Crime e Castigo

Eu comprei “Crime e Castigo” junto com outro livro de que tinha ouvido falar muito, “O Apanhador no Campo de Centeio”. Um sebo de Salvador, a Livraria Brandão, famosa por seu acervo e pelos preços absurdos que cobra.

Levei os dois livros para a agência e lá mesmo li “O Apanhador”. Bobagem, pura bobagem. Continuei sem compreender o que aquele livro tinha para ser tão admirado pela geração que eu adorava. Eu tinha 18 anos, idade em que teoricamente se é mais sensível ao que o livro diz. Eu devia ser um insensível. Caulfield era só um menino mimado metido a engraçadinho. Se tivesse estudado na minha escola tinha levado muita porrada para deixar de ser besta.

Aí comecei a ler “Crime e Castigo”.

Vários posts, em vários blogs, já falaram com mais propriedade sobre o espírito do livro. Eu li há tanto tempo, e já estou tão atrasado em meu post, que dificilmente escreveria algo que ninguém escreveu.

Mas tem uma coisa de que não esqueço.

À medida que eu ia me aproximando do assassinato da velha usurária, minha respiração ia ficando mais difícil. Meus olhos ficavam mais abertos. A boca caía, espantada, como se eu não acreditasse que aquilo era possível, que alguém pudesse escrever daquele jeito.

Eu nunca tinha visto uma cena como aquela. Nunca.

Que se discutam as idéias, os temas, o final insosso e reacionário do livro. Nada disso é capaz de obscurecer o brilho com que aquela cena foi escrita. E no final das contas é isso que faz um romance, não necessariamente as idéias que ele defende.

O tempo passou e Dostoiévski foi desbancado do posto de meu escritor favorito por um francês que escrevia movido a café para escapar das dívidas que sua megalomania lhe trazia. Muitos, muitos livros foram lidos depois dele. Mas nunca, em todos esses anos, eu me vi boquiaberto diante de uma cena como a do assassinato da velha usurária.

Mykonos

Conversando com uma professora, ela falou que sua irmã adora Mykonos.

Mykonos é uma vila de pescadores que descobriram que a vida é mais fácil quando se lida com turistas. É só isso. Me lembra Bom Jesus dos Pobres, no Recôncavo Baiano. É, em tudo e por tudo, inferior a Paraty, para citar só um exemplo. O Porto da Barra, nos anos 70, era melhor que aquela ilhota.

E no entanto as pessoas falam da ilha como se fosse algo do outro mundo. Ela não é. Mykonos não tem nada. Mykonos só vale a pena porque geralmente você tem que passar por lá para chegar a Rodes. Mykonos é o pedágio.

Mykonos consegue ser pior que Atenas, porque esta, em meio à poluição, aos fragmentos de ruínas escondidos em uma cidade feia e desorganizada, em meio àquela uniformidade mediocremente branca da arquitetura mediterrânea — uma infinidade de edifícios de cinco andares com varandas que vão de um lado a outro –, em meio àquela cidade que se espalha por uma terra ingrata como porra em roupa verde amarronzada e amarrotada (pior se vista do alto em um dos aviões da Olympia, a Vasp européia, onde a aeromoça vende cigarros duty free como qualquer muambeiro paraguaio), onde eu estava? Ah, Mykonos consegue ser pior que Atenas, porque Atenas pelo menos tem a Acrópole.

Zé Carioca

A Abril está republicando as histórias do Zé Carioca. Ao que tudo indica, resolveram diminuir os prejuízos que as histórias em quadrinhos lhe trazem já há alguns anos.

Eles têm material suficiente: são quase 50 anos de revistas publicadas quinzenalmente. O Zé Carioca é um personagem que só existe por causa do Brasil, que sempre produziu a quase totalidade de suas histórias. Foi graças ao Zé Carioca que o estúdio brasileiro da Disney conseguiu chegar a um nível altíssimo de qualidade nos anos 80, produzindo excelentes histórias em uma época em que praticamente todos os estúdios Disney no mundo chafurdavam na mesmice.

