Alguém um dia vai me contar direitinho o que fizeram com o Homem-Aranha.
Faz tempo que não leio suas histórias, mas passei na banca e folheei uma tal de Marvel Millenium, que aparentemente tenta recontar a história do amigão da vizinhança. Meu queixo caiu e fui dar uma olhada nos fóruns de leitores para saber o que estava acontecendo. Foi pior.
O Aranha é um dos super-heróis mais importantes da história, talvez o mais importante depois do Superman. Quando apareceu representou uma mudança fundamental no mundo dos quadrinhos, e apesar de não ter iniciado uma revolução — honra que cabe ao Quarteto Fantástico –, foi seu protagonista mais importante.
Em primeiro lugar, ele era um sujeito comum, apesar dos super-poderes. Tinha os problemas que seus leitores tinham. Foi também um personagem que, em vez de viver aventuras isoladas no tempo e no espaço, evoluía constantemente, saindo do segundo grau para a universidade, trocando de namoradas, arranjando novos problemas. Ao contrário dos personagens tradicionais, Peter Parker envelhecia.
O Aranha de Stan Lee e Steve Ditko era um adolescente magrelo sem sorte e cheio de problemas, um personagem com quem os leitores poderiam se identificar facilmente. A entrada de John Romita possibilitou o primeiro redesenho do Aranha, que se tornou mais musculoso, mais de acordo com o padrão dos quadrinhos. Por outro lado, os roteiros de Stan Lee eram brilhantes. O personagem tinha uma sintonia com a realidade até então inédita, e estabeleceu o padrão pelo qual super-heróis deveriam ser julgados a partir dali. A primeira abordagem das drogas em quadrinhos, por exemplo, aconteceu na revista do Aranha.
E então mataram Gwen Stacy.
A morte de Gwen deveria ser incluída em qualquer lista de 10 melhores histórias em quadrinhos de todos os tempos. Nunca antes uma namorada de super-herói tinha sido assassinada. Ninguém poderia imaginar Lois Lane empacotando. Hoje isso virou lugar-comum, neguinho morre a três por quatro, mas na época foi uma revolução. Foi a primeira vez. E do ponto de vista da cronologia do personagem, foi um dos eventos mais importantes de sua história. Até hoje, sempre que os roteiristas ficam sem idéias, aparece alguma referência a Gwen Stacy.
Aquele foi o ápice do Aranha, mas foi também o fim da sua fase de ouro. Pelos próximos anos ele andaria às tontas de um lado para o outro, mal desenhado pelo Ross Andru e mal roteirizado por uma série de joões-ninguém. Nos anos 80 resolveram fazer uma grande mudança, e trocaram seu uniforme por um mais moderno, todo preto. O uniforme era até bonito, mas era como desenhar Jesus Cristo sem barba e tatuado. Não demorou muito para o uniforme voltar ao que era antes.
Aquele era o primeiro sinal de que não sabiam mais até que ponto ir, de que a busca por novas idéias tinha se transformado um mecanismo completamente desregulado.
Então a Marvel teve uma daquelas idéias geniais das quais depois se arrependem amargamente. Resolveram casar o Homem-Aranha. Nenhum outro super-herói do primeiro time tinha sido casado antes, mas o Aranha estava sempre no meio de uma revolução, eles devem ter pensado. Não tinham matado Gwen Stacy? O casamento parecia uma boa idéia.
O único problema, que os gênios da Marvel não conseguiram perceber, é que estavam fazendo exatamente o contrário do que Gerry Conway tinha feito ao jogar Gwen Station da ponte. A morte de Gwen libertou o Homem-Aranha para novas aventuras emocionais; sua nova idéia genial o prendeu para sempre. O casamento de Peter Parker e Mary Jane Watson (que foi transformada em supermodelo e passou a ter uma semelhança enorme com Cindy Crawford) tirou uma série de possibilidades para o super-herói.
