Cenas dos Próximos Capítulos

Uns meses atrás falei que nunca gostei de novelas e o Leo Bernardes disse que eu era noveleiro enrustido.

Não é verdade. No início desta ainda curta passagem por este vale de lágrimas, eu odiava novelas, porque impediam que eu visse seriados e desenhos na TV Itapoan. Mais tarde, aprendi a tolerá-las, e cheguei a assistir com alguma regularidade a algumas. Hoje novelas antigas me interessam, por um tipo especial de nostalgia e curiosidade. Mas isso as pessoas já deviam saber, já escrevi sobre elas neste blog.

O que ninguém por esta internet afora sabe é que já ganhei a vida escrevendo resumos de capítulos de novelas para uma rádio do interior de Sergipe.

Sabe como é. Eu era jovem. Os tempos eram difíceis. Eu precisava de dinheiro. Às favas com os escrúpulos de consciência.

Ainda tenho alguns desses textos, que se não me engano sobreviveram em um disquete à primeira perda de um HD. São seis, o que me faz acreditar que eu escrevia todos os programas da semana seguinte de uma vez.

No fundo, era uma espécie de picaretagem — falo envergonhado em “picaretagem” como se rádio fosse outra coisa. Funcionava assim: as revistas semanais de fofocas, como a Contigo! e umas outras, costumavam publicar os resumos dos capítulos das novelas da semana seguinte; antigamente as pessoas eram mais sensatas e não tinham tanta raiva de spoilers. Eu recebia as revistas, cozinhava seus resumos, acrescenava o que fosse preciso e mandava por fax para a rádio. Depois, com o meu primeiro computador, passei a fazer isso de casa, indo para o escritório da rádio para enviá-los. Acho que foi por isso que esses textos — não chegavam a ser exatamente roteiros — sobreviveram.

Como os resumos das revistas eram sempre muito curtos, telegráficos até, eu precisava aumentar o texto para garantir tempo de programação. Fazia isso falando besteira, enchendo linguiça e tentando utilizar uma linguagem mais leve, mais coloquial. O nome do programa era o mais óbvio possível, e perfeito: “Cenas do Próximo Capítulo”.

Assim, se a revista dizia algo como “Ilka encontra Ataliba com três mulheres no Quem Me Quer, chora e termina o namoro”, o trecho ganhava o seguinte título: “No capítulo de hoje de ‘Fera Ferida’, Ilka pega Ataliba no cabaré!” O texto seguia a cronologia de cenas no resumo da revista. E o trecho específico sobre essa cena virava isso:

E não é que a Ilka Tibiriçá, que anda mais enrolada com o Ataliba Timbó do que pé de maracujá em cerca de arame farpado, dá um fora no ex-jogador, ex-namorado e ex-homem? Pois é, gente. Acontece que hoje a moça, que pode ser agoniada mas é uma senhorita decente, pega Ataliba com três moças no Quem Me Quer. Três, é mole? Justo Ataliba, que não conseguia dar conta de uma só. E aí ela cai no choro. Com razão, né? Mas cá pra nós, chorar por um cabra safado desses? Tenha santa paciência! Antes dela dar aquelas comidinhas pro Ataliba, ele não era capaz de pegar nem meia mulher, quanto mais três. Agora taí, esbanjando. Tome prumo de homem, Ataliba… Mas olha, tem uma moça que também precisa tomar tenência na vida. Linda, mais uma vez, vai atrás de Flamel. Ô, mulher, se respeite… Parece mulher de malandro, gente!

Acho que cada novela era abordada em um intervalo comercial diferente da programação normal, ao longo do dia. Não sei. Na verdade, eu nunca ouvi os programas que escrevia, porque eram feitos ao vivo. Não imagino que ficassem bons, porque não eram bons locutores os que andavam por ali.

Mais importante, talvez: faltava assistir às novelas. Eu não vi mais que uns poucos capítulos esparsos de cada uma delas: à noite eu estava na universidade, bebendo em algum bar do Rosa Elze, conjunto que fica em frente e era então ainda mais barra-pesada do que é hoje, ou tentando sem sucesso arrastar alguma incauta para uma noite de prazer indizível nas cabines da biblioteca, ou assim eu tentava convencê-las, coitadas — coitadas, não; moças de sorte e juízo, porque nunca aceitavam. As aulas de Processo Civil não eram exatamente o que eu mais frequentava naquele antro do saber. E assim, o que eu sabia das novelas que descrevia para o público sertanejo era apenas o que lia nos resumos e em eventuais matérias daquelas mesmas revistas.

Não tinha como dar certo.