A republicação das histórias serve para lembrar dos bons tempos em que o amigo do Nestor usava terno e gravata.

No começo dos anos 90 os brasileiros resolveram atualizar o Zé Carioca. Saíram o terno e o guarda-chuva e entraram boné com a pala virada para trás, tênis, bermudas e camisetas “eu- sou – o – rei – do – funk”. Na verdade a mudança começou antes, com o Zé de calça jeans e camiseta branca, mas foi aí, nos anos 90, que o contraste com o Zé Carioca inicial se tornou tão grande que não podia mais deixar de ser notado. Parecia uma boa recauchutagem do personagem, que aparentemente ficava com um visual mais próximo da realidade atual do morro.

Só parecia, no entanto.

O que eles estavam fazendo era outra coisa: assassinar o espírito do Zé Carioca. Esse espírito está bem definido em uma das suas primeiras histórias (republicada em 1981, em um especial de aniversário), em que ele personifica o mais perfeito malandro brasileiro, um sujeito cheio de lábia que se mete com um milionário chamado Rocha Vaz e conhece a Rosinha.

Acontece que o Zé Carioca nunca se vestiria como outro sujeito do morro. Simples assim. Seu paletó não era apenas uma roupa, era um instrumento de ascensão social. Ele era um favelado, sempre foi, e uma das melhores encarnações do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. O terno representava a sua malandragem, a necessidade de parecer o que não era para aplicar seus golpes. Ele usava terno para ser o impostor, o arrivista, o neguinho compositor que conseguiu namorar a filha do Rocha Vaz. Quando lhe tiraram esse símbolo e o enfiaram no uniforme de 11 em cada de 10 membros da “comunidade”, mataram o seu ethos.

Será que eles nunca se perguntaram por que o Zé Carioca andava sempre com um guarda-chuva e chapéu côco no Rio de Janeiro? Será que era tão difícil de perceber que fazia isso para ficar mais parecido com um lorde inglês e, portanto, mais confiável? Parece que não.

A republicação de suas histórias, pelo menos, consegue recuperar um pouco desse espírito.

Ainda Israel

Juro: eu sabia que o Rafael Caetano ia deixar um comentário ao último post sobre Israel.

a invasão do Líbano, por mais que possa ser criticada (e foi muito criticada mesmo dentro de Israel), _também_ foi para se defender. Os palestinos bombardeavam Israel a partir do Líbano. Não faz o menor sentido dizer que foi expansionista. Nem os sionistas mais radicais tinham interesse em colonizar o Líbano. No máximo esperavam um acordo de paz com o governo libanês (o que não aconteceu).

A invasão do Iraque também. Chamaram isso de “guerra preemptiva”.

Na verdade, todos sempre têm uma razão para a guerra, todos têm uma razão para invadir outro país. Hitler, por exemplo, tinha razões bastante válidas, do seu ponto de vista: as humilhações resultantes do tratado de Paris são a principal delas. Invadir a Polônia era uma medida de proteção contra a União Soviética. Tanto palestinos como israelenses podem dar milhões de razões para cada um de seus atos, até aos mais abjetos.

Mas há questões objetivas, e é a partir delas que se pode formar uma opinião. E, objetivamente, o que acontece é que Israel é um Estado que hoje ocupa áreas que nao são suas, que forçou uma situação em que os territórios em questão deixam de ser considerados “ocupados” para se tornarem “em litígio”, e em nome do seu direito a existir obriga as nações vizinhas a aceitarem menos do que lhes é de direito.

por que sempre citam Sabra e Chatila sem mencionar quem realmente conduziu os massacres, i.e., uma mílicia maronita? É mais ou menos como responsabilizar exclusivamente o Reino Unido e a União Soviética por Hiroshima e Nagasaki. E não é que a presença de Israel tenha sido necessária: os libaneses e palestinos se matavam muito antes da invasão israelense.

