Sobre Deus e ateus

Tenho fama de ateu porque nunca consegui acreditar em um deus tão pequeno que fez essa desgraça de humanidade à sua imagem e semelhança mas não fez direito, um deus mesquinho que não se dá ao respeito e se incomoda se grãos de areia como eu — ou assim ele quer que eu me considere — mandam-no ralar o cu na ostra, que é o que Ele mereceria se existisse.

Isso sempre me deixou com um problema, que é explicar coisas que não posso explicar, a matéria e o universo. Sempre fui muito velho para dar murro em ponta de faca ou achar que seria possível saber o que havia antes do Big Bang, e então fico com a ideia de que tem algo nessa bodega que não sei o que é e nunca vou saber, mas que não interfere em absolutamente nada na minha vida e nem na de ninguém, e certamente não vai me fazer acertar na loteria esportiva.

Esse incômodo, na verdade, nunca me tirou o sono. Deus nunca fez parte da minha vida. Não vim de família religiosa, nunca fizeram pressão para que eu acreditasse ou deixasse de acreditar em qualquer coisa. A gente sempre andou para Deus e Ele para nós. Estivemos todos bem, assim.

E no entanto sou fascinado pela trajetória do cristianismo. Debates essencialmente filosóficos ou doutrinários me dão um pouco de sono, mas sempre tive uma curiosidade muito grande sobre como o cristianismo se tornou o que é, como moldou o mundo em que vivo. Independente daquilo em que acredito ou não, eu sou um produto do mundo cristão. Valores sociais em que acredito devem muito à noção cristã da caridade e à crença (ou vã esperança) na bondade intrínseca do Homem.

Adoro as mentiras descaradas do Novo Testamento, por exemplo. Gosto de tentar entender a maneira como aquele conjunto de estórias mirabolantes foi se solidificando ao longo de umas poucas décadas em uma narrativa com algum grau de coesão. Gosto de ver o esforço malabarista das posturas doutrinárias do cristianismo antes e depois de Constantino, Teodósio e Justiniano. Quase posso tolerar a destruição cultural do mundo greco-romano ou as liquidações de hereges patrocinadas pelos cristãos, porque do ponto de vista histórico isso é antes de tudo um fenômeno curioso: como se deu o processo que levou uma religião com um discurso calcado na ideia de altruísmo e de bondade a se consolidar, em muito pouco tempo, como uma das forças mais deletérias e mais cheias de ódio da história da humanidade? E quais os instrumentos utilizados para isso?

Gosto, quase tanto, de tentar entender os malabarismos intelectuais dos primeiros cristãos, que precisaram criar uma nova ideia de messias para que ela se adequasse ao discurso judaico anterior, numa tentativa de legitimar o seu maluco de estimação. Há algo de desesperado nisso, também um bocado de má-fé; mas é também o reflexo, ainda que distorcido e pervertido, de uma vontade de fazer o que entendiam por bem aos outros que é quase louvável. Fanatismo tem dessas coisas.

Gosto de ver o respeito crescente às religiões de matriz africana como aspecto de uma afirmação étnica e social, e é lindíssima a cosmogonia do candomblé, tanto quanto a grega antiga; mas me irrita o discurso hipócrita do candomblé e da umbanda, de mansidão intrínseca à religião, porque me lembra o sujeito que depois de um atentado fundamentalista insiste que a Bíblia ou o Alcorão são livros de amor; sou baiano e sempre soube que pai de santo bom pra desgraçar os outros, matar a mulher do seu amante, eram os de Cachoeira; e vi despachos de amantes inconformadas em esquinas demais para cair nessa conversa safada. No fim das contas, não consigo esquecer que é uma religião em que seus sacerdotes estão liberados para tentar destruir outras pessoas. E por valorizar a preguiça como um grande valor humanístico, não entendo por que alguém em sã consciência se oferece a tantas obrigações sem sentido real, por que abre mão voluntariamente de sua liberdade para isso e aquilo em nome de contos de fadas.

Confesso que tenho apenas uma pinimba e um medo.