Fazia décadas que eu não lia esses textos. Olhando agora, percebo como eram ruins. Faltava a este garoto a tarimba do rádio, o ritmo da palavra falada, a interação com os locutores, a compreensão de que o texto podia ser um pouco mais bombástico, mais conversado, mais empolgante — “Pega fogo, cabaré! Hoje Ilka pega Ataliba com três quengas no Bem Me Quer!”. Faltava também o domínio da linguagem sertaneja, que deveria estar aí, nesses textos. Faltava tanta coisa. Fosse mais velho e levasse as coisas mais a sério, em vez de apenas escrever eu insistiria em produzir e dirigir o programa — pensando nele como um todo, não apenas como texto.

Dane-se. Mais um para a lista de coisas que eu poderia e deveria ter feito melhor ao longo da vida. Pegue a senha 2746 e sente ali no fim na fila, por favor.

Mas tinha um programa ainda pior, porque esse não era o único que eu escrevia. “Vida de Artista” era um programa de fofocas que ia ao ar aos sábados. Essencialmente as matérias dessas revistas reescritas e condensadas. Desse só sobrou um, e era muito ruim. O texto do programa que sobrou tem menos humor, mais maldade e é mais duro: o programa me parece, lido superficialmente agora, um grande equívoco. Certamente não é nada que se compare a tantos programas bem sucedidos que hoje existem por aí. Sônia Abrão pode ficar tranquila: eu jamais poderia tirar o seu emprego.

Eu realmente não consigo lembrar se esses dois programas faziam sucesso ou não. Acho que não, porque tenho a sensação de que não duraram muito, mas não lembro a razão. Por mais inacreditável que pareça, tampouco sei como meu período como redator de rádio chegou ao fim: não sei se fui dispensado ou se fui fazer outra coisa que desse um pouquinho mais de dinheiro; foi mais ou menos nessa época que fiz minha primeira campanha eleitoral.

Já se passaram mais de 30 anos. Não existe mais Contigo!, não existe mais fax, e telenovelas são uma sombra do que foram um dia na vida cultural destes tristes trópicos. Sobrevivi a tudo isso. Posso reclamar, não.

A loura, de volta

Dorothy Parker voltou a ser publicada no Brasil.

Era absurdo, mas até poucos meses atrás não havia nenhum livro de Dorothy Parker em catálogo por estas bandas. A Companha das Letras relançou “Big Loira e Outras Histórias de Nova York”. Se alguém tem dúvidas de que o livro é excelente, basta olhar uma das pouquíssimas resenhas publicadas por leitores no site da Amazon:

Os contos me deixaram meio deprimida. Ficaram datados: falam de mulheres e homens que bebem, que traem e que não têm muitos objetivos na vida. São deprimentes e deprimem o leitor/ leitora. Talvez na época em que foram escritos refletissem uma realidade que precisasse ser conhecida e discutida. Me decepcionei, infelizmente.

Se há recomendação melhor para que se compre e se leia o livro com urgência, eu não conheço. Só posso dizer que fico feliz por saber que pessoas que bebem, traem e não têm muitos objetivos na vida são coisa do passado, e triste por ver como o nível intelectual da Tupilândia decaiu tão absurda em umas poucas décadas.

Parker é uma das grandes escritoras americanas do século XX, ponto. Não conheço sua obra poética. Conheço a contista, que vai muito além da crônica dos roaring twenties. The Portable Dorothy Parker, uma coletânea alentada de seus melhores contos, é um daqueles livros essenciais na literatura americana. Seus contos têm uma causticidade irônica que disfarça uma capacidade extrema de ver o tragicômico nas pequenezas da vida. Há uma ironia e uma melancolia extrema em seus contos, mas há também uma comiseração e empatia em relação aos seus personagens, talvez condescendente, mas sempre humana.

Por isso era um absurdo que não houvesse nada dela no Brasil. Já tinha havido. No final dos anos 80, foi lançado aqui “Big Loira e Outras Histórias de Nova York”. Era uma coletânea de alguns contos da moça, traduzida pelo Ruy Castro.

Eram tempos instigantes, aqueles. A Companhia das Letras era então uma editora jovem e ousada. E em torno dela circulava uma geração, então na casa dos seus 40 anos, que tinha sido formada nos anos 50 e 60, quando a indústria cultural americana impunha um novo padrão ao mundo. Gente como o próprio Ruy Castro, Sérgio Augusto, alguns outros. Graças a esse ambiente, a literatura americana do século XX, provavelmente a mais rica de seu tempo, foi publicada extensivamente pela editora: como Parker, Cheever, Bellow, Bashevis Singer, Malamud, Doctorow.

Parker é uma das melhores dessa safra, competindo apenas com Cheever.

A nova edição troca “loira” por “loura”, não sei se por imposição da nova ortografia ou por simples evolução do vernáculo. A nova capa é adequada, embora a original fosse mais sofisticada; a nova, sei lá por quê, me lembra os livros da Codecri. Tampouco sei se a tradução é a mesma. O que sei é que, seja como for, vale muito a pena.