É verdade, o massacre foi conduzido por uma milícia cristã. Mas isso não redime Israel do seu papel em tudo aquilo, e é isso que o caracteriza, sim, como assassino. O massacre foi planejado por Ariel Sharon, entao ministro da Defesa, e se a invasão do Líbano pode ser vista como apenas um episódio “normal” de uma guerra expansionista (já que ele estava invadindo outro país), Sabra e Chatila, não. Maiores informações podem ser encontradas aqui, na petição inicial de um grupo que quer julgar Sharon por crime contra a humanidade. O exército israelense deu carta branca a à Falange para fazer o que fizeram. Negar a responsabilidade de Sharon — e de Israel — é como dizer que Hitler não é responsável pelo Holocausto porque ele, pessoalmente, não matou ninguém.

A analogia com a bomba atômica que você fez é simplesmente falsa. A Inglaterra e a URSS não tiveram nada a ver com a bomba. E no caso da URSS, foi justamente o contrário. O bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, cidades de um país que àquela altura estava apenas tentando conseguir uma rendição minimamente honrosa, foi basicamente um aviso de Truman aos malditos comunistas (que tinham vencido a guerra na Europa para os aliados, embora a propaganda americana torça esses fatos). A primeira foi para mostrar que os EUA tinham a bomba; a segunda, para mostrar que tinham mais de uma. Que uns tantos japoneses tenham virado pó é só um detalhe, claro. Os racistas eram apenas os alemães. Na verdade, a URSS só declarou guerra ao Japão em 8 de março de 1945, dois dias depois da explosão, tentando garantir uma melhor posição na configuraçao mundial do pós-guerra.

é claro que Israel não quer aceitar milhões de “refugiados”, muitos dos quais são abertamente hostis a judeus em geral e a Israel em particular. Supondo que vai existir um estado palestino (árabe), por que os “refugiados” não vão morar nesse estado então? Eles certamente terão cidadania palestina. Qual é o sentido de existir 2 estados nesse caso?

Rafael, você não percebe o absurdo ético que é esse argumento? Ele tira toda e qualquer justificativa que exista para a formação do Estado de Israel. “Por que os refugiados não vão morar nesse Estado então? Eles certamente terão cidadania palestina” poderia muito bem ser traduzida em 1948 por “Por que os judeus não vão morar nos EUA então? Eles certamente terão cidadania americana”, ou qualquer outro país. Quer dizer então que o que vale para os judeus justificarem a formação do seu Estado não vale para os palestinos?

Os refugiados a que estamos nos referindo são aqueles que saíram por vontade própria, ou expulsos pelas milícias israelenses, a partir da formação de Israel. Que moravam lá antes mesmo da formação de Israel. Gente que tinha suas casas e por várias razões foi obrigada a sair delas. São quatro milhões de almas que, ao contrário do que diz o (ou a, sei lá) Riponga não querem encontrar Alá mais cedo, e sim voltar para o que foi seu lar. Agora você diz que, já que Israel está lá, os palestinos que se virem? Ah, por favor. Parece o malandro carioca que se aproxima de moto do seu carro: “Perdeu, perdeu!”

Me corrija se eu estiver errado, mas a luta judaica por seu Estado foi muito parecida com a luta atual dos palestinos. Isso quer dizer que os judeus apelaram para os mesmos métodos terroristas que hoje execram nos muçulmanos. Na época, não era feio dizer que a Inglaterra era uma potência colonial e criminosa. Mas hoje é uma inverdade dizer o mesmo de Israel.

O mundo é, definitivamente, engraçado. Mas talvez a gente deva seguir o exemplo da velha e boa Golda Meir:

Este país [Israel] existe como o cumprimento de uma promessa feita pelo próprio Deus. Seria ridículo pedir que justificasse sua legitimidade.