A pinimba é com o kardecismo. Porque não dá para respeitar uma religião surgida em pleno século XIX, o século dos trens e das máquinas, de Balzac e de Marx, e que se tenta dar ares quase científicos. Porque todas as outras grandes religiões têm a desculpa de serem basicamente superstições e mistificações pré-históricas, nascidas em um tempo em que macacos em acelerado processo de evolução precisavam de alguma explicação para o raio que caía na cabeça do vizinho e de uma providência para que ele não caísse na sua.

O kardecismo é mais uma das tantas religiões que, assim como toda a cultura ocidental, deriva do judaísmo e do cristianismo. Como todas as outras, para funcionar precisa jogar nas costas de alguém a culpa por toda a miséria humana. A ideia de um deus consciente e cheio de desígnios que se dá ao desfrute de elaborar um sistema complexo e imbecil de reencarnações e expiações, por si só, é tão absurda que é incrível que as pessoas a levem a sério; esse no mínimo é um deus sádico, que coloca gente no mundo para sofrer quando não havia necessidade nenhuma, se o incompetente fizesse decentemente o seu trabalho e criasse direito seu boneco de barro. Mas o kardecismo se esmera na justificação dessa crueldade. Por exemplo, imagine uma criança que nasce com paralisia cerebral gravíssima. Ela não vai aprender nada em toda a sua existência. No entanto, kardecistas fazem malabarismos interessantes para justificar essa aberração teológica. Uns dizem que a criança nasceu assim para pagar pecados — quando, obviamente, ao não poder aprender nada ela não pode evoluir. Outros dizem que ela nasceu assim para “ensinar” os pais. Tá, e a criança que se dane sem controlar seu próprio esfíncter.

Para piorar, como o número de almas neste vale de lágrimas não para de crescer, a gente entende que Deus fez o homem, não fez direito, não corrigiu a própria merda e mesmo assim continua fazendo mais. É um imbecil.

E tem ainda o racismo inerente ao kardecismo. De vez em quando lembram por aí de um texto de Kardec onde ele diz que “os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior”. E ao menos cá no Brasil, essa é uma religião eminentemente branca, em que é nítido o desprezo à sua prima preta, a umbanda.

Mais que isso, a sua tentativa de criar um sistema aparentemente sofisticado, influenciado pelo positivismo, é provavelmente a mais malsucedida de todas. Cristãos, macumbeiros, muçulmanos ao menos têm a sabedoria de não se aprofundar muito e jogar o bagulho nas costas de Deus antes que tudo fique confuso demais. Kardecistas, no entanto, se dedicam a malabarismos pseudorracionais impressionantes. Uma vez perguntei a uma delas se cachorros tinham alma. Ela me respondeu que tinham uma “alma coletiva”, seja lá o que isso for. Eu não quis me aprofundar no assunto porque fiquei com medo, e ninguém pode me recriminar por isso.

Provavelmente é por tudo isso que uma das melhores frases que li nos últimos anos é essa: “Chico Xavier era um sujeito que falava sozinho e ainda anotava o recado”. Isso resume o espiritismo para mim e mais não é necessário falar.

Acima de tudo, o que irrita em todas as religiões é o discurso canalha que diz “a religião é boa, ruins são alguns religiosos”. Não. Toda religião é ruim; elas existem para negar a realidade, para justificar o injustificável, para eximir o homem do mal que há no mundo e lhe oferecer uma saída imaginária. Existem para dar legitimidade ao que há de humano nas pessoas, e propósito a um tipo específico de inconformado. Existem como muleta para explicar o que ainda não foi explicado, e acaba se tornando, sempre, um instrumento de obscurantismo. Toda religião é ruim.

E mesmo assim, durante muito tempo a militância ateia me incomodou. Sou um grande fã de Richard Dawkins, por exemplo, especialmente de “O Gene Egoísta”; mas outros livros seus sempre me pareceram desnecessários. Proselitismo ateu costumava ser tão incômodo para mim quando o proselitismo religioso. Ainda mais, até, porque a princípio um ateu está um degrau acima na escola de pensamento de quem ainda acredita num deus preocupado se você dá o rabo; se ele chega à conclusão da inexistência de um deus todo-poderoso, ou da impossibilidade de crença a partir do raciocínio lógico, é porque pelo menos se deu ao trabalho de pensar, algo que não posso dizer de quem acredita em Adão e Eva.

