“O Cavaleiro das Trevas” corrige os erros de Batman Begins e vai além.
Ao contrário da opinião geral, Batman Begins foi um filme medíocre. Se sustentava aparentemente porque a comparação com seus antecessores era muito fácil: os filmes feitos a partir do Batman de Tim Burton eram ruins demais. Batman Begins era melhor que eles — mas não passava muito de um filme mediano, que recorria a elementos fáceis do cinemão comercial, como o aprendizado no gelo citado pelo Bia, onde faltou apenas Pat Morita falando frases de efeito tipo “Falcão, Campeão dos Campeões” para o Karate Kid.
“O Cavaleiro das Trevas”, no entanto, evitou a maior parte dessas armadilhas. Com as bases, boas e ruins, de um possível universo próprio já estabelecido, foi buscar nos quadrinhos pontos de apoio para se transformar no que é de longe a melhor adaptação do Batman já feita para o cinema. Nolan criou esse universo a partir de elementos das principais histórias do Batman. Por todo o filme perpassam referências de momentos importantes dos quadrinhos, principalmente de “O Longo Dia das Bruxas”, do final dos anos 90, uma das melhores histórias do Batman em todos os tempos — enquanto o primeiro foi buscar suas referências em Blind Justice. Um espectador atento encontra também referências a várias outras histórias clássicas, como a motocicleta de “Ano 1”, e tudo isso é combinado de maneira a tornar a história do pesonagem consistente e clara, mesmo para quem o acompanha há muito tempo pelos quadrinhos.
A espetacularização do Batman de que o Bia se queixa não é um defeito. Ela equivale a alguém que, vendo o Batman borderline de Frank Miller, reclama que bom mesmo é o detetive de Dennis O’Neill — ou alguém que diante desse detetive sente saudades do Batman ingênuo de Jerry Robinson. O Batman de Nolan é adequado aos tempos e à audiência; e consegue isso sem abrir mão do caráter soturno e doentio do Batman.
O filme tem falhas, claro. O uniforme de Robocop é a mais grave — “Homem-Aranha” provou há quase uma década que é possível fazer uniformes para super-heróis no cinema condizentes com os quadrinhos (e o Doni, aqui, dá o link para um video que coloca isso na prática), embora o filme perceba isso e tente dar uma solução, ainda longe de ser sequer suficiente. Um Batman que voa — ou melhor, plana — é exagero desnecessário. A mudança na origem do Duas Caras também não faria falta — um apelo fácil ao melodrama típico do cinema. E Bruce Wayne, apesar de bem interpretado por Christian Bale, o Batmãe, é pouco aproveitado e explorado: sua paixão por Rachel Dawes acaba se mostrando superficial e artificial.
O filme tem boas atuações, algo nem sempre comum em filmes de ação. Michael Caine e Morgan Freeman dão o de sempre; mas esses são grandes atores, cujo arroz com feijão costuma ser mais que suficiente. Gary Oldman está adequado como o Comissário Gordon, Aaron Ekhardt não faz feio como Harvey Dent, e Eric Roberts faz um bom vilão — mas ele sempre fez, até porque para isso basta mostrar o rosto na tela; e percebendo o erro grotesco que foi usar Katie Holmes no primeiro filme, substituíram-na por Maggie Gyllenhaal. A surpresa é Christian Bale, que resolve muito bem a dicotomia entre as personalidades distintas de Bruce Wayne e do Batman.
E, claro, o Coringa de Heath Ledger.
Há um problema com quase todos os que comentam a história do Batman. Comungam da impressão de que o seriado debochado dos anos 60 praticamente destruiu o Batman. E isso não é verdade. O Batrman vinha em decadência desde os anos 50, em parte por causa da perseguição política de que os quadrinhos foram vítimas, em parte devida à esquisitice hipocritamente puritana daquela década americana. O seriado retomou a popularidade do Batman e reacendeu o interesse pelo pedófilo notívago. Sem o público criado pelo seriado, Dennis O’Neal e Neal Adams não poderiam iniciar a reformulação do Batman, transformação completada por Frank Miller nos anos 80 em “O Cavaleiro das Trevas” e “Ano 1”, e consolidada por Allan Moore em “A Piada Mortal”.
Acima de tudo, aquele seriado deu um grande Coringa. Cesar Romero insistia em não raspar o bigode, para não acabar com sua imagem de amante latino, mas mesmo assim fez um Coringa antológico e definitivo em sua histrionice e teatralidade. Romero definiu o modelo do Coringa para sempre, e Jack Nicholson, no “Batman” de Tim Burton, não conseguiu lhe ser superior.
Heath Ledger consegue. Todo o filme é uma tour de force de Ledger em sua recriação do Coringa. Até agora, a loucura do Coringa era caricata e histriônica; a de Ledger é muito mais que isso, é tão obviamente letal que, antes de despertar interesse, lhe desperta medo. Ledger construiu um Coringa moderno e admirável: baixou o tom de voz, incorporou tiques psicóticos como lamber os lábios todo o tempo e deu ao Coringa aspectos de decadência física que o tornam mais louco ao mesmo tempo que mais real. Esse Coringa é muito mais sério que seus predecessores; mas a morte é algo mais sério do que uma revista quadrinhos. Incrivelmente, é muito mais parecido com o Lon Chaney de The Man Who Laughs que inspirou o Coringa.
Nos quadrinhos, o Coringa não usa mais maquiagem. Sua pele e seu riso foram deformados por elementos químicos no episódio que lhe deu origem, retratado em “A Piada Mortal”. No filme, de maneira quase lampedusiana, isso muda para não mudar. O diretor Christopher Nolan mantém e potencializa esse elemento quadrinístico ao transformar o riso do Coringa em uma cicatriz escarninha, mas ao utilizar a maquiagem que hesita entre o gótico e e circense reforça a idéia do Coringa como espelho invertido do Batman: os dois se disfarçam, cada um de sua própria forma, que afinal de contas não é tão diferente assim. E essa é, afinal, a essência do duelo eterno entre o Batman e do Coringa.