido hoje.)

Havia uma certa unidade de pensamento que a internet extinguiu, e as pessoas, fossem quem fossem, tinham mais coisas em comum.

O fim da TV aberta é um símbolo importante disso, e por isso o impacto simbólico da morte do patrão do Lombardi. Por ser linear e analógica, durante algumas décadas, ela ajudou a unificar o país e definir uma base social e cultural comum. Eu nunca assisti a Silvio Santos ou Faustão ou Hebe, mas nunca tive dúvidas de que, como outros marcos da TV como o Jornal Nacional, o Fantástico, as telenovelas, eles representavam essa permanência e essa unidade. E é por isso que sua morte — e o fim do programa do Roberto — dá a impressão de ser a pá de cal num mundo que vem morrendo há muito tempo.

Sempre me incomodei com aquele pessoal que vive dizendo que “no meu tempo era melhor”, porque essa lenga-lenga é repetida a cada geração. Não era o seu tempo que era melhor, você é que era. Agora, pela primeira vez vejo diferenças que me incomodam. Ao contrário de gente que publica livros dizendo que a burrice se alastra — impressão que, a propósito, tenho a cada olhada nas redes sociais —, não acho que as novas gerações estejam menos inteligentes. Mas tenho a sensação cada vez mais incômoda de que estão mais fechadas, mais isoladas, sem perceber a grande maravilha que é a diversidade de informações, de conhecimentos, de opinião, de gostos mundo afora. A internet é uma das responsáveis por isso: o mundo parece ter diminuído demais para tanta gente.

Em “O Incrível Homem Que Encolheu”, um pequeno grande filme de 1957, encolhemos porque descobríamos a nossa pequenez diante de um mundo cada vez maior que nós mesmos tínhamos criado; agora, encolhemos porque escolhemos fazer com que o mundo encolha conosco.

É por isso que ver a frase do Thiago agora me fez pensar. 30 anos atrás, eu pensava que isso já era verdade, e embora iludido achava isso uma coisa boa, boa de verdade. Perceber que agora isso se torna verdade não é apenas melancólico demais: é assustador.

3 thoughts on “Não vivemos mais no mundo em que nascemos

  1. Não esperava que um comentário meu servisse de resumo a interessantes reflexões sobre o desmanche no ar do que julgávamos sólido, o que só vem a provar que, como a pobre Dorothy, não estamos mais no Kansas.

  2. Salve Rafael,

    Também acho que as novas gerações estão “mais fechadas, mais isoladas”, mas ao mesmo tempo, e paradoxalmente, estão mais abertas e mais expostas a uma multiplicidade que nunca estivemos antes na história. Me interessa muito essa temática e, pra mim, as dificuldades que enfrentam as novas gerações em termos de sociabilidade tem muito a ver com o fim do que eu chamo de sociabilidade Seinfeld (ainda vou escrever sobre isso), a sociabilidade do estar juntos. A sociabilidade dos nativos digitais se constitui em grande medida por meio da internet (apesar da escola), isso muda tudo. Justo porque o meio digital é “desinibidor”, o mundo real parece assustador quando a intimidade se constitui antes do estar juntos, quando se pretere o risco (de se rejeitado/a, de ser violentada/o) em favor do match.

    Abraços,

    • Eu tô curioso pra ver o texto sobre essa sensibilidade Seinfeld.

      Agora, depois de publicar esse post fiquei pensando num aspecto que eu podia ter abordado: essa sensação de perda que vejo na minha geração talvez não seja algo relevante para essas novas, que já nsceram num mundo onde tudo é líquido, transitório. Aí fica um tema pra ti que é filósofo: a que elas se agarrarão, oq eu definirá sua identidade?

      Eu não fao ideia.

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