A normalista

Como cantada por Nélson Gonçalves:

Vestida de azul e branco
Trazendo um sorriso franco
No rostinho encantador
Minha linda normalista
Rapidamente conquista
Meu coração sem amor
Eu que trazia fechado
Dentro do peito guardado
Meu coração sofredor
Estou bastante inclinado
A entregá-lo ao cuidado
Daquele brotinho em flor
Mas a normalista linda
Não pode casar ainda
Só depois de se formar
Eu estou apaixonado
O pai da moça é zangado
E o remédio é esperar.

Vêde, pedófilos. Vêde e aprendei.

Mulheres imperfeitas

Longe de mim sair por aí dizendo que o importante é a beleza de dentro. Eu sou redator, não sou decorador de interiores.

Por isso uma mulher bonita, para mim, é o ápice da criação divina. Quando o diabo tentava Jó, quando o diabo dizia que Deus fez isso e aquilo de ruim, Jó poderia ter respondido: “É, mas fez a Isabel Fillardis também”. E então o diabo sumiria numa nuvem de enxofre e Deus poderia parar de fazer aquela sacanagem com ele.

Confesso: a beleza de uma mulher é a primeira coisa que olho. É a segunda e a terceira, também. Dependendo da mulher, pode ser a quarta. E a última.

Mas a beleza é variada. Quando me perguntam qual o tipo de mulher de que gosto, eu nunca sei responder. Não sei porque essa pergunta não tem resposta. A beleza está em várias coisas: num olho, num olhar, numa boca, na curva das costas, no jeito como ela se senta e cruza as pernas, nas mãos — é, e nos peitos e na bunda também.

Mas sei qual o tipo de mulher me atrai menos: aquela perfeita, em que você não consegue achar um só defeito.

ModiglianiTem coisa menos sexy do que uma mulher perfeita?

Uma mulher perfeita parece feita de plástico, esculpida por um artista de talento. É obra humana, não há nada de divino nela, porque Deus, se existe, sabe das coisas e não se deixa cair nessas armadilhas de perfeição. Sua beleza é tão estrondosa que não deixa espaço para mais nada, sequer para a admiração, quanto mais para aquela sensação de frio na barriga, aumento dos batimentos cardíacos e uma quase incontrolável vontade de pegar.

Mulheres perfeitas reforçam minha crença na beleza, sim, e nada mais. Que bom que elas existem. Mas não é com elas que que sonho à noite. É como se essas mulheres esculpidas em mármore não ofegassem, como se seus cabelos não tivessem perfume, como se sua pele não pudesse ficar marcada pelas minhas mãos.

Olho para uma mulher perfeita como olho para um quadro de Renoir: lindo, maravilhoso, ficaria bem na minha parede. Mas para aquela mulher perfeita que não gosta de sua bunda, ou se acha acima ou abaixo do peso, os pensamentos são outros; certamente menos nobres — ou talvez mais — que a simples apreciação das Belas Artes.

Mas talvez tudo isso seja só preconceito. Graças a Deus, nunca conheci uma mulher perfeita. Todas elas são deliciosamente imperfeitas: têm nariz arrebitado ou grande demais, seus seios não são exatamente o que elas sonharam, reclamam da celulite e da barriga que não é dura como uma tábua.

Talvez, no fundo, elas saibam que nada disso importa tanto. Talvez saibam que é justamente isso que faz a sua beleza: elas são reais. São de verdade, parecem de verdade. Mulheres imperfeitas são possíveis.

"Ken Park" ou uma melancia no pescoço

Acabei de asssitir a “Ken Park”.

Eu não sabia nada sobre o filme; na verdade, peguei o CD emprestado com um amigo, entre outros 20, para escolher quais copiar.

Apesar da seqüência inicial irritantemente longa, o filme aparenta ter algumas qualidades,no início. Gente normal, comum, feia, sem o glamour de Hollywood. Por alguns breves instantes o filme lembra John Cassavettes; mas é uma impressão tênue demais, que se esvanece em poucos minutos.

Ela é substituída por uma sensação bem clara: “Eu já vi esse filme. Se chama ‘Kids'”. “Kids” é um filme de Larry Clark que criou uma polêmica bem razoável em 1995. Só fui ver o filme em 98, e não entendi a razão da caleuma: aquilo era vazio, só isso.

Eu não fazia idéia de como estava certo. “Ken Park” é o último filme de Larry Clark.

