1989 A.PC. (Antes de Paulo Coelho)

Diálogo no inverno do ano da graça de Collor versus Lula:

Ela: Você gosta de ler?

Ele: Ahn… Não.

Ela: Que pena.

Ele: …

Ela: Eu leio muito. Pessoas que não lêm são menos inteligentes.

Ele: Acho que somos. E o que você lê?

Ela: Sidney Sheldon, Harold Robbins. “Se Houver Amanhã” é o meu livro preferido.

Ele: …

E nessas horas, o que se pode fazer além de recorrer a Baudelaire?

“Pour toi, bizarre amant, quel est donc mon mérite?”
— Sois charmant et tais-toi! Mon coeur, que tout irrite,
Excepté la candeur de l’antique animal (…).

E um viva à hipocrisia

Pergunte, e 11 em cada 10 pessoas responderão que odeiam hipocrisia.

E todas elas estarão sendo hipócritas nesse momento.

O amor, a bondade, a idéia de altruísmo — todos esses sentimentos nobres são o que fazem esta vida parecer tolerável. Mas são os sentimentos ruins como a cobiça, a raiva, a inveja que fazem o mundo andar. É a ganância que faz alguém querer mais e mais dinheiro, movimentando as forças produtivas e gerando riquezas. É uma variedade da inveja que faz uma pessoa querer ser melhor que outra e, apesar de razões tão vis, eventualmente tornar o mundo um pouco melhor com seus atos. É a preguiça, aliada à inventividade, que torna o mundo mais confortável, como bem sabe aquele preguiçoso cansado de levantar para mudar o canal da TV que inventou o controle remoto.

Falta aos sinceros e francos a coragem de admitir que a hipocrisia, essa atitude tão vilipendiada, é fundamental e necessária à vida cotidiana.

Imagine, minha senhora, sua vida sem pequenas doses diárias de hipocrisia. Você pergunta se sua melhor amiga gostou do seu novo penteado. Ela, pessoa franca e sincera, qualidades das quais tem orgulho e não cansa de anunciar ao mundo, diz que está horroroso — a propósito, o seu cabelo é horrível, mesmo, não tem penteado que dê jeito; e olha, já que falamos nisso, seu marido está saindo com a Lurdes.

Ou você, senhor letrado, que escreve um poema do qual se orgulha e aquele mestre, a quem você admira e respeita, diz que ele é irremediavelmente medíocre, e extremamente parecido com um dos piores poemas de Verlaine — mas você não é plagiário, porque nem conhecia o tal sujeito: você é só ignorante, mesmo.

Por outro lado, imagine a senhorinha recém-casada com um homem a quem ama acima de todas as coisas, e que perguntada por ele, sequioso de aprovação e desejoso de agradar, a respeito de seu desempenho sexual pífio, responde que sim, que ele a completa e que aquela mixaria arfante é o melhor sexo que ela já fez. E um casamento é salvo por uma pequena mentira.

Os exemplos podem seguir ad aeternum. Muitas vezes somos hipócritas por motivos nobres, embora geralmente o sejamos por covardia e sabedoria; mas o resultado continua sendo hipocrisia, atitude que julgamos ver restritas aos Uriah Heep da vida.

Ah, quantos assassinatos a hipocrisia já conseguiu evitar. E apesar de toda a nossa ingratidão, da nossa recusa em reconhecer seus méritos, essa atitude salvou mais vidas que as Belas Artes, tão elogiadas e admiradas como exemplos do que de melhor o homem pode fazer. Guernica, tão nobre em seus ideais, não salvou uma só vida; mas pequenas mentiras salvam milhares a cada dia.

Admitamos todos, com o máximo de alegria possível diante do esmaecimento dos nossos sonhos de pureza: sem hipocrisia, o mundo acabaria em uma semana.