Mas o ateísmo pode ser também uma quase desistência do pensamento, e de certa forma quase tão arrogante e falso quanto os religiosos, porque não apenas não se consegue provar a existência ou inexistência de Deus, mas porque a recusa em admitir a possibilidade de se estar errado é estúpida. Para muita gente, ela parece justamente o contrário porque é comparada à religião, que encontra na vontade inescrutável de Deus uma explicação confortável para a topada que arrancou metade da sua unha. É, de forma um tanto diferente, o mesmo reflexo humano, demasiado humano de necessidades que não têm nada de divino.

Nos últimos tempos, entretanto, isso deixou de ser tão incômodo. À medida que a militância religiosa vem justificando guerras e perseguições em todo o mundo, mas principalmente num momento em que políticos evangélicos vêm consolidando sua influência política e se espalhando como metástase no tecido social; à medida que pessoas cuja noção de conhecimento é paradoxalmente baseada na ignorância passaram a definir os rumos do país; à medida que, como os primeiros cristãos, evangélicos tentam impor de maneira cada vez mais violenta sua visão obtusa e cruel de mundo aos outros, a religião passou a ser uma inimiga. As pessoas podem acreditar no que quiserem — eu continuo acreditando no Grande Deus do Pleno Xibiu da minha adolescência, por exemplo, porque ainda não descobri coisa melhor —, mas quando se organizam politicamente para tornar essa crença dominante e cercear os direitos dos outros, elas se tornam algo a ser combatido e, se possível, destruído.

A história do processo civilizatório é a história da superação da religião. Quando negaram a natureza divina da realeza, quando negaram o direito de fazer churrasquinho de bruxas, quando disseram que Estado e superstição não deviam caminhar juntos — foi nesses momentos que a humanidade deu um passo à frente e tornou o mundo um pouco mais justo e igual.

Daí que no mundo surreal em que dou a sorte de viver, em que uma religião retrógrada e perigosa cresce assustadoramente, a sensação de que a militância ateia era tão estúpida quanto os fanáticos do “gloriadeus” desapareceu.

O ateísmo nunca fez nenhum mal à humanidade, algo que não pode ser dito de nenhuma religião monoteísta. Na verdade, por ser falta de crença, retira da pauta a imbecilidade religiosa. E nos tempos atuais, em que uma onda de obscurantismo religioso vem patrocinando uma constante regressão intelectual e cognitiva para a humanidade, ele se torna quase um exemplo de resistência à progressiva metástase no tecido social patrocinada por religiosos.

E aqui está o meu medo. A cada dia, me apavora o crescimento das religiões protestantes no país. E não falo das neo-pentescostais em que malandros apopléticos tiram dinheiro de imbecis que, para mim, merecem ser tosquiados porque ninguém tem o direito de ser tão cretino. Hoje, o pensamento evangélico e sua ação política são a maior ameaça à democracia e ao avanço do país.

Percebi isso quando vi a maneira como a gíria religiosa se imiscuiu na sociedade brasileira. Expressões como glóriadeus, tá amarrado, ô glória, é pra glorificar de pé se espalharam pelo tecido social e são um exemplo sociológico claro da expansão e capilarização do pensamento evangélico. É assim que as metástases ocorrem. Em sua luta para fazer do Brasil uma narcoteocracia, as igrejas evangélicas são um câncer que não para de crescer e a principal razão pela qual meu otimismo em relação ao futuro deste Brasil velho de meu Deus é hoje muito pequeno.

Deus pode até existir, mas se alguém tem alguma esperança na humanidade, é melhor fingir que não.

Livros, livros à mancheia

Um texto de Umberto Eco andou circulando internet afora esses dias:

É tolice pensar que você precisa ler todos os livros que compra, assim como é tolice criticar aqueles que compram mais livros do que jamais serão capazes de ler. Seria como dizer que você deveria usar todos os talheres, copos, chaves de fenda ou brocas que comprou antes de comprar novos.

Há coisas na vida das quais precisamos sempre ter muito, mesmo que vamos usar apenas uma pequena porção.

Se, por exemplo, considerarmos os livros como remédio, entendemos que é bom ter muitos em casa em vez de poucos: quando você quer se sentir melhor, você vai até o “armário dos remédios” e escolhe um livro. Não um aleatório, mas o livro certo para aquele momento. É por isso que você sempre deveria poder escolher entre várias escolhas.