Sobre livros

Parei de ler o conto de Tchekov porque naturalmente lembrei de John Cheever, e consequentemente lembrei de Dorothy Parker — mas agora a lógica é só minha porque descobri um e outra na mesma época. Coloquei o livro de lado, o cinzeiro na barriga e fiquei olhando para as vigas e ripas do telhado que tive que fazer e refazer porque primeiro reutilizei as telhas antigas da casa velha e elas eram ruins. Fidel está deitado ao pé da cama, Ceci sempre agoniada entra e sai do quarto, esperando acordar meu sobrinho que dorme no quarto ao lado.

No que penso é simples, penso nisso de vez em quando.

Tenho a impressão de que as pessoas estão lendo de maneira diferente. Talvez seja a minha ancianidade, a minha impaciência, ou a minha intolerância que não para de crescer, e então não vejo mais o que está à minha volta; mas leitores como os que eu via, que se aproximavam de livros como quem encontra fortuitamente um desconhecido na rua, esses eu não vejo mesmo. Vejo gente que descobriu um autor qualquer, normalmente menor, na universidade, e fala dele como velhinhos falam de Joyce ou Mann, ou um grupo de autores, quase sempre contemporâneos ou defuntos ainda frescos, porque eles são mais palatáveis a uma cultura imediatista, excessivamente abundante, uma corrida de ratos em que já não se sabe qual o prêmio, mas se sabe que não dá para deixar de correr.

Nas internets não vejo muitas conversas sobre literatura que não façam parte de guetos universitários, onde meninos são guiados pelos caminhos de escritores que interessam aos seus professores e seus artigos publicados em revistas que ninguém lê; parecer haver mesmo uma competição cujas regras só eles conhecem, uma busca por autores que eles conheceram antes que o resto daquele seu pequeno mundo — “antes que fosse modinha”, como dizem em seu dialeto —, que possam lhe dar uma certa primazia no conhecimento e que reflete uma certa obsessão permanente pelo novo que vai lhe fazer diferente e talvez melhor, como se um livro fosse um vestido de costureiro chique.

Vejo mais frequentemente conversas sobre livros, mediadas pelo consumo e pelo mercado, sobre edições bonitas com todos aqueles truques supérfluos que as editoras usam para tornar uma sequência de folhas de papel sujas de tinta em um objeto mais desejável peloseus  valor como objeto do que pelas palavras e frases que formam, como letras grandes e papel com gramatura maior e capas duras, sempre mais respeitáveis que brochuras.

Aí eu lembro que literatura também é moda. Nos anos 80, uma geração americanófila exercia uma influência enorme; isso mudou, se tornou mais diverso, paradoxalmente mais rico e menor; mas ainda assim é moda. A nova moda agora são autoras negras, parece. Amanhã talvez sejam índios, eu não sei.

Lembro também que houve um tempo em que havia uma certa unidade em torno de livros, que a internet matou. Graças a um ecossistema que incluía jornais e revistas, essas coisas que ninguém mais compra, alguns livros extrapolavam os limites do mercado, vendiam tiragens bem maiores que as três mil por edição de praxe. E esses livros ajudavam a criar elos em comum entre as pessoas. De memória, é fácil lembrar de tantos: “Vastas Emoções, Pensamentos Imperfeitos”, “Estorvo” numa resenha magnífica de Roberto da Matta na Veja (ou será que minha memória me trai mais uma vez?), “Perestroika”, “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”, “Personas Sexuais” de uma Camille Paglia que o identitarismo enxotou da moda. Tudo isso acabou. Alguns livros, por suas qualidades, conseguem superar seus guetos, mas ao mesmo tempo porque se adequam a uma percepção cada vez mais “nidificada” do mundo. “Torto Arado” talvez seja o melhor exemplo: se destaca ainda mais por outro elemento que não suas qualidades óbvias, mas porque está perfeitamente inserido naquilo que a nova elite intelectual quer ouvir e permite dizer.

Por isso penso no meu sobrinho que Ceci está esperando acordar, que parece saber tantas coisas, muito mais do que outros meninos de sua idade, mas que no entanto não parece ler tanto; e então fico com a impressão de que esse conhecimento vem pelo YouTube, ou de alguma outra rede social, e a maneira como se relacionam com esse conhecimento é diferente, e a própria natureza desse conhecimento é diferente. É um mundo diferente o que se forma à minha frente. Então talvez seja por isso que não vejo as pessoas falando de Cheever, nem ostentando o sorriso amargo que um conto de Dorothy Parker deixa na cara das pessoas.

