Música eletrônica

A Toyota lançou um robô que consegue tocar trumpete com lábios humanos. (A arte do trumpete está em duas coisas: no sopro e nos lábios.) Ela espera lançar uma banda totalmente integrada por robôs no ano que vem.

A pergunta é: e daí?

Música tocada por robôs não deve ter a mínima graça. Sempre igual, absolutamente igual. A magia de um show ao vivo é justamente o fato de que nenhuma música é tocada duas vezes da mesma forma. Na melhor das hipóteses, essa idéia não é mais que um showcase de tecnologia, que serve apenas como demonstração inicial de uma tecnologia que servirá para outra coisa.

De qualquer forma, ela deve estar aceitando sugestões de nomes. HAL e suas Odisséias no Espaço? Os Filhos de Asimov? Rob e seus Chips? Os Processadores do Ritmo? Édipo Elétrico e sua Placa-Mãe?

A triste saga de Amâncio

No final de 96 eu era freqüentador assíduo do #sergipe, canal de IRC. Morava em Aracaju e boa parte de meus amigos estavam por lá (é engraçado: migramos do real para o virtual, na contracorrente). Meu nick era Tomahawk, nascido um ano antes na SyNC-Net, uma rede de mensagens via BBS em cujo “Abóboras” eu vivia falando besteira.

Foi quando um dos usuários, Wesley, apareceu com um pequeno script que dizia “Wesley bate em Fulano com um pato de borracha”.

Eu não gostava de scripts e comecei a implicar com aquilo. Aos poucos, a gente foi desenvolvendo uma história para esse pato de borracha, batizado de Amâncio.

A história foi ficando bastante engraçada. Demos muitas gargalhadas enquanto inventávamos absurdos para o pato. Até a hora em que enchi saco e “matei” o coitado. Duas vezes.

Acabei escrevendo a história de Amâncio. Arrumei umas fotos, escrevi a texto na linguagem mais típica de folhetim barato que pude imaginar e coloquei nas páginas no Geocities. Ficou lá por muito tempo.

Mas semana passada descobri que o site finalmente tinha sido apagado, 7 anos depois, junto com a biografia de Tomahawk. Para mim é quase como o fim de uma era.

Graças ao Internet Archive Wayback Machine consegui encontrar uma cópia. Então resolvi dar uma atualizada no HTML, tirei as midis que forneciam a trilha sonora, e coloquei a triste saga de Amâncio de novo no ar.

Provavelmente, a história tem mais graça para quem viveu aquilo. Mas talvez valha a pena, sei lá, apesar do tamanho. Se você tem tempo, vai .

Glauber

O artigo de Arnaldo Jabor ontem em O Globo fala sobre Glauber Rocha.

Eu não gostava de Jabor, em tempos idos. E confesso que ainda não gosto dos seus filmes. Mas nos poucos momentos em que ele esquece seu ódio à esquerda, cada vez mais hidrófobo, e a qualquer coisa fora do mundo onírico do Leblon, ele às vezes se revela um excelente crítico de costumes. Não sei se acho isso porque fiquei mais inteligente ou se simplesmente guinei em direção à direita, espectro onde ele se localiza. Não sei e não faço questão de saber.

Sua análise de Glauber é uma das mais corajosas e lúcidas que já. Assim como Lennon, Glauber virou mito depois de sua morte, e mitos têm relações complexas demais com suas próprias obras. Jabor diagnostica corretamente o sujeito, colocando na base de toda a sua trajetória o seu narcisismo — embora eu acredite que quem mais reclama do narcisismo dos outros sejam aqueles empolgados demais com o seu próprio. De qualquer forma, ao menos Jabor consegue separar o joio do trigo em sua obra, racionalmente e sem excessos.

