No primeiro quarto de século depois do fim dos Beatles, apenas um disco inédito (sem contar o Let it Be, um álbum póstumo, de certa forma) foi lançado pela EMI/Apple: o Live at the Hollywood Bowl, em 1977.
De repente, em 1994, a Apple decidiu abrir seus arquivos. A partir daí foram lançados o Live at the BBC, o projeto Anthology, e finalmente o pior de todos, o Let it Be… Naked. Relançaram também em DVD ou nos cinemas a maioria dos filmes da banda, como A Hard Day’s Night, Help!, Magical Mystery Tour e o desenho animado Yellow Submarine.
Mas ainda está faltando um grande projeto, talvez o último deles: o relançamento do filme Let it Be.
A história do filme é simples: logo após o fim das gravações do “Álbum Branco” — quando a coisa começou a ficar feia para os Beatles –, e sentindo que a crise era muito séria, McCartney resolveu que estava na hora de voltarem a tocar ao vivo, porque isso poderia recolocar a banda nos trilhos. As sugestões que foram surgindo a partir daí incluíam um show num anfiteatro vazio no norte da África, que se encheria aos poucos com gente de todas as cores, credos e raças, idéia depois reciclada pelo Pink Floyd em Pompéia.
Apesar de toda a grandiosidade das idéias, àquela altura já seria uma grande vantagem simplesmente juntar os quatro beatles em qualquer lugar. Se resignaram a gravar um documentário para a TV mostrando a banda no processo de gravação de um novo disco. A idéia seria mostrar os Beatles “sem as calças”, como dizia Lennon. Ensaiando, gravando suas músicas ao vivo como nos primeiros tempos. Tudo deveria ser o mais natural possível.
Até isso deu errado. Com os Beatles apenas adiando um fim inevitável, o filme foi posto de lado e acabou sendo lançado nos cinemas, o que explica os ângulos esquisitos de várias tomadas. O disco com parte da trilha sonora seria lançado um mês após o anúncio oficial do fim dos Beatles.
É quase impossível fazer uma análise objetiva de Let it Be porque aquilo não é bem um filme, é James Stewart apontando o binóculo para o apartamento de Raymond Burr.
Do ponto de vista cinematográfico Let it Be é um fime horroroso. É mal dirigido, mal editado — é um fracasso tosco. Michael Lindsay-Hogg, o diretor, poderia ter feito um trabalho bem melhor dentro das diretivas “naturalistas” que recebeu. Não fez, e acima de tudo Let it Be é um filme extremamente chato.
Mas é também um documento importante.
Ele acabou entrando para a história como o registro do processo de desintegração da banda mais influente da história. Mas na verdade não é isso que ele mostra. Se tivesse sido lançado exatamente como é, mas a banda não tivesse se separado naquele momento, ele seria visto como uma alegoria da superação: o filme começa em um ambiente muito tenso, nos estúdios de Twickenham, melhora quando vão para a Apple e tem sua apoteose no show no telhado, interrompido pela polícia. Poderia ser visto como uma prova de que o amor pela música e a camaradagem entre quatro sujeitos que cresceram juntos supera tudo.
Infelizmente os Beatles se separaram menos de um ano depois das gravações e, para todo mundo, o filme é um epitáfio.
A Apple vem realizando um trabalho incessante em cima do filme. Há anos vem trabalhando nele — e algumas cenas do filme restaurado já foram vistas no Anthology. Ainda não se sabe quando será lançado, e a cada Natal os boatos redobram. Talvez tenha ficado mais fácil depois da morte de George Harrison, um dos que mais carregavam mágoas daquela época, mas ainda é um tema de que nenhum dos sobreviventes gosta de falar com honestidade. O Let it Be é o retrato mais acabado do que são as relações entre os ex-beatles: um saco de gatos em que dinheiro e mágoas desempenham papéis equivalentes.
Mas eles sabem que, quando relançarem o filme, as vendas em DVD vão ser excelentes. E o dinheiro pode até ser equivalente às mágoas, mas Paul McCartney, Ringo Starr, Yoko Ono e Olivia Harrison sabem que mágoas não enchem bolsos.