A hipocrisia é a base sobre a qual se sustenta a pólis, em que opiniões contrárias e muitas vezes excludentes precisam conviver com um mínimo de harmonia. É a sua porção, hypocrite lecteur, seja ela grande ou pequena, que lhe permite escutar e tentar aceitar a opinião de outra pessoa, mesmo quando você está convencido de que está certo e aquilo que o outro está falando é um punhado de estultices que poderiam muito bem ter saído da bundinha de um jumento.

Por mais que gostemos de alardear e mesmo cultivar nossa própria integridade pessoal, é a hipocrisia que, insidiosamente, subverte a lei do mais forte, criando uma base mínima de igualdade sobre a qual idéias e opiniões podem conviver.

Portanto, agradeçamos a Deus — ou ao diabo — a invenção dessa arte milenar e salvadora. Sejamos realmente sinceros uma vez na vida, e continuemos hipócritas.

Retorno a Zohar

Final de uma tarde de verão em 1979, Salvador. Eu estava no playground do edifício brincando com meus dois melhores amigos, Jailton e Pedrinho. Tínhamos arranjado alguns pedaços de pau, e algumas caixas de papelão das quais fizemos escudos. Brincávamos de batalha medieval; sou de um tempo em que as referências do passado, como cruzadas e cowboys, eram mais fortes que as do futuro nas brincadeiras infantis.

O edifício fica numa espécie de vale, porque de um lado está a escarpa da Ladeira da Barra, e do outro a 8 de Dezembro, outra grande ladeira. Além disso há prédios altos em volta.

E então, no meio da brincadeira, alguém notou algo estranho, que passava rápido e silencioso no céu. Quando olhamos para cima vimos um espetáculo inédito, e assustador. Um show de luzes vermelhas e azuis, informes, passou rápido e sumiu, em menos de um segundo, atrás do prédio que ficava em frente.

Eu era um garoto urbano. Nada relativo ao progresso, à civilização, me era estranho. Os cachorros dos lugares onde morei já não corriam atrás de carros. Nunca brinquei de pião ou de bola de gude quando era menino. Nunca me emocionei ao ver o mar pela primeira vez.

Mas aquilo era diferente. Era um disco voador, só podia ser um disco voador. Não era um avião — eu já tinha visto tantos, já tinha viajado em alguns. No mínimo, aviões faziam barulho.

Aquilo era um disco voador.

Jailton, Pedrinho e eu ficamos aterrorizados. Minha mãe havia ido comprar pão, e na volta viu um Jailton que, de bem pretinho, estava cinza de medo. Pedrinho também estava apavorado. Quanto a mim… Eu poucas vezes havia sentido um terror tão grande. Nada neste mundo – e, dadas as circunstâncias, em qualquer outro — me faria subir aquela escada. Eu tinha certeza de que havia um ET no vão embaixo dela. Esperei mamãe para subir com ela. Tinha certeza de que ela botaria aqueles homenzinhos verdes e maus para correr.

Os anos passaram. Minhas conclusões sobre o que eu tinha visto foram mudando com o tempo até que cheguei a uma conclusão preguiçosa de que aquilo era algo perfeitamente explicável, um balão meteorológico ou um avião (apesar da falta de som), ou qualquer coisa do tipo. Mas nunca tive certeza absoluta; era apenas uma conclusão racional, do tipo “discos voadores não existem, ponto”.

Exatos 20 anos depois, eu estava na varanda do meu apartamento em Fortaleza, de madrugada, ninando minha filha. De repente minha ex-mulher olhou apavorada para o céu atrás de mim: “O que é aquilo?” Rapidamente me virei. E então eu vi.

Havia demorado duas décadas, mas meu disco voador havia voltado.

Pensei claramente algo em um átimo, imensurável de tão rápido. E naquele momento eu gostaria de ser outro, de não ser este ser humano cansado e lógico que acha que entende as coisas e que pode explicar tudo.

