E o Mal agora tem um blog.
Monthly Archives: November 2003
Blogueiros
A Julia me convida para ir a um “encontro de blogueiros”. Convite declinado aqui, publicamente.
Termo esquisito, esse: blogueiros. Parece “punheteiros”. Mas não é por isso que não vou. É porque, apesar de todas as evidências em contrário, eu posso ser tudo, menos blogueiro.
Eu escrevo um blog, é diferente. Pretendo continuar escrevendo enquanto gostar. Embora sentisse falta do feedback que recebo aqui, escreveria mesmo que não pudesse publicar, simplesmente porque gosto de escrever; na maior parte das vezes é uma forma de tirar um bocado de bobagens da minha cabeça e deixar o campo livre; em outras, é uma maneira de me obrigar a pensar melhor sobre um assunto. (E nunca é demais lembrar que os comentários sempre enriquecem o post original.) Mas daí a isso me classificar como blogueiro, vai uma longa distância.
Já disse antes, digo novamente: eu não sou o maior fã de blogs. Não tenho muito interesse por diários de adolescentes em si; primeiro porque já não sou adolescente há muito tempo, segundo porque sempre parto do princípio que todas as vidas são chatas e comuns como a minha.
Hypocrite lecteur, imagine Rafael nesse encontro. Alguém se aproxima deste dinossauro e seu inseparável cigarro pendurado nos beiços, e pergunta: “Ke ki foi, kra? Kra, tipo assim… Iraaaaado!”
Não aceito apostas sobre quanto tempo demoraria até eu mandar alguém dar um destino adequado à sua derrière.
Mas pensando bem, talvez não seja essa a razão. Talvez eu tenha vergonha de assumir a verdade: já me disseram que no último não havia mulheres bonitas.
De volta ao futuro
Para a maior parte das pessoas a Internet significa um vínculo seguro com o futuro.
Para mim, sempre foi um meio de me manter em contato com o passado.
Antes da Internet, informação era cara. Era comprada em livros, revistas e jornais. E dependia do mercado, sempre.
Houve um seriado de que nunca esqueci, chamado “Joe, o Fugitivo”. Era uma mistura de “O Fugitivo” com “Rin Tin Tin”. Foi exibido aqui entre o final de 1979 e o começo de 1980. Durante anos não consegui descobrir ninguém que lembrasse dele (recentemente conheci o Daniel, que lembrava; é o único até hoje). E não sabia absolutamente nada sobre seu destino.
Só com a Internet pude descobrir que o seriado se chamava Run, Joe, Run, e que tinha durado 2 temporadas (ou 26 episódios) nos EUA.
Há outros exemplos. “Ratos do Deserto”, um dos últimos seriados de guerra, foi sucesso aqui em 80, 81, e sumiu completamente.
Para esses, e mais algumas dezenas de seriados, filmes, acontecimentos e pessoas que sumiram no tempo ou em sua própria mediocridade (alguém lembra de Leif Garrett, cantor disco dos anos 70 com uma cara de meio viadinho que até fez umas pontas em “Mulher Maravilha”?), a Internet é a redenção. O mundo de informação disponível, muitas vezes colocada ali graças à boa vontade das pessoas, faz com que o mundo seja, paradoxalmente, mais simples. É reconfortante ver que há um mundo de gente que gostava das mesmas coisas que você, e que faz questão de compartilhar o que sabe.
Qual a desculpa para a ignorância, agora?
Lembranças soltas tiradas de um baú bolorento
O Bia não gostava de “Daniel Boone”. Eu e a Mônica adorávamos. Eu não gostava de “Terra de Gigantes”, mas gostava de “Batman”, de “Durango Kid”, de “Maya” (dois meninos e uma elefoa) de “O Homem do Fundo do Mar”, de “CHiPs”, de “Ratos do Deserto”, de todos os filmes de Jerry Lewis, do Zorro (o Lone Ranger, aquele de Tonto e Silver), dos filmes de Tarzan com Johnny Weissmüller, e de uma infinidade de outros que não lembro agora. Isso para não citar os desenhos.
Eu gostava de faroestes. Brincava com o Playmobil e com o Falcon. Tive revólveres de espoleta, até mesmo uma carabina de espoleta, igualzinha àquelas Winchester que matavam bandidos, bisões e índios.
Entre a minha infância e as de hoje há uma diferença enorme. É estranho que em um quarto de século tantas coisas tenham mudado. Os símbolos que valiam para a minha geração não valem para a de hoje.
Não se vê mais crianças brincando de cowboys. Na década de 70 os símbolos válidos eram do passado: eu cheguei a brincar de espadachim, embora a Idade Média e o Renascimento também já estivessem saindo de moda. A informação a que tínhamos acesso tirava suas referências do passado, e tinha como matéria prima o cinema de Hollywood, embora até chanchadas da Atlântida pudéssemos ver na Sessão da Tarde.
Sou de um tempo em que as cenas de sexo nos filmes que a TV exibia eram indicadas por um beijo ardente e um fade out. A informação se completava na mente de quem assistia: para mim, tudo se encerrava naquele beijo. Sinceramente, acho uma fórmula melhor que cenas razoavelmente eróticas em filmes que crianças assistirão; há um tempo para tudo.
Na minha época o espaço sideral era curioso, mas distante. A febre que o Sputnik criou na humanidade já tinha passado, e tinha restado muito pouco; além disso, era difícil simular gravidade zero em nossas brincadeiras.
Eu realmente acho que minha infância foi abençoada, por ter se dado em um momento de transição entre o já velho século XX e a preparação frenética para o século XXI. Como se fosse uma espécie de interseção meio paradinha entre um passado razoavelmente estável e um futuro desconhecido. Mas não saberia dizer se a infância de quem tem 8 anos agora, em uma época absolutamente fantástica em que tudo se transforma rapidamente, é melhor ou pior. Só que é diferente.