Aqui Clark repete a mesma história, e apenas aprofunda os mesmos defeitos. O filme se quer chocante, mas na verdade é só sensacionalista. Por exemplo, perdemos muito tempo vendo um rapaz se masturbar enquanto se enforca; qual o significado disso? Vemos também outro rapaz transar com a mãe da namorada, uma cena relativamente longa. Clark tenta fazer com que nos percamos na visão do silicone da mulher, mas não tenta explicar a cena em que ela se recusa a ceder aos avanços do marido. Por ser clichê, talvez; mas o que não falta ali são situações clichê, apenas mostradas com crueza gráfica. Não há, a propósito, tema mais clichê que o conflito de gerações. E Nicholas Ray o retratou melhor há meio século.

Se Clark não tenta contextualizar melhor as situações, dar alguma profundidade aos seus personagens, é porque não pode: o significado do filme está apenas em suas imagens chocantes, pretensamente realistas. Não há profundidade em um pênis ereto ou em um pai tentando fazer sexo oral no filho. “Ken Park” é só um filme vazio, porque não discute nada, não diz nada, além da melancia que Clark coloca no pescoço.

E finalmente, para minha revolta maior, a cena em que o garoto cai de boca na sogra é uma palhaçada. Aquele menino não sabe nada. Nada.

Da próxima vez que alguém me oferecer um filme de Larry Clark, vou sugerir um pornô qualquer. É melhor.

Celibatários ainda em fogo

Paulo, a questão aqui não é exatamente o trabalho da polícia: é a atitude da igreja em acobertar o crime e criar condições propícias para a ação de pedófilos que por acaso usam batina.

A Igreja Católica é admirável, no que tem de inteligente e maquiavélica. Ela sabe muito bem que apenas está expondo o padre a novas tentações, a novos garotinhos que não sabem quem é ele. Pode-se acusar a igreja de tudo, menos de burra ou incompetente. Sua atitude não é impensada. Ela prefere continuar acobertando aquilo que chama de pecado a arriscar um escândalo público, provavelmente herança de tempos melhores em que mandava no mundo.

Ao fazer isso, ela está cometendo um crime pior, o da omissão. Talvez tente se justificar alegando a si própria que está dando a outra face — o que é fácil quando a face é dos outros, das crianças que fatalmente serão abusadas pelo novo padre da paróquia. Há um elemento engraçado em tudo isso: os mesmos religiosos de direita que pedem as punições mais graves para criminosos comuns, o que inclui até castração, assumem uma postura totalmente diferente quando o pedófilo usa batina.

Dizer também que o problema está na mídia é brincadeira. Para começar, não é a imprensa que abusa de crianças; mas mesmo esse ainda não é o problema central. O problema, mesmo, é a atitude da Igreja em não punir os padres, em fingir que nada aconteceu. Quando ela faz isso, está sendo conivente. Não é culpa da imprensa se há padres pedófilos, muito menos se a Igreja se esforça em escondê-los de maneira porca.

Resumindo, a questão aqui é a instituição chamada Igreja que age de forma canalha. Não são os padres. O problema deles é psicológico; o da Igreja é ético e legal. O problema da Igreja não se resolve num divã.

Confesso que não fui muito bem nas minhas aulas de catecismo, e que nunca freqüentei a igreja. Nem mesmo para correr atrás das meninas, porque eu não gosto de meninas boazinhas, eu gosto é das más. Mas acho que isso que a Igreja vem fazendo está errado. E acho que ela devia correr para o confessionário mais próximo, persignar-se e começar dizendo: “Padre, eu pequei”.

A Albânia é o Haiti com slogans

Procure esta frase no Google: Albania is Haiti with slogans. “A Albânia é o Haiti com slogans”.

Você só vai encontrar em um único site: na Atlantic Monthly. É o final de um artigo que Peter Ustinov, morto há alguns dias, escreveu para a revista em 1966, depois de uma viagem pelo país de Enver Hoxha.

Do ponto de vista psicológico, o artigo poderia ter sido escrito hoje, quase 40 anos depois. Não é panfletário e maniqueísta como quase tudo o que se escreveu no ocidente sobre os regimes socialistas naqueles tempos, e mesmo hoje. É só a visão de um sujeito sobre um país estranho, diferente, sem no entanto deixar de notar alguns dos elementos que a propaganda estatal escamoteava: a pobreza, estranha em um país que era o sexto maior produtor de cobre do mundo, e elementos curiosos de provincianismo.

O mais interessante é que a frase, única, caiu no esquecimento. Ninguém notou — quem iria se preocupar com a Albânia quando ela era socialista, e quem vai se preocupar com o buraco miserável e sem futuro que ela é hoje? Essa frase é talvez a melhor definição possível do país, e uma definição crudelíssima de algumas experiências socialistas no século XX.

Mas é, principalmente, uma daquelas frases brilhantes, verdadeiras, que deveriam fazer a fama de um frasista.

Celibatários em fogo

Acabei de ler mais uma opinião nesta rede esquisita sobre como o voto de castidade de padres católicos é uma das causas dos repetidos casos de abuso sexual de crianças nos Estados Unidos.