Aqueles que compram apenas um livro, leem apenas aquele e depois se livram dele. Eles simplesmente aplicam a mentalidade de consumo aos livros, ou seja, consideram-nos um produto de consumo, uma mercadoria. Aqueles que amam os livros sabem que um livro é tudo, menos uma mercadoria.

Eco é o sujeito que entendeu que a internet deu voz aos imbecis, constatação reafirmada a cada nova dancinha de Tik Tok, a cada comentário analfabeto. Depois de ler esse texto, posso dizer que também permitiu a pessoas brilhantes como ele dizerem sem pejo algumas bobagens de vez em quando.

Claro que num mundo onde a mera posse de livros significa o ingresso instantâneo e não questionado numa certa elite intelectual,ou na impressão dela, um bocado de gente elogiou esse texto, e o compartilhou. Todo mudo ama livros, eu só não entendo por que as tiragens nacionais são tão pequenas.

Há alguns anos eu provavelmente seria um deles. Porque ainda gosto dos danados, me acostumei a eles, tenho um número razoável de exemplares e gosto de saber que eles estão lá. Tenho, inclusive, a vaidade de eventualmente mostrá-los, e já coloquei uma das paredes como foto de capa no Facebook, e de vez em quando coloco no Instagram os que se empilham já sem esperança em minha cabeceira. Em minha defesa posso argumentar que isso é só uma consequência, que eu gosto mesmo do objeto, gosto do papel, do cheiro de tinta, do cheiro do livro novo e do cheiro do livro velho, da sensação de virar a página, de recolocá-lo na prateleira e olhar para ele com orgulho — mas, para mim, nada disso supera a sensação de terminar de ler um livro brilhante, e é isso que, infelizmente, me diferencia de Eco.

Ele acusa as pessoas que leem um livro e então se livram deles de considerarem-no uma mercadoria, apenas. Isso é loucura elitista. É o contrário, na verdade.

Livros existem para transmitir conhecimento. A ideia de livros válidos apenas por sua posse, o fato de olhar a estante e se sentir bem por isso é que é vê-lo como mercadoria, porque não diz respeito ao seu valor real, e sim ao que ele representa, ao valor que o objeto adquiriu numa soceidade que fala mais do que lê. Mas seu valor real se mede depois que você decodifica aquelas letras mortas impressas em suas páginas. Na sua estante, eles só servem para mostrar aos outros que você tem ao menos um verniz de cultura, e que aparentemente reconhece o valor intrínseco daqueles objetos enfileirados. É aquela deturpação capitalista que faz uma primeira edição de um bom livro valer milhões a mais que um fac-símile.

Servem para dar trabalho, também.

Só ama de verdade esses objetos infernais quem tem poucos. Uma biblioteca não só acumula poeira, fuligem e, se você mora perto do mar, salitre que um dia você tem que limpar. Eles também se tornam invariavelmente a morada do Diabo. Guimarães Rosa não sabia de nada. Não é nos detalhes que o Diabo mora, é nas estantes — ou pelo menos é nelas que se maloca um saci escroto que impede que as estantes que você arrumou hoje, depois de dias maltratando suas costas, fiquem arrumadas por nem mesmo uma semana. Eu sou um cético, não acredito que livros tenham vontade e movimento próprios. Mas eu os vejo aparecendo do nada, e se multiplicando em outros lugares como gremlins endemoniados o tempo todo, o tempo todo.

Se você tem algum juízo, uma hora você se pergunta se isso vale a pena.

Como eu disse antes, já pensei assim, já tive esse orgulho. Os amigos de minha filha, quando vão lá em casa, sempre olham impressionados as paredes cheias de livros, porque bibliotecas já não são tão comuns assim, pelo menos fora do ambiente acadêmico, e mesmo nele. A mim não é tanto o volume que orgulha, mas sim sua variedade, o fato de ter sido construída aos poucos ao longo de algumas décadas, refletindo interesses bem diversos, de história a culinária, de vela a literatura húngara. Mas de uns anos para cá mesmo esse orgulho se desmilinguiu em tédio. Deve ser a velhice. E, talvez, a compreensão das bobagens que fiz na vida.

Quando a Amazon surgiu, ou melhor, quando finalmente tive dinheiro para comprar livros na Amazon, eu comprava dezenas de uma vez para economizar no frete.