Ontem matei uma aranha marrom antes que a curiosidade de Ceci a fizesse ser picada; e lembrei que se contasse isso nas internets algum desses moços ou moças que não conseguem mais viver sem tentar impingir aos outros suas boas intenções telúricas iria dizer que não se deve matar aranhas, porque elas fazem parte do ecossistema e são criaturas de Deus iguais em direitos a mim e superiores ao mendigo sem as duas pernas, porque comem isso e aquilo, sei lá que diabo elas comem.

Eu mato, mato, mato com gosto. Mais gosto, só em matar lacraia, porque eu já fui picado por uma e o seu veneno, em vez de me transformar no Homem-Lacraia porque eu não fui criado por Stan Lee, fez de mim o Psicopata do Piolho de Cobra, um vingativo raivoso que começa a tremer de ódio e a espumar pela boca quando vê uma lacraia.

Mas a conversa era sobre livros, acho. Ou não, não sei mais. Retomi o conto de Tchekov, que é o melhor que eu podia fazer.

A poesia das causas siderais perdidas

Existe um curso online de ufologia. Eles dão certificado e tudo. E você pode fazer mesmo que tenha sido abduzido, já que não é presencial.

Se eu fosse ainda o Rafael de 15 anos atrás estaria espantado com a estupidez do mundo, agora arreganhada sem nenhuma vergonha diante de meus olhos cansados. Mas nesses últimos anos passamos por tanta coisa. As manifestações de junho de 2013, a histeria canalha da Lava Jato, o impeachment de Dilma, Michel Temer, a ascensão da extrema direita, a eleição de Jair Bolsonaro, os quatro anos de tragédia e agonia, a pandemia de COVID. Passamos pelas pessoas que rezam para pneus e pela Cagona do 8 de Janeiro, a velha traficante que transformou o mero defecar em ato de terrorismo. Passamos pela transformação da esquerda em uma auxiliar boazinha de um capitalismo cada vez mais exigente, preocupada em me empurrar goela abaixo a ideia de que se eu falar “todes” as mazelas do mundo estarão resolvidas. Passamos pela consolidação da cultura do cancelamento, pela universalização da estupidez através das redes sociais.

Diante de tudo isso, a existência de ufólogos é quase um refresco, a sensação reconfortante de que a estupidez, afinal, não é de hoje e algumas coisas são permanentes neste mundo baumaniano. Para mim, ao menos, significa um tipo de maluquice inofensiva e quase benevolente, o sujeito que chamamos de excêntrico porque é o tipo de doidinho que não faz mal a ninguém, nem mesmo a ele. É uma variedade einsteiniana do astrólogo.

Mais que isso, me surpreende a tenacidade e a resiliência desse pessoal. Agora que todos têm uma câmera na mão, parece que ninguém mais tem uma ideia na cabeça.

É o grande paradoxo sideral destes tempos: há câmeras em tudo quanto é bolso, e mesmo assim ninguém agora tira foto de um disco voador. A chance que ufólogos tinham de provar que estavam certos, que os idiotas éramos os céticos, até agora não foi aproveitada.

Ninguém mais é abduzido, ninguém mais dá passeios pelo lado escuro da lua — nem mesmo a melhor das promessas feitas por esses alienígenas safadinhos, a ET verdinha e gostosa dos peitão que vinha fazer um filho para levar lá para a constelação da Ursa Polar, ah, nem mesmo isso parece existir mais. Os ETs broxaram, e nós também.

Por tudo isso é de se respeitar, sim, a insistência em acreditar no inacreditável.

E assim como admiro os golpes de Afonso Coelho, assim como um dia ainda compro um busto de Victor Lustig, o gênio que vendeu a Torre Eiffel como sucata, preciso prestar meus respeitos ao malandro que criou esse curso.

Porque de uns tempos para cá dei de pensar que deixar de acreditar em OVNIs é, no fim das coisas, uma coisa ruim, ruim e triste. Porque fazer isso seria como deixar a imaginação para os roteiristas de filmes de ficção científica, que seguem sempre a mesma inspiração, as mesmas fórmulas. Acreditar em OVNIs significa um resquício de fé no improvável, de teimosia em acreditar no que não existe; é, e isso é talvez o mais importante, uma forma mais pura de fé que a dos religiosos; ufólogos não esperam nada de ruim dos ETs, esperam paz e progresso e levá-los ao nosso líder — e não fazem mal a ninguém, nem mesmo a eles, ao contrário de quem acredita que seu Deus que os faz matar em nome do amor.

Borges dizia, e eu sempre repito, que a um cavalheiro só interessam as causas perdidas. Nenhuma causa é mais perdida do que essa, e isso a justifica e engrandece. E é assim, transformando a estupidez no mais próximo que consigo chegar da poesia, que a gente segue levando a vida.

Playboy

A primeira Playboy que comprei foi a de novembro de 1984, com Christiane Torloni na capa. Mas não foi por causa dela: foi pela entrevista com Paul e Linda McCartney. Deve ser por isso que, até hoje, uma das coisas que me irritam é quando riem descrentes de quem diz que “comprava a Playboy pelas entrevistas”. Pelo menos a primeira que comprei, foi.

