Deve ser muito difícil produzir um disco de Paul McCartney. Por três razões. A primeira é o fato de o sujeito ser uma lenda viva, uma das últimas. A segunda, o fato de ele ter produzido, sozinho, alguns dos maiores sucessos dos anos 70 — seus Wings, ao lado do Led Zeppelin, foram talvez a banda de maior sucesso comercial da década. Terceira: se alguém esqueceu, foi ele o sujeito que inventou o estúdio como local de criação em vez de apenas gravação.
Nigel Godrich tem um bom currículo. Produziu o OK Computer, do Radiohead, e foi indicado a McCartney por ninguém menos que George Martin. Teve a coragem de desde o início deixar claro que não iria se abster de fazer suas próprias críticas, que só iria trabalhar nas canções de que gostasse. Nas entrevistas coletivas que vêm dando agora, ele e McCartney falam dos choques que tiveram e de como isso resultou em tensão criativa — mas as fofocas da época davam conta de desentendimentos piores.
Talvez o que Godrich tenha feito de melhor foi se recusar a trilhar os dois caminhos mais óbvios em se tratando de um músico com o porte e a história de McCartney. Podia simplesmente ser um engenheiro de som de luxo, deixando que o ex-beatle fizesse o que quisesse e como quisesse; ou poderia tentar transformar McCartney em algo que ele não é — um jovem com excesso de adrenalina e vontade de revolucionar a música pop.
O que ele fez foi simples: primeiro, não deixou que McCartney alcançasse o nível de auto-complacência que costuma demonstrar quando em uma banda fixa. Obrigou o sujeito a gravar sozinho, tocando todos os instrumentos, e executou um controle de qualidade estrito quanto às canções apresentadas. Parece ter compreendido o que Lennon sempre disse: quando forçado, Paul McCartney é capaz de fazer coisas realmente grandiosas. Em segundo lugar, deu uma roupagem moderna a sua música, como era necessário, mas ao mesmo tempo reforçou todas as melhores características que fizeram dele o artista mais bem sucedido da história da música pop.
Mas há uma pequena diferença entre o McCartney com o baixo Rickenbacker e o de 2005. Driving Rain, seu último disco de estúdio, de 2001, trazia um traço um pouco inusitado na obra de McCartney, sempre o autor de letras leves, bobas e otimistas: pela primeira vez, de maneira consistente, entrevia-se letras pessoais, que sempre foram o traço distintivo de Lennon. Aquele era o primeiro disco de estúdio e com músicas compostas após a morte de Linda McCartney. E o que ele cantava ali era medo, dor, perda, saudade.
Nesse aspecto, o novo disco segue no mesmo caminho. É um disco sombrio em várias de suas letras, e como raras vezes antes consegue-se entrever os sentimentos pessoais de um sujeito que nunca se incomodou em empurrar as letras mais bobas se a melodia fosse boa. Mas Driving Rain tinha também o defeito de, de repente, ter tirado de McCartney sua personalidade. Apesar de algumas grandes gravações, naquele disco ele era como um vehinho de quase 60 anos numa festa de adolescentes. Foi justamente esse erro que Godrich evitou. O resultado é o melhor disco de McCartney em muito tempo. É um disco verdadeiramente novo, dentro dos limites de um sujeito que roda os palcos há quase 50 anos.
Chaos and Creation in the Backyard será lançado amanhã. Está sendo anunciado como o vigésimo disco de estúdio de McCartney. Nas minhas contas é o vigésimo primeiro, mas e daí? Definitivamente, é um grande disco.
Eis uma opinião sobre o disco, faixa por faixa:
Fine Line
O carro-chefe. Uma canção que, em muitos momentos, lembra os Wings, provavelmente o ápice da carreira solo de McCartney. E desde os primeiros acordes já mostra que o instrumento dominante neste disco será o piano. Mostra também que, como aconteceu no álbum anterior, McCartney voltou a abordar o seu contrabaixo como se deve: com a postura esperada do baixista mais influente da música pop.