É a pior coisa que se pode fazer, e me arrependo hoje de ter feito isso, tantas vezes. Essa é quase uma sentença de morte: você condena a maioria deles a não serem lidos nunca, porque antes de terminar o quinto ou sexto você já está comprando mais cinco, mais dez, e a leitura se transforma em uma espécie de derby de demolição, um atropelando o outro, exigindo primazia na leitura, gritando palavrões humilhantes para você, incompetente que não dá conta de tudo aquilo.

Para piorar, qualquer pessoa honesta sabe que existem quatro tipos de livros em suas estantes. Os que você já leu e não pretende reler; os que você leu e sabe que vai reler; os que você ainda não leu mas pretende ler; e, finalmente, aqueles que você não leu e a essa altura entendeu derrotado que não vai ler nunca, porque o tempo é cada vez mais escasso, é o trabalho gritando seu nome, a garrafa verde de cerveja flertando com você, a moça sussurrando passando a língua em sua orelha. O primeiro e o último tipo de livros são realmente desnecessários. Você os mantém por vaidade. É quase como ter mulher para usar ou para exibir: só broxas e enrustidos fazem isso, e Vinícius já avisava que você vai ver um dia em que toca você foi bulir.

Então, não, não tem como concordar com o nome da rosa. Nego diz isso é pra aparecer.

Saudades daquelas moças d’antanho

Isso foi há mais de cinco anos:

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

Eu fiz isso logo depois. Infelizmente, na banca onde fui não havia desses livrinhos, havia mangás e revistinhas de super-heróis, uma infinidade deles. Então esqueci, que cá entre nós qualquer um tem coisas melhores para fazer com seu tempo do que ler “Júlia”, “Sabrina” ou “Bianca”.

Mas ontem fui comprar uma Tex e na mesma prateleira estavam uns três desses livrinhos. Não são mais Júlias, nem Biancas, nem mesmo são da velha, boa e finada Editora Abril.

O que comprei, de uma senhora chamada Lori Foster, se chama “Uma Amante Maravilhosa”, tradução mais apelativa para Treat Her Right. E é publicado pela Harlequin Books. Pelo visto cortaram os intermediários e agora os livros vêm direto da fonte.

A tradução do título já dá uma ideia das mudanças que esses 40 anos trouxeram. Mas não revela nem parte do que há de tenebroso nesses livros.

Agora como então, nomes são importantes. Essas moças se tremem inteiras de desejo por um Zack, Josh, Mick. Fiquei pensando que ninguém escreve romances para moças protagonizados por Genílson ou Vandson, mas vou creditar isso aos 23 anos que se passaram desde sua publicação original e à minha ignorância quanto a esse universo. Não é possível que nos dias de hoje não tenham feito um livro em que o objeto romântico da mocinha seja um pedreiro chamado Roberaldo, alto, forte, magnético, musculoso. Porque é justo esperar que em tempos identitários haja um pouco mais de diversidade.

O estilo é um pouco melhor do que o dos livrinhos antigos; ao menos nesse não há mais aqueles tantos pontos de exclamação. Mas a escritora é ruim, ruim de doer. Nesse ofício havia, deve haver ainda, artesãs competentes; não é o caso de Lori, que aliás tem nome de puta. Para piorar, a coitada ainda é sacaneada pela tradutora, de uma incompetência atroz. Tenho quase certeza de que ela apenas colocou o texto original no Google e corrigiu alguns poucos erros. Além de alguns erros crassos, ela me faz lembrar que o que realmente importa em um tradutor não é tanto o conhecimento da língua a ser traduzida, mas o domínio da língua para a qual se traduz. Por exemplo, ela se refere algumas vezes a beemotes. O problema é que behemoth é expressão comum na gringa, com sua tradição de leitura do Velho Testamento, mas virtualmente desconhecida aqui. Além disso, aqui e ali o protagonista fala: “Danação!”. Tento imaginar que espécie torpe de mulher consegue encharcar suas calcinhas por um homem que fala “Danação!”. Tento, mas não insisto muito porque pode ser que eu consiga. E eu não suportaria trauma tão grande.