Eram tempos diferentes: eu era um recém-adolescente mas o jornaleiro não via nenhum problema em me vender uma revista expressamente proibida para menores de 18 anos. Não havia, mesmo. Talvez porque a ditadura e a Censura estavam chegando ao fim e o país se sentia um pouco mais livre, respirando melhor; mas principalmente porque o Brasil de 40 anos atrás era menos pudibundo, menos americanizado, e todo mundo parecia ter uma relação diferente com a imagem do corpo, especialmente com a nudez, e era honesto o bastante para preferir a beleza. Basta lembrar os biquínis daqueles tempos, os fios-dentais, os asas-deltas, lembrar que nos comerciais de então a nudez era farta e comum. Isso ia até o exagero: sei de um comercial dos jeans Villejack que sugeria nada menos que uma suruba. Procura no YouTube que você acha.

Mais tarde, início dos anos 90, assinei a revista em alguns momentos de mais dinheiro. Obviamente, as moças belas em suas páginas eram um grande atrativo — quem não ficou fascinado pela Luciana Vendramini ou pela Andréa Guerra ou pela Vanusa Spindler, quem? É uma questão estética: para héteros ou gays, eu tenho certeza de que o apelo da Playboy era universal porque, como costumávamos dizer a quem ria de nossas desventuras, “mulher bonita até gay come, quero ver é ser macho pra pegar os urutaus que andei pegando” —, mas as entrevistas eram sempre uma parte importante. A entrevista de Tim Maia, por exemplo, é inesquecível.

Na mesma época um amigo que casou com uma mulher ciumenta me deu sua coleção, cobrindo boa parte da segunda metade dos anos 80. Revistas que depois desapareceram, infelizmente. Mais tarde, cheguei a ter um CD-ROM com todas as entrevistas da Playboy americana, das quais, infelizmente, li poucas antes que ele sumisse pelo mundo. E não lembro com muita certeza, mas não duvido que tenha sido numa entrevista à Playboy que Sandy & Júnior declarou a possibilidade de “prazer anal”; o fato de isso ter causado algum rebuliço então é uma mostra de como o mundo mudou: recentemente a Xuxa andou dizendo que gosta de sexo anal e de beber certas excreções e ninguém ligou.

Foi também no início dos anos 90 que comprei a primeira Playboy americana e descobri que era uma revista muito melhor que a brasileira. Enquanto esta me parecia destinada a punheteiros que sonhavam com mulheres e bens que jamais poderiam ter, a americana tinha uma postura política e um engajamento que refletia a necessidade ao combate ao puritanismo típico da gringolândia que, infelizmente, se espalhou pandemicamente pelo mundo com a internet. É bom não esquecer nunca que foi na Playboy americana que Gore Vidal publicou um artigo antológico, “Sexo é Política” (publicado aqui no livro “De Fato e de Ficção”). A gente quer putaria, nego, não fingir que é rico. Além disso, enquanto a daqui se dava ares de revista pra gente rica, a de lá não precisava disso. Outra diferença cultural importante era que a daqui se especializou em estrelas da nossa dramaturgia, enquanto a de lá se baseava em puta, mesmo — e eram mulheres de plástico, que eu nunca entendi como podiam motivar algum tipo de desejo; esses americanos são uns loucos.

O tempo passou e a revista ficou cada vez mais chata. E olha que, muitas eras atrás, cheguei a namorar pouquinho tempo uma moça gente boa que saiu sem destaque em uma de suas páginas. As vendas caíam e ela já não podia pagar o que estrelas exigiam. Não sei se por reflexo disso ou se porque o mundo foi mudando e mudando, as entrevistas ficaram mais simplórias. A internet, a consagração da autoexposição pessoal, a abundância de pornografia fácil e barata acabaram tornando a Playboy redundante, da mesma maneira que acabou a velha e boa coluna social. E em algum momento do século XXI ela anunciou que ia fechar e nunca mais ia deixar seus leitores na mão. Não me importei muito. A Playboy era, havia tempo, uma sombra do que tinha sido.

Mas o passar do tempo sempre gera alguma nostalgia.

No fim do ano passado apareceu um site chamado Inside Playboy Brasil que se dedicava a recuperar o material publicado na Playboy. Publicou, por exemplo, entrevistas maravilhosas com Chico Buarque, Caetano Veloso e Chico Anysio, todas da década de 70. Agora, depois de alguns meses, fui procurar pelo site e não achei. Desapareceu. É uma pena. Talvez exista alguma coisa no Internet Archive, eu não sei. Mas é um mau sintoma que sites como esse desapareçam assim. É como se o mundo perdesse um pouquinho da classe que lhe restava num mundo de OnlyFans.

