Tinha uma boa farra para ir na sexta, mas desmarquei tudo quando soube que o Telecine ia exibir “Saló ou 120 Dias de Gomorra”, de Pasolini.
Embora eu não visse um filme seu há mais de 10 anos, sempre gostei de Pasolini. Talvez continuasse gostando porque não pude reavaliá-lo à medida que envelhecia e ia ficando cada vez mais conservador.
“Saló”, por sua vez, era um filme que eu devia a mim mesmo. Quando ele finalmente foi liberado no Brasil, em 1989, perdi a chance de assisti-lo porque ficou muito pouco tempo em cartaz.
Eu sabia o suficiente sobre o filme. De acordo com Pasolini era uma denúncia do domínio nazi-fascista sobre a Itália, livremente inspirada no livro homônimo do Marquês de Sade. Se pretende um filme libertário e intelectualmente instigante.
Então tá.
Logo nos créditos de abertura algo me assusta: Pasolini inclui uma “bibliografia essencial”. Ai, meu Deus. Lá vem. Eu não confio em filmes que pretendem discutir conceitos filosóficos. E confio ainda menos num filme que inclui nesse pretenso debate um livro de Roland Barthes — ele mesmo, o óbvio e obtuso. Para Pasolini o filme é mais que cinema, é um projeto político-intelectual-filosófico-metafísico ambicioso e multifacetado. Mas apesar de toda a sua vontade, um filme continua sendo só um filme. É necessariamente superficial, porque jamais terá a profundidade de um livro. Quem quer defender princípios filosóficos escreva uma tese, e deixe o cinema para quem quer contar uma história.
Durante as próximas horas me vejo em meio a um festival de taras e crueldade, curiosamente exibido com um pudor gráfico inusitado. A única exceção é a longa seqüência sobre coprofagia, o “círculo da merda”, extensa e longa. De resto, o filme não tem personagens, apenas situações sem sentido e ilógicas.
Foi com algum esforço que assisti ao filme até o fim. Que filme chato, chato, chato. Só consigo usar esse adjetivo, porque outros — ultrajante, ofensivo, radical — seriam grandes elogios a um filme que não merece mais que um levantar triste da poltrona e um abano negativo da cabeça.
O filme é inferior até mesmo à obra de Sade que lhe deu origem, porque o livro se restringe ao universo do sado-masoquismo, não se pretende uma parábola política. As parafilias de Sade são mais honestas, mais verdadeiras: sua satisfação é a única coisa que pedem. O filme é também tecnicamente — fotografia, som, cenografia — mal-feito, inferior ao que se fazia na Itália 20 anos antes; como se voltasse a um tempo em que Fellini e Visconti ainda não tinham nascido.
“Saló” deixa em mim uma impressão clara: é Pasolini subindo na mesa do bar e gritando “olhem para mim! Vejam como eu sou chocante! Vejam como eu sou maldito e brilhante!” E no entanto ele é apenas chato e bobo, e as pessoas olham indiferentes para ele e voltam a cuidar de suas vidas. Porque elas, por insignificantes que sejam, são mais interessantes que aquele filme infantil.
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Lulu, não acho que vanguarda seja algo ruim em si, apesar de gostar muito da frase do Lennon pré-Yoko Ono em que ele a define com uma crueldade enorme: “Avant-garde é ‘merda’ em francês”.
Acontece que nem tudo que se pretende vanguarda é bom. Aliás, nem tudo que se diz vanguarda o é.
Pelo menos no meu conceito semântico da palavra, vanguarda é algo que vai à frente. Desbrava caminhos, abre picadas que mais tarde se tornam grandes estradas. Mas às vezes muitas coisas que se definem vanguarda na verdade estão pegando um caminho marginal e paralelo que não vai dar em lugar algum. Às vezes até isso pode ser bom; geralmente é só um exercício de vaidade fútil, de criatividade vazia.
Dentro desse conceito, “Cidadão Kane” era vanguarda. “O Anel dos Nibelungos” era vanguarda. “Ulysses” era vanguarda. “Saló”, definitivamente, não é. Se alguém me apontar uma obra sequer que tenha se inspirado no filme eu ficarei grato, porque embora faça força não consigo pensar em nenhuma.
E mesmo sob qualquer outro ponto de vista, daqueles mais amplos e generosos, tampouco sei se dá para chamar “Saló” de vanguarda. Por exemplo, Pasolini gostava de trabalhar com não-atores. Visconti também. Mas Visconti fazia isso na década de 50, e desistiu para fazer obras-primas como “Morte em Veneza”: a maravilhosa cena final jamais poderia ser interpretada por um não-ator, era preciso um Dirk Bogarde para isso. Aquele cinema engajado e pretensamente revolucionário já tinha tido seu tempo (e, cá para nós, tenho sérias dúvidas de que tenha funcionado de verdade algum dia). Ao utilizar a mesma técnica em 1975, Pasolini na verdade é a retaguarda.
Esse engajamento político em busca da transformação da arte cinematográfica através da utilização de não-atores me parece uma grande bobagem. É algo típico da década de 70, em que se vivia dos restos da revolução cultural dos anos 60. Há uma necessidade de quebrar parâmetros que nem sempre se concretiza — que geralmente não se concretiza.
Particularmente não vejo muita graça em Sade; de modo geral, acho literatura pornográfica chata, pouco mais que adolescentes desenhando genitais na porta do banheiro da escola. Abro uma exceção relativa para o marquês, ele é bem mais que isso; mas ainda assim o acho chato. De qualquer forma entendo seu livro, ao passo que não consigo entender direito a mistura mal feita de perversões e política que Pasolini tenta fazer, sem sucesso. Ele conseguiu tirar o sentido das duas áreas, sexo e política, fazendo um filme que é menor que os dois temas separados. Por exemplo, há um pudor curioso nas cenas de sexo que soa fora de contexto. E o aspecto político do filme só é óbvio quando você sabe de antemão. “Ah, aquilo é a burguesia fascista italiana fodendo o povo, né? Entendi…”
Eu não consigo sequer achar o filme ultrajante ou asqueroso. Acho só bobo, é esse o problema. Durante a seqüência do círculo da merda, em vez me enojar com aquilo, ficava apenas pensando que tudo aquilo era falso, porque a reação lógica de alguém obrigado a engolir fezes é vomitar, e não comer tudo e se lamentar da mala sorte. Se conseguisse me revoltar com ele provavelmente Pasolini teria alcançado pelo menos um de seus objetivos, e para mim o filme seria maior do que é. Mas eu o acho apenas frágil, um sujeito que acabou de fumar um baseado e desanda a falar besteiras achando que está sendo genial.
Para mim, “Saló” é apenas uma curiosidade histórica.
Voltando a Lennon, quando ele disse aquela frase nem fazia idéia de que, uma década depois, um italiano pretensioso iria aplicá-la de maneira literal. E com péssimos resultados.
Originalmente publicado em 10 e 11 de março de 2004