Meu pai era amigo de Glauber. Até o dia em que, num bar da rua Banco dos Ingleses, perto do Campo Grande, perdeu a paciência e disse que ele era um filho da puta, pelo seu apoio entusiástico à “abertura” de Geisel. Um amigo comum, Joca (autor de “Memórias das Trevas”, livro-denúncia sobre ACM), precisou separar a briga.

Meu pai havia sido preso em 64 e não tinha nenhum motivo para dar as boas vindas a qualquer medida do regime. De qualquer forma, quando Glauber morreu, meu pai chorou. E nunca deixou de chamá-lo pelo que ele realmente era: um gênio.

Durante algum tempo fiquei pensando se meu pai não estava errado e, afinal, Glauber estava certo. Afinal, o que Glauber previa aconteceu.

Mas Glauber estava errado. Porque o problema, ali, não era saber se a abertura iria acontecer ou não, ou se Golbery era um gênio da raça ou um simples assassino. A questão era que, sob quaisquer ângulos, Glauber estava metendo os pés pelas mãos. Sob o ângulo pragmático da realpolitik era preciso manter aquele fiapo de resistência que restava depois que a ditadura trucidou os guerrilheiros loucos. E abertura não era só vontade de Geisel, era uma exigência imposta pelo desgaste do regime. Ao apoiar Geisel, Glauber estava não apenas fazendo uma besteira do ponto de vista político, mas talvez mesmo prejudicando a própria evolução política do país, dando à ditadura um mérito que não era seu.

Quando menos, por uma questão de coerência e dignidade, a todos aqueles que haviam protestado contra a ditadura só restava continuar a resistência e forçar a abertura.

Nada disso, no entanto, tira o brilho do sujeito. Gostando ou não dos seus filmes — e eu não gosto da maioria —, ele era o melhor cineasta que tínhamos. Era um gênio, sim. E como eu já escrevi em algum lugares, gênios podem fazer besteiras de vez em quando.

Sedna, o planeta que nunca existirá

Nas últimas horas tenho dito mais palavrões que o normal. É assim que estou me referindo à descoberta de um provável décimo planeta no Sistema Solar.

Não é pelo planeta em si. Não me incomodo com os problemas do vizinho do 304, quanto mais com um pedaço de gelo a 13 bilhões de quilômetros de onde me sento. Me importa ainda menos que a exclusão de Plutão do Sistema Solar, que está sendo discutida atualmente. (Tanto Plutão quando esse dejeto de freezer podem fazer parte do cinturão de Kuiper e não ser exatamente planetas.)

A questão é que essa onda politicamente correta está chegando a exageros absurdos.

A tradição cosmológica do meu planeta reza que batizemos os outros planetas do Sistema Solar com nomes de deuses greco-romanos: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. Até as 63 luas de Júpiter têm nomes gregos. Um novo planeta deveria receber um nome semelhante; em homenagem à era de conhecimento que pretensamente vivemos poderia ser chamado de Minerva, por exemplo.

Mas os nerds da NASA decidiram que não, que devemos ser menos eurocêntricos, e nesses tempos em que os EUA e suas neuroses regem o mundo tudo é possível. Resolveram dar o nome (provisório, ainda) de Sedna.

Sedna, fico sabendo agora, é uma deusa dos esquimós, responsável pela criação dos seres marinhos. Muito importante, como se vê. Fundamental para a compreensão do mundo em que vivo, para a tradição filosófica e literária do planeta. Jung tem um estudo sobre os arquétipos mitológicos em que fala extensivamente de Sedna. Milhares de livros foram escritos sobre a cosmogonia esquimó. Chamar o décimo planeta de Sedna é um reconhecimento justo ao seu impacto decisivo na evolução cultural de nossa sociedade.

“Mas é essa a questão”, pode dizer um dos nerds da NASA. “Temos que dar espaço a outras manifestações culturais além daquelas nascidas na Ásia Menor.” Então tá. Multiculturalismo é bom, bonito, e dá bom assunto de conversa em mesa de bar. Os esquimós são bonitinhos, também, com seus corpos untados de banha de foca e baleia e seu extinto hábito de oferecer a própria mulher a seus hóspedes. Os esquimós são muito legais. Seus deuses devem ser, também. Eu não tenho nada contra os índios que vieram do frio.