O ano do cometa

Eu mal posso acreditar que vai fazer 40 anos.

Entre 1985 e 1986, só se falava na volta do cometa de Halley — ou cometa Halley, sem o “de”, como era mais comum escrever e falar na época. Um malandro brasileiro registrou o nome e deve ter ganho algum dinheiro, porque aonde se ia se via revistinha em quadrinhos, especial da Globo, reportagens, previsões. A maioria antecipava o alumbramento visual que seria a passagem do cometa e sua cauda incandescente. E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada.

Falava-se também do medo e pavor e terror e pânico sentidos pelas pessoas em 1910, quando ele tinha passado pela última vez.

Eu já conhecia a fama do Halley porque anos antes tinha assistido a um episódio de “Túnel do Tempo” que se passava no dia do periélio do cometa. Sabia do medo, do dia virando noite, da bola de fogo imensa no céu apavorando as gentes.

A única pessoa que eu conhecia e que estava viva da última vez que o cometa tinha passado era minha bisavó. E claro que perguntei a ela como tinha sido, se ela lembrava do pânico generalizado, do medo, da certeza do fim do mundo, se as pessoas em volta dela tinham arrancado os cabelos e se jogado ribanceiras abaixo em um surto de desespero coletivo.

Mas dona Sinhá não lembrava de nada; mais presente em sua lembrança era a pandemia de gripe espanhola, alguns anos depois. Era estranho, porque a pouca idade não justificaria o olvido se a passagem do Halley tivesse sido espetacular como se dizia que tinha sido.

Na madrugada do dia 11 de abril, acho, eu e Gal subimos ao telhado do edifício com um binóculo e procuramos o cometa. Foi uma das grandes decepções das nossas vidas. O que se via depois de muito esforço era uma vaga luzinha borrada, mais ou menos como a luz de um poste distante obnubilada pela neblina.

Tanta expectativa para tão pouco. Algo tinha dado errado para o cometa. E demorei algum tempo para concluir que talvez aquela histeria de 1910 de que eu tinha ouvido falar tivesse sido um pouco exagerada.

Mas essa bobagem é repetida ainda hoje. A própria página da Wikipedia sobre o cometa faz referência ao medo de 1910.

Sempre reclamo que as pessoas têm preguiça de pesquisar. Mas só agora lembrei que podia consultar o Jornal do Brasil na hemeroteca da Biblioteca Nacional e descobrir, finalmente, o que realmente aconteceu.

O ápice da passagem do cometa estava previsto para o dia 18 de maio. Entre janeiro e maio, as poucas referências ao cometa vêm de telegramas internacionais. Boa parte de quem dizia avistar o cometa estava vendo, na verdade, a velha e boa Estrela d’Alva. Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar.

Em 5 de abril já havia relatos de avistamento, desmentidos por cientistas. No dia 24 o JB publica um artigo que poderia ter sido publicado em 1986, fazendo referência ao medo que o cometa já tinha inspirado ao longo dos tempos.

Em 14 de maio, um telegrama do Maranhão dizia que lá já se via o cometa à luz do dia e as pessoas se aglomeravam na rua para ver. Os jornalistas maranhenses, pelo visto, eram uns pândegos. Dia 17 o JB antecipava o grande dia e a “grande chuva de estrelas” que se seguiria, e se perguntava canalhamente se seria o fim do mundo. Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada.

O JB de 19 de maio conta o que aconteceu no Rio de Janeiro na noite anterior. As pessoas se amontoaram na Beira Mar, nos quintais, nos morros, o fim do mundo estava previsto para as dez da noite.

E o que se seguiu foi aquela mesma mixaria que eu veria 76 anos depois.

E quem acreditou nessa conversa mole pensou que o mundo ia se acabar, e foi tratando de se despedir, e sem demora foi tratando de aproveitar. Beijou na boca de quem não devia, pegou na mão de quem não conhecia, dançou um samba em traje de maiô. Chamou um gajo com quem não se dava e perdoou a sua ingratidão, e festejando o acontecimento gastou com ele mais de quinhentão.

Agora eu soube que o gajo anda dizendo coisa que não se passou. Ih, vai ter barulho e vai ter confusão, porque o mundo não se acabou.

Era por isso que dona Sinhá não lembrava do tal cometa. Porque a uma criança no interior de Sergipe, a pantomima midiática simplesmente não chegava. Não havia jornais espicaçando a imaginação das pessoas, gerando ansiedade e medo, nada disso. E o Halley era apenas uma luzinha a mais no céu, visível apenas a quem prestou atenção.

Imagino o que vai acontecer daqui a 38 anos. As pessoas vão falar do pânico de 1986, porque parecem precisar disso. Vão falar que pessoas morreram e outras nasceram, vão falar de tumultos e de desespero.