How Kind of You
É uma canção complexa que poderia estar no Driving Rain, pela pior razão: apresenta um padrão de composição de McCartney que demonstra uma certa perda do brilho melódico que sempre foi sua marca registrada. Isso não faz com que seja uma música ruim, longe disso. É uma canção pungente, verdadeira, e também um dos arranjos mais complexos do disco.
Jenny Wren
Descrita pelo autor como “irmã mais nova de Blackbird“, poderia ser descrita melhor como a sua irmã feia. Apesar do arranjo, da mesma mensagem otimista, há algo que não decola na música, como se fosse uma tentativa de gravar uma versão levemente diferente da mesma música. Lembra muito mais Distractions, do Flowers in the Dirt (1989). Mas esse é o comentário de alguém que tem Blackbird na cabeça. Talvez, se vista de maneira isolada, ela seja mesmo tudo o que se diz dela.
At The Mercy
Chata, só isso. Para que gastar tempo escrevendo sobre uma música chata?
Friends To Go
Bela canção, com traços de country — dominada pelo violão em um disco que parece ter sido todo composto no piano — e estrutura melódica que lembra os Beatles, aqueles de 1965, entre o Help! e o Rubber Soul, mas principalmente os primeiros anos de sua carreira solo. Uma letra interessante, bem construída, aparentemente despretensiosa mas cheia de pequenas surpresas, e com belas imagens. McCartney disse que esta canção foi feita rapidamente porque não era ele escrevendo: ele sentia que George Harrison estava escrevendo essa música para ele. Então tá. Pode-se mesmo sentir ecos do estilo de Harrison na canção. Mas seja lá de que mundo venha, psicografada ou não, Friends To Go é McCartney em sua melhor forma: pop de altíssima qualidade e um talento melódico excepcional. Ele diz que é uma de suas músicas preferidas no disco; é uma das minhas, também.
English Tea
A linha descendente de acordes no piano lembra, muito vagamente, For No One. Mas isso é tudo. De qualquer forma, pela letra curiosa e pela harmonia e arranjos, extremamente econômicos ao mesmo tempo que evocativos dos anos 60, é uma canção que poderia muito bem estar no Revolver. Elegante e clássica.
Too Much Rain
É talvez a minha faixa preferida no disco, ao lado de Friends to Go. Quando se ouve McCartney cantar “It’s not right, in one life, too much rain” é impossível não pensar nos quatro anos em que viu Linda McCartney perder a batalha contra o câncer, e nos três anos seguintes, quando foi a vez de George Harrison.
Certain Softness
Parece ser a maneira como McCartney entende a música latina. É um grande bolerão, ainda que tenha o seu toque pessoal. É também uma das canções do álbum que revelam a extrema versatilidade e inventividade melódica de McCartney. De certo modo, é como Nat King Cole cantando “Cachito, Cachito, Cachito mio”
Riding to Vanity Fair
Uma canção sobre amizade e traição, quase amarga. A pergunta que se faz é a quem é dirigida. Minha aposta: Geoff Baker, o relações públicas que McCartney demitiu recentemente depois de anos juntos, e com quem andou trocando algumas farpas. Outra canção que poderia muito bem ter saído de Driving Rain.
Follow Me
Sem dúvida vai ser umas das canções na turnê de McCartney que começa dia 16; e sem dúvida é uma das mais fracas de todo o disco. Uma balada típica, com bela melodia, é verdade, mas nada que ele não tenha feito antes. É apenas mediana dentro do contexto em que se apresenta. Em um ábum mais fraco talvez não fosse.
Promise To You Girl
Um dos poucos rocks deste disco, uma canção alegre e divertida que chega quase a quebrar o tom melancólico e sombrio do disco. É impossível não bater o pé enquanto se ouve a música. Bela canção.
This Never Happened Before
Boa balada de McCartney, mas em um disco tão bom, e com vários momentos brilhantes, parece ser apenas mais uma balada, com algo de anos 70, quase algo de Barry Manilow. Talvez seja injustiça.
Anyway
Outra balada ao piano típica. Nada demais, e também nada que comprometa o álbum.
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O disco pode ser comprado, a partir sei lá de quando, no Submarino. Compre por aqui e a comissão vai para uma vítima do Katrina e seu cachorro pederasta, para ver se ele finalmente pára de fazer posts sobre o bicho.