Que discussão maravilhosa. Obrigado.
Acho que, em primeiro lugar, é preciso abstrair da discussão a idéia de que “no Brasil, não”. Mais que uma questão conjuntural, a pena de morte é uma questão filosófica: deve ou não a sociedade ter o direito — que para alguns se transforma em dever — de eliminar o seu semelhante? Restringi-la porque não se tem confiança no sistema judiciário brasileiro é simplesmente não discuti-la, até porque não há a mais remota chance de a pena de morte ser aprovada no país, pelo menos nas próximas décadas.
Os fatos: a pena de morte não tem nenhum efeito coercitivo que as penas comuns não tenham. Não tem função regenerativa porque mortos não costumam se arrepender. A possibilidade de ser usada discricionariamente em regimes de exceção é bobagem: eles têm esse nome justamente por não respeitarem as regras democráticas, portanto isso é irrelevante. Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog, por exemplo, não foram condenados por nenhum tribunal.
Acho que um dos bons argumentos contra a pena de morte é a sacralidade da vida, porque é geralmente uma postura ética forte. Se você acha que a vida é sagrada, nada justifica a morte de outra pessoa. Mas uma das coisas que me impressionaram é que grande parte das pessoas contrárias à pena capital são favoráveis ao direito ao aborto, e essa dicotomia de certa forma prejudica um pouco o argumento. Do ponto de vista biológico, um feto de 12 semanas é um ser vivo, seja lá o que for. Tem pés, mãos, seu coração bate. Ao que parece, o que faz a diferença é a humanidade que atribuímos a ele.
A pena de morte deve ser julgada pelo que é: a sociedade se livrando daquilo que acha incorrigível. A idéia é: você aceita que um grupo de pessoas representando a sociedade tenha o direito de decidir se alguém morre ou não?
Se for mais fácil, imagine um governo utópico, numa sociedade absolutamente justa, com um sistema jurídico imune a falhas. Você tem a garantia de que nenhum inocente será condenado. Nesse caso você aceita a pena de morte?
Um sujeito mata seu pai. Você acha que tem o direito de matá-lo? O Estado tem? Você pensaria da mesma forma se fosse o pai de outra pessoa? Qual o padrão? Por que alguém acha que matar pessoalmente alguém que lhe fez muito mal é moralmente justo, e deixar que o Estado faça o mesmo não é?
É humano entender o sujeito que mata outro porque este, por exemplo, matou seu irmão. Mas é justamente para evitar a lei de Talião que existe o Estado. É para isso que existe um sistema judiciário.
A pena de morte é a sistematização de um procedimento de defesa da sociedade. Pode ser entendida como vingança, claro; mas um outro ponto de vista é o de que é simples pragmatismo. Quem já teve contato com prisões pode atestar que algumas pessoas são simplesmente ruins, e é bobagem demagógica pseudo-cristã dizer o contrário. São irrecuperáveis. Quando voltarem para as ruas vão fazer o mesmo que sempre fizeram. Não é sequer culpa da sociedade.
Aí fica a questão: você pode apostar que fulano, quando sair da penitenciária, pretende matar mais gente. Sabe que, independente do que aconteça, alguém vai morrer. Pode-se afirmar que, recusando-se a se livrar dele, a sociedade está contribuindo — por omissão, no mínimo — para que outras pessoas morram, às vezes pessoas inocentes. A pergunta: até que ponto o Estado tem o direito de proteger seus constituintes? O que é essa proteção? Há diferença ética entre a morte de pessoas inocentes e de bandidos?
A única certeza que tenho é que a prisão perpétua é algo muito pior e mais desumano que a pena de morte. Eu só consigo defini-la como o máximo da crueldade: condenar uma pessoa a viver o resto da vida presa simplesmente não tem sentido. Se ela vai ser reeducada, se ela vai se arrepender é irrelevante: ela não vai ter a chance de mostrar isso, não terá a chance de voltar a ser útil para a sociedade. Sua possibilidade certamente não faz mais para dissuadir alguém de cometer um crime do que a pena de morte. Não há outra finalidade na prisão perpétua que o castigo puro e simples. O Estado se mobiliza apenas para que essa pessoa passe o resto da vida expiando seu crime. Não tem sentido. Não passa de condenação à morte em vida. E por mais que digamos que a vida é sagrada, passar o resto da vida sem nenhuma esperança não deve ser muito melhor que morrer.
São só mais algumas perguntas. E eu não tenho as respostas. Tudo o que posso dizer é que, se fosse legislador naquele país utópico, votaria contra a pena de morte. Mas não por causa das minhas certezas; votaria, antes, pelas incertezas. E porque, antes de permitir ao Estado matar alguém, me incomoda mais eu mesmo assinar qualquer sentença macabra dessas.