Eu gostaria de ter pensado que guerreiros do planeta Zohar haviam voltado para me buscar, duas décadas depois de terem sido impedidos naquele dia pela presença indômita de minha mãe. Que ali estavam pesquisadores waldosianos que me abduziriam e fariam experimentos genéticos inomináveis comigo. Que iriam me levar para Kandor e me exibir como um espécime de uma raça inferior, imperfeita e estranha, preciosidade de um planeta tão distante. Ou que, fascinados com minha perfeição genética, sábios yukiahans iriam me levar para revitalizar sua raça, devolver a eles atributos ancestrais que a evolução lhes havia tirado.

Gostaria de ter pensado qualquer coisa assim, que mostrasse que a criança de 8 anos ainda estava ali.

Mas naquele momento eu só pensei em uma coisa: “Pronto. Agora vou saber que porra é essa”. E então eu soube.

Era um avião.

Um simples, um prosaico Boeing, voando baixo por entre nuvens também baixas. Aviões têm luzes azuis e vermelhas que piscam intermitentemente. Por causa das partículas de água contidas nas nuvens, a luz se dispersa e dilui, e o resultado é um objeto disforme e assombroso. Não é tão comum; em duas décadas só vi algo assim duas vezes.

Durante a maior parte daqueles 20 anos, tive a certeza de que aquele disco voador era um fenômeno humano perfeitamente compreensível, provavelmente um avião, mesmo. Mas, lá no fundo, havia a esperança de que fosse realmente uma nave interplanetária de um planeta distante, trazendo pesquisadores para entender melhor esta raça de que faço parte.

Ali o adulto cético e racional obtinha a sua vitória definitiva e incontestável, e a sombra da criança de 8 anos se esvanecia para sempre. A falta de imaginação venceu.

O fantasma e o vento

Mais uma daquelas pesquisas utilíssimas e significativas de universidades inglesas — desta vez da Universidade de Hertfordshire e do Laboratório Nacional de Física.

O pesquisador Richard Wiseman afirma que o infra-som é o grande responsável por sentimentos de “sobrenatural” que às vezes temos. Nas igrejas, por exemplo, as notas extremamente baixas de alguns órgãos facilitam o êxtase religioso. Nas casas mal-assombradas, calafrios seriam o resultado do som provocado pelo vento. “O fantasma, na verdade, é o vento”, diz glorioso em seu racionalismo o bom Wiseman.

Longe de mim querer contradizer um sujeito sábio no próprio nome, até porque estou mais próximo de um wiseguy que de um wise man.

Mas a esse pessoal falta poesia, falta aquele respeito pelo metafísico, falta aquela sabedoria que vem da convivência com o mistério que torna a vida um pouco mais bela. Seu racionalismo cético cega e oprime, e tenta levar o mundo a uma irremediável chatice. E é por isso que ouso dizer que Wiseman está errado em suas conclusões.

O fantasma não é o vento disfarçado. O vento é que é o fantasma disfarçado.

The boredom always rings twice

Eu não agüento Tribalistas.

Meu adjetivo preferido para eles é “chato”, só isso. Olhando seus integrantes, não poderia ser diferente.

Marisa Monte começou com uma grande promessa, depois gravou um grande disco e depois cismou que era compositora. Seus discos são profundamente iguais, com letras que uma criança recém-saída do Infantil II poderia fazer, e como cantora ela não melhorou nem um pouco de 1989 para cá.

Arnaldo Antunes, bem — digamos que seu melhor trabalho está nos Titãs.

E o Carlinhos Brown é problema do Chico Buarque, não meu.

São esses sujeitos que anunciam a possibilidade de gravar um novo disco. Deus. Já prevejo um verão lancinante, com esse calor infame do Rio, ao som de “Já Sei Bolinar”.

A morte de uma canalha genial

O obituário do Globo cometeu uma injustiça com Leni Riefenstahl: disse que só recentemente ela foi reconhecida como grande cineasta.

É um profundo desconhecimento da história do cinema. Antes da II Guerra, Leni era considerada uma espécie de gênio, premiada em Veneza, por exemplo.