É mais um a misturar alhos, bugalhos e aquela palavrinha feia mas que rima que é uma beleza.

O voto de castidade não tem nada a ver com a pedofilia eclesiástica. Do contrário, apenas padres molestariam crianças, o que não é bem o caso. Não é o voto de castidade que os torna pedófilos. Eles são pedófilos que, por acaso, fizeram voto de castidade. A única diferença é que, pela sua posição, a padrecada tem mais facilidade em abordar suas vítimas. Tá assim de coroinha na sacristia.

Em vez de reclamar do voto de castidade, que é um problema deles, a sociedade deveria reclamar com mais força contra a atitude canalha da Igreja Católica ao acobertar esses crimes. Se uma pessoa comum molesta crianças, ela vai para a cadeia. Se é um padre, vai para outra paróquia. É um bom negócio.

O que terá acontecido à Reader’s Digest?

De repente, o destino da Reader’s Digest me incomodou tanto que resolvi parar numa banca de revistas para dar uma olhada nela.

Ela se diz, em 2004, a revista mensal de maior circulação no Brasil, mas não conheço ninguém que ainda a leia.

Era diferente nos anos 70.

Eram tempos de guerra fria, e a Reader’s Digest — ou Seleções, como a chamavam —, mais que revista, era um instrumento de propaganda americana. Na minha casa ela nunca entrou, mas havia várias na casa de minha avó. Não sei de que ano eram, mas não deviam ser novas.

Eu gostava da revista. Gostava do formato dela, e principalmente do conteúdo. Sempre havia uma matéria de interesse humano, e várias seções fixas que me deixavam interessado. Por exemplo, foi nela que fiquei conhecendo os pilotos da RAF na II Guerra Mundial. E talvez tenha sido nela que vi a tal menção a Schliemann, que citei num post antigo sobre Tróia; não tenho certeza, é só uma impressão que me veio agora. De forma torta e tendenciosa, havia um certo cosmopolitismo na Reader’s Digest.

E assim paro na banca querendo saber o que foi feito dela. Dou uma olhada no índice. Para meu alívio, as sessões de que eu gostava continuam lá: “Piadas da Caserna”, “Ossos do Ofício”, “Rir é o Melhor Remédio”. Provavelmente as frases construtivas estão lá também (mas hoje eu prefiro as que estão no canto superior direito do Tiro e Queda).

Fora isso, a revista mudou muito. Agora é uma revista claramente dirigida a pessoas de meia idade, quando não da terceira; é o que justifica tantas matérias sobre saúde. Pelo que pude perceber, também, é a rainha do marketing direto.

Sem a necessidade de vender o american way of life, a revista se tornou uma entre tantas, indistinta e insossa. Nos tempos da guerra fria era melhor.

Por que escoteiros e políticos não gostam de mim

Nos tempos em que escrevia em jornal, publiquei uma cronicazinha que falava sobre um monitor com tendências, digamos, meio heterodoxas. Era apenas ficção, e das fraquinhas. Por “fraquinhas” entenda-se “ruim demais”.

Mas o coordenador dos escoteiros de Sergipe resolveu escrever uma longa carta me cobrindo de elogios, do tipo que minha mãe não gosta, e exigiu publicação. Não me incomodou muito, porque eu já tinha passado por ofensas piores — a última tinha sido um vereador de Aracaju que subiu à tribuna da Câmara de Vereadores, brandindo o jornal, para dizer que “esse tal Rafael Galvão pode ser filho de um grande jornalista, mas é um moleque”. Era mesmo: eu tinha 19 anos.

(Alguns meses depois o vereador apareceu na minha casa, com uma garrafa de uísque no lugar de cachimbo da paz, me convidando para trabalhar com ele.)

Quanto ao coordenador dos pobres escoteiros — que me ensinou que a frase sobre os imbecis vestidos de menino é de Mussolini –, eu respondi sua carta, aproveitando para debochar do escotismo, e tudo ficou por isso mesmo. Se eu conseguir achar esse artigo publico aqui; a resposta, não a crônica que deu origem à confusão, porque dela eu tenho vergonha.

Um ano depois, acho, fiquei sabendo a razão daquela reação, que na época achei exagerada. Um sujeito tinha denunciado um monitor que gostava excessivamente de meninos. Por acaso na mesma época em que saiu a tal crônica. O diretor dos escoteiros, então, achou que o pequeno “escândalo” tinha vazado. E a sua postura era exatamente a mesma da Igreja Católica em casos semelhantes: abafar o caso e fingir que nada aconteceu.

Mas consciência pesada é uma coisa terrível. Fica gritando sua culpa, e aos seus ouvidos soa tão alto que você passa a achar que todos ouvem também.

A culpa é a mãe da paranóia.