Mas as pessoas precisam se dar ao respeito de suas tradições. E nem amarrado eu chamo aquele picolé de Sedna, a partir do momento em que ele for reconhecido como planeta.

A lista incompleta de Schindler

Há alguns anos fiz uma lista dos 100 melhores filmes, na minha opinião. A lista, no entanto, tinha 101 filmes: eu fiz questão de incluir “A Lista de Schindler” como o 101o.

Só fiz isso por revolta. “A Lista de Schindler” é, para mim, a maior quase-obra prima da década de 1990.

A partir da abertura, eu fiquei maravilhado com o filme. Assim como Romário é o gênio da pequena área, Spielberg é o mestre dos primeiros 15 minutos de um filme — e se superaria depois com a incomparável seqüência inicial de “O Resgate do Soldado Ryan”.

Ao contrário do que aconteceria alguns anos mais tarde em Ryan, Spielberg não se perde ao conduzir Schindler. Nas próximas quase 3 horas, o que se vê nas telas é um filme quase absolutamente irreparável. Não há críticas a se fazer ao filme, a nenhum aspecto — a não ser, claro, ao óbvio vestido vermelho da menininha, truque usado com mais pertinência e relevância em Rumble Fish por Coppola, 10 anos antes.

É então que Spielberg tem que lembrar que é o autor de “ET”.

Nos últimos 20 ou 30 minutos de filme, Oskar Schindler se transforma. Aquilo que começou como uma oportunidade única de se ganhar um bom dinheiro passa a ser a razão de sua vida. Até então, a preservação dos judeus tinha sido apenas o cuidado que o senhor de escravos tem com sua senzala; ele apenas entendia que deveria cuidar do seu capital. Mas no final Schindler se torna um humanitário com uma missão.

Curioso é que, segundo todos os relatos dos sobreviventes daquela lista, Spielberg apenas retratou a verdade: Schindler foi mesmo tocado pela desumanidade de tudo aquilo que acontecia, e se tornou um defensor sincero de seus judeus e um pacifista, sabotando ou, o que é mais provável, ligando pouco para a sua produção bélica.

Mas não estou acusando Spielberg de mentiroso, e sim de ter prejudicado o seu filme. Ao retratar um Schindler que se tornou um herói da humanidade por motivos puramente egoístas, ele poderia ter criado um dos melhores personagens da história do cinema, alguém que se tornou grande a despeito de si próprio. Não importa que ele estivesse mistificando a realidade. O cinema faz isso todo o tempo, com todo mundo; às vezes chamam a isso de “compressão histórica”, às vezes de licença poética. Não estamos falando de história, mas de cinema. O Schindler que víamos até ali, um homem oportunista, eticamente flexível, podia se tornar um dos grandes anti-heróis do cinema: mas a partir do momento em que se “converte”, passa a ser só mais um herói, que diminuía sua própria importância humana ao se tornar maniqueísta.

E além disso nada justifica a cena em que Schindler, prestes a fugir, chora pelos judeus que não salvou: “este casaco poderia pagar a vida de mais um judeu! Este anel!”. Primeiro porque ele não precisava de mais do que já tinha feito para se tornar um homem a quem a humanidade deve muito; segundo porque é uma cena absolutamente implausível dentro do contexto do filme e também diante do verdadeiro Schindler.

Spielberg até então tinha feito um filme cruel, cínico e cru: destruiu tudo para imprimir a sua marca de autor de melodramas. Se até então havia uma ambigüidade fascinante em Schindler, Spielberg finalmente consegue torná-lo óbvio e chato.