E se eu estiver vivo, o que é altamente improvável, vou confirmar tudo isso.

Traduttore… Tradittore

A biografia de Walt Disney por Neal Gabler chegou há algumas horas. A tradução é de Ana Maria Mandim. O livro está na terceira edição. E está me lembrando também de algo que eu sempre disse: que o mais importante no ofício do tradutor não é tanto conhecer a língua de que se traduz, mas a língua para a qual se traduz.

Quando o livro menciona a fazendinha em Marceline, Missouri, em que Walt passou parte de uma infância idílica e que transformou no ideal americano de milhões de crianças em todo o mundo, é assim que o trecho é traduzido: “Havia raposas, opossums, guaxinins.” Uma nota da tradutora explica o que é um opossum:

Tipo de marsupial, que não é morcego, com aparência de um rato de pelo longo, encontrado na América do Norte, ao norte do Rio Grande.

Ainda estou em dúvida sobre o que a moça quis dizer: não sei se fico aliviado por saber que morcegos não são marsupiais, ou apavorado ao descobrir que o morcego é um marsupial, mas não é um opossum.

Essa mixórdia seria evitada se a moça soubesse que opossum tem tradução simples e fácil para a última vagaba do Lácio: gambá. Tudo bem que não traduzisse por saruê ou timbu, termos a que estou mais acostumado porque são nordestinos. Mas é gambá, diacho, bicho que a gente vê o tempo todo em quintais e esmagados em estradas. Um opossum é tão gambá quanto um raccoon é guaxinim — apenas são espécies diferentes: o único gambá da América do Norte é o gambá-da-virgínia, assim como o guaxinim do Norte é o raccoon e o nosso é o guaxinim ou mão-pelada. Se traduziu raccoon por guaxinim, que traduza opossum por gambá porque a lógica é a mesma, e está tudo certo e a gente segue a leitura em paz.

Mas não, não fez isso e hoje vou ter pesadelos com morcegos marsupiais revoando meu telhado e carregando morceguinhos vampiros em sua bolsa.

O mais irônico é que tudo isso eu aprendi assistindo a “Disneylândia”, nos meus verdes e tão distantes anos.

Mas a coisa não termina aí.

A tal fazenda “era, nas palavras da tia de Elias, ‘um lugar muito boíto’”. A nota da tradutora explica:

No original, a frase é “very hansome (sic) place”. O correto seria “handsome”.

Eu até posso ouvir Elvis ou Carl Perkins falando hansome. Mas ninguém neste país assolado por Pablo Marçal fala “boíto” no lugar de bonito, com exceção de Didi Mocó muito tempo atrás. Traduzisse por “bunito”, tradução muito mais aproximada do contexto original, e não precisaria sequer de nota.

Tudo isso é na página 26. Tenho mais 700 pela frente. Que Deus me proteja.

Ópera de Borracha

Não sei como as pessoas deixam isso passar batido e ficam aclamando injustamente o Sgt. Pepper’s Lonely Hears Club Band como o primeiro álbum conceitual dos Beatles, essas coisas aí que todo mundo repete que nem papagaio.

Porque o verdadeiro ábum conceitual da banda veio muito antes. É o Rubber Soul. É tudo tão óbvio.

O álbum começa com o sujeito recebendo um convite pra dirigir o carro de uma moça que quer ser uma estrela. Mas ela não tem carro; aí ele vai até o apartamento dela e toca fogo em tudo, e diz que ela não o verá mais, porque ele é um sujeito fazendo planos de lugar nenhum. Por isso ela vai ter que pensar por si própria: e se quiser ser livre, que diga a palavra “amor”: porque ele a ama, a ama, a ama, é tudo o que ele tem a dizer. Então pergunta o que é que está se passando na cabeça dela, e reclama que ela é o tipo de garota deixa os outros para baixo e se sentindo otários, mas ele está sacando a dela — e ainda assim, de todos os amigos e amantes, ninguém se compara a ela. Por isso ele pede para ela esperar até que ele volte, e escreva seu número no muro de sua casa porque se ele precisar de alguém, é nela que ele vai pensar. Mas que ela tome cuidado: ele prefere vê-la morta do que com outro homem, e se ela aprontar alguma, é melhor correr para não morrer.

Se isso não é uma ópera italiana, eu não sei o que é.

Não vivemos mais no mundo em que nascemos

O título deste post é um comentário do Thiago ao post de ontem,

É algo em que sempre acreditei. E talvez tivesse até alguma razão, como Heráclito tinha ao colocar o pé no rio. Mas eu estava enganado, porque só agora a frase se torna realmente verdadeira.