A única certeza — que não é dita com tristeza ou orgulho, apenas como uma constatação quase bovina — é a de que eu estou ficando velho.
Indicação
E essa menina tem só 18 anos.
Foreplay in the everness
Para Borges, aquele ceguinho escroto, a palavra mais bonita em língua inglesa é everness. Não há uma tradução exata para o português, porque não tem o mesmo sentido de “eternidade”. Uma tradução aproximada seria “sempridão”, sem um décimo da beleza concisa e estonteante do original.
Eu não tenho o lirismo de Borges, muito menos a sua veia poética. Mas também tenho minha palavra inglesa favorita.
Foreplay.
“O que vem antes da brincadeira”.
Alguém pode achar melhor definição para o que os brasileiros chamam, mediocremente, de preliminares? Ou mais leve, mais doce e mais diáfana?
Desabafo no confessionário
Puta que pariu, este blog está se tornando um compêndio de pseudo-debate de história das religiões.
Os donos do futuro
Há umas duas semanas, perto do Centro Cultural Banco do Brasil, no centro de São Paulo, um evangélico pregava em um cruzamento daqueles calçadões.
Usava um terno barato e tinha uma barba preta e comprida. Gritava, vociferava, batia com força e raiva em sua Bíblia. Acenava com os martírios do inferno a todos aqueles que se recusavam a ver a Salvação.
É uma imagem muito semelhante aos primeiros cristãos. Gente que em uma época de absoluta tolerância religiosa assumia uma postura sectária e, como diria Gibbon, até amarga em relação ao mundo.
Paradoxalmente era essa a sua força. Ao seu zelo, juntavam a noção de imortalidade da alma, que não era exatamente corriqueira em Roma (e a bem da verdade não era sequer entre os antigos judeus; procure algo sobre isso no Gênesis, para ver se acham). Os romanos não se comportariam daquele jeito deliciosamente depravado se achassem que havia uma vida após morte. Foi Tolstói ou Dostoiévski quem disse que “sem Deus, tudo é permitido”?
E a isso aquele povo esquisito juntava aquele jeito maluco de se comportar, aquele zelo em se manter puro em sua fé e em rejeitar aquelas manifestações pagãs que, naturalmente, eram as mais puras expressões do mal. Se os romanos cumpriam seus ritos e sacrifícios com o desdém com que a maior parte das pessoas hoje segue uma procissão, ou acompanha uma solenidade oficial, os cristãos viam naquilo uma perfeita manifestação de Satanás. E fizeram disso sua força.
Da próxima vez que alguém vir um chato pregando e vomitando ódio com palavras divinas, é melhor ficar quieto. Provavelmente, o futuro é deles.
Os mártires
A idéia do martírio do cristãos em Roma é bisonha.
Os cristãos (com exceção daquele breve período sob Nero) só foram perseguidos de verdade no final do império de Décio. A perseguição durou relativamente pouco tempo, com bispos mortos e exilados e a proibição de eleição de um novo bispo por 16 meses.
Depois disso, só no finalzinho do período de Deocleciano — e dessa vez o cacete comeu durante 10 anos. Ainda assim, é pouco tempo. E os números são menos imponentes do que os cristãos gostariam: 9 bispos foram mortos, e cerca de 2000 cristãos foram encontrar o Senhor mais cedo. Se os leões do Coliseu fossem depender de cristãos para sobreviver, morreriam de fome.
Os cristãos, no entanto, tinham um ladinho meio masoquista. Gibbon: “O gosto dos primeiros cristãos pelo martírio era tão grande que eles por vezes supriam pela sua própria confissão espontânea a falta de um acusador, perturbando rudemente a celebração pública do culto pagão; pediam ao magistrado que pronunciasse e aplicasse a sentença da lei e então pulavam prazerosamente dentro do fogo aceso para consumi-los — até os bispos condenarem essa prática.” E fizeram o procônsul da Ásia se lamentar: “Homens desditosos!, que estais tão fartos de vossas vidas, será tão difícil assim achar cordas e precipícios?”
Que o Papa me perdôe, mas tenho a impressão de que toda aquela lenga-lenga de sofrimento é só justificativa barata para as perseguições aos judeus e muçulmanos e hereges e viadinhos e bruxas e índios e japoneses e budistas e etc. e etc…
McCartney
Há algo de especial no jeito como Paul McCartney toca contrabaixo.
Para muita gente John Entwistle, do Who, é melhor baixista. Dizem isso porque Entwistle parece mais rápido e aparece mais; além disso, é autor de grande riffs. Mas eu, pelo menos, não considero que Entwistle tenha revolucionado o baixo, coisa que McCartney conseguiu.
McCartney toca seu baixo no limite. E para descobrir isso, basta tentar tocar suas linhas melódicas em tantas músicas dos Beatles. É fácil, então, perder o controle e cair no over, no excessivo. É esse, provavelmente, o maior gênio de McCartney: a contenção e a dedicação total ao que a canção exige.
Mesmo dominando seu instrumento, McCartney evita aqueles exibicionismos que fazem a ruína de tantos baixistas. Quando se solta e levanta vôo é simplesmente porque a música pede isso; um grande exemplo é Don’t Let Me Down, em que a estrutura harmônica fraca exigia maior proeminência do baixo. (E um dos poucos passos em falso é Something, que teria se beneficiado bastante com um pouco de contenção de Macca.)
Lennon dizia que o papel de McCartney na história do baixo sempre foi subestimado, e ele tinha razão. O baixista fica enterrado atrás da personalidade beatle e da genialidade como compositor pop. Mas não é menor que nenhuma delas.