Ele ainda conseguiu piorar as coisas. Tinha feito um filme brilhante em preto e branco, a despeito de várias pressões. Mas resolveu fazer sua profissão e fé e incluiu uma espécie de coda em cores, com os sobreviventes indo colocar pedras no túmulo de Schindler. É absolutamente desnecessário. Torna o filme panfletário, o que ele não precisava ser.

“Schindler” ainda é um dos melhores filmes da década de 90. Mas poderia ser um dos melhores da história, e não é. E por isso a minha revolta.

De onde viemos? Para onde vamos? Lá tem BBS?

Em 1994 comprei meu primeiro modem. Uma potência que me colocava em contato com o mundo a estonteantes 2.4 Kbps (o Velox, em comparação, oferece no mínimo 256 Kbps). E um pouco depois comecei a acessar um BBS.

Um BBS era, mal comparando, uma internet em um computador só. Havia uma seção de downloads, normalmente com uma porrada de velhos programas para DOS. Mas o mais interessante, mesmo, eram os sistemas de troca de mensagens.

A BBS que eu acessava, a Cybernet, fazia parte da SyNC-Net, uma rede de trocas de mensagens que interligava vários BBS’s no país inteiro. Os pacotes de mensagens eram trocadas uma vez por dia, de madrugada.

Foi nesse sistema que descobri como era bom falar besteira com gente que não conhecia. Havia uma seção — seção, não, mas o nome me foge agora — chamado SyNC-Abobrinhas. Na época nicks eram chamados de handles, e eu resolvi usar o Tomahawk — por causa da machadinha dos iroquoises, não por causa dos mísseis.

Eu adorava aquilo. Trocava dezenas de mensagens por dia, falando os maiores absurdos. Ainda tenho umas poucas sobreviventes a dois crashs de HD:

CYBERNET – 07/08/95 20:01
From: TOMAHAWK
To: MAD DOG
Subj: God by e-mail
Area: SyNC-NET Abobrin

Mim resolve entrar em pow-wow de Mad e The.

MD>E ai grande Deus como vc esta !!!
MD>o que aocnteceu com vc que nao vejo mais mensagens suas por aqui
MD>parece que anda meio sumido pô…

Pois é, Mad. Deus anda meio sumido ultimamente. Desde que deu aquelas tabuinhas pro Moisés e mandou ele fazer aquela arca (a mesma que o Indiana Jones achou), resolveu dar um tempo. Deixou de lado até a guerra da Bósnia. No último cartão postal que me mandou, estava curtindo horrores na Praia do Forte.
Mas não se preocupe: Tomahawk, o amigo mais íntimo de Deus, está aqui pra falar com você.
Deixe o seu recado comigo. Eu garanto que assim que Deus voltar a dar notícias (se bem que ele anda de olho na Cindy Crawford, sei se vai ter tempo não…) eu passo pra Ele.
Só não vale pedir fama, saúde, dinheiro e a Babalu. A Cindy Crawford, como você pode ver, nem pensar. Deus perdoa tudo, menos quando você cobiça a mulher do próximo.
Qualquer coisa, é só falar. Ou rezar.
Por falar nisso, temos novidades: desde o dia 03/06, passamos a aceitar orações via e-mail, desde que enviadas para o endereço abaixo:

Tomahawk@paraíso.eden

Se você quiser mandar e-mail direto pra Deus, é só enviar para:

God@

Não se preocupe com o endereço. Deus está em todo lugar.

Você pode também nos contactar pelo telefone 1-900-GOD-SAVES. Apenas $1.45 o minuto. E sempre uma mensagem de esperança para você.

[]s teológicos de
Tomahawk
___
* UniQWK #1970* Vende-se tagline. Tratar (011) 1406.

O programa que eu usava para ler essas mensagens era o UniQWK. O número de série que aparece aí em cima era usado por quatro pessoas — as quatro que ratearam o registro — e muita gente achava que, afinal de contas, éramos uma pessoa só.