Eu era criança em 1980. Via filmes dos anos 50 ou 60 e achava que vivia mesmo num mundo completamente diferente, e não percebia que o que era essencial no mundo não tinha mudado em nada. Talvez justamente porque tanta coisa permanecia inalterada, era mais fácil ver o que tinha se transformado — os carros eram diferentes, as roupas eram diferentes — e dar a isso uma importância maior do que realmente tinha, como se o bolo de chocolate virasse bolo de morango porque a cobertura mudou.

Em 1960 uma criança — e é isso o que mais me importa aqui, a infância — ia para a escola sentar com lápis e papel para aprender o que professores escreviam em quadros-negros, ia brincar com os amigos na rua. Via TV, os mesmos desenhos e seriados e novelas que seus vizinhos assistiam, os pais liam os jornais e revistas que seus vizinhos liam, ia-se para o cinema ver o filme que todos iam ver.

30 anos depois, a vida continuava exatamente a mesma. A TV tinha ganhado cor, as modas tinham mudado — mas a essência das coisas, não. Os elementos fundamentais da vida cotidiana continuavam os mesmos. Em 1990 os filhos daquelas crianças de 1960 continuavam usando lápis e papel na escola, aprendiam com livros e quadros-negros, à tarde iam para a rua brincar, ou ver TV, e à noite estavam diante da TV, com jornais e revistas em volta. O mundo era o mesmo, só mudava a maquiagem e uma roupinha nova. Mas a gente pensava que tinha mudado tanto.

Agora a gente olha 30 para trás e percebe que só agora a frase se torna verdadeira. Internet e smartphones mudaram a maneira como as pessoas se relacionam, mediam mesmo a sua interação com o mundo. As pessoas sabem menos porque, paradoxalmente, o mundo lhes oferece mais e mais. Amizades e amores se formam à distância. Encontros são mais raros, e considerados cada vez mais perigosos. Vidas encapsuladas se tornam cada vez plenas na percepção de quem as vive. Essa é uma mudança real.

(Me permito achar isso tão estranho. Em 1980 eu tinha 9 anos e saía da Euclydes da Cunha, onde morava, pegava um ônibus ao lado do antigo Campo da Graça e descia em frente ao cine Guarani, na praça Castro Alves. Assistia ao filme, atravessava a rua e pegava o ônibus que me deixaria no mesmo lugar. No ano seguinte, talvez me achando adulto aos 10, não era incomum ir ao centro da cidade a pé — Rua da Graça, Corredor da Vitória, Campo Grande, Avenida Sete, rua Chile, Praça da Sé onde ainda existia algumas livrarias —, mas era muito mais comum ir até a Barra de onde eu nunca deveria ter saído, brincar com amigos no meu pequeno feudo que ia do final da João Pondé até a Alameda da Barra, hoje mais conhecida como rua Miguel Calmon. Não sei de criança de classe média que faça algo parecido hoje.)

Havia uma certa unidade de pensamento que a internet extinguiu, e as pessoas, fossem quem fossem, tinham mais coisas em comum.

O fim da TV aberta é um símbolo importante disso, e por isso o impacto simbólico da morte do patrão do Lombardi. Por ser linear e analógica, durante algumas décadas, ela ajudou a unificar o país e definir uma base social e cultural comum. Eu nunca assisti a Silvio Santos ou Faustão ou Hebe, mas nunca tive dúvidas de que, como outros marcos da TV como o Jornal Nacional, o Fantástico, as telenovelas, eles representavam essa permanência e essa unidade. E é por isso que sua morte — e o fim do programa do Roberto — dá a impressão de ser a pá de cal num mundo que vem morrendo há muito tempo.

Sempre me incomodei com aquele pessoal que vive dizendo que “no meu tempo era melhor”, porque essa lenga-lenga é repetida a cada geração. Não era o seu tempo que era melhor, você é que era. Agora, pela primeira vez vejo diferenças que me incomodam. Ao contrário de gente que publica livros dizendo que a burrice se alastra — impressão que, a propósito, tenho a cada olhada nas redes sociais —, não acho que as novas gerações estejam menos inteligentes. Mas tenho a sensação cada vez mais incômoda de que estão mais fechadas, mais isoladas, sem perceber a grande maravilha que é a diversidade de informações, de conhecimentos, de opinião, de gostos mundo afora. A internet é uma das responsáveis por isso: o mundo parece ter diminuído demais para tanta gente.

Em “O Incrível Homem Que Encolheu”, um pequeno grande filme de 1957, encolhemos porque descobríamos a nossa pequenez diante de um mundo cada vez maior que nós mesmos tínhamos criado; agora, encolhemos porque escolhemos fazer com que o mundo encolha conosco.

É por isso que ver a frase do Thiago agora me fez pensar. 30 anos atrás, eu pensava que isso já era verdade, e embora iludido achava isso uma coisa boa, boa de verdade. Perceber que agora isso se torna verdade não é apenas melancólico demais: é assustador.