Não esqueçam Ronaldinho

A mis hermanos, as duas primeiras estrofes de um velho tango de Gardel, para que possam se distrair na longa, longa viagem de volta.

(Eu sempre disse que, para mim, o melhor de um jogo de futebol é tripudiar depois. Não me culpem.)

Adiós muchachos, compañeros de mi vida,
Barra querida de aquellos tiempos;
Me toca a mí hoy emprender la retirada,
Debo alejarme de mi buena muchachada.

Adiós muchachos, ya me voy y me resigno,
Contra el destino nadie la talla,
Se terminaron para mí todas las farras,
Mi cuerpo enfermo no resiste más

.

Definição de humanidade

A medida da humanidade, para mim, é a medida do desnecessário.

Não dou a mínima para as definições de humanidade que vejo por aí. O homem é o único animal racional, o único que ri, essas coisas.

Para mim, o homem só é o homem porque pode se dedicar com desvelo ao que não é necessário.

É a diferença entre sexo e sacanagem, entre água e coca-cola, entre um PF no boteco da esquina e um omelete de mil dólares, entre uma camiseta Hering e um terno Armani. A diferença entre um Fusca e uma Ferrari.

O homem é a arte do supérfluo.

Aracaju ao longo de 15 quarteirões

Na frente do hospital, sentados na calçada, um casal olha para o vazio. Uma menina apóia a cabeça no joelho do rapaz e chora baixinho.

Mais adiante, um homem chega e é recebido pela filha, que tenta sem sucesso enxugar as lágrimas.

Na igreja em frente o padre reza a missa alheio a tudo.

***

Sentada na calçada diante do Conservatório, a moça diz para a amiga:

— Tem que ter uma corzinha, pra poder enxergar. Gosto de branquelo, não. Meu namorado é um negão.

***

Na calçada, a família coloca suas cadeiras e conversa sobre a vida, ocupando todo e espaço numa tentativa de aproveitar a brisa da noite. E o tempo parece que não passa, que é a Aracaju de 30 anos atrás, em que as pessoas ainda tinham pouco medo umas das outras, e viam a cidade como uma extensão de suas casas.

***

Em frente à Catedral um menino anda de bicicleta. Uma menina fala com ele e recebe uma resposta dura. Os amigos dos dois incitam:

— Ele lhe chamou de vagabunda!

A menina, gordinha, uns 13 anos, aceita a provocação e vai atrás do ciclista que pedala rápido em direção aos fundos da igreja.

***

O casal de comerciários anda de mãos dadas em direção ao ponto de ônibus, sorrindo ao fim de um dia de trabalho. Parecem fazer planos para um fim de semana que, eles sabem, vai demorar muito a chegar.

***

Sentadas no batente de uma loja fechada, duas prostitutas fumam maconha. Suas expressões, antes de serem tristes, são cansadas. Cansadas da noite que apenas começa e cansadas do que deixaram para trás. Bandeirolas de São João decoram a rua.

***

Prostitutas e vendedores de churrasquinho de gato olham para a esquina ao longe, paradas no meio da rua.

— Os dois saíram correndo, alguma coisa aconteceu.

Na esquina oposta, um homem conversa com dois policiais que riem, mãos pousadas em seus .38 niquelados.

— Os cabra correu de medo, uns frouxo.

Amanhã devo mudar meu roteiro de caminhada noturna.

Racismo

Num dos meus primeiros dias na quarta série, eu e dois amigos, um branco e um negro, tínhamos impedido um menino de bater em outro. Na verdade, eles estavam brincando e a gente entendeu errado, mas isso não importa. Eu estava saindo da escola quando a mãe ou avó dele me parou e reclamou comigo. Além das pequenas ameaças, disse que um menino como eu não deveria andar com aqueles crioulinhos.

Em sua imbecilidade, ela me tomou por duas coisas que não sou. Olhou para mim, na época lourinho, com cara de menino bem criado e morador da Graça, e achou que estava diante de um pseudo-caucasiano racista como ela.

Fiquei chocado com aquilo. Foi a primeira vez que vi um racista assumido em minha vida, e não consegui esquecer até hoje. E se em Salvador era assim, eu imaginava como seria em outros lugares.

Mas esse nojo de qualquer tipo de racismo não é tão forte quanto pode parecer.

Um tio meu é um belo negão de quase 2 metros de altura. Num belo dia de 1985, provavelmente um daqueles em que a gente se dedicava a encher o saco um do outro, ele resolveu apelar para o fato de eu ser um pobre brasileiro confinado aos limites nacionais: “Eu fui para tal país, você não, tal país, você não, tal país, você não” — era uma lista enorme. Eu ouvi calado. Quando a lista dele se esgotou, eu aproveitei: “Pois é. Mas tem um país aonde eu posso ir e você não: a África do Sul.”

Às vezes o racismo dos outros pode ser útil.