O UniQWK tinha uma opção de inclusão de taglines que, em pouco tempo, virou vício. Taglines eram frases incluídas aleatoriamente no final de cada mensagem. Eu tinha uma coleção enorme delas, cerca de 5000. Criei algumas, mas a maioria absoluta era roubada de outras mensagens:

Disléxicos são mais alerges.
Disléxicos de todo o mundo… Uvi-nos!
Um seminário sobre viagem no tempo será realizado duas semanas atrás.
* = Asterisco. _ = Asterisco depois de encarar o Godzilla.
A vida é uma merda, e aí você morre.
Eu não sou esquizofrênico. É esse cara do meu lado!
Eu não sou paranóico. Qual dos meus inimigos te disse isso?
Trilhões de moscas não podem estar erradas: coma bosta.
Na qualidade de leigo, qual é a sua opinião sobre sexo?
Aquela tagline é verdadeira -> <- Aquela tagline é falsa.
Gigolô: sujeito pago para fazer o que qualquer idiota faz de graça.

E por aí ia. Durante anos procurei um add-on qualquer para o Eudora que possibilitasse a inclusão de taglines. Senti falta delas quando comecei a usar e-mail.

Lá se vão quase 10 anos. O tempo passa muito rápido.

While my eyes go looking for flying saucers in the sky

Eu acredito em Papai Noel, duendes e discos voadores.

Deve ser por isso que, quando quero rir, vou ao UFO Gênesis. É um site brasileiro sobre ufologia. Dia desses tinha até a foto da caveira de um ET, foto que o próprio site se apressou em desmentir dias depois. Isso é legal, mas mais legal ainda seria simplesmente não publicar essas bobagens. Atualmente, o UFO Gênesis publica o relato de uma mulher abduzida no final dos anos 70 ou início dos 80, ela não lembra bem (é nisso que dá andar atrás de fungos específicos que nascem em bosta de vaca durante a juventude: perde-se a memória).

O relato da pobre senhora “abduzida” reforça uma das teorias rafaelianas: a de que ufologia é um tipo moderno de fanatismo religioso. Ou pelo menos um belo exercício de fé: a certeza de que algo existe apesar de todas as evidências em contrário.

Assim como teorias conspiracionistas, a ufologia se baseia principalmente na ignorância: se não podemos afirmar categoricamente que algo não existe, podemos dizer que existe. A impossibilidade dessas viagens espaciais é driblada com a alegação de que não conhecemos quase nada sobre física — o homem está embatucado diante dos problemas da física quântica há quase um século. O melhor argumento de ufólogos é esse, o de que pode haver leis da física que desconhecemos e que possibilitem viagens espaciais por milhões de anos luz.

A mania de discos voadores surgiu em 1947. Não é coincidência que tenha sido logo depois da explosão das primeiras bombas atômicas. A humanidade, de repente, se via às voltas com possibilidades tecnológicas que pela primeira vez eram realmente ameaçadoras e destrutivas. As décadas que se seguiram foram os anos da ficção científica, e aos poucos a idéia de uma nova religião baseada em conceitos físicos começou a tomar forma.

Como em toda religião, todos os ET’s avistados são humanóides. Alguns mais feios, outros mais esquisitos; mas sempre humanóides, cabeça, tronco e membros. Como se a forma humana fosse necessariamente a mais adequada à evolução em todo e qualquer quadrante. Ufólogos sérios evitam entrar na seara da ficção científica, e evitam imaginar baratões imensos com QI de 4.987.989. Por que os ET’s não podem ser imensas famílias de algas hiper-inteligentes? A resposta, claro, é que ufólogos criam ET’s como religiões criam deuses, à sua imagem e semelhança. E como toda religião, sua base está na presunção de que somos pequenos e que há algo maior e incompreensível do que a nossa mísera raça.