Mesmo assim aquela foi uma das melhores fases do Aranha, até hoje, porque ali estavam explorando todas as possibilidades que a nova situação oferecia. Uma de suas melhores histórias, “A Última Caçada de Kraven”, é dessa época. E a entrada de Todd McFarlane possibilitou o primeiro redesenho do personagem em 25 anos (McFarlane aumentou os olhos da máscara do Aranha, tornou seu perfil mais esbelto e mais próximo do original e recriou a textura da teia). As pessoas hoje detonam McFarlane, mas ele foi um dos desenhistas mais importantes na história do personagem mais importante da Marvel.
McFarlane saiu e aí pelo começo dos anos 90 fizeram o Aranha embarcar na febre do momento: “mataram” o personagem. A tendência inaugurada pelo Superman se espalhou por praticamente todos os personagens do primeiro time; no caso do Aranha, eles reviveram um antigo clone, Ben Riley, que ocupou o lugar do super-herói sem sorte durante algum tempo.
(Eu li as histórias originais com o tal clone quando foram republicadas no início dos anos 90. E posso afirmar que era impossível que ele fosse o verdadeiro Peter Parker. A premissa dessa volta era falsa e o resultado só poderia ser a tragédia que foi.)
De lá para cá, com Peter Parker de volta, o Aranha vem se arrastando como naquela fase negra entre os anos 70 e 80. Preso a um esquema que lhe permite poucas mudanças críveis e realmente conseqüentes, é um zumbi que não vai a lugar nenhum. Pelo visto, anda faltando coragem para fazerem o que devem fazer: divorciar o Aranha e continuar com a tradição de evolução do personagem. Liz Allen, por exemplo, é um personagem que poderia ser muito bem aproveitado.
Diante da falta de coragem, resolvem partir para o deboche. Nessa tal Marvel Millenium, eles resolveram perverter toda a tradição o homem Aranha. Estão recontando a origem do personagem de uma forma absolutamente incompreensível. Fazem o coitado namorar a Mary Jane antes de todas as outras, tirando Betty Brant da história. Gwen Stacy passa a ser uma rebelde sem causa, e tudo isso ocorre no segundo grau (originalmente Parker só conhece Gwen Stacy e Mary Jane na universidade).
Mas a Marvel Millenium pode ser vista como uma espécie de “universo alternativo”. Eles conseguem fazer coisa pior nos títulos regulares. Atualmente estão copiando o filme e fazendo que a teia seja orgânica, o que não me parece uma boa idéia. Não é recomendável mudar uma tradição de quase 50 anos apenas por causa do sucesso de um filme. Por exemplo, os editores de Superman não mataram o pai de Clark Kent só porque ele morria no filme.
Mas a última loucura — essa sim, inexplicável — que fizeram foi alterar uma parte fundamental do passado do Aranha, e agora Gwen Stacy teve dois filhos com o arqui-inimigo do Aranha, Norman Osborn. A coisa chegou a um nível de retardamento difícil de acreditar.
Eles não aprendem com seus erros. Não sabem que é no mínimo temerário alterar o passado, e que destruir personagens fundamentais é sempre um erro. Deviam se mirar no exemplo do Batman. Quando Frank Miller recontou sua origem em Ano I, não mexeu nos fatos principais — que afinal de contas estavam aí havia quase 50 anos. Em vez disso, ressaltou alguns elementos importantes para a redefenição do personagem. O resultado é um clássico.
A diferença é que Frank Miller era um gênio e o pessoal que mexe com o Aranha não passa de um bando de idiotas com idéias pretensamente geniais. E que estão matando a sua galinha dos ovos de ouro.
Talvez eu seja apenas um velho leitor de quadrinhos, de outros tempos. Mas algo me diz que não. Porque eu já era um velho leitor de quadrinhos quando as obras-primas dos anos 80 apareceram. E a impressão que eu tinha era a de que estava diante de maravilhas, como na história de Alex Ross; hoje, me sinto como quem olha aqueles bailes, durante a Depressão americana, onde as pessoas dançavam até a exaustão para ganhar alguns trocados. A impressão é a de estar diante de um bando de desesperados que não sabem mais o que fazer.