Não era à toa. Suas duas grandes obras, “Triunfo das Vontades” e “Olympia”, são marcos do documentário cinematográfico. O primeiro por mostrar de maneira grandiosa, inovadora e brilhante o congresso do Partido Nazista em Nuremberg. O segundo, o filme oficial das Olimpíadas de 1936, por dar ao corpo humano uma dimensão digna do ideal grego de beleza. Ambos podem ser encontrados em DVD nos EUA, e, obviamente, em DivX nas boas redes de troca de arquivos.

Os problemas de Riefenstahl começaram quando os soviéticos meteram o pé na porta de Berlim. Ela obviamente caiu em desgraça ao lado do regime a que dera tradução visual. Mas já faz um tempo que o mundo inteiro voltou a admitir a genialidade da moça.

MPTrama

Enquanto nos EUA os cérebros pouco privilegiados da RIAA saem largando processos a torto e a direito, no Brasil uma gravadora nova e pequena mostra que existe inteligência no ramo.

A Trama disponibiliza MP3 de vários de seus artistas. Basta se cadastrar no site e baixar as músicas disponíveis.

Só não digo que a atitude é genial porque é tão simples e óbvio que fico com vergonha de dizer isso.

A Trama percebeu o que as gravadoras se recusam a admitir: que como a MP3 é incontrolável, a única saída para gravadoras, neste momento, é tentar assumir a dianteira e divulgar seu próprio trabalho. Divulga o que quer, tenta garantir mais vendas e ganha alguma coisa em relações públicas.

Algumas das canções chegam a estar em 192 Kbps. E não são o pior de cada álbum.

Digitando e datilografando

Assim como o Alter, acho “datilografar” um verbo muito mais melhor de bom. Até porque significa “escrever com a ponta dos dedos”; tenho a impressão de que “digitar” está mais próximo de “apontar”.

Há uma coisa que chamo de “arrogância da ignorância”, e que é provavelmente a coisa que mais me irrita em todo o mundo. É quando a ignorância mostra toda a sua truculência, todo o seu orgulho em ser o que é, e tenta se impor majestosamente sobre o que é certo, geralmente se baseando no senso comum.

Agora juntando os dois parágrafos para dar algum sentido a isso: há algum tempo, conversando bobagem com um semi-desconhecido, falei que estava datilografando algo no computador. O idiota riu. “É ‘digitando’, animal”.

Animal, sim. Mas racional.

(Ah, Alter, você esqueceu da queridinha dos call centers: “eu vou estar mandando isso amanhã”.)

Comunicação

Biajoni, tecnicamente a linguagem da Internet não chega a ser um dialeto. É apenas uma forma abreviada de codificação de sinais, uma espécie de taquigrafia digital. “Pq vc ñ riu qdo viu” não representa uma linguagem nova, mas apenas “Por que você não riu quando viu” escrito com menos toques. Continua sendo falado da mesma maneira, e significando a mesma coisa.

Não é sequer original: estudantes vêm fazendo isso há décadas, e é daí que essas abrevições vêm.

A única contribuição que a Internet poderia vir a dar à linguagem, na minha opinião, seriam os smileys. De certa forma eles enriquecem a linguagem escrita. Mas só de certa forma: servem para dar clareza a um texto que, se fosse realmente bem escrito, os dispensaria por redundantes. São típicos de uma escrita condensada ao extremo e apressada. Adequados à época, talvez, mas que não servem como desculpa. Mas isso é opinião de purista.

"Yellow Go Home"

Um dos maiores mitos da história americana é o de que os pioneiros do Mayflower (aqueles que deram ao mundo a idéia nojenta do peru no Dia de Ação de Graças, aqui no Brasil transplantada para o Natal) foram para o Novo Mundo fugindo à perseguição religiosa na Inglaterra.

Foi justamente o contrário: eles foram proibidos de perseguir os outros. Então decidiram que, dessa forma, morar na velha Albion não tinha mais graça. A Inglaterra ficou, de repente, sem sal.

Essa foto, tirada nos EUA no início da década de 1920, é a melhor prova disso. E eu pensando que o problema deles era com os crioulinhos.