Que venham então as teorias. As pirâmides egípcias, maias e astecas foram criadas por ET’s (eles se esmeram em ignorar a evolução dialética das pirâmides egípcias, por exemplo, até atingir a forma piramidal perfeita, assim como todas as evidências históricas). Discos voadores na verdade não são extraterrestres, são intraterrestres porque a Terra é ôca e tem aberturas nos pólos. E tantas outras do mesmo quilate.

Dão até nome para “raças” de alienígenas, como os greys; provavelmente invenção de um ufólogo que não queria ver o racismo se espalhando pela galáxia (embora deva haver ufólogos que façam distinção entre greys escuros e greys clarinhos).

Discos voadores, por sua vez, são sempre em formato de pires e, às vezes, de dirigíveis, como enormes charutos fálicos. Eles podiam pelo menos ler as historinhas do Astronauta, personagem do Maurício de Souza, e arranjar um avistamento de uma bola voadora.

Mas, no fim das contas, ufologia tem seu lado bom. É interessante que as pessoas continuem acreditando em algo além do que podem ver. De uma forma meio esquisita, de certa forma é uma espécie de resgate do lirismo e do mistério da fé.

E sempre pode aparecer alguém para comentar sobre eles: “Esses malucos maravilhosos e seus incríveis discos voadores…”

Quando os mortos são os outros

Nada, absolutamente nada justifica atentados como os de Madri. Não há discussão possível. Terroristas são assassinos e são a escória da humanidade.

Mas o que será que justifica as atitudes ambíguas que tomamos diante de atos tão parecidos, só porque aconteceram em locais diferentes e com pessoas diferentes?

A reação mundial ao atentado de Madri é compreensiva e justa, e merece ainda mais que a dimensão que vem tomando. Mas por que não reagimos da mesma maneira massivamente indignada em relação a todos os outros atentados perpetrados em todos esses anos, quando eles aconteceram no Oriente?

Como o atentado em Istambul, por exemplo.

Assim como na explosão do trem espanhol, ali morreu muita gente. Assim como a explosão do trem espanhol, foi um crime covarde cometido por inimigos do gênero humano. Mas além dos protestos de praxe, da indignação de praxe, não houve tantos clamores por justiça quando se tratou de turcos que explodiam pelos ares — e este blog se inclui nessa lista. Tentar explicar a reação mais tímida e menos chocada pelo menor número de mortos é hipocrisia e cinismo: uma pessoa que seja que morra dessa forma vil e inútil é gente demais.

Provavelmente não choramos pelos mortos de Istambul porque aquele é o mundo de lá. E os mortos de lá não nos tocam tanto, porque nos são estranhos, e talvez no fundo nos sintamos aliviados por serem eles que estão se matando. Aquele povo esquisito é diferente, se veste diferente, fala diferente e parece que pensa diferente. Mas os mortos da Espanha são como nós, são filhos da mesma civilização. Os espanhóis somos nós. Os turcos, sauditas, os iemenitas não são. Eles são os outros. A dor deles não dói tanto em nós.

Triste, mesmo, é perceber que é mais ou menos esse o sentimento que move os assassinos da Al Qaeda, do ETA e de toda e qualquer organização terrorista. Os mortos são os outros. Mas a criança iraquiana que chora hoje após um atentado, por alguma razão que divisões entre os povos não conseguem apagar, chora no mesmo timbre da criança espanhola.

Talvez a nossa reação seja uma variedade do estupor que tomou conta dos americanos após o 11 de setembro: a sensação de que a certeza de que tínhamos de viver em um mundo à parte e mais civilizado foi abatida pelas bombas dos étrangers. Talvez tão importante quando a indignação humana seja o sentimento de que eles são outros, são diferentes, e que portanto estão acostumados à matança, e que não têm nenhum direito de trazê-las para nós.

De certa forma, os assassinos da Al Qaeda estão conseguindo o que queriam: provar ao mundo a mentira de que esta é uma guerra entre Ocidente e Oriente, entre modos de vida antagônicos e inconciliáveis. E que, enquanto os mortos forem os outros, tudo é admissível.