O livro é de 2001, publicado aqui em 2014. De lá para cá decorreu quase um quarto de século, e esse espaço de tempo não viu tantas mudanças sociais, a serem refletidas nas páginas escritas por dona Lori. A emancipação sexual feminina é fenômeno bem antigo, já era naqueles anos 80; apenas não tinha chegado às páginas desses romances em um país que ainda tentava sair de uma ditadura e do fim da Censura Federal. E saliência já se fazia nas “Momentos Íntimos”.

Mas há uma diferença brutal:.agora talvez não dê mais para chamar esses livrinhos de “romances”, no sentido menor da palavra.

Porque aqui e agora o valor acariciado pelos personagens não é mais o amor, como era naqueles tempos em que se amarrava cachorro com linguiça e ainda se namorava no portão. Amor um caralho, eu quero é rosetar. O livro já começa com o nosso herói de pau duro — ou assim se imagina, já que ele é despertado no meio de um sonho erótico. Dali até o final tudo parece se resumir à vontade de todo mundo comer todo mundo, ou algo parecido.

É impressionante: os protagonistas do livro atual só pensam em putaria, o tempo todo. Ele olha para ela, sacanagem. Ela olha para ele, safadeza. O pudor que caracterizava os livrinhos dos anos 70 e 80, a ideia do desejo como uma construção psicológica um tiquinho mais complexa, tudo isso desapareceu completamente; e o mundo virou uma grande suruba, e diante disso me sinto um velho conservador e espantado.

Nem tudo são espinhos, no entanto. Dá para ver refletidas, mesmo em um livro tão ruim — ou, mais provavelmente, justamente por ele ser ruim —, algumas boas mudanças na sociedade. Mulheres, pelo visto, são mais plenas, ou ao menos têm como padrão um nível de plenitude e igualdade que não se via antes. Expressões como “galinha”, tão comuns 40, mesmo 30 anos atrás, não parecem mais fazer sentido. Isso é bom.

Mas algumas coisas não mudam, e um desses tabus monolíticos chega a ser curioso.

Algo que os livros dos anos 80 e este têm em comum é que as mulheres não fazem sexo ora, nem lá, nem cá. Elas não botam nada na boca. Tudo bem, é fácil entender a razão quando se pensa em feministas numa passeata dos anos 70 carregando faixas dizendo que “sexo é poder”. Mas estes são os anos 2020, e as moças de verdade postam sugestões do arco da velha em seus tiktoks e instagrams, e as alusões a bocas cheias são mais comuns que foto amorosa com o cônjuge que corneiam em segredo.

À primeira vista, isso parece ser um simples descompasso entre o livro e o seu tempo. Na verdade, é ainda pior. Muito pior.

Numa das cenas mais bizarras deste, ao receber sexo oral do homem que faz suas carnes tremerem, coisa que nunca tinham feito nela, nossa protagonista diz que isso parece pervertido.

Poxa. As moças dos livrinhos dos anos 80 eram virgens e defendiam com unhas e dentes sua honra, mas quando chegava a hora da putaria elas certamente não tinham essas frescuras. Há algum problema muito grave na psique desse mundo anglo-saxão, ou pelo menos na cabeça dessa mulher que escreve essas coisas e das leitoras que compram seus livros, e isso certamente me assusta mais que as mocinhas puras e puerilmente fortes que povoavam os livrinhos de antigamente.

Resta apenas procurar aqui algo que represente ao menos um rosto conhecido, uma ideia mais longeva. E então vem uma pequena surpresa. No fim das contas, essencialmente nada mudou. Independentes ou não, as heroínas deste livro ainda querem um homem forte, protetor, que seja um bom pai, e que na hora do aimeudeus continue tomando as rédeas e mandando na bodega. Talvez seja uma exigência do gênero, porque o único conflito dramático que posso enxergar entre uma moça moderna e um “macho desconstruído” é a possibilidade dele se apaixonar pelo namorado dela. O que sei é que os livrinhos d’outrora, no fim das contas, me parecem melhores. Talvez porque havia uma ingenuidade perdida, uma negação da realidade cotidiana, um resto de pudor. Posso estar sendo injusto e julgando todo um tempo de um gênero a partir de um livro só, mas desconfio que não. Ou talvez eu tenha ficado velho demais, e desconfio que sim. Não sei. O que importa é que, de repente, deu saudade das minhas amigas Júlia, Sabrina e Bianca.