Tenho infinita cautela diante de livros que pesam mais que um seio (não sabes quanto pesa um seio? Oh, pobre, pobre, pobre de ti!).
Talvez tenha sido por isso que deixei passar a chance de comprar a primeira edição de The Western Canon, o livro de Harold Bloom que fez sua fama internacional (além de má escolha estética foi mau investimento; o livro valeria muito mais hoje). Achei, depois de folhear o livro, que sua visão literária era descaradamente anglo-saxã, o que normalmente encaro como neo-colonialista; essa impressão foi confirmada depois de alguns artigos elogiosos sobre o livro.
A outra razão para deixar passar o livro foi o fato de que ele não dava a Balzac o valor que lhe era devido, pelo menos na minha opinião. Ou seja: o topo absoluto, o mestre dos mestres, posição que Bloom reserva para Shakespeare.
Na Primeira Leitura deste mês há uma entrevista do senhor Bloom. Conheço quase nada dele. Está lançando um novo livro, com uma interpretação interessante de Hamlet: sua inação não vem da ignorância, mas do fato de que sabe demais, e se recusa a participar de uma vingança medíocre e sem significado em uma peça também medíocre. Nietzsche tinha dado o primeiro passo nessa direção interpretativa, que Bloom agora aprofunda.
Essa entrevista me tornou, de repente, um apreciador do venerável senhor.
Eu não posso deixar de gostar de alguém que não tem o mínimo pudor em colocar Stephen King e similares em seu lugar — a lata de lixo da literatura. Normalmente as pessoas fazem elogios pífios ou se calam a respeito desses fenômenos “literários”, por razões de mercado. É um bom negócio para todo mundo, pelo dinheiro para uns, pelo disfarce da ignorância para outros.
O pior em tudo isso é que essa visão, que tem mais a ver com mercado que com cultura, fortalece uma espécie de ditadura da mediocridade, que julga esnobe e elitista qualquer manifestação cultural acima da capacidade de compreensão do espectador americano médio, o six-packer, viciado em basquete, apolítico e abestalhado pela TV e pela indústria cultural.
É cada vez mais comum ver gente ostentando um orgulho tosco em achar música erudita chata, em julgar ópera uma palhaçada. Perdem a chance de se deliciar com uma cantata de Bach ou de perceber a beleza de “La Traviata” (aliás, acham que toda ópera é igual, quando normalmente se referem à escola italiana. “Carmina Burana” é ópera. As obras de Wagner são ópera, pelo menos quando não são dirigidas por Gerald Thomas).
A democratização do acesso à educação e à cultura criou apenas milhões de semi-analfabetos. E o século americano foi cruel com o que chamam de highbrow.
Aos poucos essa cultura média, fermentada com marketing e alimentada pelo mínimo denominador comum vai se tornando o verdadeiro referencial universal. Literatura deixa de ser arte para ser julgada segundo os padrões da indústria de entretenimento. Para que ler Thomas Mann ou Proust se John Grisham dá mais assunto de conversa, se me faz sentir mais integrado ao mundo em que vivo? A diferença está também em um fato simples: o tempo que “No Caminho de Swann” me toma é igual ao de uns 15 livros de Michael Crichton. E numa cultura quantitativa, é melhor ler 15 livros imprestáveis que uma obra genial. Assim as pessoas podem se orgulhar de ganhar por 15 x 1. Só resta citar o dinamarquês de olfato sensível: O, throw away the worser part of it, and live the purer with the other half. Good night, but go not to my uncle’s bed. Assume a virtue, if you have it not.
É por isso que um Harold Bloom, sem medo de assumir que alguns valores não são relativos e devem ser julgados pelo que são, se torna cada vez mais necessário. É preciso que alguém mantenha os padrões em uma altura razoável. Alguém que mostre as coisas como elas realmente são: Bush um canalha corrupto, J. K. Rowling uma escritora medíocre, King uma fraude, e por aí vai.
Do jeito que as coisas vão, é até possível que um dia eu compartilhe a opinião de Bloom acerca de Shakespeare. Lady, by yonder blessed moon I swear.